Thursday, 15 February 2024

Thursday's Serial: "Aurora" by José Thiesen (in Portuguese) - III

 

16º dia do mês da Vitória

 

Lúcia

            A intenção de Lúcia, ficando em casa e assistindo televisão, era não pensar. Ela sabia que assistir pornografia era a melhor coisa para não pensar e por isso a televisão passava 24 horas de pornografia.

            Agora, ela assistia “A Partilha”. Nela, a heroína se oferecia para confortar cada cidadão de sua cidade em todas as formas possíveis. Lúcia estava atenta ao sentido profundo do programa e como isso fazia da personagem um exemplo para todos, mas o que prendia Lúcia em frente ao monitor de TV era a atriz mesma do seriado.

            Suzana R-410 atuava sob o psudônimo de Suzana 410410. Ela havia sido paciente de Lúcia; uma ex-criminosa, agora reprogramada, útil à sociedade como uma notável atriz, num programa de forte conteúdo intelectual e cívico .

            Suzana R-410 era notável para Lúcia porque era dos poucos reabilitados que ela voltara a ver depois do processo acabado.

            Para onde iam os reabilitados?

            Suzana também a perdoara. Que mal poderia Lúcia lhe estar fazendo? A própria Lúcia gostaria de estar no lugar de Suzana R-410. Afinal, quem não gostaria de ser atriz de televisão? Lúcia era rica, mas não famosa. Seu nome não aparecia nas telas de televisão, nem era reconhecida e amada por milhares em todas as cidades do planeta.

            Uma criminosa a perdoara por lhe estar dando um lugar digno na sociedade humana!

            O que os criminosos ocultavam dela? Na verdade, ela não sabia nada sobre eles, além de que seguiam a Pérfida Doutrina, mas isso todos sabiam. Porque se recusam a fazer parte do reino de deus, mas continuam marcados pela besta, era o grande mistério.

Cristo diz que é o mistério do Mal, o qual só nos será revelado quando morrermos.

Mas se eles são do Mal, marcados pela besta, porque “perdoar” e com não mal na voz?

Lúcia olhou para o relógio que olhava para ela a sorrir enquanto Suzana R-410 desfazia-se em orgasmos, sem que a câmera registrasse que ela via as primeiras alucinações que a acometiam.

 

* * * *

Pio XIII

            Jochum pensava na esposa e filho deixados mortos no que foi então a Basílica de São Pedro. Tanto mal, tanta tristeza! Sequer tiveram um túmulo, sequer ele se pode despedir deles. O horror da basílica a ruir engolfada por chamas com seus amados entre a multidão que procurara lá refúgio, fez Jochum tremer em agonia.

            - Não te preocupes, que tudo está sob controle, disse o homem que sentou ao seu lado.

            - Eu tento crer nisso, disse Jochum.

            - Sim, às vezes é difícil ver luz, quando tudo à volta são trevas. Ainda crês em Deus?

            - E que Ele me ama, e que é o Senhor e tudo o mais? Acho que sim. Sua Santidade vê e fala com Jesus, bem sabes.

            - Sim, eu sei. Então sabes que tudo está sob controle. É somente uma questão de tempo, porque, sabes, Deus não apaga uma vela que ainda fumega. Lembras-te do diálogo entre Ele e Abraão, quando Deus disse-lhe que iria destruir Sodoma? De como Abraão tremeu porque seu sobrinho e família moravam lá?

            - Lembro. Abraão ficou perguntando “mas e se na cidade vivessem cem justos, tu ainda a destruirias e aos justos também?”

            - Exatamente. Deus lhe disse que não, que por causa de cem justos no meio de mil que não o eram, ele não destruiria a cidade. E Abraão foi lhe fazendo sucessivas perguntas, sempre reduzindo o número de justos, até chegar ao número dos parentes seus que viviam em Sodoma e Deus sempre a insistir que não destruiria a cidade se nela vivessem dez justos no meio de mil perversos.

            - É isso o que está acontecendo agora? perguntou Jochum.

            - Deus tirou Lot e sua família de Sodoma e então fez a cidade ruir, porque não era bom que dez inocentes sofressem em meio a mil pecadores empedernidos. Mas agora, não é mais nem um número de mil injustos, nem mais o espaço duma cidade, mas Deus não destruirá a sodoma em que este planeta se transformou enquanto houver um único justo sobre a terra. Agora, não se turbe mais teu coração. Saibas que há uma enorme multidão junto de Deus a rezar por ti e todos querendo que experimentes com eles a eterna alegria de contemplar a face de Deus. Sejas homem, firme e fiel, nem vascile o teu coração. É só esperar um pouquinho mais e tudo será como nunca imaginaste que as coisas pudessem ser.

            Com um tapinha no ombro, o homem levantou-se e se afastou do jovem.

            Mathias aproximou-se com as mãos cheias de morangos.

            - Veja só que achei, Jochum! Morangos para todos!

            - Oberst, pensei que estavas comigo agora a pouco!

            - Agora, não! Acabei de chegar de minha busca por comida! Era tanto morango que tive que fazer uma trouxa com minha camisa. São doces como o mel! Coma, que os outros já estão servidos!

            Mas Jochum estava esquecido de sua fome – e de sua tristeza e medo. Subitamente percebera que não conhecia o homem com quem falara. Ele não fazia parte do grupo.

            - Coma! insistiu Mathias num sorriso. Parece que viste uma garota bonita!

            - Não uma garota, Oberst. Não sei o que vi, mas era melhor que uma garota.

Mathias sentou-se ao seu lado e Jochum contou-lhe tudo. Mathias a tudo ouviu em silêncio e em silêncio comeram juntos os morangos.

Estavam confortados e alegres, mas também cheios de temor por saberem que faziam parte de algo que era muito maior que eles mesmos.

 

* * * *

Flamínea

            Pilates tomou o resto de café que havia na xícara e voltou à mesa onde ditava seu discurso ao robot secretário.

            - ...Mas as coisas que me foram reveladas mostravam-me algo que, a princípio não percebi claramente. Mas que, quanto mais estudava, mais ela se tornava aparente.

            “Nossos pais tinham um amor à arte, à cultura, ao constante desenvolvimento intelectual de si mesmos e de seus filhos. Eles tinham orgulho de serem humanos.

            “Que procurassem destruir o amor a tais valores na massa de idiotumanos que superpopulavam o planeta, era necessário e desejável, mas eles queriam para si a posse de tais valores.

            “Que fizessem a plebe desprezar o próprio corpo a fim de se imporem toda a sorte de mutilações só por “sentirem” que isso era correto, era justo e bom, era admissível, mas eles jamais se permitiram perder orgulho de terem corpo e zelavam pelo deles.

            “Eles quizeram preservar para nós as principais Ex-Cidades, por seus valores artísticos e históricos, por serem marcos da ação libertadora das Famílias, para serem, enfim, paradigmas e pontos de partida para o desenvolvimento total de seus filhos.

            “Mas seus filhos, crescidos em Edem tomaram um outro rumo. Eu não encontrei esse dado no informatório, mas em nossas vidas cá em Eden. A partir de algum momento, nos fechamos em nós mesmos e a abertura para o mundo que nossos pais tinham se foi perdendo em sua descendência.

            “A última vez que alguém foi ao informatório antes de mim, tinha sido a 68 anos!

            “Como é possível que em 68 anos ninguém tenha se interessado em buscar alguma informação no lugar onde está guardada toda a nossa cultura? Tudo o que sabemos sobre nós, sobre nosso planeta, sobre o universo em que vivemos está lá e não nos interessa!

´           “Mas muito mais terrível é saber que em mais de 120 anos, nenhum de nós foi capaz de acrescentar uma linha de conhecimento ao que já estava estabelecido quando Eden foi fundado!

            “Como isso é possível, senhores do Conselho?”

            Então começaria a parte mais difícil e delicada de seu discurso: a Pérfida Doutrina e o homem crucificado que ele encontrara em Ex-Paris.

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