Tuesday, 25 May 2021

Thursday's Serial: "O Guarani" by José de Alencar (in Portuguese) - the end

Capítulo X: Cristão

O índio dirigiu-se rapidamente a D. Antônio de Mariz.

— Peri quer salvar a senhora.

O fidalgo abanou a cabeça em sinal de dúvida.

— Escuta! replicou o índio.

Aproximando os lábios do ouvido de D. Antônio, falou-lhe por algum tempo em voz baixa, e num tom rápido e decisivo.

— Tudo está preparado: parte, desce o rio; quando a lua estender o seu arco chegarás à tribo dos Goitacás. A mãe de Peri te conhece: cem guerreiros te acompanharão à grande taba dos brancos.

D. Antônio de Mariz ouviu em profundo silêncio as palavras do índio; e quando ele terminou, apertou-lhe a mão com reconhecimento.

— Não, Peri: o que me propões é impossível. D. Antônio de Mariz não pode abandonar a sua casa, a sua família e os seus amigos no momento do perigo, ainda mesmo para salvar aquilo que ele mais ama neste mundo. Um fidalgo português não pode fugir diante do inimigo, qualquer que ele seja: morre vingando a sua morte.

Peri fez um gesto de desespero.

— Assim tu não queres salvar a senhora?

— Não posso, respondeu o cavalheiro; o meu dever manda que fique e partilhe a sorte de meus companheiros.

O índio no seu fanatismo não compreendia que houvesse uma razão capaz de sacrificar a vida de Cecília, que para ele era sagrada.

— Peri pensou que tu amasses a senhora! disse ele fora de si.

D. Antônio olhou-o com uma expressão de dignidade e nobreza.

— Perdôo-te a ofensa que me fizeste, amigo; porque é ainda uma prova de tua grande dedicação. Mas acredita-me; se fosse preciso que eu me votasse só ao sacrifício bárbaro dos selvagens para salvar minha filha, eu o faria sorrindo.

— E por que recusas o que Peri te pede?

— Por quê?... Porque o que tu pedes não é um sacrifício, é uma vergonha; é uma traição. Tu abandonarias tua mulher, teus companheiros, para salvar-te do inimigo, Peri?...

O índio abaixou a cabeça com abatimento.

— Demais, essa empresa demanda forças com que um velho como eu já não pode contar. Havia duas pessoas que a poderiam realizar.

— Quem? perguntou Peri com um raio de esperança.

— Uma era meu filho, que a esta hora está bem longe daqui; a outra deixou-nos esta manhã e nos espera; era Álvaro.

— Peri fez pela senhora o que podia; tu não queres salvá-la; Peri vai morrer a seus pés.

— Morrer? disse o fidalgo. Quando tens a liberdade e a vida à tua disposição? E julgas que consentirei nisto?... Nunca! Vai, Peri; conserva a lembrança de teus amigos; a nossa alma te acompanhará na terra. Adeus. Parte: o tempo urge.

O índio ergueu a cabeça com um gesto soberbo de indignação.

— Peri arriscou bastantes vezes a sua vida por ti, para ter o direito de morrer contigo; tu não podes abandonar teus companheiros; o escravo não pode abandonar sua senhora.

— És injusto, amigo: exprimi um desejo, não quis irrogar-te uma injúria. Se exiges uma parte do sacrifício, esta te pertence, e tu és digno dela: fica.

Um grito dos selvagens retroou nos ares.

D. Antônio, fazendo um gesto aos aventureiros, encaminhou-se para o gabinete.

Cecília, adormecida sobre a cadeira de espaldar, sorria, como se algum sonho alegre a embalasse no seu sono tranqüilo; o rosto um pouco pálido, moldurado pelas tranças louras de seus cabelos, tinha a expressão suave da inocência feliz.

O fidalgo, contemplando sua filha, sentiu uma dor pungente e quase arrependeu-se de não ter aceitado o oferecimento de Peri, e de não tentar ao menos esse último esforço para defender aquela vida que apenas começava a expandir-se.

Mas podia ele mentir ao seu passado e faltar ao dever imperioso que o obrigava a morrer no seu posto? Podia trair na sua última hora àqueles que haviam partilhado a sua sorte?

Tal era o sentimento de honra naqueles antigos cavalheiros, que D. Antônio nem um momento admitiu a idéia de fugir para salvar sua filha; se houvesse outro meio, decerto o receberia como um favor do céu; mas aquele era impossível.

Enquanto o espírito do fidalgo se debatia nessa luta cruel, Peri, de pé, junto de Cecília, parecia querer ainda protegê-la contra a morte inevitável que a ameaçava. Dir-se-ia que o índio esperava algum socorro imprevisto, algum milagre que salvasse sua senhora; e que aguardava o momento de fazer por ela tudo quanto fosse possível ao homem.

D. Antônio, vendo a resolução que se pintava no rosto do selvagem, tornou-se ainda mais pensativo; quando, passado esse momento de reflexão, ergueu a cabeça, seus olhos brilhavam com um raio de esperança.

Atravessou o espaço que o separava de sua filha, e, tomando a mão de Peri, disse-lhe com uma voz profunda e solene:

— Se tu fosses cristão, Peri!...

O índio voltou-se extremamente admirado daquelas palavras.

— Por quê?... perguntou ele.

— Por quê?... disse lentamente o fidalgo. Porque se tu fosses cristão, eu te confiaria a salvação de minha Cecília, e estou convencido de que a levarias ao Rio de Janeiro, à minha irmã.

O rosto do selvagem iluminou-se; seu peito arquejou de felicidade; seus lábios trêmulos mal podiam articular o turbilhão de palavras que lhe vinham do intimo da alma.

— Peri quer ser cristão! exclamou ele.

D. Antônio lançou-lhe um olhar úmido de reconhecimento.

— A nossa religião permite, disse o fidalgo, que na hora extrema todo o homem possa dar o batismo. Nós estamos com o pé sobre o túmulo. Ajoelha, Peri!

O índio caiu aos pés do velho cavalheiro, que impôs-lhe as mãos sobre a cabeça.

— Sê cristão! Dou-te o meu nome.

Peri beijou a cruz da espada que o fidalgo lhe apresentou, e ergueu-se altivo e sobranceiro, pronto a afrontar todos os perigos para salvar sua senhora.

— Escuso exigir de ti a promessa de respeitares e defenderes minha filha. Conheço a tua alma nobre, conheço o teu heroísmo e a tua sublime dedicação por Cecília, Mas quero que me faças um outro juramento.

— Qual? Peri está pronto para tudo.

— Juras que, se não puderes salvar minha filha, ela não cairá nas mãos do inimigo?

— Peri te jura que ele levará a senhora à tua irmã; e que se o Senhor do céu não deixar que Peri cumpra a sua promessa, nenhum inimigo tocará em tua filha; ainda que para isso seja preciso queimar uma floresta inteira.

— Bem; estou tranqüilo. Ponho minha Cecília, sob tua guarda; e morro satisfeito. Podes partir.

— Manda fechar todas as portas.

Os aventureiros obedeceram a ordem do fidalgo; todas as portas se fecharam; o índio empregava este meio para ganhar tempo.

Os gritos e bramidos dos selvagens, que continuavam com algumas interrupções, foram se aproximando da casa; conhecia-se que escalavam o rochedo nesse momento.

Alguns minutos se passaram numa ansiedade cruel. D. Antônio de Mariz depositou um último beijo na fronte de sua filha; D. Lauriana apertou ao seio a cabeça adormecida da menina e envolveu-a numa manta de seda.

Peri, com o ouvido atento, o olhar fito na porta, esperava. Ligeiramente apoiado sobre o espaldar da cadeira, as vezes estremecia de impaciência e batia com o pé sobre o pavimento da sala.

De repente, um grande clamor soou em torno da casa; as chamas lamberam com as suas línguas de fogo as frestas das portas e janelas; o edifício tremeu desde os alicerces com o embate da tromba de selvagens que se lançava furiosa no meio do incêndio.

Peri, apenas ouviu o primeiro grito, reclinou sobre a cadeira e tomou Cecília nos braços; quando o estrondo soou na porta larga do salão, o índio já tinha desaparecido.

Apesar da escuridão profunda que reinava em todo o interior da casa, Peri não hesitou um momento; caminhou direito ao quarto onde habitara sua senhora e subiu à janela.

Uma das palmeiras da cabana estendia-se por cima do precipício e apoiava-se a trinta palmos de distancia sobre um dos galhos da árvore que os Aimorés tinham abatido durante o dia para tirarem aos habitantes da casa a menor esperança de fuga.

Peri, apertando Cecília nos braços, firmou o pé sobre essa ponte frágil, cuja face convexa tinha quando muito algumas polegadas de largura.

Quem lançasse os olhos nesse momento para aquela banda da esplanada veria ao pálido clarão do incêndio deslizar-se lentamente por cima do precipício um vulto hirto, como um dos fantasmas que, segundo a crença popular, atravessavam à meia-noite as velhas ameias de algum castelo em ruínas.

A palmeira oscilava, e Peri, embalando se sobre o abismo, adiantava-se vagarosamente para a encosta oposta. Os gritos dos selvagens repercutiam nos ares de envolta com o estrépito dos tacapes que abalavam as portas da sala e as paredes do edifício.

Sem se inquietar com a cena tumultuosa que deixava após si, o índio ganhou a encosta oposta, e segurando com uma mão nos galhos da árvore, conseguiu tocar a terra sem o menor acidente.

Então, fazendo uma volta para não aproximar-se do campo dos Aimorés, dirigiu-se à margem do rio; ai estava escondida entre as folhas a pequena canoa que servia outrora para os habitantes da casa atravessarem o Paquequer.

Durante a ausência de uma hora que Peri tinha feito, quando deixara Cecília adormecida, ele havia tudo preparado para essa empresa arriscada que devia salvar sua senhora. Graças à sua atividade espantosa, armou com o auxilio da corda a ponte pênsil sobre o precipício, correu ao rio, amarrou a canoa no lugar que lhe pareceu mais propicio, e em duas viagens levou a esse barquinho, que ia servir de morada a Cecília durante alguns dias, tudo quanto a menina podia carecer.

Eram roupas, uma colcha de damasco com que se poderia arranjar um leito, alguns alimentos que restavam na casa; lembrou-se até que D. Antônio devia ter necessidade de dinheiro logo que chegasse ao Rio de Janeiro, porque Peri contava que o fidalgo não duvidaria salvar sua filha.

Chegando à beira do rio, o índio deitou sua senhora no fundo da canoa, como uma menina no seu berço, envolveu-a na manta de seda para abrigá-la do orvalho da noite, e tomando o remo, fez a canoa saltar como um peixe sobre as águas.

A algumas braças de distancia, por entre uma aberta da floresta, Peri viu sobre o rochedo a casa iluminada pelas chamas do incêndio, que começava a lavrar com alguma intensidade. De repente uma cena fantástica, terrível passou diante de seus olhos, como uma dessas visões rápidas que brilham e se apagam de repente no delírio da imaginação.

A frente da casa estava às escuras; o fogo ganhara as outras faces do edifício e o vento o lançava para o fundo. Peri do primeiro olhar tinha visto os vultos dos Aimorés a se moverem nas sombras e a figura horrível e medonha de Loredano, erguendo-se como um espectro no meio das chamas que o devoravam.

De repente a fachada do edifício tombou sobre a esplanada, esmagando na sua queda um grande número de selvagens.

Foi então que o quadro fantástico se desenhou aos olhos de Peri.

A sala era um mar de fogo; os vultos que se moviam nessa esfera luminosa pareciam nadar em vagas de chamas.

No fundo destacava o vulto majestoso de D. Antônio de Mariz de pé no meio do gabinete, elevando com a mão esquerda uma imagem do Cristo e com a direita abaixando a pistola para a cava escura onde dormia o vulcão.

Sua mulher abraçava os seus joelhos calma e resignada; Aires Gomes e os poucos aventureiros que restavam, imóveis e ajoelhados a seus pés, formavam o baixo-relevo dessa estátua digna de um grande cinzel.

Sobre o montão de ruínas formado pela parede que desmoronara, desenhavam-se as figuras sinistras dos selvagens, semelhantes a espíritos diabólicos dançando nas chamas infernais.

Tudo isso, Peri viu de um só relance de olhos, como um painel vivo iluminado um momento pelo clarão instantâneo do relâmpago.

Um estampido horrível reboou por toda aquela solidão: a terra tremeu, e as águas do rio se encapelaram como batidas pelo tufão. As trevas envolveram o rochedo há pouco esclarecido pelas chamas, e tudo entrou de novo no silêncio profundo da noite. Um soluço partiu o peito de Peri, talvez a única testemunha dessa grande catástrofe.

Dominando a sua dor, o índio vergou sobre o remo, e a canoa voou pela face lisa e polida do Paquequer.

 

 

Capítulo XI: Epílogo

Quando o sol, erguendo-se no horizonte, iluminou os campos, um montão de ruínas cobria as margens do Paquequer.

Grandes lascas de rochedos, talhadas de um golpe e semeadas pelo campo, pareciam ter saltado do malho gigantesco de Novos Ciclopes.

A eminência sobre a qual estava situada a casa tinha desaparecido, e no seu lugar via-se apenas uma larga fenda semelhante à cratera de algum vulcão subterrâneo.

As árvores arrancadas dos seus alvéolos, a terra revolta, a cinza enegrecida que cobria a floresta, anunciavam que por ai tinham passado algum desses cataclismas que deixam após si a morte e a destruição.

Aqui e ali entre os cômoros das ruínas aparecia alguma índia, resto da tribo dos Aimorés, que tinha ficado para chorar a morte dos seus, e levar às outras tribos a noticia dessa tremenda vingança.

Quem plainasse nesse momento sobre aquela solidão, e lançasse os olhos pelos vastos horizontes que se abriam em torno, se a vista pudesse devassar a distancia de muitas léguas, veria ao longe, na larga esteira do Paraíba, passar rapidamente uma forma vaga e indecisa.

Era a canoa de Peri, que impelida pelo remo e pela viração da manhã corria com uma velocidade espantosa, semelhando uma sombra a fugir das primeiras claridades do dia.

Toda a noite o índio tinha remado sem descansar um momento; não ignorava que D. Antônio de Mariz na sua terrível vingança havia exterminado a tribo dos Aimorés, mas desejava apartar-se do teatro da catástrofe, e aproximar-se dos seus campos nativos.

Não era o sentimento da pátria, sempre tão poderoso no coração do homem; não era o desejo de ver sua cabana reclinada à beira do rio e abraçar sua mãe e seus irmãos, que dominava sua alma nesse momento e lhe dava esse ardor.

Era sim a idéia de que ia salvar sua senhora e cumprir o juramento que tinha feito ao velho fidalgo; era o sentimento de orgulho que se apoderava dele, pensando que bastava a sua coragem e a sua força para vencer todos os obstáculos, e realizar a missão de que se havia encarregado.

Quando o sol, no meio de sua carreira, lançava torrentes de luz sobre esse vasto deserto, Peri sentiu que era tempo de abrigar Cecília dos raios abrasadores, e fez a canoa abicar à beira do rio na sombra de uma ramagem de árvores.

A menina envolta na sua manta de seda, com a cabeça apoiada sobre a proa do barquinho, dormia ainda o mesmo sono tranqüilo da véspera; as cores tinham voltado, e sob a alvura transparente de sua pele brilhavam esses tons cor-de-rosa, esse colorido suave, que só a natureza, artista sublime, sabe criar.

Peri tomou a canoa nos seus braços, como se fora um berço mimoso, e deitou-a sobre a relva que cobria a margem do rio; depois sentou-se ao lado, e com os olhos fitos em Cecília, esperou que ela saísse desse sono prolongado que começava a inquietá-lo.

Tremia lembrando-se da dor que sua senhora ia sentir quando soubesse a desgraça de que ele fora testemunha na véspera; e não se achava com forças de responder ao primeiro olhar de surpresa que a menina lançaria em torno de si, logo que despertasse no meio do deserto.

Enquanto durou o sono, Peri, com o braço apoiado à borda da canoa e o corpo reclinado sobre o rosto da menina, esperando com ansiedade o momento que ele desejava e temia ao mesmo tempo, velava sobre Cecília, com um cuidado e uma solicitude admirável. A mãe, a mais extremosa não se desvelaria tanto por seu filho, como esse amigo dedicado por sua senhora; uma réstia de sol que, enfiando-se pelas folhas, vinha brincar no rosto da menina, um passarinho que cantava sobre um ramo do arbusto, um inseto que saltava na relva, tudo ele afastava para não perturbar o seu repouso.

Cada minuto que passava era uma nova inquietação para ele; porém era também um instante mais de sossego e de tranqüilidade que a menina gozava, antes de saber a desgraça que pesava sobre ela, e que a privara de sua família.

Um longo suspiro elevou o seio de Cecília; seus lindos olhos azuis se abriram e cerraram, deslumbrados pela claridade do dia; ela passou a mão delicada pelas pálpebras rosadas, como para afugentar o sono, e seu olhar límpido e suave foi pousar no rosto de Peri. Soltou um gritozinho de prazer, e sentando-se com vivacidade, lançou um olhar de surpresa e admiração em torno da espécie de pavilhão de folhagem que a cercava; parecia interrogar as árvores, o rio, o céu; mas tudo emudecia.

Peri não se animava a pronunciar uma palavra; via o que se passava na alma de sua senhora, e não tinha a coragem de dizer a primeira letra do enigma que ela não tardaria a compreender.

Por fim, a menina, baixando a vista para ver onde estava, descobriu a canoa, e lançando um volver rápido para o vasto leito do Paraíba que se espreguiçava indolentemente pela floresta, ficou branca como a cambraia do seu roupão.

Voltou-se para o índio com os olhos extremamente dilatados, os lábios trêmulos, a respiração presa, o seio ofegante, e suplicando com as mãozinhas juntas:

— Meu pai!... meu pai!... exclamou soluçando.

O selvagem deixou cair a cabeça sobre o peito e escondeu o rosto nas mãos.

— Morto!... Minha mãe também morta!... Todos mortos!...

Vencida pela dor, a menina apertou convulsamente o seio que lhe estalava com os soluços, e reclinando-se como o cálice delicado de uma flor que a noite enchera de orvalho, desfez-se em lágrimas.

— Peri só podia salvar a ti, senhora! murmurou o índio tristemente.

Cecília ergueu a cabeça altiva.

— Por que não me deixaste morrer com os meus?... exclamou ela numa exaltação febril. Pedi-te eu que me salvasses? Precisava de teus serviços?...

Seu rosto tomou uma expressão de energia extraordinária.

— Tu vais me levar ao lugar onde descansa o corpo de meu pai. É ai que deve estar sua filha... Depois partirás!... Não careço de ti.

Peri estremeceu.

— Escuta, senhora... balbuciou ele em tom submisso.

A menina lançou-lhe um olhar tão imperioso, tão soberano, que o índio emudeceu, e voltando o rosto escondeu as lágrimas que lhe molhavam as faces.

Cecília caminhou até a beira do rio e com os olhos estendidos pelo horizonte, que ela supunha ocultar o lugar em que habitara, ajoelhou e fez uma oração longa e ardente.

Quando ergueu-se, estava mais calma: a dor tinha-se repassado do consolo sublime da religião, dessa doçura e suavidade que infiltra no coração a esperança de uma vida celeste, que reuna aqueles que se amaram na terra.

Ela pôde então refletir sobre o que se tinha passado na véspera: e procurou lembrar-se das circunstâncias que haviam precedido à morte de sua família. Todas as suas recordações, porém, chegavam unicamente até o momento em que, já meio adormecida, falava a Peri, e dizia essa palavra ingênua e inocente que lhe escapara do intimo da alma:

— Antes morrer como Isabel!

Lembrando-se dessa palavra corou; e vendo-se só no deserto com Peri, sentiu uma inquietação vaga e indefinida, um sentimento de temor e de receio, cuja causa não sabia explicar.

Seria essa desconfiança súbita proveniente da cólera que ela sentira, porque o índio salvara a sua vida, e a arrancara da desgraça que tinha destruído toda a sua família?

Não; não era essa a causa; ao contrário, Cecília conhecia que fora injusta para com seu amigo que tinha talvez feito impossíveis por ela; e a não ser o receio instintivo que se aponderara involuntariamente de sua alma, já o teria chamado para pedir-lhe perdão daquelas palavras duras e cruéis.

A menina ergueu os olhos tímidos e encontrou o olhar triste e súplice de Peri: não pôde resistir; esqueceu os seus receios, e um tênue sorriso fugiu-lhe pelos lábios.

— Peri!...

O índio estremeceu, mas desta vez de alegria e de contentamento; veio cair aos pés de sua senhora, que ele encontrava de novo boa como sempre tinha sido.

— Perdoa a Peri, senhora!

— És tu que me deves perdoar, porque te fiz sofrer; não é verdade? Mas bem sabes!... Não podia abandonar meu pobre pai!

— Foi ele que mandou a Peri que te salvasse! disse o índio.

— Como?... exclamou a menina. Conta-me, meu amigo.

O índio fez a narração da cena da noite antecedente desde que Cecília tinha adormecido até o momento em que a casa saltara com a explosão, restando dela apenas um montão de ruínas.

Contou que ele tinha preparado tudo para que D. Antônio de Mariz fugisse, salvando Cecília; mas que o fidalgo recusara, dizendo que a sua lealdade e a sua honra mandavam que morresse no seu posto.

— Meu nobre pai! murmurou a menina enxugando as lágrimas.

Houve um instante de silêncio, depois do qual Peri concluiu a sua narração, e referiu como D. Antônio de Mariz o tinha batizado, e lhe havia confiado a salvação de sua filha.

— Tu és cristão, Peri?... exclamou a menina, cujos olhos brilharam com uma alegria inefável.

— Sim; teu pai disse: Peri, tu és cristão; dou-te o meu nome!

— Obrigado, meu Deus, disse a menina juntando as mãos e erguendo os olhos ao céu.

Depois envergonhada desse movimento espontâneo, escondeu o rosto: o rubor que cobriu as suas faces tingiu de uns longes cor-de-rosa as linhas puras do colo acetinado.

Peri ergueu-se e foi colher alguns frutos delicados que serviram de refeição à sua senhora.

O sol tinha quebrado a sua força, era tempo de continuar a viagem e aproveitar a frescura da tarde para vencer a distancia que os separava do campo dos goitacás.

O índio chegou-se trêmulo para a menina:

— Que queres tu que Peri faça, senhora?

— Não sei, respondeu Cecília indecisa.

— Não queres que Peri te leve à taba dos brancos?

— É a vontade de meu pai?... deves cumpri-la.

— Peri prometeu a D. Antônio levar-te à sua irmã.

O índio fez a canoa boiar sobre as águas do rio, e quando tomou a menina nos seus braços para deitá-la no barquinho, ela sentiu pela primeira vez na sua vida que o coração de Peri palpitava sobre o seu seio.

A tarde estava soberba; os raios do sol no ocaso, filtrando por entre as folhas das árvores, douravam as flores alvas que cresciam pela beira do rio.

As rolas começavam a soltar os seus arrulhos no fundo da floresta; e a brisa, que passava ainda tépida das exalações da terra, vinha impregnada de aromas silvestres.

A canoa resvalou pela flor da água como uma garça ligeira levada pela correnteza do rio.

Peri remava sentado na proa.

Cecília, deitada no fundo, meio apoiada sobre uma alcatifa de folhas que Peri tinha arranjado, engolfava-se nos seus pensamentos, e aspirava as emanações suaves e perfumadas das plantas, e a frescura do ar e das águas.

Quando os seus olhos encontravam os de Peri, os longos cílios desciam ocultando um momento o seu olhar doce e triste.

A noite estava serena.

A canoa, vogando sobre as águas do rio, abria essas flores de espuma, que brilham um momento à luz das estrelas, e se desfazem como o sorriso da mulher.

A brisa tinha escasseado; e a natureza adormecida respirava a calma tépida e perfumada das noites americanas, tão cheias de enlevo e encanto.

A viagem fora silenciosa: essas duas criaturas abandonadas no meio do deserto, sós em face da natureza, emudeciam, como se temessem despertar o eco profundo da solidão.

Cecília repassava na memória toda a sua vida inocente e tranqüila, cujo fio dourado tinha-se rompido de uma maneira tão cruel; mas era sobretudo o último ano dessa existência, desde o dia do aparecimento imprevisto de Peri, que se desenhava na sua imaginação.

Por que, interrogava ela, assim os dias que tinha vivido no remanso da felicidade? Por que o seu espírito voltava ao passado, e procurava ligar todos esses fatos a que na descuidosa ingenuidade dos primeiros anos dera tão pouco apreço?

Ela mesma não saberia explicar as emoções que sentia; sua alma inocente e ignorante tinha-se iluminado com uma súbita revelação; novos horizontes se abriam aos sonhos castos do seu pensamento.

Volvendo ao passado admirava-se de sua existência, como os olhos se deslumbram com a claridade depois de um sono profundo; não se reconhecia na imagem do que fora outrora, na menina isenta e travessa.

Toda a sua vida estava mudada: a desgraça tinha operado essa revolução repentina, e um outro sentimento ainda confuso ia talvez completar a transformação misteriosa da mulher.

Em torno dela tudo se ressentia dessa mudança; as cores tinham tons harmoniosos, o ar perfumes inebriantes, a luz reflexos aveludados, que seus sentidos não conheciam.

Uma flor, que antes era para ela apenas uma bela forma, parecia-lhe agora uma criatura que sentia e palpitava; a brisa que outrora passava como um simples bafejo das auras, murmurava ao seu ouvido nesse momento melodias inefáveis, notas místicas que ressoavam no seu coração.

Peri, julgando sua senhora adormecida, remava docemente para não perturbar o seu repouso; a fadiga começava a vencê-lo; apesar de sua coragem indomável e de sua vontade poderosa, as forças estavam exaustas.

Apenas vencedor da luta terrível que travara com o veneno, tinha começado a empresa quase impossível da salvação de sua senhora; havia três dias que seus olhos não se cerravam, que seu espírito não repousava um instante.

Tudo quanto a natureza permitia à inteligência e ao poder do homem, ele tinha feito; e contudo não era a fadiga do corpo que o vencia, eram sim as emoções violentas por que passara durante esse tempo.

O que ele tinha sentido quando plainava sobre o abismo, e que a vida de sua senhora dependia de um passo falso, de uma oscilação da haste frágil que lhe servia de ponte pênsil, ninguém compreenderia.

O que sofreu quando Cecília no seu desespero pela morte de seu pai o acusava por tê-la salvado, e lhe dava ordem de levá-la ao lugar onde repousavam as cinzas do velho fidalgo, é impossível de descrever.

Foram horas de martírio, de sofrimento horrível, em que sua alma sucumbiria, se não achasse na sua vontade inflexível e na sua dedicação sublime um conforto para a dor, e um estimulo para triunfar de todos os obstáculos.

Eram essas emoções que o venciam, e ainda depois de vencidas; ele conheceu que seus músculos de aço, escravos submissos que obedeciam ao seu menor desejo, se distendiam como a corda do arco depois do combate. Lembrou-se que sua senhora precisava dele e que devia aproveitar esses momentos em que ela repousava para pedir ao sono novo vigor e novas forças.

Ganhou o meio do rio, e escolhendo um lugar onde não chegava nem um galho das árvores que cresciam nas ribanceiras,- amarrou a canoa nos nenúfares que boiavam à tona da água.

Tudo estava quieto; a terra ficava a uma distancia de muitas braças; portanto podia sua senhora dormir sem perigo sobre esse chão prateado, debaixo da abobada azul do céu; as ondinhas a embalariam no seu berço, as estrelas vigiariam o seu sono.

Livre de inquietação, Peri encostou a cabeça na borda da canoa; um momento depois suas pálpebras entorpecidas cerraram-se a pouco e pouco; seu último olhar, esse olhar vago e incerto que adeja na pupila já meio adormecida, viu desenhar-se na sombra uma forma alva e graciosa que se reclinava docemente para ele.

Não era um sonho, essa linda visão. Cecília sentindo a canoa imóvel despertou das suas recordações; sentou-se, e debruçando-se um pouco viu que seu amigo dormia, e acusou-se por não ter há mais tempo exigido dele esse instante de repouso.

O primeiro sentimento que se apoderou da menina, vendo-se só, foi o terror solene e respeitoso que infunde a solidão no meio do deserto, nas horas mornas da noite. O silêncio parece falar; as sombras se povoam de seres invisíveis; os objetos, na sua imobilidade, como que oscilam pelo espaço.

É ao mesmo tempo o nada com o seu vácuo profundo, imenso, infinito; e o caos com a sua confusão, as suas trevas, as suas formas incriadas; a alma sente que falta-lhe a vida ou a luz em torno.

Cecília recebeu essa impressão com um temor religioso; mas não se deixou dominar pelo susto; a desgraça a habituara ao perigo; e a confiança que tinha no seu companheiro era tanta, que mesmo dormindo parecia-lhe que Peri velava sobre ela.

Contemplando essa cabeça adormecida, a menina admirou-se da beleza inculta dos traços, da correção das linhas do perfil altivo, da expressão de força e inteligência que animava aquele busto selvagem moldado pela natureza.

Como é que até então ela não tinha percebido naquele aspecto senão um rosto amigo? Como seus olhos tinham passado sem ver sobre essas feições talhadas com tanta energia? É que a revelação física que acabava de iluminar o seu olhar, não era senão o resultado dessa outra revelação moral que esclarecera o seu espírito; dantes via com os olhos do corpo, agora via com os olhos da alma.

Peri, que durante um ano não fora para ela senão um amigo dedicado, aparecia-lhe de repente como um herói; no seio de sua família estimava-o, no meio dessa solidão admirava-o.

Como os quadros dos grandes pintores que precisam de luz, de um fundo brilhante, e de uma moldura simples, para mostrarem a perfeição de seu colorido e a pureza de suas linhas, o selvagem precisava do deserto para revelar-se em todo o esplendor de sua beleza primitiva. No meio de homens civilizados, era um índio ignorante, nascido de uma raça bárbara, a quem a civilização repelia e marcava o lagar de cativo. Embora para Cecília e D. Antônio fosse um amigo, era apenas um amigo escravo.

Aqui, porém, todas as distinções desapareciam; o filho das matas, voltando ao seio de sua mãe, recobrava a liberdade; era o rei do deserto, o senhor das florestas, dominando pelo direito da força e da coragem.

As altas montanhas, as nuvens, as catadupas, os grandes rios, as árvores seculares, serviam de trono, de dossel, de manto e cetro a esse monarca das selvas cercado de toda a majestade e de todo o esplendor da natureza.

Que efusão de reconhecimento e de admiração não havia no olhar de Cecília! Era nesse momento que ela compreendia toda a abnegação do culto santo e respeitoso que o índio lhe votava!

As horas correram silenciosamente nessa muda contemplação; a aragem fresca que anuncia o despontar do dia bafejou o rosto da menina; e pouco depois o primeiro albor da manhã desmaiou o negrume do horizonte.

Sobre o relevo que formava o perfil escuro da floresta, nas sombras da noite, luziu límpida e brilhante a estrela-dalva; as águas do rio arfaram docemente; e os leques das palmeiras se agitaram rumorejando.

A menina lembrou-se do seu despertar tão plácido de outrora, de suas manhãs tão descuidosas, de sua prece alegre e risonha em que agradecia a Deus a ventura que vertia sobre ela e sua família.

Uma lágrima pendeu nos cílios dourados e caiu sobre a face de Peri; abrindo os olhos e vendo ainda a mesma doce visão que o adormecera, o índio julgou que o sonho continuava.

Cecília sorriu-lhe; e passou a mãozinha pelas pálpebras ainda meio cerradas de seu amigo:

— Dorme, disse ela, dorme; Ceci vela.

A música dessas palavras despertou completamente o selvagem.

— Não! balbuciou ele envergonhado de ter cedido à fadiga. Peri sente-se forte.

— Mas tu deves ter necessidade de repouso! Há tão pouco tempo que adormeceste!

— O dia vai raiar; Peri deve velar sobre sua senhora.

— E por que tua senhora não velará também sobre ti? Queres tomar tudo; e não me deixas nem mesmo a gratidão!

O índio lançou um olhar cheio de admiração a menina:

— Peri não entende o que tu dizes. A rolinha quando atravessa o campo e sente-se fatigada, descansa sobre a asa de seu companheiro que é mais forte; e ele que guarda o seu ninho enquanto ela dorme, que vai buscar o alimento, que a defende e que a protege. Tu és como a rolinha, senhora.

Cecília corou da comparação ingênua de seu amigo.

— E tu? perguntou ela confusa e trêmula de emoção.

— Peri... é teu escravo, respondeu o índio naturalmente.

A menina abanou a cabeça com uma inflexão graciosa:

— A rolinha não tem escravo.

Os olhos de Peri brilharam; uma exclamação partiu de seus lábios:

— Teu...

Cecília com o seio palpitante, as faces vermelhas, os olhos úmidos, levou a mãozinha aos lábios de Peri, e reteve a palavra que ela mesma na sua inocente faceirice tinha provocado.

— Tu és meu irmão! disse ela com um sorriso divino.

Peri olhou o céu como para fazê-lo confidente de sua felicidade.

A claridade da alvorada estendia-se sobre a floresta e os campos como um véu finíssimo; a estrela da manhã cintilava em todo o seu fulgor.

Cecília ajoelhou-se.

— Salve, rainha!...

O índio contemplava-a com uma expressão de ventura inefável.

— Tu és cristão, Peri! disse ela lançando-lhe um olhar suplicante.

Seu amigo compreendeu-a, e ajoelhando, juntou as mãos como ela. — Tu repetirás todas as minhas palavras; e faze por não esquecê-las. Sim?

— Elas vêm de teus lábios, senhora.

— Senhora, não! irmã!

Daí a pouco os murmúrios das águas confundiam-se com os acenos maviosos da voz de Cecília que recitava o hino cristão repassado de tanta unção e poesia.

A palavra de Peri repetia como um eco a frase sagrada.

Terminada a prece cristã, talvez a primeira que tinha ouvido aquelas árvores seculares, a viagem continuou.

Logo que o sol chegou ao zênite, Peri procurou como na véspera um abrigo para passar as horas de calma.

A canoa pojou num pequeno seio do rio; Cecília saltou em terra; e seu companheiro escolheu uma sombra onde ela repousasse.

— Espere aqui; Peri já volta.

— Onde vais? perguntou a menina inquieta.

— Ver frutos para ti.

— Não tenho fome.

— Tu os guardarás.

— Pois bem; eu te acompanho.

— Não; Peri não consente.

— E por quê? Não me queres junto de ti?

— Olha tuas roupas; olha teu pé, senhora; os espinhos do cardo te ofenderiam.

Com efeito Cecília estava vestida com um ligeiro roupão de cambraia; e seu pezinho que descansava sobre a relva, calçava um borzeguim de seda.

— Então me deixas só? disse a menina entristecendo.

O índio ficou um momento indeciso; mas de repente sua fisionomia expandiu-se.

Cortou a haste de um íris que se balançava ao sopro da aragem, e apresentou a flor à menina.

— Escuta, disse ele. Os velhos da tribo ouviram de seus pais, que a alma do homem quando sai do corpo, se esconde numa flor, e fica ali até que a are do céu vem buscá-la e a leva li, bem longe. É por isso que tu vês o guanumbi, saltando de flor em flor, beijando uma, beijando outra, e depois batendo as asas e fugindo.

Cecília, habituada à linguagem poética do selvagem, esperava a última palavra que devia fazê-la compreender o seu pensamento.

O índio continuou:

— Peri não leva a sua alma no corpo, deixa-a nesta flor. Tu não ficas só.

A menina sorriu, e tomando a flor escondeu-a no seio.

— Ela me acompanhará. Vai, meu irmão, e volta logo.

— Peri não se afastará; se tu o chamares, ele ouvirá.

— E me responderás, sim?... para que eu te sinta perto de mim...

O índio, antes de partir, circulou a alguma distancia o lugar onde se achava Cecília, de uma corda de pequenas fogueiras feitas de louro, de canela, urataí e outras árvores aromáticas.

Desta maneira tornava aquele retiro impenetrável; o rio de um lado, e do outro as chamas que afugentariam os animais daninhos, e sobretudo os répteis; o fumo odorífero que se escapava das fogueiras afastaria até mesmo os insetos. Peri não sofreria que uma vespa e uma mosca sequer ofendesse a cútis de sua senhora, e sugasse uma gota desse sangue precioso; por isso tomara todas essas precauções.

Cecília devia pois ficar tranqüila como se estivesse em um palácio; e de fato era um palácio de rainha do deserto esse sombrio cheio de frescura a que a relva servia de alcatifa, as folhas de dossel, as grinaldas em flores de cortinas, os sabiás de orquestra, as águas de espelho, e os raios do sol de arabescos dourados.

A menina viu de longe o desvelo com que seu amigo tratava de sua segurança, e acompanhou-o com o olhar até o momento em que ele desapareceu no mais espesso da mata.

Foi então que ela sentiu a soledade estender-se em torno e envolvê-la; insensivelmente levou a mão ao seio e tirou a flor que Peri lhe tinha dado.

Apesar de sua fé cristã, não pôde vencer essa inocente superstição do coração: pareceu-lhe, olhando o íris, que já não estava só e que a alma de Peri a acompanhava.

Qual é o seio de dezesseis anos que não abriga uma dessas ilusões encantadoras, nascidas com o fogo dos primeiros raios do amor? Qual é a menina que não consulta o oráculo de um malmequer, e não vê numa borboleta negra a sibila fatídica que lhe anuncia a perda da mais bela esperança?

Como a humanidade na infância, o coração nos primeiros anos tem também a sua mitologia; mitologia mais graciosa e mais poética do que as criações da Grécia; o amor é o seu Olimpo povoado de deusas ou deuses de uma beleza celeste e imortal. Cecília amava; a gentil e inocente menina procurava iludir-se a si mesma, atribuindo o sentimento que enchia sua alma a uma afeição fraternal, e ocultando, sob o doce nome de irmão, um outro mais doce que titilava nos seus lábios, mas que seus lábios não ousavam pronunciar.

Mesmo só, de vez em quando um pensamento que passava no seu espírito, incendia-lhe as faces de rubor, fazia palpitar-lhe o seio e pender molemente a cabeça, como a haste da planta delicada quando o calor do sol fecunda a florescência.

Em que pensava ela, com os olhos fitos no íris, que o seu hálito bafejava, com as pálpebras meio cerradas e o corpo reclinado sobre os joelhos?

Pensava no passado que não voltaria; no presente que devia escoar-se rapidamente; e no futuro que lhe aparecia vago, incerto e confuso.

Pensava que de todo o seu mundo só lhe restava um irmão de sangue, cujo destino ignorava, e um irmão de alma, em que tinha concentrado todas as afeições que perdera.

Um sentimento de tristeza profunda anuviava o seu semblante, lembrando-se de seu pai, de sua mãe, de Isabel, de Álvaro, de todos que amava e que formavam o universo para ela; então o que a consolava era a esperança de que os dois únicos corações que lhe restavam, não a abandonariam nunca.

E isto a fazia feliz; não desejava mais nada; não pedia a Deus mais ventura do que a que sentiria vivendo junto de seus amigos e enchendo o futuro com as recordações do passado.

A sombra das árvores já beijava as águas do rio, e Peri ainda não tinha voltado; Cecília assustou-se, e, temendo que lhe tivesse sucedido alguma coisa, chamou por ele.

O índio respondeu longe, e pouco depois apareceu entre as árvores; o seu tempo não tinha sido inutilmente empregado, a julgar pelos objetos que trazia.

— Como tardaste!... disse-lhe Cecília erguendo-se e indo ao seu encontro.

— Tu estavas sossegada; Peri aproveitou para não te deixar amanhã.

— Amanhã só?

— Sim, porque depois chegaremos.

— Aonde? perguntou a menina com vivacidade.

Aos campos dos goitacás, à cabana de Peri, onde tu mandarás a todos os guerreiros da tribo.

— E depois, como iremos ao Rio de Janeiro?

— Não te inquietes; os goitacás têm igaras grandes como aquela árvore que toca às nuvens; quando eles atiram o remo, elas voam sobre as águas como a atiati de asas brancas. Antes que a lua, que vai nascer, tenha desaparecido, Peri te deixará com a irmã de teu pai.

— Deixará!... exclamou a menina, empalidecendo. Tu queres me abandonar?

— Peri é um selvagem, disse o índio tristemente; não pode viver na taba dos brancos.

— Por quê? perguntou a menina com ansiedade. Não és tu cristão como Ceci?

— Sim; porque era preciso ser cristão para te salvar; mas Peri morrerá selvagem como Ararê.

— Oh! não, disse a menina, eu te ensinarei a conhecer Deus, Nossa Senhora, as suas virgens e os seus anjinhos. Tu viverás comigo e não me deixarás nunca!

— Vê, senhora: a flor que Peri te deu já marchou porque saiu de sua planta; e a flor estava no teu seio. Peri na taba dos brancos, ainda mesmo junto de ti, será como esta flor; tu terás vergonha de olhar para ele.

— Peri!... exclamou a menina ofendida.

— Tu és boa; mas todas as que têm a tua cor, não têm o teu coração. Li o selvagem seria um escravo dos escravos; e quem nasceu o primeiro, pode ser teu escravo; mas é senhor dos campos, e manda aos mais fortes.

Cecília, admirando o reflexo de nobre orgulho que brilhava na fronte do índio, sentiu que não podia combater a sua resolução ditada por um sentimento elevado. Reconheceu que havia no fundo de suas palavras uma grande verdade, que o seu instinto adivinhava: ela tinha a prova na revolução que se operara no seu espírito, vendo Peri no meio do deserto, livre, grande, majestoso como um rei.

Qual não seria pois a conseqüência dessa outra transição, muito mais brusca? Numa cidade, no meio da civilização, o que seria um selvagem, senão um cativo, tratado por todos com desprezo?

No íntimo de sua alma quase que aprovava a resolução de Peri; mas não podia afazer-se à idéia de perder seu amigo, seu companheiro, a única afeição que talvez ainda lhe restava no mundo.

Durante esse tempo, o índio preparava a simples refeição que lhes oferecia a natureza. Deitou sobre uma folha larga os frutos que tinha colhido: eram os araçás, os jambos corados, os ingás de polpa macia, os cocos de várias espécies.

A outra folha continha favos de uma pequena abelha, que fabricara a sua colmeia no tronco de uma catuíba, de sorte que o mel puro e claro tinha perfumes deliciosos; dir-se-ia mel de flores.

O índio tornou côncava uma palma larga e encheu-a com o suco do ananás, cuja fragrância é como a essência do sabor: era o vinho que devia servir ao banquete frugal.

Numa segunda palma, também côncava, apanhou a água cristalina da corrente que murmurava a alguns passos; devia servir para Cecília lavar as mãos depois da refeição.

Quando acabou esses preparativos que ele fazia com uma satisfação inexprimível, Peri sentou-se junto da menina e começou a trabalhar num arco de que precisava. O arco era a sua arma favorita, e sem ele, embora possuísse a clavina e as munições que por precaução deitara na canoa para servirem a D. Antônio de Mariz, não tinha tranqüilidade de espírito e confiança plena na sua agilidade. Reparando, porém, que sua senhora não tocava nos alimentos, ergueu a cabeça e viu o rosto da menina banhado de lágrimas, que calam em pérolas sobre os frutos e os rociavam como gotas de orvalho.

Não era preciso adivinhar para conhecer a causa dessas lágrimas.

— Não chora, senhora, disse o índio aflito; Peri te falou o que sentia; manda, e Peri fará a tua vontade.

Cecília olhou-o com uma expressão de melancolia que partia a alma.

— Queres que Peri fique contigo? Ele ficará; todos serão seus inimigos; todos o tratarão mal; desejara defender-te e não poderá; quererá servir-te e não o deixarão; mas Peri ficará.

— Não, respondeu Cecília; não exijo de ti esse último sacrifício. Deves viver onde nasceste, Peri.

— Mas tu vais ainda chorar!

— Vê, disse a menina enxugando as lágrimas; estou contente.

— Agora toma uma fruta.

— Sim; jantaremos juntos, como jantavas outrora no meio das matas com tua irmã.

— Peri nunca teve irmã.

— Mas tens agora, respondeu ela sorrindo.

E como uma filha das florestas, uma verdadeira americana, a gentil menina fez a sua refeição, partilhando-a com seu companheiro, e acompanhando-a dos gestos inocentes e faceiros que só ela sabia ter.

Peri admirava-se da mudança brusca que se tinha operado em sua senhora, e no fundo do seu coração sentia um aperto, pensando que ela se consolara bem depressa com a lembrança da separação.

Mas ele não era egoísta, e preferia a alegria de sua senhora a seu prazer; porque vivia antes da vida dela do que da sua própria.

Depois da refeição, Peri voltou ao seu trabalho.

Cecília, que desde o primeiro dia sentia-se abatida e lânguida, tinha recobrado um pouco de sua vivacidade e gentileza dos bons dias.

O rosto mimoso conservava ainda a sombra melancólica que lhe deixaram impressas as cenas tristes de que fora testemunha, e sobretudo a última desgraça que a tinha privado de seu pai e de sua mãe.

Mas essa mágoa tomava nas suas feições uma expressão angélica, e tal mansuetude e suavidade, que dava novo encanto à sua beleza ideal.

Deixando seu companheiro distraído com a sua obra, chegou à beira do rio e sentou-se junto de uma moita de uvaias, à qual estava amarrada a canoa.

Peri viu-a afastar-se, e sempre seguindo-a com os olhos, continuou a preparar a vergôntea que devia servir-lhe de arco, e as canas selvagens, as quais o seu braço ia dar o vôo da ave altaneira.

A menina, com a face apoiada na mão e os olhos postos na correnteza do rio, cismava; às vezes as pálpebras cerravam-se; os lábios se agitavam imperceptivelmente; nesses momentos parecia que conversava com algum espírito invisível.

Outras vezes, um doce sorriso despontava nos seus lábios e desfazia-se logo, como se o pensamento que viera pousar ali voltasse a esconder-se no fundo do coração, donde se tinha escapado.

Por fim ergueu a fronte com o meneio de rainha, que às vezes tomava a sua cabecinha loura, à qual só faltava o diadema; a fisionomia mostrou uma expressão de energia, que lembrava o caráter de D. Antônio de Mariz.

Tinha tomado uma resolução; uma resolução firme, inabalável, que ia cumprir com a mesma força de vontade e coragem que herdara de seu pai, e dormia no fundo de sua alma, para só revelar-se nas ocasiões extremas.

Levantou os olhos ao céu, e pediu a Deus um perdão para uma falta, e ao mesmo tempo uma esperança para uma boa ação que ia praticar; sua oração foi breve, mas ardente e cheia de fervor.

Enquanto isso se passava, Peri, vendo que as sombras da terra já se deitavam sobre o leito do Paraíba, conheceu que era tempo de partir, e preparou-se para continuar a viagem.

No momento em que levantava-se, Cecília correu para ele, e colocou-se em face, de modo a lhe ocultar a vista do rio.

— Tu sabes? disse ela sorrindo; tenho uma coisa a pedir-te.

Esta só palavra bastava para que Peri não visse mais nada senão os olhos e os lábios de sua senhora, que iam dizer-lhe o que ela desejava.

— Quero que apanhes muito algodão para mim e me tragas uma pele bonita. Sim?

— Para quê? perguntou o índio admirado.

— Do algodão fiarei um vestido; da pele tu cobrirás os meus pés.

Peri, cada vez mais admirado, ouvia sua senhora sem compreendê-la:

— Assim, disse a menina sorrindo, tu me deixarás acompanhar-te, os espinhos não me farão mal.

O espanto do índio tinha-o tornado imóvel; mas de repente soltou um grito, e quis precipitar-se para o rio.

A mãozinha de Cecília apoiando-se no seu peito, reteve-o.

— Espera!

— Olha! respondeu o índio inquieto apontando para o rio.

A canoa, desprendida do tronco a que estava amarrada, resvalava à discrição das águas, e, girando sobre si, desaparecia levada pela correnteza.

Cecília depois de olhar se voltou sorrindo:

— Fui eu que soltei!

— Tu, senhora! Por quê?

— Porque não precisamos mais dela.

Fitando então no seu amigo os lindos olhos azuis, disse com o tom grave e lento que revela um pensamento profundamente refletido e uma resolução inabalável.

— Peri não pode viver junto de sua irmã na cidade dos brancos; sua irmã fica com ele no deserto, no meio das florestas.

Era essa idéia que ela há pouco acariciava no seu espírito, e para a qual tinha invocado a graça divina.

Não foi sem algum esforço que ela conseguiu dominar os primeiros temores que a assaltaram, quando encarou em face essa existência longe da sociedade, na solidão, no isolamento.

Mas qual era o laço que a prendia ao mundo civilizado? Não era ela quase uma filha desses campos, criada com o seu ar puro e livre, com as suas águas cristalinas?

A cidade lhe aparecia apenas como um recordação da primeira infância, como um sonho do berço; deixara o Rio de Janeiro aos cinco anos, e nunca mais ali voltara.

O campo, esse tinha para ela outras recordações ainda vivas e palpitantes; a flor da sua mocidade tinha sido bafejada por essas auras; o botão desatara aos raios desse sol esplêndido.

Toda a sua vida, todos os seus belos dias, todos os seus prazeres infantis viviam ali, falavam naqueles ecos da solidão, naqueles murmúrios confusos, naquele silêncio mesmo.

Ela pertencia, pois, mais ao deserto do que à cidade; era mais uma virgem brasileira do que uma menina cortesã; seus hábitos e seus gostos prendiam-se mais as pompas singelas da natureza, do que às festas e às galas da arte e da civilização.

Decidiu ficar.

A única felicidade que ainda podia gozar neste mundo, depois da perda de sua família, era viver com os dois entes que a amavam; essa felicidade não era possível; devia escolher entre um deles.

Ai o seu coração foi impelido pela força invencível que o arrastava; mas depois, envergonhando-se de ter cedido tão depressa, procurou desculpar-se a si mesma.

Disse então que entre seus dois irmãos era justo que acompanhasse antes aquele que só vivia para ela, que não tinha um pensamento, um cuidado, um desejo que não fosse inspirado por ela.

D. Diogo era um fidalgo, herdeiro do nome de seu pai; tinha um futuro diante de si, tinha uma missão a cumprir no mundo; ele escolheria uma companheira para suavizar-lhe a existência.

Peri tinha abandonado tudo por ela; seu passado, seu presente, seu futuro, sua ambição, sua vida, sua religião mesmo; tudo era ela, e unicamente ela; não havia pois que hesitar.

Depois, Cecília tinha ainda um pensamento que lhe sorria: queria abrir ao seu amigo o céu que ela entrevia na sua fé cristã; queria dar-lhe um lugar perto dela na mansão dos justos, aos pés do trono celeste do Criador.

É impossível descrever o que se passou no espírito do selvagem ouvindo as palavras de Cecília: sua inteligência inculta, mas brilhante, capaz de elevar-se aos mais altos pensamentos, não podia compreender aquela idéia; duvidou do que escutava.

— Cecília fica no deserto?... balbuciou ele.

— Sim! respondeu a menina tomando-lhe as mãos: Cecília fica contigo e não te deixará. Tu és rei destas florestas, destes campos, destas montanhas; tua irmã te acompanhará.

— Sempre?...

— Sempre... Viveremos juntos como ontem, como hoje, como amanhã. Tu cuidas?... Eu também sou filha desta terra; também me criei no seio desta natureza. Amo este belo pais!...

— Mas, senhora, tu não vês que tuas mãos foram feitas para as flores e não para os espinhos; teus pés para brincar e não para andar; teu corpo para a sombra e não para o sol e a chuva?

— Oh! Eu sou forte! exclamou a menina erguendo a cabeça com altivez. Junto de ti não tenho medo. Quando eu estiver cansada, tu me levarás nos teus braços. A rolinha não se apóia sobre a asa de seu companheiro?

 

Era preciso ver a gentileza e a garridice com que ela dizia todas essas frases graciosas, que borbulhavam dos seus lábios! A irradiação do seu olhar, a animação do seu rosto e a travessura de seu gesto fascinavam.

Peri ficou extático diante da perspectiva dessa felicidade imensa, com a qual nunca sonhara; mas jurou de novo em sua alma que cumpriria a promessa feita a D. Antônio.

A tarde descaia; e era preciso tratar de prover aos meios de passar a noite em terra, o que seria muito mais perigoso; não para ele a quem bastava o galho de uma árvore; mas para Cecília.

Seguindo pela margem para escolher o lugar mais favorável, Peri soltou uma palavra de surpresa vendo a canoa que se tinha embaraçado numa dessas ilhas flutuantes feitas pelas parasitas do rio que bóiam sobre as águas.

Era o melhor leito que podia ter a menina no meio do deserto; puxou a canoa, alcatifou o fundo com as folhas macias das palmeiras, e, tomando Cecília nos braços, deitou-a no seu berço.

A menina não consentiu que Peri remasse; a canoa deslizou docemente pelo leito do rio, apenas impelida pela correnteza.

Cecília brincava; debruçava-se sobre as águas para colher uma flor de passagem, para perseguir um peixe que beijava a face lisa das ondas, para ter o prazer de molhar as mãos nessa água cristalina, para rever a sua imagem nesse espelho vacilante.

Quando tinha brincado bastante, voltava-se para seu amigo e falava-lhe com o gazeio argentino, mimoso chilrear dos lábios travessos de uma linda menina, onde as coisas mais ligeiras e mais frívolas revestem encantos e graça suprema.

Peri estava distraído; seu olhar fitava-se no horizonte com uma atenção extraordinária; a inquietação que se desenhava no seu semblante era o indício de algum perigo, embora ainda remoto:

Sobre a linha azulada da cordilheira dos Órgãos, que se destacava num fundo de púrpura e rosicler, amontoavam-se grossas nuvens escuras e pesadas, que, feridas pelos raios do ocaso, lançavam reflexos acobreados.

Daí a pouco a serrania desapareceu envolta nesse manto cor de bronze, que se elevava como as colunas e abóbadas de estalactites que se encontram nas grutas das nossas montanhas. O azul puro e risonho que cobria o resto do firmamento contrastava com a cinta escura, que ia enegrecendo gradualmente à medida que a noite caia.

Peri voltou-se.

— Tu queres ir para terra, senhora?

— Não; estou tão bem aqui! Não foste tu que me trouxeste?

— Sim; mas...

— O quê?

— Nada; podes dormir sem receio!

Ele tinha se lembrado que entre dois perigos o melhor era preferir o mais remoto; aquele que ainda estava longe e talvez não viesse.

Por isso resolveu não dizer nada a Cecília, e conservar-se atento e vigilante para salvá-la, se o que ele temia se realizasse.

Peri havia lutado com o tigre, com os homens, com uma tribo de selvagens, com o veneno; e tinha vencido. Era chegada a ocasião de lutar com os elementos: com a mesma confiança calma e impassível, esperou pronto a aceitar o combate.

Anoiteceu.

O horizonte, sempre negro e fechado, se iluminava às vezes com um lampejo fosforescente; um tremor surdo parecia correr pelas entranhas da terra e fazia ondular a superfície das águas, como o seio de uma vela enfunada pelo vento.

Entretanto, ao redor tudo estava quieto; as estrelas recamavam o azul do céu; a viração aninhava-se nas folhas das árvores: os murmúrios doces da solidão cantavam o hino da noite.

Cecília adormeceu no seu berço, murmurando uma prece.

Era alta noite; sombras espessas cobriam as margens do Paraíba.

De repente um rumor surdo e abafado, como de um tremor subterrâneo, propagando-se por aquela solidão, quebrou o silêncio profundo do ermo.

Peri estremeceu: ergueu a cabeça e estendeu os olhos pela larga esteira do rio, que, enroscando-se como uma serpente monstruosa de escamas prateadas, ia perder-se no fundo negro da floresta.

O espelho das águas, liso e polido como um cristal, refletia a claridade das estrelas, que já desmaiavam com a aproximação do dia; tudo estava imóvel e quedo.

O índio curvou-se sobre a borda da canoa, e de novo aplicou o ouvido; pela superfície do rio rolava um som estrepitoso: semelhante ao quebrar-se da catadupa precipitando-se do alto dos rochedos.

Cecília dormia tranqüilamente; sua respiração ligeira ressoava com a harmonia doce e sutil das folhas da cana quando estremecem ao sopro tênue da aragem.

Peri lançou um olhar de desespero para as margens que se destacavam a alguma distancia sobre a corrente plácida do rio. Quebrou o laço que prendia a canoa e impeliu-a para a terra com toda a força do remo, que fendeu a água rapidamente.

À beira do rio elevava-se uma bela palmeira, cujo alto tronco era coroado pela grande cúpula verde, formada com os leques de suas folhas lindas e graciosas. Os cipós e as parasitas, engrazando-se pelos ramos das árvores vizinhas, desciam até o chão, formando grinaldas e cortinas de folhagem, que se prendiam às hastes da palmeira.

Tocando a margem, Peri saltou em terra, tomou Cecília meio adormecida nos seus braços, e ia entranhar-se pela mata virgem que se elevava diante dele.

Nesse momento o rio arquejou como um gigante estorcendo-se em convulsões, e deitou-se de novo no seu leito, soltando um gemido profundo e cavernoso.

Ao longe o cristal da corrente achamalotou-se; as águas frisaram-se; e um lençol de espuma estendeu-se sobre essa face lisa e polida, semelhante a uma vaga do mar desenrolando-se pela areia da praia.

Logo todo o leito do rio cobriu-se com esse delgado sendal que se desdobrava com uma velocidade espantosa, rumorejando como um manto de seda.

Então no fundo da floresta troou um estampido horrível, que veio reboando pelo espaço; dir-se-ia o trovão correndo nas quebradas da serrania.

Era tarde.

Não havia tempo para fugir; a água tinha soltado o seu primeiro bramido, e, erguendo o colo, precipitava-se furiosa, invencível, devorando o espaço como algum monstro do deserto.

Peri tomou a resolução pronta que exigia a iminência do perigo: em vez de ganhar a mata, suspendeu-se a um dos cipós, e, galgando o cimo da palmeira, ai abrigou-se com Cecília.

A menina, despertada violentamente e procurando conhecer o que se passava, interrogou seu amigo.

— A água!... respondeu ele, apontando para o horizonte.

Com efeito, uma montanha branca, fosforescente, assomou entre as arcarias gigantescas formadas pela floresta, e atirou-se sobre o leito do rio, mugindo como o oceano quando açoita os rochedos com as suas vagas.

A torrente passou, rápida, veloz, vencendo na carreira o tapir das selvas ou a ema do deserto; seu dorso enorme se estorcia e enrolava pelos troncos diluvianos das grandes árvores, que estremeciam com o embate hercúleo.

Depois, outra montanha, e outra, e outra, se elevaram no fundo da floresta; arremessando-se no turbilhão, lutaram corpo a corpo, esmagando com o peso tudo que se opunha à sua passagem.

Dir-se-ia que algum monstro enorme, dessas jibóias tremendas que vivem nas profundezas da água, mordendo a raiz de uma rocha, fazia girar a cauda imensa, apertando nas suas mil voltas a mata que se estendia pelas margens.

Ou que o Paraíba, levantando-se qual novo Briareu no meio do deserto, estendia os cem braços titânicos, e apertava ao peito, estrangulando-a em uma convulsão horrível, toda essa floresta secular que nascera com o mundo.

As árvores estalavam; arrancadas do seio da terra ou partidas pelo tronco, prostravam-se vencidas sobre o gigante, que, carregando-as ao ombro, precipitava para o oceano.

O estrondo dessas montanhas de água que se quebravam, o estampido da torrente, os trôos do embate desses rochedos movediços, que se pulverizavam enchendo o espaço de neblina espessa, formavam um concerto horrível, digno do drama majestoso que se representava no grande cenário.

As trevas envolviam o quadro e apenas deixavam ver os reflexos prateados da espuma e a muralha negra que cingia esse vasto recinto, onde um dos elementos reinava como soberano.

Cecília, apoiada ao ombro de seu amigo, assistia horrorizada a esse espetáculo pavoroso; Peri sentia o seu corpinho estremecer; mas os lábios da menina não soltaram uma só queixa, um só grito de susto.

Em face desses transes solenes, desses grandes cataclismas da natureza, a alma humana sente-se tão pequena, aniquila-se tanto, que se esquece da existência; o receio é substituído pelo pavor, pelo respeito, pela emoção que emudece e paralisa.

O sol, dissipando as trevas da noite, assomou no oriente; seu aspecto majestoso iluminou o deserto; as ondas de sua luz brilhante derramaram-se em cascatas sobre um lago imenso, sem horizontes.

Tudo era água e céu.

A inundação tinha coberto as margens do rio até onde a vista podia alcançar; as grandes massas de água, que o temporal durante uma noite inteira vertera sobre as cabeceiras dos confluentes do Paraíba, desceram das serranias, e, de torrente em torrente, haviam formado essa tromba gigantesca que se abatera sobre a várzea.

A tempestade continuava ainda ao longo de toda a cordilheira, que aparecia coberta por um nevoeiro escuro; mas o céu, azul e límpido, sorria mirando-se no espelho das águas.

A inundação crescia sempre; o leito do rio elevava-se gradualmente; as árvores pequenas desapareciam; e a folhagem dos soberbos jacarandás sobrenadava já como grandes moitas de arbustos.

A cúpula da palmeira, em que se achavam Peri e Cecília, parecia uma ilha de verdura banhando-se nas águas da corrente; as palmas que se abriam formavam no centro um berço mimoso, onde os dois amigos, estreitando-se, pediam ao céu para ambos uma só morte, pois uma só era a sua vida.

Cecília esperava o seu último momento com a sublime resignação evangélica, que só dá a religião do Cristo; morria feliz; Peri tinha confundido as suas almas na derradeira prece que expirara dos seus lábios.

— Podemos morrer, meu amigo! disse ela com uma expressão sublime. Peri estremeceu; ainda nessa hora suprema seu espírito revoltava-se contra aquela idéia, e não podia conceber que a vida de sua senhora tivesse de perecer como a de um simples mortal.

— Não! exclamou ele. Tu não podes morrer.

A menina sorriu docemente.

— Olha! disse ela com a sua voz maviosa, a água sobe, sobe...

— Que importa! Peri vencerá a água, como venceu a todos os teus inimigos.

— Se fosse um inimigo, tu o vencerias, Peri. Mas é Deus... É o seu poder infinito!

— Tu não sabes? disse o índio como inspirado pelo seu amor ardente, o Senhor do céu manda às vezes àqueles a quem ama um bom pensamento.

E o índio ergueu os olhos com uma expressão inefável de reconhecimento.

Falou com um tom solene:

Foi longe, bem longe dos tempos de agora. As águas caíram, e começaram a cobrir toda a terra. Os homens subiram ao alto dos montes; um só ficou na várzea com sua esposa.

Era Tamandaré; forte entre os fortes; sabia mais que todos. O Senhor falava-lhe de noite; e de dia ele ensinava aos filhos da tribo o que aprendia do céu.

Quando todos subiram aos montes ele disse:

Ficai comigo; fazei como eu, e deixai que venha a água.

Os outros não o escutaram; e foram para o alto; e deixaram ele só na várzea com sua companheira, que não o abandonou.

Tamandaré tomou sua mulher nos braços e subiu com ela ao olho da palmeira; ai esperou que a água viesse e passasse; a palmeira dava frutos que o alimentavam.

A água veio, subiu e cresceu; o sol mergulhou e surgiu uma, duas e três vezes. A terra desapareceu; a árvore desapareceu; a montanha desapareceu.

A água tocou o céu; e o Senhor mandou então que parasse. O sol olhando só viu céu e água, e entre a água e o céu, a palmeira que boiava levando Tamandaré e sua companheira.

A corrente cavou a terra; cavando a terra, arrancou a palmeira; arrancando a palmeira, subiu com ela; subiu acima do vale, acima da árvore, acima da montanha.

Todos morreram. A água tocou o céu três sóis com três noites; depois baixou; baixou até que descobriu a terra.

Quando veio o dia, Tamandaré viu que a palmeira estava plantada no meio da várzea; e ouviu a avezinha do céu, o guanumbi, que batia as asas.

Desceu com a sua companheira, e povoou a terra.

Peri tinha falado com o tom inspirado que dão as crenças profundas; com o entusiasmo das almas ricas de poesia e sentimento.

Cecília o ouvia sorrindo, e bebia uma a uma as suas palavras, como se fossem as partículas do ar que respirava; parecia-lhe que a alma de seu amigo, essa alma nobre e bela, se desprendia do seu corpo em cada uma das frases solenes, e vinha embeber-se no seu coração, que se abria para recebê-la.

 

A água subindo molhou as pontas das largas folhas da palmeira, e uma gota, resvalando pelo leque, foi embeber-se na alva cambraia das roupas de Cecília.

A menina, por um movimento instintivo de terror, conchegou-se ao seu amigo; e nesse momento supremo, em que a inundação abria a fauce enorme para tragá-los, murmurou docemente:

— Meu Deus!... Peri!...

Então passou-se sobre esse vasto deserto de água e céu uma cena estupenda, heróica, sobre-humana; um espetáculo grandioso, uma sublime loucura.

Peri alucinado suspendeu-se aos cipós que se entrelaçavam pelos ramos das árvores já cobertas de água, e com esforço desesperado cingindo o tronco da palmeira no seus braços hirtos, abalou-o até as raízes.

Três vezes os seus músculos de aço, estorcendo-se, inclinaram a haste robusta; e três vezes o seu corpo vergou, cedendo a retração violenta da árvore, que voltava ao lugar que a natureza lhe havia marcado.

Luta terrível, espantosa, louca, esvairada: luta da vida contra a matéria; lata do homem contra a terra; lata da força contra a imobilidade.

Houve um momento de respouso em que o homem, concentrando todo o seu poder, estorceu-se de novo contra a árvore; o ímpeto foi terrível; e pareceu que o corpo ia despedaçar-se nessa distensão horrível:

Ambos, árvore e homem, embalançaram-se no seio das águas: a haste oscilou; as raízes desprenderam-se da terra já minada profundamente pela torrente.

A cúpula da palmeira, embalançando-se graciosamente, resvalou pela flor da água como um ninho de garças ou alguma ilha flutuante, formada pelas vegetações aquáticas.

Peri estava de novo sentado junto de sua senhora quase inanimada: e, tomando-a nos braços, disse-lhe com um acento de ventura suprema:

— Tu viverás!...

Cecília abriu os olhos, e vendo seu amigo junto dela, ouvindo ainda suas palavras, sentiu o enlevo que deve ser o gozo da vida eterna.

— Sim?... murmurou ela: viveremos!... lá no céu, no seio de Deus, junto daqueles que amamos!...

O anjo espanejava-se para remontar ao berço.

— Sobre aquele azul que tu vês, continuou ela, Deus mora no seu trono, rodeado dos que o adoram. Nós iremos lá, Peri! Tu viverás com tua irmã, sempre...!

Ela embebeu os olhos nos olhos de seu amigo, e lânguida reclinou a loura fronte.

O hálito ardente de Peri bafejou-lhe a face.

Fez-se no semblante da virgem um ninho de castos rubores e límpidos sorrisos: os lábios abriram como as asas purpúreas de um beijo soltando o vôo.

A palmeira arrastada pela torrente impetuosa fugia...

E sumiu-se no horizonte.

No comments:

Post a Comment