Tuesday, 3 August 2021

Tuesday's Serial: "Turbilhão" by Coelho Neto (in Portuguese) - III

Capítulo IV

Resolvido a mudar-se, Paulo sahiu na segunda-feira muito cedo e, no botequim da Central, mexendo lentamente o seu café, recorreu annuncios do Jornal, tomando notas em um quarto de papel. Decidiu-se por duas casas «pequenas, pintadas e forradas de novo»: una na rua dos Invalidos, outra no cáes da Gloria.

Foi directamente á primeira. Era uma casinha atarracada, espremnida entre dois sobrados archaicos, sombria e triste. No telhado verdejavam largas folhas de fumo, descahidas sobre as calhas ferrugentas. Abrindo-a a custo, empurrou a porta, pesada e perra, e entrou como em um jazigo. Tresandava a tintas e, nas paredes de uma área interior, cujo ladrilho estava todo fendido, havia escaras de limo. O quintalejo, atravancado de taboas e de ripas, com uma poída escada apposta ao muro, tinha um monte de lixo a um canto e tortulhos gordos pelo chão úmido; e o ar escasso, que circulava por aquelas salas lôbregas, por aquelas alcovas escuras e acanhadas, era frio e tresandava o mofo.

Paulo fez um esgar de enjôo e tomou com a chave ao taverneiro vizinho, alegando falta de cômodos para a sua família. Seguiu a pé para o cais da Glória. Dava gosto andar com o frescor da manhã suave; e a distância era curta.

Foi indo devagar, enlevado na beleza de tão doce manhã, clara e tépida, concorrida de vozes alegres, sons festivos, movimento, todas as expansões da vida feliz. De repente, porém, deu com os olhos em uma mocinha à janela de uma casa. Lembrou-se da irmã e, assomado em súbito furor, estugou os passos, remordendo-se em surda revolta contra o mundo, contra todos e tudo - a irmã, que o forçava àqueles incômodos, que o expunha à irrisão; os vizinhos, os companheiros de trabalho, os colegas, todos... tudo...

Sentia-se mesquinho, como se fosse o único desgraçado no mundo; os próprios mendigos, que esmolavam, sorriam. Só ele andava com a alma denegrida, com o coração pesado, arrastando aquela vergonha.

Falava baixinho, em solilóquio, e, se descobria alguém às janelas, retraía-se, disfarçava procurando cigarros nos bolsos, e seguia; logo adiante, porém, reentrava nos cuidados sombrios.

Quando chegou ao Largo da Lapa, viu um quintanista, o Albergaria, parado à esquina, lendo um jornal, à espera do bonde da Misericórdia. Evitou-o, atravessando o largo, d'olhos altos, com medo de que ele o chamasse.

Foi timidez, a princípio, logo, porém, transformou-se em indignação: carregou o sobrecenho e pôs-se a murmurar: "Mas, afinal, que culpa tenho eu? Sou, então, responsável pelas loucuras de minha irmã? Se eu tivesse um irmão assassino ou ladrão, havia de responder pelos crimes que ele cometesse? não. Então por que me hei de vexar do que fez Violante? Outras têm feito o mesmo e os parentes andam por aí muito calmos, muito empertigados, com mais orgulho, talvez, e até com prestígio. E minha mãe, coitada! que culpa tem ela?" Outras idéias, porém afugentaram a lembrança da irmã perdida. Pôs-se a recordar, com arrependimento, a cena da véspera com a mãe: "Eu sou assim mesmo, mas ela bem sabe que não é por maldade que faço essas coisas. Fico nervoso, irrito-me... É gênio..."

Ia fazendo a volta. Cigarras chirriavam nas copas das árvores do Passeio. Súbito a vista alargou-se, desafrontada e risonha, e o morro da Glória apareceu com a sua igreja branca, entre palmeiras. O casario alvejava à sombra das árvores frondosas, plantadas, talvez, quem sabe! pelo ermitão da lenda. A beira da praia uma chaminé alta avultava, esguia como um obelisco, e o mar calmo, espelhento, de um brilho quente, tremia ao sol, em arrepios claros como aço em fusão.

À entrada da barra, os fortes eram duas longínquas manchas cinzentas. Villegaignon resplandecia solitária, e cerúleas, como fechando o horizonte, as montanhas, polvilhadas d'ouro, avultavam em muralha imensa com ameias e torres, cintando a cidade. Navios ancorados, negros, com toldos rasos, pareciam dormir, como grandes sáurios; num deles as velas subiam abrindo-se ao sol. Lanchas iam e vinham, cruzando-se que nem formigas, canoas zimbravam na mareta levantada pelas hélices, e uma draga muito alta, isolada, parecia um louva-a-deus colossal.

Voltou-se para a esquerda - lá estava o terraço do Passeio, com gente debruçada à muralha a ver os banhistas na praia, ou nadando a fortes braçadas e, mais longe, um zimbório, a ponta do Arsenal, o Castelo com o seu mosteiro. O que, porém, o deteve em êxtase foi o espetáculo alegre das gaivotas voando, adejando, pousando n'água, balouçando-se maciamente na onda à espera do peixe e, nos postes fincados, restos da antiga ponte, destruída pelas grandes ressacas, outras se iam ajuntando e, vistas de longe, alvas, imóveis, eram como uma vegetação de cogumelos brancos pululando na podridão dos lenhos salitrados.

A casa anunciada ficava ao lado do jardim de um chalé discreto, que se escondia entre folhagem, com mistério; mesmo diante da porta havia uma árvore, com o tronco protegido por um embrechado de madeira. A chave estava na casa contígua, e foi uma mulher loura, gorda, de fisionomia impassível de boneca, quem lha deu depois de o examinar com um olhar fatigado e vazio.

Paulo simpatizou com a casa, vendo-a em tão sossegado recanto, com poucos vizinhos, olhando para o mar vasto e para o céu largo.

Entrou. Estava limpa e era alegre, e se não havia grande claridade, a luz era bastante para a vida e para o trabalho.

Ao fundo, no quintalejo seco, cresciam roseiras anêmicas, e uma esfumada banqueta acompanhava o muro, sobre o qual um sabugueiro do jardim vizinho derramava a ramaria ramilhetada de florinhas miúdas.

Paulo distribuiu os aposentos - a sua alcova na sala de visitas; a da sala de jantar para a mãe; um pequeno quarto com janela sobre a área, para Felícia, e ainda sobrava um, amplo e claro, com um papel novo de ramagens. Deteve-se diante dele a olhar, meneando com a cabeça desconsoladamente.

Pensando na irmã, lembrou-se de que não encontrara nos jornais a mais ligeira referência ao caso - lera-os todos: nem palavra. Era evidente a indiferença do delegado. Se ele houvesse tomado uma nota ligeira, a reportagem, que tudo esmerilha, não a teria perdido, e bordaria o drama com os recamos costumeiros e muita sensualidade, apelando, em nome da moral ofendida, para a lei que ressalva a honra e obriga os devassos a repararem as faltas.

Revoltou-se: "Vão ver que o miserável conhece o canalha... Talvez até o proteja... Súcia! É assim mesmo." E, no seu ódio, desejava que o escândalo houvesse irrompido, alastrando o noticiário com pormenores sitis, informes íntimos: o retrato de Violante, o de Dona Júlia, o dele e elogios, muito literários, à honestidade da família exemplar, referências ao pai, um herói da Pátria e a narração da sua trabalhosa e angustiada noite, por chuva e vento, à procura da seduzida.

"Qual! tivesse eu fortuna... E assim mesmo."

Por fim, nervoso, fincando a bengala no soalho, voltou-se e foi examinar a cozinha. Achou-a limpa, com um fogão novo, pia forrada de zinco, e prateleiras.

"Ora! que se arranje. Eu é que não hei de estar a amofinar-me por causa dela. Não faltava mais nada..." E sentiu-se aliviado com o silêncio dos jornais. "Talvez que o delegado houvesse ocultado a notícia por delicadeza, em atenção a ser ele da imprensa... Caminhou para a sala, Vagaroso, pensativo, passando a mão pelas paredes. Esteve um momento indeciso, batendo de leve com a ponta do pé, a pensar na mudança. Súbito, com egoísmo, exclamou: "Melhor! viveremos mais tranqüilos."

Saiu, fechou a porta e ia bater à casa da vizinha, quando viu vir um comboio de bondes. Sentiu inexplicável vexame achando-se ali sozinho, diante daquela multidão que descia, e para que os passageiros não o vissem de face, deu as costas à rua e ficou-se a contemplar a casa, a olhar os escritos até que os bondes passaram.

Bateu à porta da vizinha e a loura, reaparecendo, disse-lhe, numa aravia guaiada - "que a casa estivera alugada por cem mil-réis, mas a senhoria, por causa das obras que fizera, pedia então cento e vinte". Agradeceu as informações e seguiu.

Numa casa da esquina, com o cavalete junto à janela, um homem desenhava o retrato de uma criança, e Paulo, devassando, de relance, o interior, viu, pelas paredes, esboços a crayon, pequenas telas de gênero e uma paisagem.

A senhoria morava na Rua do Lavradio. Caminhou com pressa, receoso de que alguém o precedesse e, como o seu alfaiate prestava-se e dar-lhe a fiança, tratou a casa e, tornando à Rua Senador Pompeu, já levava no bolso o recibo das andorinhas que, no dia seguinte, de manhã, deviam fazer a mudança.

Foi com apreensiva tristeza que Dona Júlia ouviu a descrição minuciosa da nova residência, no cais da Glória, tão longe! Ela, que tanto insistira pela mudança, sentia-se, então, agarrada à casa. Parecia-lhe que se a deixasse nunca mais tornaria a ver a filha e, não sem timidez, contando com a revolta do filho, perguntou:

— E se Violante voltar... Como há de ser?

Paulo encarou-a mudo, brincando com as chaves e, como se não houvesse entendido a pergunta, repetiu em tom irônico:

— Se Violante voltar...

— Sim, confirmou a velha.

Houve um silêncio. Paulo por fim, encolhendo os ombros, esticando o beiço, sorriu desdenhoso:

— Mamãe ainda espera que Violante volte...

— Como não, meu filho? Onde há de ela ficar?

— Ora, mamãe. Cravando, então, os olhos na velha, disse resolutamente: Quem tem boca vai a Roma. Não saísse. Nós é que não podemos ficar aqui perseguidos pela crítica implacável dessa vizinhança bisbilhoteira até que a senhora Dona Violante se lembre de voltar.

Dona Júlia sussurrou:

— Eu tenho medo que ela chegue e encontre a casa fechada. É uma criança, não conhece a cidade. Que será dela então? Tu não pensas nisso?

— Eu penso, mas é em sair daqui quanto antes. Violante só voltará para casa, se voltar, trazida pela polícia ou pelo Mamede. Sozinha?! Vá esperando!

— Tu não queres que eu diga aos vizinhos...

— A senhora está louca? Para quê? Para rirem de nós?

— Então não sei como há de ser.

Calaram-se recolhidos em pensamentos opostos: Dona Júlia a imaginar a volta da filha: ela ali, à porta da casa fechada, a olhar o escrito, chorando, sem saber o destino dos seus; ele a fazer planos de vida calma naquela casa tranqüila.

Bateram, voltaram-se ambos e Dona Júlia chamou Felícia para ver quem era. A negra tornou em pontas de pés, cochichando: "É seu Fábio." Os dois levantaram-se à pressa caminhando para a sala, porque a negra espiara apenas, timidamente, pelas frestas da persiana, deixando o homem na rua, ao sol, com receio de que o estudante se revoltasse contra ela. Dona Júlia abriu a porta e um homenzarrão entrou limpando o suor que lhe escorria do rosto abrasado.

Alto e robusto, espadaúdo, com uma densa barba grisalha que lhe dava à fisionomia o ar expressivo de energia e doçura com que a Arte nos representa os patriarcas bíblicos, tinha, em contraste com o todo másculo, uma voz inesperadamente branda que surpreendia, saindo daquele peito forte, através da espessidão das barbas veneráveis. Logo que entrou, com o chapéu ainda à cabeça, um largo chapéu d'abas moles, o guarda-chuva debaixo do braço, estendeu as mãos ambas a Dona Júlia e a Paulo e, de olhos nela, perguntou, depois dum aceno da cabeça, franzindo a fronte: "Então que foi isso?" Dona Júlia, desabando os braços, encolhendo os ombros, baixou a cabeça e o velho, deixando o chapéu sobre a mesa, sentou-se declarando - "que só naquela manhã recebera a carta que ela lhe escrevera". E perguntou: "Mas quando foi?"

— No sábado, à noite, compadre.

O velho meneou com a cabeça; e, voltando-se para o estudante, indagou:

— Já foste à polícia?

— Na mesma noite.

— Então?

— Ora! o senhor bem sabe como aquilo é. Prometeram fazer tudo e ficou nisso...

— E não voltaste?

— Para quê?

— Como para quê? Que diabo, rapaz! Hás de ser sempre o mesmo descansado? Então é assim? A gente move-se, homem de Deus; e, se tu és o primeiro a mostrar indiferença pela causa, como queres que os estranhos se interessem por ela?

Dona Júlia, sentindo-se protegida, ousou falar.

— Eu disse isto mesmo, compadre.

— Aí vem a senhora... Eu fiz tudo: fui à polícia na mesma noite, com uma tempestade medonha, dei todas as informações ao delegado, não tenho culpa de que as nossas autoridades sejam relaxadas. Em Londres o homem já estaria preso.

— Qual Londres! - bramiu o velho, atirando os braços.

— Hei de ficar plantado na polícia dia e noite? Isto não! Estou com os exames à porta e não quero fazer figura de idiota.

— Filho, eu bem te conheço, - tornou o velho com calma; - deixa-te de histórias. Vens agora com exames, porque não tem convém andar por aí uns dias trabalhando. - Cruzou os braços: Mas então, queres tua irmã perdida? Não te vexas? Não tens pena de tua mãe? Eu sei: és um excelente rapaz enquanto não te incomodam. Meu amigo, quem quer vai. E por essas e outras que há por aí tanta miséria. A polícia auxilia, mas é preciso que a gente não a deixe, mesmo porque ela tem mais em que cuidar. Por que não dás um pulo até lá? Vai saber, anda. - Paulo fez um gesto de enfado e o velho insistiu: Tem paciência, é tua irmã, é teu sangue. E a vergonha não ficará só com ela. És o homem da casa. Vai, anda! não percas tempo. E agarra-te com o chefe, com os delegados.

— Pois sim: há de ser a mesma coisa: que vai mandar ver...

— Não há tal: os delegados atendem, estão lá para isso. Estás fatigado, compreendo, mas tem paciência. Dá um pulo à polícia, vê se podes falar ao chefe, conta-lhe tudo e estou certo de que ele não se há de limitar a dizer - que vai mandar ver. Deixa-te de histórias, eu também já andei por lá, sei como aquilo é. Move-te, move-te.

— Tem paciência, meu filho! - implorou a velha. Paulo levantou-se amuado:

— Eu também sou de carne.

— Também eu, - retorquiu Fábio em tom ríspido - e tenho cinqüenta e oito feitos, entretanto, meu rapaz, não sei que é descanso. O interesse é de todos vocês.

Paulo tomou o chapéu e a bengala e, arrebatadamente, sem mesmo falar ao velho, que enxugava a fronte suada, abriu a porta e saiu resmungando.

— Tem paciência, - insistiu Fábio - é assim: quem quer faz assim.

A porta, impelida pelo vento, abria-se devagarinho, rinchando, e Dona Júlia levantou-se para fechá-la. Sós, o velho Fábio externou-se francamente:

— Olhe, comadre, quer saber? Parecia que eu estava adivinhando isto; mais de uma vez, lá em casa, eu disse à Marta: "Aquilo não vai bem. Aquela menina não tem modos, não sai da janela, dando trela a quanto pelintra vê." Agora, que o caso está passado, eu digo a verdade: Marta não era lá muito pelas conversas de Violante com Cristina. Não dava a perceber para que a senhora não ficasse magoada, mas gostar, não gostava. E eu cheguei a falar, lembre-se bem, no dia dos anos do Tula. Era com todos, comadre... até com homens casados.

Dona Júlia suspirou, afirmando:

— Sim, o compadre falou... Mas que havia eu de fazer?

— Que havia de fazer?! Pois então a comadre não é mãe? Olhe, a Cristina é noiva, mas vá lá saber se eu a deixo um instante só com o noivo... E é um moço sério. Não, senhora; há sempre gente na sala com eles.

E, curvando-se, sentenciou com lentidão:

— Minha comadre - a ocasião faz o ladrão. Isso de moças solteiras é mais melindroso do que parece. - Engrossou a voz: E Violante? reunia aqui uma súcia de frangotes; era conversa com um, era risada com outro, afastando os moços sérios que a estimavam. De um sei eu que era doido por ela.

— O Fernando, da botica.

— Sim, senhora, o Fernando. Está começando a vida, mas é um rapaz de futuro. Ele disse-me, lastimando, que sempre que passava por sua casa via Violante à janela e rapazes batendo a calçada.

Cruzou os braços, perguntando com ar de nojo:

— Isso era decente? diga! era decente?

— Eu não sei! - suspirou a boa senhora.

— O rapaz recuou, porque, afinal, ele não a queria por passatempo, e a comadre compreende que, quando um homem pensa seriamente em casar, trata de estudar a moça, indaga, informa-se... E Violante? Não se zangue comigo, mas a senhora foi culpada em parte, isso foi. Amor não é isso. Eu quero muito à Cristina, mas nem por isso ando a passar-lhe a mão pela cabeça - quando é preciso, falo, grito, bato o pé e ninguém me contraria. Não, que não admito. Não vai casar? então...! Ainda depois de casada, se for preciso, lá irei dizer-lhe as verdades, mesmo diante do marido, porque o que eu quero é vê-la feliz. Mas sua filha, se a gente queria dar-lhe um conselho, saltava logo com duas pedras na mão. Outro - esse rapaz.

A velha levantou os olhos assombrados:

— Sim senhora, o Paulo. Excelente menino, mas um pouco atrevido... e parece que não tem ainda o juízo assente: são dez, vinte idéias por dia; quer ser tudo, não é nada. Em quantas academias tem ele andado? Já quis ser engenheiro, deixou; pensou em meter-se na marinha, andou a estudar para guarda-livros, e está agora às voltas com a medicina. Esse há de ser médico quando eu for frade. Não é assim, tenha paciência. Não é assim.

— Mas ele estuda, compadre; eu vejo. Fica, às vezes, até de madrugada em cima dos livros.

— Que tem isso? Estuda e é inteligente, mas à primeira dificuldade, recua desanimado. Não, senhora - é para diante! Quem quer ser alguma coisa na vida queima as pestanas e firma-se numa idéia: é isto porque é! Ele não - é só orgulho! - e encheu as bochechas, bufando. - Ninguém tem o direito de lhe dizer uma palavra que logo se não espinhe. Se um professor faz uma observação, fica de trombas, não volta à escola, e há de viver assim: daqui para ali, sem firmar-se em uma carreira. Também já não é uma criança; com vinte anos há por aí muito pai de família.

— E ele, então, não trabalha, compadre?

— Trabalha, trabalha... mas é um mês aqui, um mês ali. A propósito: ainda está no jornal?

— Ainda.

— Pois olhe: admira. Que melhor emprego queria ele que o de amanuense na Secretaria do Interior? Não fez concurso? Não foi classificado?

— Diz que não tem jeito para emprego público.

— Ah! não tem jeito?! O que ele não tem é cabeça, como a irmã. Agora mesmo - no primeiro momento fez, aconteceu, andou por aí com chuva, mas já desanimou, nem se preocupa mais com o caso. Não é assim, comadre; não é assim. Quem quer alguma coisa, trabalha; sem persistência nada se faz; a senhora bem sabe, porque tem lutado para viver. Mas é preciso ter o juízo assente. Com a menina foi o mesmo: vontades, vontades, e aí está em que deram. Então, Violante não podia cuidar um pouco da casa, arrumar o seu quarto? coser a sua roupa? Eu nunca vim aqui que a encontrasse trabalhando - ou estava dormindo ou lendo, recostada na cadeira de balanço, como uma princesa. Nem os ticos vivem assim, comadre; nem os que têm... Enfim, não quero amofíná-la mais; vamos ver se ainda se pode fazer alguma coisa. É no que dão as condescendências. Quem quer belas flores e belos frutos poda as demasias da planta. É assim.

Levantou-se.

— Não quer uma xícara de café, compadre?

— Nada, obrigado.

Apanhou o chapéu e o guarda-chuva.

— E a comadre não desconfia de algum dos tais tipos?

— Eu nem os conheço; vivia sempre lá para dentro, metida comigo, no meu trabalho.

— E ela, aqui esparrimada à janela, de prosa.

Deu d'ombros, afundando o chapéu na cabeça; e, d'olhos altos:

— Mas que loucura da rapariga!

E ficou um momento a olhar o teto, meneando com a cabeça:

— Bem, adeus, comadre. Pois eu vou por aí, e se conseguir saber alguma coisa, dou um pulo até cá.

— Nós vamos mudar-nos.

— Quando?

— Amanhã.

— Para onde?

— Para o cais da Glória. Paulo achou lá uma casinha. O senhor compreende: não podemos ficar aqui - vem um, vem outro, perguntam...A gente tem vergonha.

— É natural, é. Pois é isso: faça o rapaz mover-se.

Caminhou até a porta e, voltando-se:

— Olhe, nós lá estamos... sem cerimônia. Para os de casa, como a comadre, há sempre lugar. Sem cerimônia.

— Obrigada, compadre; eu sei.

O velho escancarou a porta e, já na rua, repetiu:

— Se conseguir saber alguma coisa dou um pulo até cá.

— Será favor.

— Adeus. E não se amofine.

— Lembranças a todos.

— Obrigado.

E foi-se pigarreando.

 

Capítulo V

Com o rosto encostado á persiana, D. Julia deixou-se estar esquecida, o olhar perdido, pensando nas palavras do velho Fabio que, só então, depois de vinte e cinco annos de amizade, porque o marido levára, como um dote, aquelle coração, cuja Londade vivia a apregoar emittia a sua opinião sincera sobre «os pequenos» que, a bem dizer, lhe haviam crescido ao collo. Não estimara, então, a afilhada, tinha-a em má conta, achando-a indigna de conversar com Christina, a innocente e triste Christina, sempre chorosa e presaga, com idéas de convento e de morte. E por que? que havia feito Violante para que assim a julgassem? Ah! infeliz de quem se vê ao desamparo! Se o marido fosse vivo o compadre não lhe diria, com certeza, aquellas duras palavras sobre os filhos; não, não lh’as diria,

Ah! o bom tempo da ventura - ela moça e contente, caminhando na vida sem cuidado, à sombra do esposo, com os dois filhinhos à frente, de mãos dadas, rindo, gárrulos, e Fábio a gabá-los, achando-os lindos, carregando-os de brinquedos, empanturrando-os de doces. levando-os aos cavalinhos com a Cristina, sempre triste, doentinha, chorosa. Ah! o bom tempo!

Então era ele quem pedia as crianças, quem as levava para a sua casinha, não fazendo distinção entre elas e a filha, sempre abaetada, a tossir, com o corpinho abotoado em furúnculos. Mas com a morte do esposo todas as boas amizades haviam desertado, o próprio Fábio parecia querer abandoná-la justamente no momento mais doloroso. Pobre dela! Não houvesse ele arranjado a vida conseguindo comprar a chácara do Engenho Novo, que ele não era assim antes, isso não era.

Repentinamente, numa transição, como arrependida daqueles injustos pensamentos, suspirou: Pobre compadre! Sim, lá ia ele, velho, bater a cidade por causa de Violante. Ele não falava por mal, seu gênio era aquele: dizia tudo que lhe vinha à boca, com uma franqueza impetuosa e rude, como se estivesse com raiva, mas lá por dentro o coração estava a chorar e, não raro, nos momentos em que mais furioso se mostrava, enchiam-se-lhe os olhos d'água e, para que o não julgassem um fraco, vociferava ainda mais, gesticulando desatinadamente. Já no tempo do marido era aquilo - a mesma aspereza, os mesmos ímpetos, dominando com a superioridade de um irmão mais velho e o outro não se zangava, ouvia calado, dizendo sempre: "O Fábio tem razão... O Fábio tem razão." Na moléstia do Paulo, quando a febre o prostrou entre a vida e a morte, desenganado pelos médicos, quem velara à sua cabeceira com maior carinho do que ele? E onde fora seu filho ganhar forças novas em convalescença tranqüila e animada senão em casa dele? Não, pobre compadre! Deixou a janela e, lentamente, foi caminhando para a sala de jantar. Felícia dobrava a toalha da mesa quando ela, encostando-se a uma cadeira, perguntou:

— Tu vais comigo, Felícia?

— Para onde? Para onde é que sinhá vai?

— Paulo encontrou uma casa no cais da Glória. Vamos para lá.

— Eh! eh! - fez a negra. - Tão longe!

— Qual longe! Então é longe?

A negra ficou algum tempo imóvel, a pensar, com um sorriso estampado no rosto macilento; por fim disse, resignada e submissa:

— Sinhá indo, que é que eu hei de fazer? - Depois, baixando o olhar, a passar a mão pela toalha dobrada, murmurou: Aquele mar ali perto é que é...

— Que tem o mar?

A negra levou, de repente, as mãos juntas aos olhos e pôs-se a chorar baixinho, pensando no filho.

— Deixa disso, criatura, está com Deus... mais feliz do que nós, já não sofre. - E, afagando-a, a boa senhora, cujos olhos se encheram d'água, procurou distraí-la: Olha, vamos aproveitar o tempo, arrumando alguma coisa. - De novo as palavras do velho Fábio ressoaram-lhe no coração dolorido: "Indigna de estar ao lado de Cristina..." Um sorriso triste aflorou-lhe aos lábios e, arrastadamente, caminhou para o quarto. Súbito, porém, detendo-se, agarrou a cabeça a mãos ambas, exclamando: "Pois, meu Deus! é possível? É possível mesmo que eu fique sem minha filha?!"

De vez em quando a lembrança de Violante passava-lhe assim pelo espírito, como um relâmpago, e ela quedava inerte no meio da casa, tolhida, esquecida de tudo, a olhar sem ver, em verdadeira inibição. "Pois é possível que ela não volte?" Meneando com a cabeça, entrou no quarto da filha, deserto e triste como o seu coração.

Até à noitinha Dona Júlia e a negra andaram em arrumação: empalhando a louça, entrouxando a roupa, retirando quadros das paredes e a casa, desnudando-se, tornava-se ainda mais triste, com um aspecto lúgubre de miséria: os móveis em desordem, montes de coisas pelos cantos, rolos de colchões, cartas esparsas, velhas fitas empoeiradas, retalhos, folhagens secas. O gato, sobressaltado, rondava a casa miando, de canto em canto, sobre um móvel, sobre outro, tudo farejando com desconfiança.

Felícia saía ao quintal para espanar os quadros, ia e vinha opondo-se a que a ama carregasse pesos. "Que ela não podia; deixasse." E, ligeira, ia adiantando o serviço. Dona Júlia, d'olhos no chão, recolhia, catava pequeninas coisas - um laço de fita, uma madeixa ruça, um cromo: eram lembranças da filha. Pobre Violante! Se ela ali estivesse, que alegria!

Com o trabalho não deram pelo cerrar da noite e foi Felícia quem disse:

— Parece que nhonhô não vem hoje jantar...

— É verdade! - exclamou a velha surpreendida, com os olhos no relógio.

Eram quase sete horas; escurecia; já andavam a acender os lampiões. Impressionada ficou algum tempo a olhar os ponteiros e foi ainda a negra quem interrompeu o silêncio, acendendo o gás:

— Quem sabe se ele não encontrou Nhá Violante, sinhá?

— Hem?!

— Ele que não vem até agora...

— É!... E o compadre foi também. Quem sabe se andam juntos?! Ah meu Deus!... Se eles entrassem agora com ela? Mas qual! não tenho esperança. Andam por aí quebrando a cabeça, coitados! Se ela pudesse de vir já tinha vindo. Enfim... há de ser o que Deus quiser.

— A Deus nada impossível, minh'ama; - consolou a negra levando, a grandes vassouradas, um monte de papéis para a cozinha. - Eu não sei, mas meu coração me diz que Nhá Violante ainda volta... minh'ama há de ver.

— Deus te ouça.

— Onde é que ela há de ficar, uma moça como ela? Minh'ama há de ver, meu coração não falha.

Foi num canto da mesa que Dona Júlia, a contragosto, tomou a sopa e mastigou uma febra de carne, suspirando, com o ouvido atento aos menores ruídos. Gente que passava na rua, falando, fazia com que ela voltasse a cabeça ansiosa. Foi várias vezes à janela, entreabriu-a e ficou à espreita, alongando os olhos pela rua deserta. Parecia, às vezes, distinguir o filho além!

Um casal, voltando a esquina, sobressaltou-lhe o coração; cravou os olhos... Não, não eram eles. As lâmpadas da Central espalhavam uma claridade de luar na rua tranqüila. Dançavam na vizinhança, vozes marcavam uma quadrilha, vibravam gargalhadas. Ah! Violante...

Tamborinando no tabuleiro, rompeu, cantando, um vendedor de roletes; apareceu na esquina a chamar a freguesia e a baquetar com força. Os trens rodavam e um bonde, quase vazio, passou vagaroso.

Onde andaria o Paulo? Iam as horas correndo: oito, nove, dez. A venda da esquina fechou-se e a claridade lívida da calçada sumiu-se. De quando em quando ela ia espreitar pelas frestas da janela, aflita. Que terá havido? Que terá acontecido, meu Deus! Eram onze e meia quando bateram à porta.

— Quem é?

— Abra!

Com mais pressa do que lhe permitia o corpo levantou-se da cadeira e precipitou-se; antes, porém, de abrir espiou pelas rexas da persiana e reconheceu o filho. Abriu. Paulo entrou impetuosamente, num arremesso de empurrão. A pobre velha, alarmada, perguntou, querendo ampará-lo:

— Que é isto, meu filho?

Vendo-o, porém, à luz, demudado, oscilando, d'olhos muito lânguidos, como amortecidos de sono, ficou pregada ao soalho contemplando-o, entre assombro e piedade. Paulo bateu com o chapéu sobre a mesa, deixou cair a bengala e, sem dizer palavra, encaminhou-se para o quarto, detendo-se à porta, hesitante. Repentinamente voltou-se e, com a voz pastosa, a língua frouxa, tropegou:

— Por enquanto nada. Andei com o Mamede... Nada.

Vacilando, levou a mão ao umbral da porta, curvado, com a cabeça pendida e ficou a arquejar surdamente, em angústia, com o cabelo escorrido à fronte, as pernas abertas. Dona Júlia adiantou-se, ia amparar-lhe a cabeça quando ele a repeliu, falando balofo:

— Deixe, mamãe... Deixe.

— Mas que é isto, meu filho? Pois tu?

— Que é? Já vem a senhora com os conselhos. Violante podia fazer tudo e... Pois eu não estou disposto a ouvir sermões, sabe? Chega, estou farto. - Revoltado, sem poder levantar a cabeça, que bombeava, continuou em voz fanhosa: E não quero mais histórias comigo. Não sou criança para estar a ouvir as grosserias do Sr. Fábio e de outros idiotas como ele. Eu ainda perco a cabeça e faço uma das minhas e vão depois dizer que sou isto e aquilo. - Deixou-se cair em uma cadeira, passando a mão pelos olhos lentamente, como se retirasse alguma coisa que os empanasse. - Andei como um animal... Estou que não posso comigo e ainda não jantei. Tudo por causa da senhora Dona Violante.

— Com quem andaste?

Ele levantou a cabeça com esforço:

— Com quem havia de ser? com o Mamede, pois não sabe?

— Logo vi... balbuciou a velha.

— E... já a senhora pensava que eu vinha da troça, que tinha andado em pândega por aí. Pois ainda não jantei. Que é que está olhando? É isto: ainda não jantei. Ah! pensa que bebi. Bebi mesmo, e depois? bebi! - E, furioso, às guinadas, meteu-se no quarto, resmungando. Dona Júlia ficou de pé no meio da sala, abatida, num desalento profundo, com os olhos na porta que o filho encostara. Por fim, animou-se a chamá-lo, e nunca a sua voz foi tão suave e tão terna: "Paulo, meu filho..."

— Que é? Não se importe comigo, deixeme: estou com muita dor de cabeça, e é tarde. Não se importe comigo; não preciso de cuidados, graças a Deus. No dia em que eu não tiver forças para trabalhar, meto uma bala na cabeça. Coragem não me falta. Ora se... e pouco se perde. Descanse, que a senhora não há de sofrer por minha causa. Ah! é um desespero! tudo é pra cima de mim, como se eu fosse um burro de carga. Pois sim, mas isto acaba.

Dona Júlia entrou no quarto. Paulo estava de pé junto à estante, a remexer nos livros; sentindo a mãe, voltou-se:

— Pode olhar, mas não me fale, tenha paciência... Eu não estou bom.

— Mas que queixas tem você de mim? Então eu sou má?

— Não sei... Eu é que não estou disposto a aborrecer-me. Que culpa tenho eu de que Violante tenha fugido de casa? Foi comigo que ela fugiu? Foi por minha causa? Fui eu que lhe abri a porta? Não - então por que me aborrecem? Já faço muito em andar por aí, de casa em casa, cansando-me atrás de uma vagabunda.

— Que é isto, Paulo?

— Vagabunda, sim! A senhora pode defendê-la como quiser. Ah! eu não esqueço o que me fazem, não esqueço. Quando estive doente deixaram-me aqui abandonado, como um cachorro, porque a senhora Dona Violante queria um vestido com pressa, não sei para que pagode. Eu podia morrer, contanto que ela brilhasse. Fiquei ardendo em febre, e mamãe lá foi acompanhar a senhora minha irmã, deixando-me com uma negra. Eu não esqueço... Mas não faz mal. Deus é grande!

Sentou-se na cama fazendo horríveis visagens, ansiando, abrindo e fechando a boca, aos haustos. Dona Júlia adiantou-se, enternecida:

— Tu estás sentindo alguma coisa, meu filho?

Ele engulhava. Saiu-lhe, a jorro, uma negra golfada da boca esparrimando-se no soalho, com um fétido ácido. A velha amparou-lhe a fronte viscosa, posto que ele, torcendo-se com agoniadas contrações e arrevessando, repelisse, já sem energia, e mão carinhosa. Nova golfada bolçou longe e Paulo, suando frio, pôs-se a gemer, dando com a cabeça, a comprimir o estômago, estorcendo-se.

Dona Júlia, com os dedos atarantados, desabotoou-lhe a camisa e as calças, deitou-o e correu, aflita, a buscar o vidro d'água sedativa. Na sala de jantar pensou em acordar Felícia, mas teve vergonha - não queria que ela visse o filho naquele estado. Entrou resolutamente no quarto e, como a prateleira dos remédios - a sua botica - ficava por trás dos santos, enquanto procurava, entre outros, o vidro que queria, foi fazendo uma oração ao Senhor dos Passos, frouxamente iluminado pela lamparina trêmula.

Quando tornou ao quarto, com o remédio, encontrou o filho de pé, agarrando a cabeça a mãos ambas, vacilando, como se a embriaguez se houvesse agravado. Dos olhos úmidos escorriam lágrimas, uma baba víscida descia-lhe pelos cantos da boca, copioso suor alagava-lhe a fronte, onde os cabelos caídos colavam-se, empastados.

— Por que não te deitas, meu filho? Vem cá, deita-te, descansa; isso passa.

E a boa velha foi conduzindo o filho, que cambaleava. Forçou-o brandamente a deitar-se, alteou os travesseiros, repousou-o. Ele, porém, sentia-se mal e, lutando, soergueu-se de novo, aflito, arquejando, debatendo-se. Repentinamente saltou da cama e, engulhando, ficou de pé no meio do quarto, d'olhos desvairados, a esmagar o estômago a mãos ambas, dobrando-se.

— Não posso mais. Eu morro! - rouquejou, deixando-se cair na cama e Dona Júlia, ajoelhando-se, arrancou-lhe as calças, sem que ele fizesse o menor movimento, e vendo-o tranqüilo, deixou-o estendido, com os pés quase tocando o chão, o ventre descoberto, aflando, como o de um peixe em agonia.

D'olhos fechados, Paulo sentia uma impressão estranha, como se fosse rolando no vácuo; a cabeça parecia estar cheia de nuvens densas, pesadas, que rolavam; o leito oscilava. Abriu os olhos - foi pior: os móveis moviam-se, sombras enormes bailavam fantasticamente nas paredes; uma zoada rumorejava-lhe aos ouvidos. Um cheiro acre, penetrante, agudo, chegou-lhe terebrantemente ao cérebro. Agitou-se nervoso e agarrou o pulso de Dona Júlia, repelindo-a; mas a boa senhora manteve-se junto dele, chegando-lhe ao nariz o lenço, encharcado d'água sedativa.

— Tem paciência, meu filho.

— Não, mamãe...

— Vais ficar bom.

— Não! - e debatia-se. Tentou erguer-se, mas oscilou para um lado, para outro e tombou no leito, gemendo, resmungando:

— O Fábio! pois sim... - Riu sardonicamente, escondendo o rosto no travesseiro para fugir ao lenço com que a mãe o perseguia. De novo, engulhando, ameaçou levantar-se: fincou os cotovelos na cama, conseguindo apenas soerguer a cabeça, que logo descaiu, pesada. - Já disse que não quero, mamãe. Por causa daquele diabo! Mas deixa estar. Eu bem dizia. A culpa é sua e dessa negra. - Teve um ímpeto de ira e abriu os olhos desmedidamente: Mas eu não a quero nem mais um dia aqui em casa, nem mais uma hora! Sem-vergonha! Era ela mesma que andava com as cartinhas de lá para cá. Foi ela que arranjou tudo. Mas deixa estar...!

Dona Júlia insistiu com o lenço, seguindo os movimentos repentinos do filho, que fugia com a cabeça, resmungando.

— Espera, Paulo.

— Não quero! Não teima...! Mau! Mau!

— Tem paciência, meu filho.

— Não quero! Olhe, mamãe...! ameaçou.

— Pois hás de ficar assim? - e, em segredo, para vencê-lo pelo vexame, disse: Olha Felícia...

— Que tenho eu com Felícia? Ela que venha cá! Por causa dessa sem-vergonha é que a nossa vida anda assim. Não quero mais essa negra aqui! Não faltam criadas.

A cefaléia, porém, ia-se-lhe tornando insuportável: sentia a cabeça como apertada num capacete de ferro, os olhos pareciam querer saltar das órbitas: as artérias, nas têmporas, latejavam com violência, túrgidas. Entrou a suar frio e, arrebatadamente, desnudou-se aos olhos compassivos da mãe que, sem vexame, comovida, não podendo retirar o lençol da cama, cobriu-o com uma toalha de banho que pendia do cabide. Depois, reunindo toda a sua força, agarrou-o pelo tronco e virou-o na cama, repousando-lhe a cabeça nos travesseiros altos. Estendeu-lhe as pernas e, sentando-se à beira da cama, ficou-se a acariciá-lo, chegando-lhe, de quando em quando, ao nariz, o lenço, que ia embebendo em água sedativa.

Por fim ele imobilizou-se, como se houvesse adormecido, mas sofria - o atordoamento da embriaguez dava-lhe desequilíbrios. As vezes parecia-lhe ir caindo, estendia os braços, procurava agarrar-se a alguma coisa, resmungava; mas, de novo, reentrava em inconsciência, até que, estirado, com um fio de baba a escorrer-lhe da boca, adormeceu, hirto e pálido, como morto.

Vendo-o a dormir, Dona Júlia saiu em pontas de pés e, instantes depois, tornou, silenciosa, com um balde e um pano e, de joelhos, pôs-se a esfregar o soalho, para que não ficasse vestígio daquela vergonha. No mesmo passo, cauto e sutil, saiu com o balde, voltando, pouco depois, ao seu posto. Sentou-se devagarinho na cadeira, encostando-se à mesa acumulada de livros, com os olhos no filho, ungindo-o de piedade e desviando-se, fugindo ao presente triste, achegou-se às recordações do passado.

Era ele pequenino, uma criança linda, de cabelos louros, meiga e inteligente. Como a casa era alegre com as suas travessuras, com o seu riso que vibrava! E ela, como era venturosa quando o tomava nos braços, doce peso que fazia subir sua alma ao Paraíso.

E a outra, que beleza de menina! E como andava garrida, sempre com figuinhas sob as rendas do vestido taful, para conjurar os olhares vesgos da inveja, amimada por todos, de colo em colo, de casa em casa.

Quando o marido chegava do quartel tomava os dois e, com um em cada joelho, punha-se a sacudi-los: upa! upa! e eles a rirem, e ela a rir com eles, enlevada.

Depois o colégio, as horas de saída, o regozijo em casa quando os dois apareciam gárrulos, contando o que haviam feito, todos os pequenos incidentes do dia escolar. Suspirou. Aquela ironia da memória alanceava-lhe o coração. Paulo voltou-se atirando um braço, encolhendo as pernas, com um resmungo. Ela pensou que ele houvesse acordado e, de manso, inclinando-se, examinou-o: dormia profundamente, respirando um hálito quente e azedo.

Bebendo! suspirou ela baixinho, de mãos postas, olhos em alvo, demandando o céu. Bebendo... meu filho, o meu Paulo! E sentou-se, de novo, muito quieta para continuar a dolorosa vigília, perseguida pelas reminiscências, falenas tristes da noite velha do passado que esvoaçavam em torno de sua alma. Já o via rapaz e a ela menina: ele concluindo os preparatórios, ela fazendo os primeiros bordados.

Noites tranqüilas para sempre perdidas quando, na sala de jantar, em volta da mesa, à luz de um lampião de querosene, na casa da Rua Haddock Lobo, Paulo estudava os seus verbos, Violante vestia as suas bonecas e ela, ao lado do marido, gozando aquela delícia honesta, ponteava, cerzia uma roupa ou discorria sobre as necessidades da casa, lembrando compras indispensáveis. Fora, no quintal, havia um jasmineiro, que avassalava o muro e perfumava a casa.

"Uhum! não..." regougou o rapaz voltando-se torcicolosamente e, como o seu rosto ficasse em plena claridade, Dona Júlia afastou a vela, pôs-lhe diante um livro como alparluz para que a sombra lhe protegesse o sono. Paulo pôs-se a mastigar, com estalidos secos e ela, sempre receosa, inclinava-se, d'olhos franzidos, acompanhando, vigiando aquele pesado torpor.

A chama da vela crescia, por vezes, e sombras dançavam na parede macabramente. Havia um roque-roque na sala próxima, um rato a roer e era o ruído único dentro da noite, porque as próprias máquinas viageiras dormiam, repousando das céleres corridas pelos campos largos, pelas serras ásperas.

Outras idéias surgiram no espírito atribulado da miseranda:

Onde andaria Violante? Pobrezinha! talvez sofresse num canto obscuro, guardada pelo homem perverso que a havia seduzido. Ah! sim, devia estar bem escondida para que a polícia, trabalhando como trabalhava, não lhe houvesse podido ainda descobrir o paradeiro.

E se houvesse sido assassinada? Lembrou-se de certa notícia que lera em tempo: o caso de um homem que, depois de haver cevado os seus desejos lúbricos, arrastara a sua vítima, pobre pastora, para uma charneca e a esfaqueara. Teve um arrepio e, d'olhos cravados na parede, ficou a olhar, a olhar...

Uma sombra passou e foi-se adensando, adensando... Círculos iriados dilatavam-se brilhando e desfaziam-se e toda a sua visão ficou reduzida àquelas miragens que, repentinamente, desapareceram.

A porta rangeu: voltou-se assustada e viu o gato entrar maciamente, em passos de arminho, com a cauda hirta. Dando por ela, o animal fez uma volta, corcoveado, esfregou-se-lhe nas pernas, resbunando; depois, fitando-a, com um surdo miado, formou o pulo e saltou-lhe ao colo, como a pedir carinho. Ela acolheu-o, afagou-o passando-lhe a mão pelo dorso flexuoso e macio; o animal, lambendo as patas, deixou-se ficar encolhido e, afundando a cabeça, adormeceu.

O sono chumbava-lhe as pálpebras, ardiam-lhe os olhos e, de quando em quando, a boca se lhe escancarava em largo bocejo ao qual, religiosamente, acudia com o polegar traçando uma cruz.

Mas como havia de o deixar? E se sobreviesse alguma coisa? Estava tão agitado... Foi, então, que se lembrou da enfermidade do filho. Noites de sofrimento e de apreensões: ele abrasado em febre, delirando, ela, sozinha, ainda com o luto pesado do marido, a acompanhá-lo, acudindo com os remédios ou a contar-lhe histórias quando, nas horas de acalmia, ele a chamava para junto do leito, muito humilde, com medo da morte.

Os bocejos amiudavam-se, sentia-se mole, estafada pelo dia de insano trabalho que tivera a desarrumar a casa para a mudança. Pensou em deitar-se no sofá da sala, mas o filho prendia-a. Um galo cantou longe, tristonhamente e, na Estrada, houve um longo chiar de vapor. Eram as viageiras que despertavam para a vida laboriosa. Não tardava a manhã.

Levantou-se lentamente, deixando o gato no chão. O animal corcoveou espreguiçando-se e, vendo que a senhora saía, acompanhou-a em passo sutil. Dona Júlia abriu a janela devagarinho. Uma brisa fresca soprava, o céu estava estrelado e o alvo clarão das lâmpadas da Estrada dava uma ilusão de luar.

Varriam a rua e, numa densa nuvem de pó, uma carroça arrastava-se, moviam-se vultos. "Também agora não vale a pena, disse ela; com pouco mais está aí o dia." E, debruçada, ficou a olhar fundamente, para muito longe, para o tempo d'outrora, o doce tempo!

Lá o via todo, feliz e calmo, lá longe, no irregressível. Dois homens passaram em mangas de camisa, fumando; um levava uma picareta ao ombro. 'Meu Deus..." e ficou-se nesta exclamação que resumia todo o seu espanto, porque parecia impossível que padecesse tanto, sendo tão virtuosa e tendo tamanha fé na Providência. "Não! também é demais!" E à janela, só, dentro do seu desespero, cercada pela noite negra e muda, pôs-se a falar gesticulando.

— Uma sai, vai-se embora; o outro, tão bom menino, faz isto, meu Deus... Que tenho feito eu?! Vejo por aí outras mães tão felizes com os seus maridos, com seus filhos... só eu, então, é que hei de ser a desgraçada? Por quê?

Baixou os olhos e viu a rua mais negra como se a noite houvesse recalcado a sombra. Ao longe havia ainda dois pontinhos luminosos, mas esses mesmos desapareceram - um primeiro, outro depois, e a treva ficou absoluta. "Por que, meu Deus?!" Passou o braço pelos olhos e, chorando, bebendo as lágrimas salgadas, ficou a tamborilar na janela, vazia, inconsciente, dolorosa, com os olhos voltados para o céu mudo.

Um silvo sacudiu-a e toda a rua abalou-se, como a um surdo fragor subterrâneo. Era um trem que partia e, como se nele fossem as suas derradeiras esperanças, rompeu a chorar e retirou-se.

No céu branco, madreperolado, estendiam-se os primeiros laivos d'ouro e púrpura, Ouvindo-lhe os passos na sala de jantar atravancada, Felícia levantou-se à pressa e, entreabrindo a porta do corredor, exclamou, surpresa:

— Uê, minh'ama, vosmecê já se levantou, tão cedo?!

— Então, respondeu Dona Júlia, abrindo a janela. Quando há que fazer...

Uma luz baça invadiu a sala, e o ar puro e fresco da manhã circulou. A velha tomou uma toalha e saiu ao quintal para lavar o rosto, enquanto a negra catava gravetos para acender o fogo. O gato ia e vinha, miando, a esfregar-se em Felícia, e o gaturamo pôs-se a cantar contente, vendo a primeira luz do sol no muro verdinhento e ouvindo o estalar das asas dos pombos.

Com a chegada das andorinhas, Dona Júlia resolveu acordar o filho e, pé ante pé, entrou no quarto. Paulo dormia profundamente; sacudiu-o:

— Paulo, estão aí as carroças. - Ele abriu os olhos, encarou-a pisco e voltou-se para a parede; ela insistiu: Estão aí as carroças.

— Ah! mamãe... A senhora também... nem me deixa descansar.

— Que queres, se os homens já estão aí para a mudança? Tem paciência.

Paulo resmungou, espreguiçando-se, e a velha saiu, para o deixar à vontade, indo falar aos homens que conversavam à porta, retirando das carroças barricas, velhas esteiras, trapos.

— Por onde quer que comece? perguntou um deles.

— Pela sala de jantar.

O homem foi entrando, dois outros acompanharam-no, e logo, tomando cadeiras, foram-nas conduzindo para a rua, enquanto um ruivo, de cócoras, assobiando, desarmava as camas.

A sala como que se tornava mais vasta à medida que se ia esvaziando. Apareceram buracos no rodapé, blindagens de lata nos ângulos. Um velho chapéu de boneca, empoeirado e roído, rolou imundo na sala. Dona Júlia apanhou-o, sacudiu-o e guardou-o veneradamente. Os homens discutiam, arrastavam móveis e foi um trabalho quando tiveram de transportar a mesa e a grande cômoda de jacarandá que, empurrada, ia deixando lustrosos vincos pelo soalho.

Paulo apareceu, por fim, abatido, os olhos muito vermelhos, mole. Dando com a mãe, baixou a cabeça, resmungou "a bênção", seguindo para o quintal. No banheiro, pôs-se a pensar nos horrores da véspera, com uma ponta de remorso. Arrependia-se de não haver ido à polícia. mas o Mamede... Começou a despir-se, pensando.

Fora à estalagem procurá-lo e encontrara Ritinha só, sempre dengosa, que o recebera toda risonha, com os seus dentinhos miúdos muito brancos e os seus olhos quentes como dois carvões acesos. Não o deixara sair: que esperasse um instante: Mamede não se demorava. E ele, vencido, dominado por aquela viçosa criatura de amor que, quando andava, bambaleando os quadris e balançando molemente os braços roliços, deixava no ar um cheiro acre de carne, um almíscar estonteante de mulher ardente, não teve ânimo de sair e ficou sentado até que ela, ouvindo as horas no lento relógio, veio do fundo da casa, penteando os cabelos lisos, dizer, com espanto: "Que, deveras, Mamede estava demorando muito. Ele não costumava ficar até aquelas tantas na rua".

Transpirava: no lábio superior brilhava um leve rorejo e, como levantava os braços, em curva, o casaco aparecia com duas manchas úmidas nas axilas. Paulo estava enervado: olhava, e Ritinha, como se percebesse que os eflúvios do seu corpo novo venciam o homem, quis, como uma fera lasciva, brincar com ele, atormentando-o, para gozo da vaidade, e sentou-se no banco, curvou o busto à frente, baixou a cabeça, atirando despejadamente os cabelos, que chegaram quase ao chão, fartos e luzidios, como a cauda de um ginete de raça.

A nuca morena aparecia úmida, e ela torcia os cabelos, torcia-os como se os espremesse. De repente atirou-os para trás e ergueu-se. O colo teso forçava o corpinho com esforço e, como ela enrolasse os cabelos no alto da cabeça, em torre, um grampo caiu. Paulo abaixou-se. apanhou-o - os dedos tocaram-se e a mulatinha, faceirando ao espelho, perguntou, como se falasse à própria imagem:

— O senhor é daqui?

— Sou, por quê?

— Por nada. Pensei que era do Norte. Parece muito com um moço que eu conheci na Paraíba.

— A senhora é da Paraíba?

— Com a graça de Deus. E não estou aqui por minha vontade. Pudesse eu que amanhã mesmo tomava um vapor e voltava para a minha terra.

— Então não gosta do Rio?

— Eu!? Posso lá com isto! Estou aqui porque não há remédio. Não me dou com esta gente. Uma terra de miséria. Deus me livre! Não estou acostumada com estas coisas.

— E Mamede?

Ritinha encolheu os ombros, dizendo, com um risinho:

— Mamede? Uai! Não sou cativa de ninguém. Mamede é daqui: que fique.

— Então não gosta dele?

— Não digo que não goste, não tenho queixa; mas o senhor sabe, a gente sempre tem saudade da terra em que nasceu, eu tenho lá os meus, e aqui? Se cair amanhã numa cama, como há de ser? Não conheço ninguém, não me dou com esta gente da estalagem, e então? É a Misericórdia, não é? Deus me livre! Eu só espero uma ajuda de Deus para voltar, tão certo como estar aqui falando com o senhor.

Houve um silêncio. Paulo arfava, as narinas batiam-lhe sôfregas. Veio-lhe à mente uma proposta, mas receou que a mulata, indignada, o denunciasse a Mamede. E ela continuava a torturá-lo sorrindo, suspirando, firmando-se ora em uma, ora em outra perna, com um movimento sensual das ancas, Felizmente o mulato apareceu, suado, esbaforido e, vendo-o, exclamou:

— Ah! vosmecê adivinha. Eu já ia mandar um recado lá em casa.

Paulo ergueu-se sobressaltado e, enquanto Mamede descansava o bengalão e o chapéu, perguntou, sôfrego:

— Achaste?

— Uai! Achei não, também não é assim, nhozinho. Estive com um cocheiro, que me deu umas luzes. Ele já teve uns toques da marosca. Foi um companheiro dele que, no sábado, à noite, saiu detrás do quartel com uma moça e um homem, tocando para a Tijuca. Eu agora ando na pista do bicho, e achando, nhozinho... Só se Deus mesmo não quiser.

Entrou a dar o seu plano de captura, e como Paulo, ao fim da tarde, se despedisse, o mulato, que fizera libações seguidas, opôs-se:

"Que não, ué? Havia de ir sem jantar? Isso não..." E saiu para ir à venda fazer umas compras. O curto instante da ausência de Mamede foi de sofrimento para o rapaz: o esto lascivo recrudesceu com maior intensidade, torturava-o uma estranha emoção de medo, faltava-lhe o hábito como em grande fadiga. Chegou a levantar-se, trêmulo, em pontas de pés, mas ficou parado, com as pemas bambas, os olhos cravados na cortina que encobria o corredor.

Um choro irritado de criança, vindo de fora, assustou-o. Sentou-se, nervoso, revoltado, com o sangue a referver-lhe nas veias. Ritinha pôs-se a cantar e ele, mordicando os lábios, meneou com a cabeça, arrepelou os cabelos com fúria, atirou um murro à coxa e voltou-se olhando para a latada.

O céu, violeta, tinha uma serenidade suave àquela hora da tarde. A gente da estalagem ia abandonando o trabalho, esvaziavam-se as tinas gorgorejando; recolhiam-se as roupas. Faziam-se aos pombais os pombos, e Ritinha, sempre a cantar como uma sereia lúbrica, a atraí-lo, a enfeitiçá-lo. Felizmente Mamede reapareceu... Paulo respirou, aliviado. O mulato abarcava embrulhos e garrafas e, logo que entrou, parando um momento no limiar, disse, risonho:

— Vosmecê há de desculpar a demora.

— Ora! - fez o estudante, complacente.

— A gente quando entra numa dessas vendas sempre encontra uns parceiros e cai na prosa mesmo que é serviço. Com licença, nhozinho. - Puxou uma cadeira, sentou-se, com o espaldar para a frente, as pernas escarranchadas. - Ah! meu senhor... Eu já não sei mesmo onde é que hei de ir cavar dinheiro - isso está preto! Vosmecê não é da Guarda Nacional, nhozinho?

— Eu? Não.

— Dê graças a Deus. É um gastar de dinheiro que não tem conta. A gente, para não ficar por baixo, vai dando e, quando menos pensa, tem soltado das mãos uma cobreira surda. Mas eu gosto; é uma cachaça. Quem foi soldado, vosmecê sabe, tem sempre a sua quedazinha pela farda, e, depois, os manos me deram um posto...

— Que posto?

— Vosmecê ainda não me viu fardado?

— Não.

— Sou alferes.

— Ah!

— Nhozinho, toma alguma coisa, disse de repente o mulato: um gole de vinho do Porto.

Paulo acedeu, e Mamede, num salto, desapareceu no corredor, voltou pouco depois, com a garrafa e dois copos.

— Isto não faz mal. A bebida, com conta, até faz bem - e despejou.

Beberam. E a conversa caiu em Violante. Mamede, confiado no cocheiro que levara o casal para a Tijuca, Paulo, a jurar que se encontrasse o homem, não respondia pela sua vida.

Várias vezes Mamede encheu os copos e, distraído ou excitado, o estudante ia bebendo, até que Ritinha, com um casaco branco enfeitado e rendas largas e uma saia vermelha, apareceu para arranjar a mesa, aliviando-a dos objetos que a atravancavam. E, enquanto ela estendeu a toalha clara e pôs os pratos e os talheres, as garrafas, a farinheira e a fruteira de louça esvazada, Paulo, com o olhar cúpido, acompanhou-a, e o mulato, como se percebesse o entusiasmo do estudante, disse, com orgulho:

— Mulata faísca, hem, nhozinho? Isto tem dengues...!

Lançou-lhe o braço à cintura, atraiu-a e ela, abandonada, lânguida, derreou-se sobre ele, deixando-se afagar, até que, coleando colubrinamente, livrou-se, atirando um muxoxo.

Servido o jantar, Ritinha sentou-se à cabeceira da mesa, entre os dois. Os copos não demoravam vazios, e Paulo já começava a sentir-se atordoado quando, ao fim do jantar, Mamede foi a um canto buscar a laranjinha.

O receio de parecer fraco à mulher desejada fez com que não rejeitasse o cálice que o mulato lhe oferecia - levou-o, porém, à boca, com repugnância e, como para livrar-se mais depressa daquele asco, virou-o e um trago.

O luar subia docemente, branqueando a latada. Um violão gemia perto e Mamede, romântico, enlevado naquela luz visitadora que lhe entrava pela casa, não permitiu que Ritinha acendesse o lampião, e, fora, ao alvor, ficaram conversando: a mulatinha a falar do seu Norte, a recordar as noites poéticas no Cabedelo, entre os coqueirais ou na roda sombria das ramas das gameleiras; Mamede, recordando os dias heróicos, as suas bravuras no Sul e os feitos do major; Paulo, a ouvir, num enternecimento mole, entre os filtros da lua e do perfume da Ritinha que, já íntima, roçava por ele, como a oferecer-se.

Ela não bebia, mas ia servindo cálices sobre cálices, e o estudante não se sentia com ânimo de os recusar até que o mulato, sem dizer palavra, saltou na sala, mergulhou no corredor e, pouco depois, sons trêmulos vieram do fundo da casa e ele apareceu experimentando o violão.

Sentou-se no batente da porta, picando as cordas, apertando as cravelhas; depois, esticando uma perna, pigarreou e, com os olhos no céu, numa voz afinada, pôs-se a cantar uma modinha. A mulata encostou-se ao umbral, com a cabeça para trás, pensativa; Paulo, cabisbaixo, ouvia.

Grilos guizalhavam e, mais longe, como se o misticismo da noite meiga influísse em todos os corações, vozes ternas cantavam em uníssono suavíssimo. Cães ladravam na montanha, onde as casas, muito brancas, como de puro mármore, destacavam-se da verdura que resplandecia alvejante e pelo céu limpo, serena, a lua caminhava magnífica, toda de neve.

Era tarde quando o estudante pediu licença para retirar-se, sentindo-se mal; todavia aceitou o último cálice que lhe ofereceu a mulata.

— A noite está fresca, não faz mal.

Bebeu a custo, arrevessando; apanhou o chapéu e a bengala e despediu-se. Ritinha pediu desculpas do jantar e Mamede quis acompanhá-lo ao portão da estalagem e, sem deixar o violão, lá foi com ele, guiando-o. Ao despedir-se deteve-o e, baixinho, num tom de mistério ofereceu-se para levá-lo a casa. Ele recusou.

O ar fresco da noite, longe de aliviá-lo, como que mais o excitava. O atordoamento tornava-se mais forte: por vezes cambaleava, ia de encontro às paredes. As pernas. ora amoleciam, bambas, ora pareciam retesadas e duras. Ia devagar, sentindo náuseas, a boca saburrosa, os olhos nublados. Caminhava instintivamente, dobrando esquinas - ora pela calçada, ora pelo meio da rua e foi com surpresa que reconheceu a Praça da Aclamação.

Lembrava-se vagamente de haver chegado a casa e do seu sofrimento.

Atirou uma cusparada a um canto e entrou no banheiro. Ao jorro d'água sentiu um choque violento e recuou espantado, com a mão sobre o coração. "Não bebo mais!" exclamou, como num juramento e, curvado, meteu-se sob o chuveiro.

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