Saturday, 27 January 2024

Good Reading: "Ode a um Poeta Morto" by Raul de Leoni (in Portuguese)

À memória de Olavo BiIac.


Semeador de harmonia e de beleza
Que num glorioso túmulo repousas,
Tua alma foi um cântico diverso,
Cheio da eterna música das cousas:
Uma voz superior da Natureza
E uma ideia sonora do Universo!

Onde passaste, ao longo das estradas,
Linhas de imagens rútilas e vivas,
Em filigrana,
Foram tecendo, como o olhar das fadas,
Nas mais nobres e belas perspectivas,
O panorama dos ideais da Terra
E a ondulante paisagem da alma humana.

Toda a emoção, que anda nas cousas, fala,
Nos seus diversos tons e reflexos e cores,
Pela tua palavra irisada de opala,
Feita de radiações e finas tessituras:
Desde a vida sutil da borboleta
À alma leve das águas e das flores
À exaltação do Sol e ao sonho das criaturas:
Toda a sensualidade esparsa do Planeta.

Freme em tua arte o sangue de Dionisos,
Diluído nas virtudes apolíneas;
E do seu seio voluptuoso chovem
Alvas formas pagãs, ardentes frisos,
Baixos-relevos, camafeus, sanguíneas,
Numa palpitação de carne jovem.
 
Desfolhando um esplêndido destino,
A tua mão teve, por sentimento,
A sutileza platônica e a doçura
De um florentino do Renascimento,
Que, atormentado de ímpetos românticos,
Trabalhasse em esmalte do Piemonte,
Contendo no cinzel lascivo e fino
O sonho capitoso de Anacreonte
E o lirismo sensual do Cântico dos Cânticos.

Vieste de longe para longe. A tua
Alma encarnou-se em outras entidades,
Em outros povos, tempos e países,
E, deslumbrante, continua,
Plástica, móvel, irisada e nua,
A longa emigração pelas idades,
Deixando atrás de si seus frutos e raízes.

Foste o Homem de sempre, no prestígio
De poeta sensualista, atravessando as eras,
Por toda parte encontro o teu vestígio:
Um dia, na Índia védica, sonhando
No limiar das eternas primaveras,
– As mãos cheias de rosas e ametistas –
Fazes oblatas líricas e votos
Aos poderosos gênios avatares
E escreves os teus poemas animistas
Na folha dos nelumbos e dos lótus,
Na flor sonâmbula dos nenúfares...
E os teus versos, nos quais um grande sonho abranges,
Vão descendo a cantar na corrente do Ganges.
 
Depois, pastor na Argólida ou no Epiro,
Vivendo entre os rebanhos, em retiro,
Ao luar, sobre as montanhas, passo a passo
Vais contando as estrelas pelo espaço,
E a sonata sutil da tua avena
Tem o sabor do favo das abelhas
E a melodia simples e serena
Da alma dócil e errante das ovelhas.

Mais tarde, na Tessália, entre as selvas e os rios,
Companheiro dos sátiros vadios,
Modulas o teu canto surpreendente,
E vais buscar o som das tuas rimas
No intermezzo das fontes, ao nascente,
Na canção das águas frescas,
Na orquestração nostálgica dos ventos,
No tropel dos centauros truculentos,
Nas gargalhadas faunescas,
Na púrpura radiante das vindimas.

Mal doura o sol a folha das videiras
E ouves o ruído das primeiras frautas,
Sais a espreitar, horas e horas,
Sobre a areia de prata das ribeiras,
As oréades trêfegas e incautas,
De braços entrelaçados,
Urdindo a teia de ouro das auroras,
Na fantasmagoria dos bailados.
 
Reapareces, depois de vidas tantas,
Com o mesmo coração sonoro e imenso,
Dentro das cortes bíblicas e cantas,
Na harpa esguia e ritual, entre espirais de incenso,
As vitórias dos reis e as searas benditas,
As lendas do Jordão e o olhar das moabitas.

Voltas ainda à Grécia, onde pertences
Ao povo e és o poeta da cidade.
Honras a velha raça dos rapsodos;
A tua voz tem a sublimidade
Do perfume dos parques atenienses;
E é uma expressão da pátria e o evangelho de todos.
Trazes mirtos e pâmpanos na fronte;
Entoas hinos a Febus
E bailas, com Anacreonte,
No arabesco da ronda dos éfebos.

Depois, em Mitilene, és o único homem
Nessa ilha extravagante das mulheres.
Lá os epitalâmios que proferes,
Entre ruídos de crótalos e taças,
Sobem no ar e se consomem;
Despertam nossos desejos,
E consegues possuir para os teus beijos
A própria Safo numa noite – e passas.

Vais a Roma, no vértice do Império,
Onde a predileção do César te conforta.
Dão-te em Tíbure estâncias e domínios;
Vais a Capri na corte de Tibério;
Instalas teu palácio no Aventino;
Tens eunucos etíopes à porta
E liteiras de estofo damasquino.
És a alma delirante dos triclínios;
Exortas os circenses sobre vícios;
Cantas no banho azul das cortesãs cesáreas;
És íntimo nos tálamos patrícios,
Onde os teus versos sacros e profanos
São guardados nas urnas legendárias
Em custosos papiros africanos.

Mais tarde, já na idade alexandrina,
De novo, a terra helênica conquistas,
E, poeta irônico e brando,
No tom fresco e loução dos idilistas,
Passas cantando
As canções que Teócrito te ensina.
Revejo-te, depois, indiferentemente,
Em Córdoba, em Bagdá, quase em segredo,
No teu destino ideal de citaredo:
Cantor do califado, entre os tesouros
Do Islamismo e os mistérios do Oriente.
Dormes no harém real e vais às guerras.
Continuando de seres, entre os mouros,
O mesmo de outro tempo em outras terras.
Na Germânia feudal encontras nas distâncias,
Um bando de harmonias que comunguem
Com o teu coração de poeta heleno.
Murmura-te no ouvido, em ressonâncias,
A legenda pagã dos “Niebelungen”.
És todo o amor das castelãs do Reno
E a tua voz de “minnesinger” se ergue
Ora veemente e funda, ora em trêmulos suaves:
Com “Tannhäuser” visita “Venusberg”
E canta nos castelos dos margraves.
 
Mais adiante,
Renasces na Florença azul da “Senhoria”.
Florença eleva na canção dos sinos
A sua alma de Vênus e Maria.
É um sonho de amor nos Apeninos.
A cidade das flores e dos poetas,
Das paixões elegantes e discretas,
Das fontes, dos jardins e das duquesas,
Das obras-primas e das sutilezas.
É todo um povo amável que se anima
E que a amar e a sorrir, da alvorada ao sol posto,
Faz da Vida uma obra-prima
De sensibilidade e de bom gosto...

Há guirlandas votivas,
De acantos e de louros pelas ruas!
O Grande Pã voltou! As formas vivas
Da Grécia, emergem, fúlgidas e nuas!
Nas casas senhoriais e nas vilas burguesas,
Toda a gente, animada de surpresas,
Aprende o homérico idioma,
Entretém-se de Erasmo e de Bocácio.
De humanistas e letrados,
E dos últimos mármores achados
Sob a poeira católica de Roma.

Nos belvederes do Arno andam as grandes damas:
Smeralda, Lucrezia, Simonetta,
Entre rosas, sorrisos e epigramas...
Botticelli olha o céu azul violeta;
Lê-se Platão nos templos: e eu te vejo,
Sereno e lindo,
Diante do “Ponte-Vecchio”, num cortejo,
Dizendo aos príncipes sonetos de ouro
E Lourenço de Médicis te ouvindo!

Compões ainda com teu gênio afoito,
Na forma antiga que se cristaliza,
Certos versos do século dezoito,
Quando Watteau pintava, em plena primavera,
O “Embarque” para Citera
E Rousseau escrevia a Nova Heloísa.

Poeta cosmopolita, alma moderna,
Com Leconte e Banville, em Paris de setenta,
Buscas nas viagens teus motivos de arte,
Fazes o inverno em Nice e o verão em Lucerna
E a tua sombra cíclica se ostenta
Nos salões de Matilde Bonaparte.

***

Na amplitude geral do teu abraço:
– Fora do Tempo e do Espaço,
Na Humanidade e no Mundo –
Vejo-te sempre presente
Onde há um homem que sente
Que a vida é um sentimento esplêndido e profundo!
As almas como a tua a quem n’as fite
Transmitem a emoção da vida soberana.

Seja onde for se pode compreendê-las,
Porque, sem fim, sem pátria e sem limite,
Têm no conceito eterno da alma humana
A universalidade das estrelas.
Se a Humanidade fosse feita delas,
Na dúvida em que não cabe
E em que se estreita,
Talvez não fosse mais feliz, quem sabe?
– Mas seria mais bela e mais perfeita...

Dignificaste a Espécie, na nobreza
Das grandes sensações de Harmonia e Beleza;
Disseste a Glória de viver, e, agora,
O teu eco a cantar pelos tempos em fora,
Dirá aos homens que o melhor destino,
Que o sentido da Vida e o seu arcano,
É a imensa aspiração de ser divino,
No supremo prazer de ser humano!

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