Thursday, 1 February 2024

Thursday's Serial: "Aurora" by José Thiesen (in Portuguese) - I

 

14º dia do mês da Vitória

Lúcia

            Ela passou o dedo onde seu microchipe estava implantado sobre o sensor que enviou seus dados para o Administrador Central. Informação recebida e aceita, o cérebro eletrónico abriu a porta para ela.

A moça de cabelos negros e olhos tristes entrou no conciliatório revestido de PVA branco e sentou no banco, semelhante a um degrau na parede.

Jesus apareceu diante dela, todo sorriso, sentado à iogui num grande lótus violeta que flutuava no ar.

O Administrador Central já tinha conectado a subestação conciliatória A34.b.

- Bom que veio, fia, disse ele, mirando-a com seus três olhos.

Enquanto a imagem falava, seus oito braços moviam-se como serpentes, lenta mas incessantemente.

Lúcia não via nem parecia afetada pela presença de deus.

- Ñ sei porq vim aki.

- Tem sentimento confuso?

- Tem. Uma droga q ñ tem eu como falar. Sinto coisa, mas ñ tem eu como falar! Sinto coisa ruim q ñ deixa eu feliz!

Ele a mirava com um permanente sorriso benévolo e paciente, os braços sempre em movimento.

- Pouco tpo faz foi tu honrada por sucesso teu na Correção Fraterna dos maus e $ teu maior em 2. Governo sabe tu e ama tu; q mau tem vida tua?

E depois de um momento para que ela assimilasse o pensamento expresso, ele continuou: Lúcia, medo ñ: Governo tudo tem e dá pra tu. Medo ñ e mau ñ. Mau sentimento vai logo. Governo com tu, nada mau com tu.

- Eu mau porq ñ ter coisa pra falar o q sentir eu.

- Sem coisa pra falar porq coisa sente tu ñ tem.

- Q significa “perdôo”?

Jesus ficou em silêncio alguns instantes, o braços movendo-se e o sorriso imutável.

- Palavra não existe.

- Eu ouvi palavra dum condenado q disse: “eu te perdôo”. Eu ñ saber q significa.

- Condenados falar palavras não existem pra enganar. Condenados quer mal do Governo.

Lúcia precisava de palavras que não conhecia para expressar seus sentimentos. Ela devia, como todos, aceitar o ensinamento divino de que o que não se pode expressar, não existe, mas algo nela se recusava a fazê-lo. Como podia deus dizer-lhe que o sofrimento dela não existia? Lúcia lembrava de o condenado lhe ter falado dum jeito sem maldade, mas Lúcia não conhecia a idéia de amor. O pensamento de que Jesus estivesse ali pelo Governo e não por ela, brotou-lhe por um segundo na mente e a enojou.

Será que em todo o Edem, somente ela sentia-se incompleta, como se lhe tivessem amputado partes de si, mesmo que ela não soubesse que partes eram estas? Que um condenado lhe falasse numa língua estranha, num jeito que não era maldoso, era para ser tomado como tal?

O dispensador abriu e apresentou à Lúcia um frasco com drágeas vermelhas e um cartão eletrónico.

- 1 cada 8 horas. São bem. Leva cartão pra provedores de saúde pra mais.

Ela tomou dos comprimidos, do cartão e levantou-se.

- Obrigada, disse ela.

- Nada, Lúcia 15355. Tem em cabeça: viver tu aquiagora. Outra coisa, sonho ser. Adore o Governo, ele é aquiagora; outra coisa, sonho ser. Adeus, Lúcia 15355.

Ela percebeu que o conciliatório a sufocava, o sorriso feito de serenidade e benevolência de Jesus a sufocava - a vida a sufocava, inapelavelmente.

Assim que a porta abriu, ela correu para fora, para o corredor de concreto cru, sem janelas, alumiado por frouxa luz amarela.

“Feliz ser eu!”, pensou ela, apertando o frasco e o cartão entre os dedos.

* * * *

 

Pio XIII

            Seu corpo estava bem emaciado pelos já muitos dias de pouco alimento e muita sede, de pouco sono e sol demais, mas quem o visse poderia adivinhar o corpo robusto e forte que ele já teve, antes da catástrofe.

            Os olhos de um verde acizentado estavam cansados, mas ainda eram capazes de dardejar raios de uma dominadora energia viril. Emanava dele um’aura de autoridade realmente poderosa, mas quem o visse agora, dirigir-se para o tronco carbonizado onde o seu líder apoiava os braços em profunda oração, notaria a reverente humildade de seus movimentos.

            A uma razoável distância, quase num murmúrio, ele disse:

            - Santidade?

            O Papa Pio abriu seus olhos e sorriu-lhe um sorriso macerado por dores.

            - Padre Carlo! Aproxime-se!

            - Conseguimos encontrar um córrego, 200 ou 250 metros adiante. Corre pouca água mas é água boa. Vim levá-lo para lá.

            - Vamos, então.

            Ajudou o velho pequeno e frágil a levantar-se do tronco. Ainda hesitou bastante, mas Padre Carlo acabou por decidir-se a perguntar ao Papa, com a vergonha de um adolescente diante do primeiro amor:

            - Ele o procurou novamente?

            O rosto sofrido de Pio XIII iluminou-se e ele respondeu num sorriso quase voluptuoso:

            - Sim!

            Padre Carlo tinha mil perguntas a sairem de seus lábios, mas a humildade de saber-se diante dum mistério maior que si mesmo o silenciou.

            Pio XIII conseguia adivinhar isso e, ainda com o mesmo sorriso de deleite, lhe falou assim:

            - É preciso paciência, Carlo. Ele me pediu isso: paciência e confiança. Tudo está sob Seu controle.

            - Eu tenho fé, mas...

            - Todos nós temos visto coisas terríveis, coisas que nos abalaram demais, quebraram nosso espírito. Quantas mortes! Mas a morte não é o fim! Sabíamos disso antes do Anticristo nos destruir e isso continua a ser verdade! Também sempre soubemos que somos a esposa do Cristo e que a esposa teria o mesmo destino do esposo: o aniquilamento e a morte.

            - E então, ressureição.

            - O Senhor disse-me que o grupo de Ex-Chicago foi capturado. Bispo Gerard e os seus foram submetidos à reprogramação mental.

            - Mas então...

            - Só existimos nós.

            Um frio intenso latejava no peito do padre Carlo. O que a fé lhe dizia que estava para vir dava-lhe vertigens de pavor.

            - Não tenhas medo, Carlo! Nosso esposo venceu o mundo e nós o venceremos, também.

            - Ao morrermos...

            - Exatamente.

* * * *

 

Flamínea

            O Sistema Cental abriu a porta para dar acesso a Pilates e imediatamente informou sua chegada à Flamínia que estava no quarto com seus brinquedos.

            Ela deu um meio sorriso, satisfeita por saber que ele voltara de Ex-Paris. Ela amava estar com aquele corpo que não lhe sugeria nenhuma necessidade de correção artística. Ainda assim, queria mostrar-se amuada a ele, por a ter deixado só.

Afinal, o que havia em Ex-Paris que ela não pudesse lhe oferecer em qualquer lugar?

Ela disse aos brinquedos: preparem-se para receber meu noivo, e eles adotaram, imediatamente, a posição que ela lhes havia ensinado, conforme as condições de seus corpos

Pilates notou-os antes de notar a noiva e não escondeu o desprezo e o nojo. Desprezo pelos escravos que eram e nojo pelas correções artísticas que as caprichos estéticos de Flamínia lhes impunha.

- Este chegou ontem da clínica corretiva. Ainda não está perfeitamente cicatrizado das cirurgias, por isso parece mais inchado do que é suposto.

Pilates ignorou a noiva e seu brinquedo, avançou para ela e a beijou levemente na face. Ela tentou agarrar-lhe o pênis, mas ele foi mais rápido e evitou-a.

- Como foi Ex-Paris, perguntou ela, friamente. Foi mais excitante do que eu possa ser? Dois anos lá e voltas e nem queres desfrutar-me?

- Exceto pelos robôs que preservam Ex-Paris, a cidade estava vazia. Vazia. Nossos avós a preservaram para nós e todos nós a ignoramos, como ignoramos quase tudo o que eles nos deixaram. Desfrutar-te? Eu quero e quero muito, mas... Sim aprendi coisas que me fazem...

- Houve época em que eu te bastava, Pilates. Agora, passas dois anos numa enorme cidade vazia, cheia de robôs de metal frio. Já pensaste em procurar um médico?

- Talvez eu tenha encontrado o remédio em Ex-Paris.

- E o que foi? Óleo lubrificante?

- Passado. Mais precisamente, a civilização que nossos avós destruiram.

Ela gargalhou alto.

- Nossos avós, disse ela, deram o tiro na testa duma civilização horrível, superpopulada, onde as pessoas matavam por um bife, exauriam o planeta de todas as formas... Era necessário salvar o planeta e a humanidade! Vais questionar isso?

- Ainda não decidi se questiono isso mas posso, sim, questionar o que temos agora!

- Como assim? Que queres questionar? Que vivemos num planeta lindo, sem poluição, reflorestado? Ou que não mais há fome nem doenças? Vivemos num planeta sem guerras, sem outra ditadura que a de nossos corações. É isso ruim?

- Não, não é; mas ainda assim... És realmente feliz, Flamínea?

- Como se pode ser infeliz no paraíso?

- Esse é o ponto, Flamínea: vivemos nós no paraíso? Não sentes, nem por um átimo, que te falta algo? Que todos nós vivemos somente para nós mesmos? Que ensinamos aos subumanos que eles devem viver o aquiagora e que nós mesmos acabamos acreditando nisso e estamos... estamos nos reduzindo a subumanos também?

- Nem pelo mais breve dos átimos!

- Pois eu percebi isso e esta foi a razão de eu ir à Ex-Paris. Caminhei por suas ruas desertas, meditei, vasculhei suas bibliotecas, procurando por uma pista e, após uns tres meses, creio ter achado a resposta.

- E qual foi?

- Flamínea, antes de vir ter contigo, procurei o teu pai, Príncipe do Conselho, e pedi uma audiência no conselho. O que descobri, penso que deve ser comunicado a todos, para o nosso bem!

- Deixas-me ardente de curiosidade, Pilates; tanto mais que não consigo entender uma palavra tua! Crês que somos infelizes? Crês realmente nisso?

- Aguarde um pouco mais, meu bem – e a beijou na boca, frio. Quero finalizar o discurso de minha audiência e rever meus pais. Mas te posso dizer que, pela primeira vez, na vida, sinto-me realmente bem!

- Pois preferia-te mal, quando ficavas mais comigo!

- Voltarei à noite, só para ser teu, disse ele e saiu do quarto.

 

* * * *

Lúcia

            A porta do apartamento deslizou silenciosa, ao comando de seu dedo. Porta branca, PVA.

            Lúcia entrou e seus dados já haviam chegado à Central de Segurança Doméstica; esta informou aos Supervisores de sua chegada e a casa se auto-setou para a receber.

Lúcia dos olhos negros que traduziam uma tristeza imensa em sua alma.

Sobre a mesa – PVA - ainda estava, depois de tantas semanas, a carta do Recuperatório, anunciando que sua cuidadora Vera 25451, a mulher que a recebera ainda bebé e dela cuidara enquanto estava na idade de Preparação Produtiva, já tinha data para receber sua Morte Digna.

Lúcia e Vera amavam-se - um amor que escapava aos adjetivos da língua.

Contrário ao tão comum em seus dias, Vera nunca usou Lúcia para sua satisfação. Tal idéia a repugnava. Mas Vera deu à menina uma Açáo Cuidadora que, basicamente, contrariava a Lei de Proteção e Bem-Estar para a Infância, quiçá movida por um mal-estar semelhante ao que afligia Lúcia agora. Então outra idéia veio à mente de Lúcia: que Vera tinha um mal que passara a ela, como uma doença. Porém, as palavras de que Lúcia dispunha não lhe permitiam expressar tais idéias com clareza.

Já que o que não se pode expressar não existe, ela deveria esquecer tais idéias mas elas ficavam obcessivamente presentes em sua mente. Então, uma idéia lhe ocorreu: inventar palavras. O que ela sentia precisava ser expresso

Mas Lúcia voltou para Vera e o que dela recebera: proteção, carinho, atenção, respeito. Fidelidade também – Lúcia sabia que sempre poderia contar com Vera.

E agora era o tempo de Vera ser diagnosticada com um tumor no seio, ainda mínimo, mas o Recuperatório tinha decidido dar-lhe a Morte Digna, para poupar a ela sofrimento cruel e desnecessário. De qualquer forma, faltavam apenas dois anos para a Morte Digna Regulatória de Vera.

Lúcia sabia que o Recuperatório, orgão do Governo para a saúde pública não podia estar errado. Suas preces ao Recuperatório para a recuperação de Vera 25451 não foram atendidas – o Governo, o Recuperatório, não podiam estar errados, mas isso não fazia Lúcia 15355 mais feliz.

O relógio sorriu para ela, informou-lhe que eram doze horas e trinta e oito minutos e lembrou-a de que às dezenove horas a Visita Mensal Autorizada, Raymond 7645 estaria chegando para jantarem e satisfazerem-se mutuamente.

Lúcia sorriu um sorriso triste ao pensar que talvez Raymond lhe fizesse mais bem que as pílulas de Jesus.

 

* * * *

Pio XIII

            Antes de chegarem ao grupo que estava junto ao magro cursinho d’água, o papa e o sacerdote ouviram a voz forte:

            - Mas nós não estamos seguros aqui!

            Ela emanava virilidade; seus olhos, coriscos.

            - E onde estaremos seguros, irmã Beatriz? O Governo nos persegue. Que lugar é melhor que este? Perguntou com um sorriso o Papa.

            - Sua Santidade nos pede para esperarmos a morte?

            - Ela, virá, cedo ou tarde, para todos e devemos, sim, estar preparados para ela. Todas as profecias estão cumpridas, irmã. Morrer é recebermos nosso esposo.

            Ele olhou para aquelas vinte e duas pessoas que olhavam para ele e, subitamente, penetrou o coração de todas elas.

            - Eu, mal saído dos vinte anos, estava no helicóptero com o Papa Bonifácio quando fugimos do Vaticano. Sobre a terra, tudo era fogo e fumaça. Ouvíamos cantos de vitória misturados com os tiros que disparavam contra nós. Um mar de mortos na Praça de São Pedro, onde agora se ergue uma blasfêmia em forma de monumento contra a tirania. Este foi o fruto da Grande Apostasia da Igreja.

            “Poucos de vós sois velhos como eu e talvez não vos recordeis de como ela começou.

            “Desde o início do século XX os anticristos tentaram minar a Igreja por dentro, infiltrando nela toda a sorte de corruptos sem fé, mas foi depois de Pio XII que eles sentiram-se fortes o bastante para tentarem a Igreja para que ela se filiasse a eles, fazendo do cristianismo um nome comum para todas as religiões e esvaziando a Doutrina de Deus, do pecado e da Redenção, transformando-a no culto do homem divinizado.

“No século XXI os anticristos já estavam organizados, dentro e fora da Igreja, construindo seu paraíso sem Deus. Foi nesse momento que a corrente anticrística dentro da Igreja conseguiu eleger o Papa Serafim I e eles passaram a usar a estrutura formal da Igreja para promover o Anticristo. Segundo eles, era preciso matar Jesus uma segunda vez, para o bem do povo.

            “Foi então que o Segundo Cisma do Ocidente começou. Papa Serafim foi declarado ilegítimo e os cardeais fiéis ao evangelio elegeram o Cardeal D’Abolli como Papa Miguel I.

            “Papa Miguel e os que lhe eram fiéis foram considerados radicais fanáticos pelas leis anti-cristãs proclamadas e postas a funcionar pelas nações contra todos os fiéis a Cristo. Milhões foram presos e eram tantos que as autoridades não sabiam o que fazer com eles. Foram usados em trabalho escravo, mas isso criava o problema de eles continuarem a pregar entre os outros presos e a fazer novas conversões. Então as agências tecnológicas desenvolveram os reprogramadores de memória. Não mais havia a crueldade da morte nem o risco de as pregações continuarem.

            “Entretanto, para a Igreja do Vaticano, as coisas não iam bem, pois quanto mais ela abandonava Deus, mais ela definhava.

            “Então o ilegítimo papa Alexandre IX contatou o Papa Bonifácio X, que vivia escondido, para uma conciliação, o que fez o governo mundial invadir Roma e destruir do Vaticano.

            “Papa Bonifácio foi morto e eu eleito

“E aqui estamos nós, amados, fugidos e perseguidos por todos os lados, vagando por uma terra que foi italiana, mas agora é um deserto calcinado, terra de ninguém. O que o Governo parece desconhecer é que o fim da Igreja de Cristo é o fim deste mundo.

            “Irmã Beatriz teme por si e tem razão, pois vamos todos morrer em breve, perseguidos que somos pelo Governo.

            “Preparem-se, pois, amados irmãos, com preces, jejuns e penitências, para morrer em breve. Nós somos os últimos minutos da história humana.

 

* * * *

Flamínea

            A conversa com Pilates, o jeito distante dele, incomodaram profundamente Flamínea: seu desejo por ser desejada fora frustrado e, com raiva e mágoa, dirigira-se ao escritório do pai, que a beijou safisfeito de ter a filha amada por perto.

            - Bem imaginava que te veria hoje, disse ele.

            - E bem imaginas por que, disse ela.

            - Por certo que sim! Há um certo entusiasmo em Pilates, não te parece?

            - Odeio ele!

            - Ainda não há razão para isso, Flamínea.

            - Que achas que há com ele?

            - Realmente, não estou minimamente preocupado com isso. No dia da audiência o ouviremos e só então pensarei no assunto.

            - Já foste a Ex-Paris, papai?

            - Nunca senti a mínima necessidade de sair de Eden. Como todas as cidades velhas, Ex-Paris não pode ofertar-me este luxo, este conforto magnificente. Por que eu haveria de querer menos que isso?

            - Curioso, não é? disse ela aproximando-se da enorme janela revelando uma paisagem d’estonteante beleza.

            - O que? disse ele acercando-se da filha.

            - O mundo é tão vasto, cheio de beleza, mas nunca saímos de Éden.

            - E porque sairíamos, meu bem? Entretanto, é só ires ao aeroporto, pedires uma esfera-volante e voilà, estarás onde mandaste estar!

            - Achas que ele me deseja ainda?

            - Mas é claro que sim, meu bem! Por que tanta inquietação?

            - Não gostava de perdê-lo. Tenho muito prazer com ele.

            - Meu amorzinho! Estamos em Edem! Um prazer vai, outro vem! Vivemos numa cadeia infinita de prazer e felicidade! Que sombra foi esta em teus olhos?

            - Algo que Pilates me perguntou...

            - E o que foi?

            - Algo sobre ser realmente feliz...

            - Ora! Que coisa pra ser perguntada! Nossos pais construíram o mundo perfeito! Livraram o planeta de todos os problemas que o flagelavam! Foram mais de 300 anos, a tentar, com erros e acertos, mas conseguiram. Fizeram eles a sua parte, educaram seus filhos que continuaram a obra de suas mãos e depois vieram os netos, os bisnetos e agora nós, que gozamos os frutos de seus labores. E esta é a palavra, meu bem: gozar!... És tão bela, minha filha! e seus dedos correram lascivos por ela, ambos a lembrarem como ela perdera a virgindade ainda menininha. A vida foi feita para ser desfrutada, meu bem!

            - E a tens desfrutado com o que? disse ela, desviando-se do pai, numa pose coquete.

            - Não sei, disse ele,pretensioso. Cada dia é um rostinho novo...

            - Achas que Pilates vai ficar muito tempo comigo?

            - Se o amares, meu bem, estarás perdida. Aproveitem-se mutuamente; este é o segredo da felicidade conjugal. Gozem o dia!

            Ela continuava sem saber resistir ao seu pai e despiu-se para que ele a aproveitasse.

 

* * * *

Lúcia

            Lúcia havia encomendado Soylent Amarelo, ainda o melhor sustenedor que o dinheiro podia comprar. Possuia a mais completa combinação de nutrientes necessários ao bom funcionamento do corpo, com um sabor delicioso, mas para o qual eles não tinham palavras – afinal, eles jamais viram uma laranja.

Era parte da boa etiqueta ser superlativo ao receber a visita permitida e ela estava satisteita de poder ostentar tamanho luxo: vinte rodelas macias de sabor e cor amarelos.

            O sustenedor havia sido entregue pelo robô à hora combinada e Raymond, poucos minutos depois, apertava a campainha.

            O garfo de Lúcia brincava com o sustenedor, desatento como ela. Raymond era bonito, charmoso e rico, mas não conseguia prender-lhe a atenção enquanto ele falava sobre seus méritos e carreira de sucesso. A voz dele era melíflua e seus gestos lânguidos acompanham cada palavra. Ela percebeu que ele estava com os quadris mais largos que da última vez em que se viram.

            Vera também tivera uma carreira de sucesso, mas isso agora não significava nada. Amanhã ela estaria morta para não sofrer com uma doença intolerável, dois anos antes de sua morte regulamentar.

            - Soylent Amarelo perfeito! Sente harmonia nutricional em comê-lo?

            - Ñ sou tão sensível, mas sinto qualidade sua em suave e lisa pasta.

            - Lembro ciclo passado, havia Soylent Roxo. Pensava ser superado nunca. Governo dar Soylent Excelcior ciclo q vem, sabor forte. Bom Governo a cada ciclo melhor e dá + e melhor coisas!

            - Sim. Penso como coisas ser antes do reino de deus vir.

            - Ñ certo. Tempo mau, ñ função e ordem. Todos vivendo pecado. Tu cristã?

            - Sim.

            - Gosto ñ triste em ti. Vida boa temos! Soylent Amarelo! Relógio teu modelo K8-65b. Muito bom! Ñ poder distinguir d pessoa. Usa função d satisfação?

            - Sim.

            - Ele ejacula? Forte?

            - Sim.

            - Meu relógio modelo M25, versão feminina. Muito útil. Trocar ele modelo BCC18-híbrido. BCC18-híbrido lançado próximo mês. Todos querem ele; grande sucesso. Felizes podermos ter tanto, sim?

- Sim, nós ter muito + q necessário; o q nós ter nos ocupam tanto q não nós olhar pra nós, ñ?

- Do que falar?

- Saber ñ. Algo em eu q não saber falar. Eu querer, ter fome e ter sede mas não saber de q.

- Tu ter comida e bebida!

- Não isso! Outra coisa.

- Tu ter parasita?

- Ñ!

- Vera ter Morte Digna?

- Amanhã.

- Tu ver ela?

- Ñ.

Lúcia sentia vergonha de seus sentimentos. Realmente, se ela não hospedava um parasita, de onde vinha este angustiante sentimento de que algo lhe faltava? De que nada fazia sentido? Raymond estava certo, Jesus estava certo: aquiagora. O Governo fazia tudo bom e perfeito. Viver aquiagora...

            ...mas ainda assim...

- Tu ter + condenados, ñ? inquiriu ele, procurando mudar o rumo da conversa.

- Sim. 25. Fazer bom trabalho; mau q sistema ser ineficiente e Governo decidir Morte Digna para todos criminosos novos, próximo ciclo.

- Ñ funcionar implante d memória?

- Ñ. Ele ter que matar memória e por outra para condenado ser cidadão útil para Governo. Mas implante não matar toda memória, 2 em conflito criar coisa ruim e automorte. Triste.

- Criminoso mau. Morte Digna não mau.

- Tu falar com criminoso?

- Não! Isso muito mau!

- Últimos vir d Ex-Chicago. Líder junto chamar Bispo.

- Tu falar com ele?

- Ñ. Proibido ser. Ele falar com eu.

- Q?

- “Eu te perdôo!”, disse ela num sorriso torto. Q perdoar ser? Eu fazer eles cidadãos úteis! Nada melhor que isso! Q perdoar ser?

Raymond comeu outro Soylent Amarelo, em silêncio para melhor aproveitá-lo e depois disse: isso teu problema?

- Eu... Raymond, q criminoso dizer ñ sentido. O que ele saber? O que fazer ele sair do Governo? Quem ser Bispo?

Ele olhava para ela fixo, surpreso e incrédulo.

- Governo ser tudo, nós saber tudo sobre governo. Governo bom e Bispo ñ, algo defeito; Bispo parecer ñ mau!

- Eu pensar, Lúcia 15355, q precisar terminar fala agora ou preciso eu relatar para Supervisores o q tu falar. Não engano: só Governo bom!!

 

* * * *

Pio XIII

            No escuro da noite caída sobre a terra calcinada, quebrado apenas pela pouca chama dum foguinho de chão, uma figura ajoelhou-se aos pés de outra.

            - Perdoe-me, padre, pois pequei.

            Ele passou seu braço pelos ombros dela, acolhendo-a com amor.

            - Fale, minha filha.

            - Tenho medo, muito medo mesmo; peco por não confiar mais em Deus. Por causa disso cheguei a vos desafiar hoje à tarde!

            - O Verbo Eterno também teve seu Getsêmani, não teve? Também ele pediu para não ser morto, não foi? E que benção é que estejas agora, arrependida e contrita, pois isso mostra que Ele te está a ajudar neste momento. Ele conheceu a tua agonia, o teu medo, e agora te dá o Seu apoio. Ele que te amou desde o princípio, que morreu por ti aquela morte horrenda, como poderia abandonar-te e deixar-te cair no teu último, no teu mais precioso e decisivo momento? Aqui nesta terra, que tem por seu Príncipe o Demônio, onde ou quando podemos ter paz? Ou ser felizes? Tudo o que o Demônio nos dá é mentira e morte; a mentira como estratégia para nos fazer morrer. Vamos morrer, sim, mas por amor a Jesus e grande será nosso prêmio no Céu! Quanto a desafiar-me, que bom que o fizeste! Infeliz de mim se todos me abaixam a cabeça e dizem somente “sim, senhor”, “sim, senhor”! Quantas vezes São Pedro precisou ser reprendido e corrigido? Muitas mais preciso eu, que sou muito menos que ele.

            “Querida filha, não estamos sós. Nosso esposo está conosco. Se teu coração se angustia por medo da morte, creia-me que o do Demônio está muito mais angustiado, pois ele já percebe o fracasso do seu plano de criar um mundo sem Deus na terra. Porém, maior que nossas agonias todas é a alegria de nosso esposo que já se prepara para retornar a este mundo e tomar o que é seu. E somente morrendo estaremos vivos para ver a sua glória!

            “Diz-me agora tua contrição.”

            - Meu Deus, porque sois infinitamente bom eu Vos amo de todo o coração, pesa-me de Vos ter ofendido e, com o auxílio da Vossa divina graça, proponho firmemente emendar-me e nunca mais Vos tornar a ofender. Peço e espero o perdão dos meus pecados pela Vossa infinita misericórdia. Amém.

            - Deus, Pai de misericórdia, que, pela Morte e Ressurreição de seu Filho, reconciliou o mundo consigo e enviou o Espírito Santo para a remissão dos pecados, te conceda, pelo Ministério da Igreja, o perdão e a paz. E eu te absolvo dos teus pecados, em nome do Pai e do Filho e do Espirito Santo. Amém. Agora vá, que teremos um longo amanhã pela frente. Como penitência, mergulhe fundo na misericórdia de nosso Deus e reze pelos pecadores que não conseguem rezar por si próprios, para que sejam salvos, também. Vai em paz e que o Senhor nosso Deus te abençoe!

            - Obrigada e boa noite, Santidade!

            No escuro da noite caída sobre a terra calcinada, quebrado apenas pela pouca chama dum foguinho de chão, ela ergueu-se e afastou-se para orar entre lágrimas.

 

* * * *

Flamínea

            A lua cheia prateava o mundo e a brisa fresca cheia dos cheiros do jardim entrava pela porta aberta da varanda, movia as belas cortinas brancas e entrava no quarto indo para o leito de Flamínea.

            Pilates dormia ao seu lado, nu, banhado de luar. O corpo dele, massa de músculos que ondulavam ao movimento de sua respiração. Era como um mar tranquilo.

            Cautelosamente, ela levantou-se e foi para a varanda.

            O retorno de Pilates não fora com ela esperava. Ele estava mudado. Mas o pior era essa inquietação que ele despertara nela.

            Súbita, inexplicavelmente, ela não era mais feliz como usara ser.

            ...Não sentes, nem por um átimo, que te falta algo?

Mas o que lhe poderia estar faltando? Nada lhe faltava, nem vidas para dispôr. Era filha do homem mais poderoso de Éden e não tinha limites de espécie alguma! Ela e seus pares possuiam o mundo inteiro – que poderia faltar a quem tudo possui?

Voltou-se para Pilates que dormia banhado de luar, massa de músculos que ondulavam como um mar tranquilo.

Mesmo flácido, o pênis dele era magníco.

A visão do noivo nu era tudo o que ela precisava. Um sorriso nasceu-lhe nas faces belas e, novamente centrada em si, Flamínea enterrou suas inquietações, para sempre.

 

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