Thursday 30 January 2020

Thursday's Serial: "Memórias de um Sargento de Milícias" by Manuel Antônio de Almeida (in Portuguese) - the end


XXI - Descoberta           
É muito antigo dizer-se que há uma coisa ainda pior do que um inimigo, e é um mau amigo. Um dos convidados do Leonardo-Pataca dizia-se muito amigo do Teotônio, e pelo empenho que o Leonardo mostrara em livrá-lo das garras do major, protestara desde logo repartir com ele parte dessa amizade, sem que nenhum dos dois ficasse prejudicado. Poucos instantes depois desse protesto deu logo a primeira prova de que estava disposto a cumpri-lo.
Enquanto se passavam as cenas que acabamos de descrever tinha amanhecido: o major e sua gente punham-se em retirada: ainda se achavam porém nas imediações do lugar onde se Havia feito a tentativa para prender o Teotônio, quando o tal amigo a que nos referimos, que fora um dos últimos a retirar-se, encontrando a patrulha, e vendo que o Teotônio não ia no meio dela, concluiu que os planos haviam surtido bem, e que o major ficara desta vez logrado. Teve por isso um acesso de alegria; e esquecendo a presença do major, correu ao Leonardo, abraçou-o, exclamando com arrebatado ímpeto:
— Bravo! como esta não fazes duas em toda a tua vida; foi limpa; ele há de ficar-te obrigado para sempre, e eu com ele, porque sou seu amigo e teu também!
O Leonardo ficou estático diante de semelhante imprudência. O major, que ia cabisbaixo pensando no logro que acabara de levar, voltou-se repentinamente: a palavra ele, proferida pelo terrível amigo, abriu luz a seus olhos. O Leonardo foi tirado do torpor em que se achava pela voz do major a dizer-lhe compassadamente:
— Recolha-se preso ao quartel.
A esta sentença o Leonardo ergueu do fundo d’alma tudo quanto havia aí de despeito, de rancor, e lançou um olhar sobre o imprudente que a havia provocado, e que ainda muito senhor de si apertava-lhe desapiedadamente a mão, que parecia não estar disposto a largar tão cedo.
Deixemos agora o Leonardo, vítima de sua dedicação, caminhar preso para o quartel, e passemos a outras coisas. Há muito tempo que não falamos em D. Maria e na sua gente. Saibam os leitores que, passada a lua-de-mel, em que tudo foram rosas, o nosso José Manuel pusera, como se costuma dizer, as mangas de fora, e tais coisas fez, que em poucos meses estava tudo em guerra aberta; tinha-se ele com sua mulher Luisinha mudado de casa de D. Maria, e por causa de dote vai, dote vem, herança daqui, herança dali, havia-lhe D. Maria proposto uma ação por tal sorte complicada, que era de desconfiar que não bastassem para ver-lhe o fim os dias que restavam de vida à pobre velha.
Tinha-se José Manuel tornado para Luisinha um verdadeiro marido-dragão, desses que só aquele tempo os conta tão perfeitos, que eram um suplício constante para as mulheres. Depois que se havia mudado de casa de D. Maria, nunca mais Luisinha vira o ar da rua senão às furtadelas, pelas frestas da rótula: então chorava ela aquela liberdade de que gozava outrora; aqueles passeios e aquelas palestras à porta em noite de luar; aqueles domingos de missa na Sé, ao lado de sua tia com o seu rancho de crioulinhas atrás; as visitas que recebiam, e o Leonardo de quem tinha saudades, e tudo aquilo enfim a que não dava nesse tempo muito apreço, mas que agora lhe parecia tão belo e tão agradável. Tendo-se casado com José Manuel, para seguir a vontade de D. Maria, votava a seu marido uma enorme indiferença, que é talvez o pior de todos os ódios.
Pois a vida de Luisinha, depois de casada, representava com fidelidade a vida do maior número das moças que então se casavam: era por isso que as Vidinhas não eram raras, e que poucas famílias haviam que não tivessem a lamentar um desgostozinho no gênero do que sofreu aquela pobre família, que indo ao Oratório de Pedra, viera dizimada para casa, e cuja história serviu de tema às intrigas da comadre, quando quis pôr a José Manuel fora do lance.
Ora, é claro que tendo D. Maria ficado um pouco séria com a comadre por causa de toda aquela intriga que precedera ao casamento de José Manuel com sua sobrinha, agora, que estava com este de candeias às avessas, se reatasse o laço da amizade que por um pouco afrouxara: sucedia assim com efeito.
Um dia as duas encontraram-se na missa, tornaram-se a falar; as desgraças do Leonardo, que fizeram tema a essa conversação, enterneceram a D. Maria, que por seu turno também referiu à comadre tudo quanto sucedia agora à pobre Luisinha.
— Ai, senhora! dizia a comadre referindo-se a José Manuel, parece que me roncava cá o quer que seja quando via aquele maldito; arrenego do homem que é um valdevinos às direitas. Aquilo há de levar a pobre menina à sepultura. Coitada! bem-criada e malfadada.
— Nunca pensei, criatura, nunca pensei que sucedesse tal... Mas aquilo como era finório! que palavrinhas doces! que santidade aquela! Agora, senhora, agora sou eu capaz de acreditar na história da moça furtada no Oratório de Pedra: ele tem bofes para tal... Mas hei de me ver vingada, oh! se hei de! tão certo como estar eu aqui: os desembargadores lá estão, que me hão de dar esse gosto: espero isso em Deus.
Desta conversa, e do mais que se seguiu, nasceu a conciliação das duas.
Quando certas amizades são uma vez interrompidas, tendo mesmo sofrido um leve estremecimento, é difícil que voltem depois ao estado primitivo; com outras amizades acontece porém o inverso; os estremecimentos aproveitam, porque é fácil a volta da paz, e parece que depois disto se tornam mais estreitas. A amizade que existia entre D. Maria e a comadre era deste último gênero. Portanto depois daquela conversa na missa, não só voltaram as relações entre as duas ao seu primitivo estado, como se tornaram mais que nunca sólidas. Daí em diante não houve um só segredo entre as duas que não fosse mutuamente comunicado, e elas fizeram pacto de se ajudarem reciprocamente para dar remédio, uma aos males da sobrinha, outra às diabruras do afilhado.
O Leonardo, como dissemos, achava-se preso; fizera disso ciente à madrinha, que se pôs logo em alvoroto, não só pelo fato em si, como pelo generoso motivo que o Havia ocasionado. O primeiro passo pois que tiveram a dar as duas, D. Maria e a comadre, em virtude do seu pacto, foi tratar de alcançar a soltura do Leonardo, e livrá-lo do mais que (sabe Deus) lhe estaria preparado.
Vamos ver como se houveram em semelhante empenho.


XXII - Empenhos              
O primeiro passo que deu a comadre foi dirigir-se à casa do major a interceder pelo Leonardo; o major porém mostrou-se inflexível: o caso era grave, já não era o primeiro; a disciplina não podia ser impunemente ofendida mais de uma vez; o castigo devia ser infalível e grande. A comadre, que fora cheia de boas esperanças, soube pelo major o que ignorava, o que nem mesmo supunha: o Leonardo não só ficaria por mais tempo preso, como teria de ser chibatado... A pobre mulher, apenas lhe declarou isto o major, caiu de joelhos, chorou, lamentou-se; tudo porém debalde. Saiu desesperada, e com a mantilha caída, toda em desalinho, correu, voou à casa da D. Maria. Ao vê-la entrar naquele estado, D. Maria ergueu-se da sua banquinha, e largou a almofada da renda.
— Que tendes, criatura? que tendes? exclamou. Santo Cristo! o que é? Falai!...
— Ai, Sra. D. Maria do meu coração! que desgraça! respondeu a comadre: que má sina de rapaz... Ora veja o que me sucede por ter feito uma boa ação!... E eu que sofro e que sinto como se fosse meu filho... E os soluços a sufocaram.
— Fale, senhora, replicou D. Maria; fale, que me põe numa aflição...
— Vai apanhar, D. Maria... vai apanhar de chibata... ele... o Leonardo...
— Meu Deus, pobre rapaz: ora vejam tudo em que deu; é sina, coitado! aquele rapaz não nasceu em bom dia; não, comadre; isso sou eu capaz de jurar pela salvação da minha alma... Mas não falou com o major? Que lhe disse ele?
— Duro como uma pedra, senhora; a nada se moveu: pedi-lhe pelas Cinco Chagas, pela Senhora Santíssima... tudo embalde, tudo em vão.
— Está bom, não se aflija, comadre; ainda há um meio que eu penso que não há de falhar: vamos à casa dela, que por lá é caminho certo; ela dá-se muito comigo, há de pedir pelo moço.
— Já me tinha lembrado disso; mas na tribulação em que vinha tornou-me a esquecer; se com ela não se arranjar alguma coisa... está tudo perdido.
Os leitores estão já curiosos por saber quem é ela, e têm razão; vamos já satisfazê-los. O major era pecador antigo, e no seu tempo fora daqueles de quem se diz que não deram o seu quinhão ao vigário: restava-lhe ainda hoje alguma coisa que às vezes lhe recordava o passado: essa alguma coisa era a Maria-Regalada que morava na Prainha. Maria-Regalada fora no seu tempo uma mocetona de truz, como vulgarmente se diz: era de um gênio sobremaneira folgazão, vivia em contínua alegria, ria-se de tudo, e de cada vez que se ria fazia-o por muito tempo e com muito gosto: daí é que vinha o apelido-regalada-que haviam juntado ao seu nome.
Isto de apelidos, era no tempo desta história uma coisa muito comum; não estranhem pois os leitores que muitas das personagens que aqui figuram tenham esse apêndice ao seu nome.
Dizem todos, e os poetas juram e tresjuram, que o verdadeiro amor é o primeiro; temos estudado a matéria, e acreditamos hoje que não há que fiar em poetas: chegamos por nossas investigações à conclusão de que o verdadeiro amor, ou são todos ou é um só, e neste caso não é o primeiro, é o último. O último é que é o verdadeiro, porque é o único que não muda. As leitoras que não concordarem com esta doutrina convençam-me do contrário, se são disso capazes.
Isto tudo vem para dizermos que Maria-Regalada tinha um verdadeiro amor ao major Vidigal; o major pagava-lho na mesma moeda. Ora, D. Maria era uma das camaradas mais do coração de Maria-Regalada. Eis aí por que falando dela D. Maria e a comadre se mostraram tão esperançadas a respeito da sorte do Leonardo.
Já naquele tempo (e dizem que é defeito do nosso) o empenho, o compadresco, eram uma mola real de todo o movimento social.
— Vai mandar aprontar a cadeirinha, disse D. Maria a uma de suas escravas.
— Vamos, senhora, vamos; que isto são os meus pegados velhos.
D. Maria aprontou-se, meteu-se na sua cadeirinha; a comadre tomou a mantilha, e partiram para a Prainha.
Maria-Regalada recebeu-as com uma boa risada.
— Que milagre de Santa Engrácia! que fortuna! que alegrão! O que a traz por aqui? Isto é grande novidade!
— É novidade, sim, respondeu D. Maria, porém triste novidade.
Com as honras do estilo, que não eram muitas naquele tempo, foi a comadre apresentada, porque não era conhecida de Maria-Regalada. Primeiro D. Maria, depois a comadre, contaram, cada uma por sua parte, a história do Leonardo com todos os detalhes, e depois de inúmeros rodeios, que puseram a arder a paciência da ouvinte, e quase a fizeram morrer de curiosidade, chegaram finalmente ao ponto importante, ao motivo que ali as levara: queriam nada menos do que a soltura e perdão do Leonardo, e contavam para alcançar semelhante coisa com a influência da Maria-Regalada sobre o major.
— Ora, disse esta tomando um ar de modéstia, eu já não presto para nada... isso era bom noutro tempo... agora... o major... as coisas estão mudadas, D. Maria... depois que ele se meteu na polícia... nem mais nem ontem... quem sabe o que por lá vai!... Mas enfim, D. Maria, eu não sei dizer que não, tenho o coração assim, e sempre o tive... no meu tempo muita gente se aproveitou disto... Eu farei o que puder; vou falar-lhe... talvez que ele me queira atender...
— Há de atender, há de, respondeu a comadre; ele já não está tão velho que se tenha esquecido de todo do tempo de dantes.
— Veremos, veremos. A Sra. comadre sabe lá o que são homens?!...
— Diga-me a mim... se sei!... acudiu esta prontamente.
— Mas então, atalhou D. Maria, o negócio requer toda a pressa, porque de um instante para outro podem chegar a farda ao corpo do pobre rapaz, e depois nem Santo Antônio a tira.
— Não há de haver novidade; ainda havemos chegar a tempo, com a graça de Deus. Para maior segurança vamos todas três daqui à casa do major, e cada uma por nosso lado faremos tudo para livrar o moço.
Maria-Regalada vestiu-se à pressa, tomou a sua mantilha, e ao lado da cadeirinha em que ia D. Maria partiram para a casa do major.


XXIII - As três em comissão         
Partiram pois as três para a casa do major, que morava então na rua da Misericórdia, uma das mais antigas da cidade. O major recebeu-as de rodaque de chita e tamancos, não tendo a princípio suposto o quilate da visita; apenas porém reconheceu as três, correu apressado à camarinha vizinha, e envergou o mais depressa que pôde a farda; como o tempo urgia, e era uma incivilidade deixar sós as senhoras, não completou o uniforme, e voltou de novo à sala de farda, calças de enfiar, tamancos, e um lenço de Alcobaça sobre o ombro, segundo seu uso. A comadre, ao vê-lo assim, apesar da aflição em que se achava, mal pôde conter uma risada que lhe veio aos lábios. Os cumprimentos da recepção passaram sem novidade. Na atropelação em que entrara o major a comadre enxergou logo um bom agouro para o resultado do seu negócio. Acrescia ainda em seu favor que o major guardava na sua velhice doces recordações da mocidade, e apenas se via cercado por mulheres, se não era um lugar público e em circunstâncias em que a disciplina pudesse ficar lesada, tornava-se um babão, como só se poderia encontrar segundo no velho Leonardo. Se estas lhe davam então no fraco, se lhe faziam um elogio, se lhe faziam uma carícia por mais estupidamente fingida que fosse, arrancavam dele tudo quanto queriam; ele próprio espontaneamente se oferecia para o que podiam desejar, e ainda em cima ficava muito obrigado. Contudo, posto que a comadre soubesse já desta circunstância com antecipação, ou a pressentisse pelas aparências, a gravidade do negócio de que se tratava era tal, que nem isso bastou para tranqüilizá-la. Dispôs-se para o ataque, ajudada por suas companheiras, que, apesar de mais estranhas à sorte do Leonardo, nem por isso se ligavam menos à sua causa. Houve um momento de perplexidade para decidir-se quem seria o orador da comissão. O major percebeu isto, e teve um lampejo de orgulho por ver assim três mulheres confundidas e atrapalhadas diante de sua alta pessoa; fez um movimento como para animá-las, arrastando sem querer os tamancos.
— Oh! de tamancos e farda não está má... Senhoras donas, coisas de velho; no meu tempo não fazia eu destas...
— D. Maria que o diga, acudiu logo a comadre referindo-se a Maria-Regalada, e querendo fazer brecha fosse por onde fosse: mas não importa; o negócio é outro...
— É verdade, Sr. major, o bom tempo já lá foi.
— E Deus perdoe a quem dele tem saudades, retorquiu o major rindo-se com um riso rugoso de velha sensualidade...
— Sim, sim, tornou a Maria-Regalada; mas deixe essas coisas todas para logo...
— Ai criatura, acudiu D. Maria, que até então estivera calada, cansada talvez do número prodigioso de mesuras que fizera ao entrar; deixai cada um lembrar-se do seu tempo, isto consola; eu cá gosto bem quando acho...
— É como eu, respondeu o major; em se me tocando cá nas feridas antigas...
— Pois é mesmo por me lembrar destas feridas antigas, atalhou a Maria-Regalada, que venho aqui com estas senhoras donas, que o Sr. Major bem conhece; e se não foram elas cá não viera, pois o negócio é sério...
A comadre achou a ocasião bem apanhada, e fez com a cabeça um sinal de aprovação.
— Vamos lá ver o que é o tal negócio sério, respondeu o major atinando, pela presença da comadre, pouco mais ou menos com o que era, e pelo que fez um sinal duvidoso com a cabeça, ou para fazer-se de bom, ou porque realmente não quisesse abrir largas esperanças.
A interlocutora prosseguiu:
— O seu granadeiro Leonardo é um bom rapaz.
O major arqueou franzindo as sobrancelhas, e repuxou os beiços, como quem não concordava in totum com aquilo...
— Não me comece já com coisas, Sr. major. Pois é, sim, senhor, muito bom rapaz, e não há razão para ser castigado, por causa de uma coisa nenhuma que fez... isso Não é razão, não, senhor, para se mandar tocar de chibata um moço que não é nenhum valdevinos; pois o Sr. major bem sabe que o padrinho quando morreu deixou-lhe alguma coisa, que bem lhe podia estar já nas mãos, e ele por isso livre da maldita farda, a quem sempre tive zanga (menos de uma que bem se sabe), se o pai que tem... mas deixemos o pai que não vem nada ao caso...
— Já sei de tudo, já sei de tudo, atalhou o major.
— Ainda não Sr. major, observou a comadre, ainda não sabe do melhor, e é que o que ele praticou naquela ocasião quase que não estava nas suas mãos. Bem sabe que um filho na casa de seu pai...
— Mas um filho quando é soldado, retorquiu o major com toda a gravidade disciplinar...
— Nem por isso deixa de ser filho, tornou D. Maria.
— Bem sei, mas a lei?
— Ora, a lei... o que é a lei, se o Sr. major quiser?
O major sorriu-se com cândida modéstia. A discussão foi-se assim animando; porém o major nada de ceder, até pelo contrário parecia mais inflexível do que nunca; chegou mesmo a pôr-se em pé e a falar muito exaltadamente contra o atentado do Leonardo, e a necessidade de um severo castigo. Era engraçado vê-lo no bonito uniforme que indicamos, de pé, fazendo um sermão sobre a disciplina, diante daquelas três ouvintes tão incrédulas que resistiam aos mais fortes argumentos.
Ainda porém não tinham as três esgotado contra ele o seu último recurso; puseram-no pois em ação.
Quando mais influído estava o major, as três a um só tempo, e como de combinação, desataram a chorar... O major parou... encarou-as um instante: seu semblante foi-se visivelmente enternecendo, enrugando, e por fim desatou também a chorar de enternecido. Apenas as três se aperceberam deste triunfo carregaram sobre o inimigo. Foi então uma algazarra, uma choradeira sem nome, capaz de mover as pedras.
O major de enternecido foi passando a atordoado, e como que ficou envergonhado das lágrimas que lhe corriam pelas faces: enxugou-as, e procurou reassumir toda a sua antiga gravidade.
— Nada, disse desembaraçando-se das três, e passeando a passos largos pela sala; nada: que haviam de dizer de mim se me vissem aqui nestas choramingas de criança? Eu, o major, o Vidigal, a chorar no meio de três mulheres!... Senhoras donas, o caso é grave, e não lhe vejo remédio; o exemplo, a disciplina, as leis militares... nada, não pode ser...
E deu as costas às três, continuando a passear e a fazer ressoar com força os tamancos no assoalho.
Maria-Regalada disse baixo às duas, em cujos semblantes já nem transluzia o mais pequeno vislumbre de esperança:
— Ainda não está tudo perdido...
E dirigindo-se ao major acrescentou:
— Bem, Sr. major; águas passadas não moem moinho...
— Qual passadas, senhora dona! mas bem vê que o caso é grave...
— Seja lá o que for, sinto ter perdido meus passos, e não servir a quem desejava; verdade seja que eu já contava com isso, e também não prometi... Mas em último lugar quero sempre dizer-lhe uma coisa, mas há de ser em particular...
— Vamos lá, estou pronto.
Quem tivesse alguma perspicácia conheceria, não com grande facilidade, que o major estava há muito tempo disposto a ceder, porém que queria fazer-se rogado.
Maria-Regalada levou então o major para um canto da sala, e disse-lhe ao ouvido algumas palavras. O major, desanuviou o rosto, remexeu-se todo, coçou a cabeça, balançou com as pernas, mordeu os beiços.
— Ora esta! disse em voz baixa à sua interlocutora; pois era preciso falar nisto? Enfim...
— Ora, graças que se lhe acabaram os sestros, respondeu Maria-Regalada em voz alta.
— Sim?!... exclamaram as duas sorrindo de esperança.
— Eu bem dizia que o Sr. major tinha bom coração...
— Eu nunca duvidei, apesar de tudo... mas agora, o passado, passado; o caso era grave, como ele dizia, e foi um favor!...
— Então, D. Maria? Quem foi rei sempre teve majestade...
— Majestade... qual! isso já não é para mim...
O major atalhou esta explosão de gratidão que levava visos de ir longe.
— Hão de ficar ainda mais contentes comigo... não lhes digo por quê, mas verão...
— Esta agora é que é grande; veremos o que será...
— Já sei: é...
— Há de ser por força...
— Estou quase adivinhando.
— Sabem que mais? atalhou o major; são horas de uma diligência a que não posso faltar... O rapaz está livre de tudo; contanto que, acrescentou dirigindo-se a Maria-Regalada, o dito, dito...
— Eu nunca faltei à minha palavra, replicou esta.
Retiraram-se as três cheias do maior contentamento, e o major saiu depois também para cumprir a suapromessa.


XXIV´- A Morte é juiz   
D. Maria dirigiu-se imediatamente para casa na sua cadeirinha. Ao chegar notou grande rumor e alvoroço, e tratou logo de indagar a causa. Um escravo de sua sobrinha a esperava com uma carta. Apenas a leu, D. Maria, não diremos que se entristeceu, porém mostrou-se muito atrapalhada.
— Não entrem com a cadeirinha; esperem lá, que torno a sair.
E com efeito meteu-se de novo nela, e mandou que seguissem para casa de sua sobrinha.
O caso era o seguinte: José Manuel entrara para casa em braços, tendo sido acometido na rua de um violento ataque apoplético ao voltar do cartório, onde tivera uma grave contestação com o procurador de D. Maria, por causa da demanda que entretinham. Luisinha, a coitada, vendo-se naqueles apuros, sem saber o que fizesse, despachara logo portador para casa de sua tia.
D. Maria apenas entrou mandou chamar o licenciado, que depois de examinar o doente declarou que era caso perdido. Fizeram-se entretanto algumas aplicações, que não tiveram resultado algum.
— Estás viúva, menina, disse D. Maria alguma coisa compungida com a declaração do médico.
Luisinha pôs-se a chorar, mas como choraria por qualquer vivente, porque tinha coração terno.
Estavam presentes algumas pessoas da vizinhança, e uma delas disse baixinho à outra, vendo o pranto de Luisinha:
— Não são lágrimas de viúva...
E não eram, nós já o dissemos: o mundo faz disso as mais das vezes um crime. E os antecedentes? Porventura ante seu coração fora José Manuel marido de Luisinha? Nunca o fora senão ante as conveniências, e para as conveniências aquelas lágrimas bastavam. Nem o médico nem D. Maria se haviam enganado: à noitinha José Manuel expirou.
No dia seguinte fizeram-se os preparativos para o enterro. A comadre, informada de tudo, compareceu pesarosa a prestar seus bons ofícios, suas consolações.
O enterro saiu acompanhado pela gente da amizade: os escravos da casa fizeram uma algazarra tremenda. A vizinhança pôs-se toda à janela, e tudo foi analisado, desde as argolas e galões do caixão até o número e qualidades dos convidados; e sobre cada um desses pontos apareceram três ou quatro opiniões diversas.
Naqueles tempos ainda se não usavam os discursos fúnebres, nem os necrológios, que hoje andam tanto em voga; escapamos pois de mais essa. José Manuel dorme em paz no seu derradeiro jazigo.
Como havia prometido a comadre, alguém chegou quase ao anoitecer. Era o Leonardo. Quando ele entrou na sala D. Maria não pôde conter um grito de surpresa.
Vinha em completo uniforme de sargento da companhia de granadeiros!
— Como! olhem o major. E então?!
— É verdade, senhora dona, respondeu o Leonardo; a ele tudo devo.
Foi aquilo objeto de geral espanto. Ficariam todos muito contentes com a simples soltura do Leonardo; e não só ele aparecia solto e livre, como até elevado ao posto de sargento, o que já não é no exército pouca coisa.
O Leonardo começou a procurar com os olhos alguma coisa ou alguém que tinha curiosidade de ver; deu com o que procurava: era Luisinha. Há muito que os dois se não viam; não puderam pois ocultar o embaraço de que se acharam tomados. E foi tanto maior essa emoção, que ambos ficaram surpreendidos um do outro. Luisinha achou Leonardo um guapo rapagão de bigodes e suíça; elegante até onde pode sê-lo, um soldado de granadeiros, com o seu uniforme de sargento bem assente. Leonardo achou Luisinha uma moça espigada, airosa mesmo, olhos e cabelos pretos, tendo perdido todo aquele acanhamento físico de outrora. Além disso seus olhos, avermelhados pelas lágrimas, seu rosto empalidecido, se não verdadeiramente pelos desgostos daquele dia, seguramente pelos antecedentes, tinham nessa ocasião um toque de beleza melancólica, que em regra geral não devia prender muito a atenção de um sargento de granadeiros, mas que enterneceu ao sargento Leonardo que, apesar de tudo, não era um sargento como qualquer. E tanto assim, que durante a cena muda que se passou, quando os dois deram com os olhos um no outro, passaram rapidamente pelo pensamento do Leonardo os lances de sua vida de outrora, e remontando de fato em fato, chegou àquela ridícula mas ingênua cena da sua declaração de amor a Luisinha. Pareceu-lhe que tinha então escolhido mal a ocasião, e que agora isso teria um lugar muito mais acertado.
A comadre, que dava uma perspicaz atenção a tudo o que se passava, como que leu na alma do afilhado aqueles pensamentos todos; fez um gesto quase imperceptível de alegria: raiava-lhe na mente alguma idéia luminosa. Começou então a retraçar um antigo plano em cuja execução por muito tempo trabalhava, e cujas probabilidades de êxito lhe haviam reaparecido no que se acabava de passar.
Passada a primeira emoção, Luisinha ergueu-se e fez ao Leonardo um acanhado cumprimento: este correspondeu-lhe com alguma coisa entre cumprimento paisano e continência militar.
A comadre rompeu depois disto a conversa, procurando entreter D. Maria, e deixar os dois entregues a si.
— Diga-me, disse ela dirigindo-se a D. Maria, e aquela sua demanda com o defunto?
— A morte foi desta vez juiz. Ele não tem herdeiros; era só no mundo... Eu não levei a minha avante, é verdade, porque enfim não posso dizer que venci; mas também não perdi. Agora sim, tenho muito gosto de entregar tudo à menina, mas não queria que me levassem as coisas senão por minha muito livre vontade.
— Está bem; o passado já lá vai: Deus é assim, escreve direito por linhas tortas.
E por aí adiante empenharam-se na sua conversa. Os dois, depois de algum tempo de silêncio, como já se tinham retirado todas as visitas, foram pouco e pouco, de palavra em palavra, travando diálogo, e conversavam no fim de algum tempo tão empenhadamente como a comadre e D. Maria, com a diferença que a conversa daquelas duas era alta, desembaraçada; a deles baixa e reservada.
Não há nada que interrompida mais depressa se reate do que seja a familiaridade em que o coração é interessado. Não se estranhe pois que Luisinha e Leonardo a ela se entregassem.
E querem ver uma singularidade que às vezes se repete? Depois que se fizera moça, e que tomara estado, nunca Luisinha tinha tido momentos de tão verdadeiro prazer como os que ali estava gozando naquela conversa, num dia de luto, quando acabava de sair o caixão que levara à sepultura aquele que devia ter feito a sua felicidade. O Leonardo também por sua vez, nunca, no meio de todas as vicissitudes de sua vida extravagante, tinha tido instantes que tão rápidos lhe corressem do que aqueles em que via o objeto de seus primeiros amores sob o peso do infortúnio em um dia de pranto.
Pois parece que estas mesmas circunstâncias reavivaram o passado: a comadre folgava lá no seu lugar com tudo aquilo, e, parecendo prestar toda a atenção a D. Maria, não perdia uma só circunstância.
Finalmente chegou a hora da retirada, não da comadre, que se ofereceu para fazer companhia à viúva, porém de Leonardo, a quem esperava o major, porque era dia de serviço, e apenas tinha ele obtido licença para cumprir o duplo dever de dar os pêsames a D. Maria, e agradecer o interesse que por ele havia tomado, fazendo por intermédio de Maria-Regalada que o major não só lhe alcançasse perdão do castigo que lhe era destinado, como também o acesso de posto que repentinamente tivera.
Luisinha involuntariamente estendeu à despedida a mão ao Leonardo, que lha apertou com força.
Ora, isto naquele tempo era bastante para dar que falar ao mundo inteiro!


XXV - Conclusão feliz
A comadre passou com a viúva e sua tia quase todo o tempo do nojo, e acompanhou-as à missa do sétimo dia. O Leonardo compareceu também nessa ocasião, e levou a família à casa depois de acabado o sacrifício.
Aquele aperto de mão que no dia do enterro de seu marido Luisinha dera ao Leonardo não caíra no chão a D. Maria, assim como também lhe não escaparam muitos outros fatos consecutivos a esse.
O caso é que não lhe parecia extravagante certa idéia que lhe andava na mente.
Muitas vezes, ao cair de ave-maria, quando a boa da velha se sentava a rezar na sua banquinha em um canto da sala, entre um padre-nosso e uma ave-maria do seu bendito rosário vinha-lhe à idéia casar de novo a fresca viuvinha, que corria o risco de ficar de um momento para outro desamparada num mundo em que maridos, como José Manuel, não são difíceis de aparecer, especialmente a uma viuvinha apatacada.
Ao mesmo tempo que lhe vinha esta idéia lembrava-se do Leonardo, que amara a sua sobrinha no tempo da criançada, e que era, apesar de extravagante, um bom moço, não de todo desarranjado, graças à benevolência do padrinho barbeiro.
Verdade é que se não sabiam bem as contas que seu pai havia feito a esse respeito; mas como era coisa que constava de verta testamentária, D. Maria nada via de mais fácil do que propor uma demanda, cujo resultado não seria duvidoso.
Havia porém no meio de tudo uma circunstância que lhe desconsertava os planos. O Leonardo era soldado. Ora, soldado, naquele tempo, era coisa de meter medo.
Quando D. Maria chegava a este ponto de suas meditações, abandonava-as, e continuava o seu rosário.
A comadre fazia quase exatamente os mesmos cálculos por sua parte, e também só esta única dificuldade se antolhava à realização de seus planos.
Enquanto estas duas pensavam, os outros dois obravam.
Luisinha e Leonardo haviam reatado o antigo namoro; e quem quiser ver coisa de andar depressa é ver namoro de viúva.
Na primeira ocasião Leonardo quis recorrer a uma nova declaração; Luisinha porém fez o processo sumário, aceitando a declaração de há tantos anos.
Sem que os vissem, viam-se os dois muitas vezes, e dispunham seus negócios.
Infelizmente ocorria-lhes a mesma dificuldade: um sargento de linha não podia casar. Havia talvez um meio muito simples de tudo remediar. Antes de tudo, porém, os dois amavam-se sinceramente; e a idéia de uma união ilegítima lhes repugnava.
O amor os inspirava bem.
Esse meio de que falamos, essa caricatura da família, então muito em moda, é seguramente uma das causas que produziu o triste estado moral da nossa sociedade.
Só essa dificuldade demorava os dois. Entretanto o Leonardo achou um dia o salvatério, e veio comunicar a Luisinha o meio que tudo remediava: podia ficar ele sendo soldado e casar, dando baixa na tropa de linha, e passando-se no mesmo posto para as milícias.
A dificuldade, porém, estava ainda em arranjar-se essa baixa e essa passagem: Luisinha encarregou-se de vencer esse embaraço.
Um dia em que estava sua tia a rezar no seu rosário, justamente num daqueles intervalos de padre-nosso a ave-maria de que acima falamos, Luisinha chegou a ela, e comunicou-lhe com confiança tudo que havia, fazendo preceder sua narração da seguinte declaração, que cortava a questão pela raiz:
— Para lhe obedecer e fazer-lhe o gosto casei-me uma vez, e não fui feliz; quero ver agora se acerto melhor, fazendo por mim mesma nova escolha.
Em breve, porém, conheceu que fora inútil sua precaução, porque D. Maria confessou que de há muito ruminava aquele mesmo plano.
Combinaram-se pois as duas.
A bondade do major inspirava-lhes muita confiança, e lembraram-se por isso de recorrer a ele de novo.
Foram ter com Maria-Regalada, que mesmo na véspera lhes tinha mandado dar parte que se mudara da Prainha, e oferecia-lhes sua nova morada.
A comadre, de tudo inteirada, fez parte da comissão.
Quando entraram em casa de Maria-Regalada, a primeira pessoa que lhes apareceu foi o major Vidigal, e, o que é mais, o major Vidigal, em hábitos menores, de rodaque e tamancos.
— Ah! disse a comadre em tom malicioso, apenas apareceu a Maria-Regalada, pelo que vejo isto por aqui vai bem...
— Não se lembra, respondeu Maria-Regalada, daquele segredo com que obtive o perdão do moço? Pois era isto!...
A Maria-Regalada tinha por muito tempo resistido aos desejos ardentes que nutria o major de que ela viesse definitivamente morar em sua companhia. Não atribuímos esta resistência senão a capricho, para não fazermos mau juízo de ninguém; o caso é que o major punha naquilo o maior empenho; teria lá suas razões.
O segredo que a Maria-Regalada dissera ao ouvido do major no dia em que fora, acompanhada por D. Maria e a comadre, pedir pelo Leonardo, foi a promessa de que, se fosse servida, cumpriria o gosto do major.
Está pois explicada a benevolência deste para com o Leonardo, que fora ao ponto de, não só disfarçar e obter perdão de todas as suas faltas, como de alcançar-lhe aquele rápido acesso de posto.
Fica também explicada a presença do major em casa da Maria-Regalada.
Depois disto entraram todos em conferência. O major desta vez achou o pedido muito justo, em conseqüência do fim que se tinha em vista. Com a sua influência tudo alcançou; e em uma semana entregou ao Leonardo dois papéis:-um era a sua baixa de tropa de linha; outro, sua nomeação de sargento de milícias.
Além disto recebeu o Leonardo ao mesmo tempo carta de seu pai, na qual o chamava para fazer-lhe entrega do que lhe deixara seu padrinho, que se achava religiosamente intacto.
Passado o tempo indispensável do luto, o Leonardo, em uniforme de sargento de milícias, recebeu-se na Sé com Luisinha, assistindo à cerimônia a família em peso.
Daqui em diante aparece o reverso da medalha. Seguiu-se a morte de D. Maria, a do Leonardo-Pataca, e uma enfiada de acontecimentos tristes que pouparemos aos leitores, fazendo aqui ponto-final.

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