Capítulo VII: Peleja
Quando a família de D. Antônio de Mariz gozava dos primeiros momentos de tranqüilidade que sucediam a tantas aflições, soou um grito na escada de pedra.
Cecília levantou-se estremecendo de alegria e felicidade; tinha reconhecido a voz de Peri.
No momento em que ia correr ao encontro do seu amigo, mestre Nunes já tinha abaixado uma prancha que servia de ponte levadiça, e Peri chegava à porta da sala.
D. Antônio de Mariz, sua mulher e sua filha ficaram mudos de espanto e terror; Isabel caiu fulminada, como se a vida lhe faltasse de repente.
Peri trazia nos seus ombros o corpo inanimado de Álvaro; e no rosto uma expressão de tristeza profunda. Atravessando a sala, depôs sobre o sofá o seu fardo precioso, e olhando o rosto lívido daquele que fora seu amigo, enxugou uma lágrima que lhe corria pela face.
Nenhuma das pessoas presentes se animava a quebrar o silêncio solene que envolvia aquela cena lúgubre; os aventureiros que haviam acompanhado Peri quando passara no meio deles correndo, pararam na porta, tomados de compaixão e respeito por aquela desgraça.
Cecília nem pôde gozar da alegria de ver Peri salvo; seus olhos, apesar dos sofrimentos passados, ainda tinham lágrimas para chorar essa vida nobre e leal que a morte acabava de ceifar. Quanto a D. Antônio de Mariz, sua dor era de um pai que havia perdido um filho; era a dor muda e concentrada que abala as organizações fortes, sem contudo abatê-las.
Depois dessa primeira comoção produzida pela chegada de Peri, o fidalgo interrogou o índio e ouviu de sua boca a narração breve dos acontecimentos, cuja peripécia tinha diante dos olhos.
Eis o que havia passado.
Partindo na véspera, no momento em que começava a sentir os primeiros efeitos do veneno terrível que tomara, Peri ia cumprir a promessa que tinha feito a Cecília. Ia procurar a vida em um contraveneno infalível, cuja existência só era conhecida pelos velhos pajés da tribo, e pelas mulheres que os auxiliavam nas suas preparações medicinais.
Sua mãe, quando ele partira para a primeira guerra, lhe tinha revelado esse segredo que devia salvá-lo de uma morte certa no caso de ser ferido por alguma seta ervada. Vendo o desespero de sua senhora, o índio sentiu-se com forças de resistir ao torpor do envenenamento que começava a ganhar-lhe o corpo, e ir ao fundo da floresta e procurar essa erva poderosa que devia restituir-lhe a saúde, o vigor e a existência.
Contudo, quando atravessava a mata parecia-lhe às vezes que já era tarde, que não chegaria a tempo: então tinha medo de morrer longe de sua senhora, sem poder volver para ela o seu último olhar. Arrependia-se quase de ter partido de casa e não deixar-se ficar aos pés de Cecília até exalar o seu último suspiro; mas lembrava-se que a menina o esperava, lembrava-se que ela ainda precisava de sua vida e criava novas forças.
Peri entranhou-se no mais basto e sombrio da floresta, e aí, na sombra e no silêncio passou-se entre ele e a natureza uma cena da vida selvagem, dessa vida primitiva, cuja imagem nos chegou tão incompleta e desfigurada. O dia declinou: veio a tarde, depois a noite, e sob essa abóbada espessa em que Peri dormia como em um santuário, nem um rumor revelara o que ai se passou.
Quando o primeiro reflexo do dia purpureou o horizonte, as folhas se abriram, e Peri exausto de forças, vacilante, emagrecido como se acabasse de uma longa enfermidade saiu do seu retiro.
Mal se podia suster, e para caminhar era obrigado a sustentar-se aos galhos das árvores que encontrava na sua passagem: assim adiantou-se pela floresta, e colheu alguns frutos, que lhe restabeleceram um tanto as forças.
Chegando à beira do rio, Peri já sentiu o vigor que voltava, e o calor que começava a animar-lhe o corpo entorpecido; atirou-se à água e mergulhou. Quando voltou à margem, era outro homem; uma reação se havia operado; seus membros tinham adquirido a elasticidade natural; o sangue girava livremente nas veias.
Então tratou de recuperar as forças que havia perdido, e tudo quanto a floresta lhe oferecia de saboroso e nutriente serviu a este banquete da vida, em que o selvagem festejava a sua vitória sobre a morte e o veneno.
O sol tinha raiado havia horas; Peri, acabada a sua refeição, caminhava pensativo, quando ouviu uma descarga de armas de fogo, cujo estrondo reboou pelo âmbito da floresta.
Lançou-se na direção dos tiros, e a pouca distancia, num claro da mata, decobriu um espetáculo grandioso.
Álvaro e os seus nove companheiros divididos em duas colunas de cinco homens, com as costas apoiadas às costas uns dos outros, estavam cercados por mais de cem Aimorés que se precipitavam sobre eles com um furor selvagem.
Mas as ondas dessa torrente de bárbaros que soltavam bramidos espantosos, iam quebrar-se contra essa pequena coluna, que não parecia de homens, mas de aço; as espadas jogavam com tanta velocidade que a tornavam impenetrável; no raio de uma braça o inimigo que se adiantava caia morto. Havia uma hora que durava esse combate, começado com armas de fogo; mas os Aimorés atacavam com tanta fúria, que breve tinham chegado a luta corpo a corpo e à arma branca.
No momento em que Peri assomava à margem da clareira, um incidente veio modificar a face do combate.
O aventureiro que dava as costas a Álvaro, levado pelo ardor da peleja, adiantou-se alguns passos para ferir um inimigo; os selvagens o envolveram, deixando a coluna interrompida e Álvaro sem defesa.
Entretanto o valente cavalheiro continuava a fazer prodígios de valor e de coragem; cada volta que descrevia sua espada era um inimigo de menos, uma vida que se extinguia a seus pés num rio de sangue. Os selvagens redobravam de furor contra ele, e cada vez o seu braço ágil movia-se com mais segurança e mais certeza, fazendo jogar como um raio a lamina de aço que mal se via brilhar nas suas rápidas evoluções.
Desde porém que os Aimorés viram o moço sem defesa pelas costas, e exposto aos seus golpes, concentraram-se nesse ponto; um deles adiantando-se, ergueu com as duas mãos a pesada tangapema e atirou-a ao alto da cabeça de Álvaro.
O moço caiu; mas na sua queda a espada descreveu ainda um semi-círculo e abateu o inimigo que o tinha ferido à traição; a dor violenta dera a esse último golpe uma força sobrenatural.
Quando os índios iam precipitar-se sobre o cavalheiro, Peri saltou no meio deles, e agarrando a espingarda que estava a seus pés, fez dela uma arma terrível uma clava formidável, cujo poder em breve sentiram os Aimorés. Apenas se viu livre do turbilhão dos inimigos, o índio tomou Álvaro nos seus ombros, e abrindo caminho com a sua arma temível, lançou-se pela floresta e desapareceu. Alguns o seguiram; mas Peri voltou-se e fê-los arrepender-se de sua ousadia; livrando-se do peso que levava, carregou a espingarda com as munições que Álvaro trazia e mandou uma bala àquele que o perseguia mais de perto; os outros, que já o conheciam pelo combate da véspera, retrocederam. A idéia de Peri era salvar Álvaro, não só pela amizade que lhe tinha, como por causa de Cecília, que ele supunha amar o cavalheiro; vendo porém que o corpo continuava inanimado, acreditou que Álvaro estava morto.
Apesar disto não desistiu do seu propósito; morto ou vivo devia levá-lo àqueles que o amavam, ou para o restituírem à vida, ou para derramarem sobre o seu corpo o pranto da despedida.
Quando Peri acabou a sua narração, o fidalgo comovido chegou-se à beira do sofá, e apertando a mão gelada e fria do cavalheiro, disse:
— Até logo, bravo e valente amigo; até logo! A nossa separação é de poucos instantes; breve nos reuniremos na mansão dos justos onde deveis estar, e onde espero que Deus me concederá a graça de entrar.
Cecília deu à memória do moço as ultimas lágrimas; e ajoelhando aos pés do moribundo com sua mãe, dirigiu ao céu uma prece ardente.
D. Lauriana tinha esgotado todos os recursos dessa medicina doméstica que no interior das casas substituía a falta dos homens profissionais, muito raros naquela época, e sobretudo longe das cidades; o moço não deu porém o menor sinal de vida.
D. Antônio de Mariz, que compreendera perfeitamente o que devia esperar da pretendida retirada dos Aimorés, mandou que os seus homens se preparassem para a defesa, não que tivesse a menor esperança, mas porque desejava resistir ate o último momento.
Peri, depois de ter respondido a todas as perguntas de Cecília a respeito do modo por que se havia salvado do veneno, saiu da sala e percorreu a esplanada, observando os arredores. O índio, infatigável sempre que se tratava de sua senhora, apenas acabava de uma empresa gigantesca, como a que o tinha levado ao campo dos Aimorés, cuidava já em combinar outro projeto para salvar Cecília.
Depois do seu exame estratégico, entrou no quarto que havia abandonado na antevéspera, e no qual encontrou ainda as suas armas, do mesmo modo que as tinha deixado.
Lembrou-se do pedido que fizera a Álvaro, da contradição do destino que lhe restituía a vida a ele, um homem três vezes morto, e roubava-a ao cavalheiro a quem ele havia deixado são e salvo.
Capítulo VIII: Noiva
Uma hora depois dos acontecimentos que acabamos de narrar, Peri, recostado à janela do quarto que tinha pertencido a sua senhora, olhava com uma grande atenção para uma árvore que se elevava a algumas braças de distancia.
Seu olhar parecia estudar as curvas dos galhos retorcidos, medindo-lhes a distancia, a altura e o tamanho, como se disso dependesse a solução de uma grande dificuldade com que lutava o seu espírito. No momento em que estava todo entregue a esse exame minucioso, o índio sentiu uma mão tímida e delicada tocar-lhe de leve no ombro.
Voltou-se: era Isabel que estava junto dele, e que se havia aproximado como uma sombra, sem fazer o menor rumor. Uma palidez mortal cobria as feições da moça, que apenas sala do seu desmaio; mas o rosto tinha uma calma ou antes uma imobilidade que assustava.
Voltando a si, Isabel correu um olhar pelo aposento, como para certificar-se de que não era um sonho o que havia passado.
A sala estava deserta; D. Antônio de Mariz tinha saído para dar as suas ordens; sua mulher, ajoelhada no oratório sobre um montão de ruínas, rezava ao pé de uma cruz que ficara junto ao altar. No fundo do aposento, sobre o sofá, destacava-se o vulto imóvel do cavalheiro, aos pés do qual ardia uma vela de cera, lançando pálidos clarões.
Cecília é que estava perto dele, e apertava no seio a sua cabeça desfalecida, procurando reanimá-lo.
Quando o olhar de Isabel caiu sobre o corpo de seu amante, ela ergueu-se como impelida por uma força sobrenatural, atravessou rapidamente a sala, e foi por sua vez ajoelhar-se em face desse leito mortuário. Mas não era para fazer uma prece que ajoelhava, era para embeber-se na contemplação desse rosto lívido e gelado, desses lábios frios, desses olhos extintos, que ela amava apesar da morte.
Cecília respeitou a dor de sua prima, e por um instinto de delicadeza que só possuem as mulheres, compreendeu que o amor, mesmo em face de um cadáver, tem o seu pudor e a sua castidade; saiu para deixar que Isabel chorasse livremente.
Passado algum tempo depois da saída de Cecília, a moça ergueu-se, percorreu automaticamente a casa, e vendo Peri de longe aproximou-se dele e tocou-lhe no ombro.
O índio e a moça se odiavam desde o primeiro dia em que se tinham visto; em Isabel era o ódio de uma raça que a rebaixava a seus próprios olhos; em Peri era essa repugnância natural que sente o homem por aqueles em quem reconhece um inimigo.
Por isso Peri, vendo Isabel junto dele, ficou extremamente admirado, sobretudo quando reparou no gesto suplicante que a moça lhe dirigia, como se esperasse dele uma graça.
— Peri!...
O índio sentiu-se comovido ao aspecto daquele sofrimento, e pela primeira vez na sua vida dirigiu a palavra a Isabel.
— Precisas de Peri? disse ele.
— Vinha pedir-te um serviço. Não mo negarás, sim? balbuciou a moça.
— Fala! se for coisa que Peri possa fazer, ele não te negará.
— Prometes então? exclamou Isabel cujos olhos brilharam com uma expressão de alegria.
— Sim, Peri te promete.
— Vem!
Dizendo essa palavra, a mova fez um gesto ao índio e dirigiu-se acompanhada por ele à sala que ainda estava deserta como tinha deixado. Parou junto do sofá, e apontando para o corpo inanimado de seu amante, acenou a Peri que o tomasse nos seus braços.
O índio obedeceu, e acompanhou Isabel até um gabinete retirado a um lado da casa; ai deitou o seu fardo sobre um leito, cujas cortinas a moça entreabriu, corando como uma noiva.
Corava porque o gabinete onde tinha entrado era o quarto em que habitara e encontrava ainda povoado de todos os sonhos de seu amor; porque o leito, que recebia seu amante, era o seu leito de virgem casta e pura; porque ela era realmente uma noiva do túmulo.
Peri, tendo satisfeito o desejo da moça, retirou-se e voltou ao seu trabalho, que ele prosseguia com uma constância infatigável.
Apenas ficou só, Isabel sorriu; mas o seu sorriso tinha um quer que seja do êxtase da dor, da voluptuosidade do sofrimento, que faz sorrir na sua última hora os mártires e os desgraçados. Tirou do seio a redoma de vidro onde guardava os cabelos de sua mãe e fitou nela um olhar ardente; mas abanou a cabeça com um gesto de expressão indefinível. Tinha mudado de resolução; o segredo que encerrava essa jóia, o pó sutil que empenava a face interior do cristal, a morte que sua mãe lhe confiara não a satisfazia; era muito rápida, quase instantânea.
Saiu então furtivamente e acendeu uma vela de cera, que havia sobre a cômoda ao lado de um crucifixo de marfim; depois fechou a porta, cerrou as janelas e interceptou as frestas por onde a luz do dia podia penetrar. O gabinete ficou às escuras; apenas em torno do círio que ardia, uma auréola pálida se destacava no meio das trevas e iluminava a imagem do Cristo.
A moça ajoelhou e fez uma oração breve: pedia a Deus uma última graça: pedia a eternidade e a ventura do seu amor, que tinha passado tão rápido pela terra.
Acabando a prece, tomou a luz, deitou-a na cabeceira do leito, afastou o cortinado e começou a contemplar o seu amante com enlevo.
Álvaro parecia adormecido apenas; sua bela fisionomia não tinha a menor alteração; a morte, imprimindo nos seus traços a descor da cera e do mármore, havia unicamente imobilizado a expressão e feito do gentil cavalheiro uma bela estátua.
Isabel interrompeu o enlevo de sua contemplação para chegar-se de novo à cômoda, onde se viam algumas conchas de mariscos tintas de nácar que se apanham nas nossas praias, e uma cesta de palha matizada.
Esta cesta continha todas as resinas aromáticas, todos os perfumes que dão as árvores de nossa terra; o anime da aroeira, as pérolas do benjoim, as lágrimas cristalizadas da embaíba, e gotas do bálsamo, esse sândalo do Brasil.
A moça deitou na concha a maior parte dos perfumes, e acendeu algumas bagas de benjoim; o óleo de que estavam impregnadas alimentando a chama, comunicou-a às outras resinas.
Frocos de fumo alvadio impregnado de perfumes embriagadores se elevaram da caçoula em grossas espirais e encheram o gabinete de nuvens transparentes que oscilavam à luz pálida do círio.
Isabel sentada à beira do leito, com as mãos do seu amante nas suas e com os olhos embebidos naquela imagem querida, balbuciava frases entrecortadas, confidências intimas, sons inarticulados, que são a linguagem verdadeira do coração.
Às vezes sonhava que Álvaro ainda vivia, que lhe murmurava ao ouvido a confissão do seu amor; e ela falava-lhe como se seu amante a ouvisse, contava-lhe os segredos de sua paixão, vertia toda a sua alma nas palavras que caiam dos lábios. Sua mão delicada afastava os cabelos do moço, descobria sua fronte, animava a sua face gelada, e rogava aqueles lábios frios e mudos como pedindo-lhe um sorriso.
— Por que não me falas? murmurava ela docemente; não conheces tua Isabel?... Dize outra vez que me amas! Dize sempre essa palavra, para que minha alma não duvide da felicidade! Eu te suplico!...
E com o ouvido atento, com os lábios entreabertos, o seio palpitante, ela esperava o som dessa voz querida e o eco dessa primeira e última palavra de seu triste amor.
Mas o silêncio só lhe respondia; seu peito aspirava apenas as ondas dos perfumes inebriantes, que faziam circular nas suas veias uma chama ardente.
O aposento apresentava então um aspecto fantástico: no fundo escuro desenhava-se um circulo esclarecido, envolto por uma névoa espessa.
Nessa esfera luminosa como no meio de uma visão, surgiam Álvaro deitado no leito e Isabel reclinada sobre o rosto de seu amante, a quem continuava a falar, como se ele a escutasse. A menina começava a sentir a respiração faltar-lhe; seu seio opresso sufocava-a; e entretanto uma voluptuosidade inexprimível a embriagava; um gozo imensa havia nessa asfixia de perfumes que se condensavam e rarefaziam no ar.
Louca, perdida, alucinada, ela ergueu-se, seu seio dilatou-se, e sua boca, entreabrindo-se, colou-se aos lábios frios e gelados de seu amante; era o seu primeiro e último beijo; o seu beijo de noiva.
Foi uma agonia lenta, um pesadelo horrível em que a dor lutava com o gozo, em que as sensações tinham um requinte de prazer e de sofrimento ao mesmo tempo; em que a morte, torturando o corpo, vertia na alma eflúvios celestes.
De repente pareceu a Isabel que os lábios de Álvaro se agitavam, que um tênue suspiro se exalava de seu peito, ainda há pouco insensível como o mármore.
Julgou que se iludia, mas não; Álvaro: estava vivo, realmente vivo, suas mãos apertavam as dela convulsamente; seus olhos, brilhando com um fogo estranho, se tinham fitado no rosto da moça; um sopro reanimou seus lábios, que exalaram uma palavra quase imperceptível:
— Isabel!...
A moça soltou um grito débil de alegria, de espanto, de medo; entre as idéias confusas que se agitavam na sua cabeça desvairada, lembrou-se com horror que era ela quem matava seu amante, quem o ia sacrificar por causa de um engano fatal. Fazendo um esforço extraordinário, conseguiu erguer a cabeça e ia precipitar-se para a janela, abri-la e dar entrada ao ar livre; sabia que a sua morte era inevitável; mas salvaria Álvaro.
No momento, porém, em que se levantava, sentiu as mãos do moço que apertavam as suas, e a obrigavam a reclinar-se sobre o leito; seus olhos encontraram de novo os olhos de seu amante.
Isabel não tinha mais forças para resistir e realizar o seu heróico sacrifício; deixou cair a cabeça desfalecida, e seus lábios se uniram outra vez num longo beijo, em que essas duas almas irmãs, confundindo-se numa só, voaram ao céu, e foram abrigar-se no seio do Criador.
As nuvens de fumaça e de perfume se condensavam cada vez mais e envolviam como um lençol aquele grupo original, impossível de descrever.
Por volta de duas horas da tarde, a porta do gabinete, impelida por um choque violento, abriu-se; e um turbilhão de fumo lançou-se por essa aberta, e quase sufocou as pessoas que ai estavam.
Eram Cecília e Peri.
A menina inquieta pela longa ausência de sua prima, soube de Peri que ela estava no seu quarto; mas o índio ocultou parte da verdade, e não disse onde deitara o corpo de Álvaro.
Duas vezes Cecília viera até à porta, escutara e nada ouvira; por fim resolveu-se a bater, a falar a Isabel, e não teve a menor resposta. Chamou Peri e contou-lhe o que se passava; o índio, tomado de um pressentimento meteu o ombro à porta e abriu-a.
Quando a corrente de ar expeliu a fumaça do aposento, Cecília pôde entrar e ver a cena que descrevemos.
A menina recuou, e respeitando esse mistério de um amor profundo, fez um gesto a Peri e retirou-se.
O índio fechou de novo a porta e acompanhou sua senhora.
— Ela morreu feliz! disse Peri.
Cecília fitou nele os seus grandes olhos azuis, e corou.
Capítulo IX: O Castigo
O dia declinava rapidamente e as sombras da noite começavam a estender-se sobre o verde-negro da floresta. D. Antônio de Mariz, apoiado ao umbral da porta, junto de sua mulher, passava o braço pela cintura de Cecília. O sol a esconder-se iluminava com o seu reflexo esse grupo de família digno do quadro majestoso que lhe servia de baixo-relevo.
O fidalgo, Cecília e sua mãe, com os olhos no horizonte, recebiam esse último raio de despedida, e mandavam o adeus extremo à luz do dia, as montanhas que os cercavam, as árvores, aos campos, ao rio, a toda a natureza.
Para eles esse sol era a imagem de sua vida; o ocaso era a sua hora derradeira: e as sombras da eternidade se estendiam já como as sombras da noite.
Os Aimorés tinham voltado, depois do combate em que os aventureiros venderam caro a sua vida; e cada vez mais sequiosos de vingança, esperavam que anoitecesse para assaltar a casa. Certos desta vez que o inimigo extenuado não resistiria a um ataque violento, tinham tratado de destruir todos os meios que pudessem favorecer a fuga de um só dos brancos.
Isto era fácil: além da escada de pedra, o rochedo formava um despenhadeiro por todos os lados; e só a árvore, que lançava os galhos sobre a cabana de Peri, oferecia um ponto de comunicação praticável para quem tivesse a agilidade e a força do índio.
Os selvagens, que não queriam que lhes escapasse um só inimigo, e ainda menos que esse fosse Peri, abateram a árvore, e cortaram assim a única passagem por onde um homem poderia sair do rochedo, no momento do ataque.
Ao primeiro golpe do machado de pedra sobre o grosso tronco do óleo, Peri estremeceu, e saltando sobre a sua clavina, ia despedaçar a cabeça do selvagem; mas sorriu-se, e encostou tranqüilamente a arma à parede. Sem inquietar-se com a destruição que faziam os Aimorés, continuou no seu trabalho interrompido, e acabou de torcer uma corda com os filamentos de uma das palmeiras que serviam de esteio à sua cabana.
Ele tinha o seu plano: e para realizá-lo, começara por cortar as duas palmeiras e trazê-las para o quarto de Cecília; depois rachou uma das árvores, e durante toda a manhã ocupou-se em torcer essa longa corda, a que dava uma extraordinária importância.
Quando Peri terminava a sua obra, ouviu o baque da árvore que tombava sobre o rochedo; chegou-se de novo à janela, e seu rosto exprimiu uma satisfação imensa. O óleo, cortado pela raiz, deitara-se sobre o precipício, elevando a uma grande altura os seus galhos seculares, mais frondosos e mais robustos do que uma árvore nova da floresta.
Os Aimorés, tranqüilos por esse lado, continuaram nos seus preparativos para o combate que contavam dar durante as horas mortas da noite.
Quando o sol desapareceu no horizonte e a luz do crepúsculo cedeu às trevas que envolviam a terra, Peri dirigiu-se à sala.
Aires Gomes, sempre infatigável, guardava a porta do gabinete; D. Antônio de Mariz estava recostado na sua cadeira de espaldar; e Cecília, sentada sobre seus joelhos, recusava beber uma taça que seu pai lhe apresentava.
— Bebe, minha Cecília, dizia o fidalgo; é um cordial que te fará muito bem.
— De que serve, meu pai? Por uma hora, se tanto nos resta viver, não vale a pena! respondia a menina, sorrindo tristemente.
— Tu te enganas! Ainda não estamos de todo perdidos.
— Tendes alguma esperança? perguntou ela incrédula.
— Sim, tenho uma esperança, e esta não me iludirá! respondeu D. Antônio, com um acento profundo.
— Qual? Dizei-me!
— És curiosa? replicou o fidalgo sorrindo. Pois só te direi se fizeres o que te peço.
— Quereis que beba essa taça?
— Sim
Cecília tomou a taça das mãos de seu pai, e depois de beber, volveu para ele o seu olhar interrogador.
— A esperança que eu tenho, minha filha, é que nenhum inimigo passara nunca do limiar daquela porta; podes crer na palavra de teu pai e dormir tranqüila. Deus vela sobre nos.
Beijando a fronte pura da menina, ele ergueu-se, tomou-a nos seus braços, e recostando-a sobre a poltrona em que estivera sentado, saiu do gabinete e foi examinar o que se passava fora da casa.
Peri, que tinha assistido a esse diálogo entre o pai e a filha, estava ocupado em procurar no gabinete vários objetos de que tinha necessidade aparentemente:
Logo que achou quanto desejava, o índio encaminhou-se para a porta.
— Onde vais? disse Cecília, que tinha acompanhado todos os seus movimentos.
— Peri volta, senhora.
— E por que nos deixa?
— Porque é preciso.
— Ao menos volta logo. Não devemos morrer todos juntos, da mesma morte?
O índio estremeceu.
— Não; Peri morrerá; mas tu hás de viver, senhora.
— Para que viver, depois de ter perdido todos os seus amigos?...
Cecília, que há alguns momentos sentia a cabeça vacilar, os olhos cerrarem-se e um sono invencível apoderar-se dela, deixou-se cair sobre o espaldar da cadeira.
— Não!... Antes morrer como Isabel! murmurou a menina já entorpecida pelo sono.
Um meigo sorriso veio adejar nos seus lábios entreabertos, por onde se escapava a respiração doce, branda e igual.
Peri a princípio assustou-se com esse sono repentino que não lhe parecia natural e com a palidez súbita de que se cobriram as feições de Cecília.
Seus olhos caíram sobre a taça que estava em cima da mesa; deitou nos lábios algumas gotas do liquido que tinham ficado no fundo e tomou-lhes o sabor: não podia conhecer o que continha; mas satisfez-se em não achar o que receara.
Repeliu a idéia que lhe assaltara o espírito, e lembrou-se que D. Antônio sorria no momento em que pedia à sua filha para beber, e que a sua mão não tremera apresentando-lhe a taça. Tranqüilo a este respeito, o índio, que não tinha tempo a perder, ganhou a esplanada, correu para o quarto que ocupava, e desapareceu.
A noite já estava fechada, e uma escuridão profunda envolvia a casa e os arredores. Durante esse tempo nenhum acontecimento extraordinário viera modificar a posição desesperada em que se achava a família a calma sinistra, que precede a grandes tempestades, plainava sobre a cabeça dessas vitimas que contavam, não as horas, mas os instantes de vida que lhes restavam.
D. Antônio passeava ao longo da sala, com a mesma serenidade de seus dias tranqüilos e plácidos de outrora; de vez em quando o fidalgo parava na porta do gabinete, lançava um olhar sobre sua mulher que orava e sua filha adormecida; depois continuava o passeio interrompido.
Os aventureiros grupados junto à porta seguiam com os olhos o vulto do fidalgo que se perdia no fundo escuro da sala, ou se destacava cheio de vigor e de colorido na esfera luminosa que cingia a lâmpada de prata suspensa ao teto.
Mudos, resignados, nenhum desses homens deixava escapar uma queixa, um suspiro que fosse; o exemplo de seu chefe reanimava neles essa coragem heróica do soldado que morre por uma causa santa.
Antes de obedecerem à ordem de D. Antônio de Mariz, eles tinham executado a sua sentença proferida contra Loredano; e quem passasse então sobre a esplanada veria em torno do poste, em que estava atado o frade, uma língua vermelha que lambia a fogueira, enroscando-se pelos toros de lenha.
O italiano sentia já o fogo que se aproximava e a fumaça, que, enovelando-se, envolvia-o numa névoa espessa; é impossível descrever a raiva, a cólera e o furor que se apossaram dele nesses momentos que precederam o suplício.
Mas voltemos à sala em que se achavam reunidos os principais personagens desta história, e onde se vão passar as cenas talvez mais importantes do drama.
A calma profunda que reinava nessa solidão não tinha sido perturbada; tudo estava em silêncio: e as trevas espessas da noite não deixavam perceber os objetos a alguns passos de distancia.
De repente listras de fogo atravessaram o ar, e se abateram sobre o edifício; eram as setas inflamadas dos selvagens que anunciavam o começo do ataque; durante alguns minutos foi como uma chuva de fogo, uma cascata de chamas que caiu sobre a casa.
Os aventureiros estremeceram; D. Antônio sorriu.
— É chegado o momento, meus amigos. Temos uma hora de vida; preparai-vos para morrer como cristãos e portugueses. Abri as portas para que possamos ver o céu.
O fidalgo dizia que lhe restava uma hora de vida, porque, tendo destruído o resto da escada de pedra, os selvagens não podiam subir ao rochedo senão escalando-o; e por maior que fosse a sua habilidade, não era possível que consumissem nisso menos tempo. Quando os aventureiros abriram as portas, um vulto resvalou na sombra, e entrou na sala.
Era Peri.
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