Thursday, 8 February 2024

Thursday's Serial: "Aurora" by José Thiesen (in Portuguese) - II

 

15º dia do mês da Vitória

Lúcia

            Lúcia acordou com o toque suave do relógio em seu ombro que, sorrindo, lhe disse: Sr. Raymond 7645 saiu 5 da manhã.

- Eu saber.

- Dia bom. Aqui comprimidos Jesus prescreveu; engula, por favor.

- Sim (mas ela fingiu tragá-los).

- Eu dever informar Supervisores conversa ter ontem, mas decidi ñ. Eles saber seus conflitos.

- Obrigada. Parecer má para Raymond, parecer má para ti.

- Eu ñ julgar. Pessoas ñ fácil.

- Tu melhor par q Raymond.

- Obrigado, sra.

Lúcia levantou-se e foi ao banho.

Desde que acordara-se com os movimentos de Raymond, manhã cedo, não mais dormira – e estava procupada. O aviso de Raymond fora claro, assim como o do relógio. Ela devia guardar para si suas emoções, suas percepções (melhor seria não te-las) ou os Supervisores, cedo ou tarde, a consideriam fora da lei – e lhe decretariam a Morte Digna.

 

Vera

 

Os fora-da-lei lhe perdoavam – mas o que lhe queriam dizer com isso? Não podia ser coisa ruim pois fôra dito com resignada benevolência, muito mais honesta que a benevolência de Jesus no reconciliatório.

Vera seria morta hoje. Certo, ela tinha uma doença que a faria sofrer terrivelmente, mas ainda assim, alguma coisa nela se revoltava contra sua morte. Porque matar? Mas ela não tinha palavras para descrever seus sentimentos, sua repulsa pela Morte, mais que repulsa pela morte de Vera.

Como entender o que se não pode descrever?

Lúcia devia estar feliz pela decisão do Recuperatório, pelo fato de Vera finalmente poder ver a face de deus, mas...

Finalmente, algo brilhou por mum momento em sua mente, algo táo íntimo, secreto, tão escondido que ela não percebia mais que lampejos deste sentimento. Como estar em completa escuridão e perceber que se não está só.

Eu vos posso dizer que era o impulso de ser mãe, mas Lúcia não sabia o que era “mãe”, pois toda a humanidade nascia em unidades de clonagem. Mas creiam-me quando vos digo: o sentimento de que algo vivo devia ser gerado nela, sair dela, lhe consumia os nervos.

Mas fosse como fosse, ela precisava calar tudo isso. O relógio tinha a obrigação de ver, registrar e transmitir aos Supervisores tudo o que acontecia em sua casa – e ela não queria ser considerada fora da lei e receber a Morte Digna.

Quando saiu do banho, vestida, fresca e perfumada, o relógio passou-lhe a agenda do dia: rigorosamente nada para fazer. Nenhum condenado para reprogramar. Assim, ela poderia passar o dia em casa dedicando-se à sua atividade favorita: assistir à programação pornográfica da televisão estatal.

 

* * * *

Pio XIII

            Pio XIII sabia que a época de reinar havia acabado. Já não mais dava ordens, mas pedia que todos se recolhessem ao seu nada para amar a Deus, livres de toda amarra.

            Lembrava-se da frase famosa de Milton, que em seu poema escrevera que Satã preferia ser rei no Inferno a escravo no Paraíso. Fazia sentido, mas se o que ele experimentava diante de seu Deus era uma antevisão da escravidão no Paraíso, então ele não desejava nada mais que ela para si e os outros.

            Jesus lhe dissera quando e como eles seriam mortos e o que viria depois; por isso, quando o sol nasceu e o soldado Mathias avisou-o de que saía a liderar um grupo para obter algum alimento, Pio XIII abençoou-o e disse-lhe:

            - Nada para mim, que jejuarei. Temos pouco tempo e cada minuto conta; jejuarei e orarei por aqueles que vivem sem Deus – e afastou-se deles.

            As vinte e uma pessoas que o acompanhavam, olharam-se. Silenciosa dor e resignação em seus olhos. Sabiam que o tempo agora era maior que eles. Em silêncio, acercaram-se do Papa e prostaram-se com ele.

            Mathias ficou em pé, imóvel.

Jochum também, embora dividido entre Mathias e o Papa.

Mathias tinha vinte e tres anos, os últimos dois anos e quatro meses vivendo como guarda suíço. Sua função era proteger o Papa, morrendo por ele se preciso fosse.

            Jochum era o outro soldado remanescente, com pouco menos de um ano de serviço na força, o que fazia de Mathias a autoridade maior da Guarda. Jochum não fazia mais que obedecer-lhe, mas era óbvio que as profundas privações porque vinham passando o debilitava mais e mais.

            - Jochum!

            - Sim, Oberst!

            - Fique aqui e cumpra seu papel. Vou tentar achar algum alimento.

            - Sim, Oberst!

            - Vou contigo, Mathias.

            Mathias hesitou, antes de dizer: melhor não, padre Luigi.

            - por favor... murmurou o padre.

            - Não é bom que fiquemos sozinhos novamente.

            - por favor...

            - Não vê em que estamos metidos? Não percebeu ainda que a Igreja não é “coisa-de-padre”? Não podemos deixar que ecoem em nós os princípios do Governo!

             - Eu tenho medos e o pior é o medo de te perder!

            - Todos nós estamos com medo. O Papa está certo: é melhor jejuarmos. Venha e junte-se aos que também tem medo.

            Mathias tomou lugar atrás de Pio XIII, que estava prostrado com a face no pó da terra. Jochum olhou para Mathias e tentou sorrir-lhe, produzindo um esgar dolorido (sua visão era turva).

            Luigi deixou-se cair de joelhos, onde estava, em prantos. Tinha tanto medo, tanto medo! – e nada que o consolasse.

 

* * * *

Flamínea

            Pilates sabia que não podia errar diante do Conselho. Precisava ser claro, direto, lógico, ao ponto de ser impossível que se levantasse qualquer objeção ao que tinha dizer. Mas não sabia como explicar o homem na cruz.

            Tudo começara com uma súbita vontade de visitar os museus de Edem. Visita após visita, ele começou a perceber que nada se produzia de inovador em Edem. Nas épocas primitivas, apesar de cheias de pecado e corrupção, parecia que todos tinham algo para acrescentar e melhorar sua sociedade, em qualquer área da atividade humana.

            Então disseram-lhe que em Edem nada havia para melhorar e desenvolver. Se Edem estava pronto, o mundo estava pronto e nada havia para acrescentar a isso.

            Pilates tentou aceitar esta explicação, mas isso não o aquietou. Algo em seu íntimo não se conformava com uma perfeição já atingida. Lentamente, ele percebeu que desejava, ele mesmo, melhorar e desenvolver Edem. Como? Por que? Ele sentia como se o espírito dos homens do passado o possuísse e então se decidira a deixar Edem e visitar uma das ex-cidades.

            Os robôs que serviam nos museus lhe sugeriram Ex-Paris e para lá se foi ele.

            As descobertas que fez em Ex-Paris deram-lhe novo influxo intelectual. Os robots trouxeram-lhe livros feitos de papel! Podia alguém imaginar que tal coisa existisse? Pilates sorria ao lembrar do toque do papel, do ruído que fazia quando virava uma página, do odor que emanava deles e do prazer que isso lhe dava.

Ele vira obras d’arte que lhe revelavam uma beleza que jamais entrara em Edem.

Mais conhecimento ele adquiria, mais claramente ele percebia que a eterna busca por auto-satisfação conduzira seu povo a uma decadência cultural absoluta.

            Através de seu aprendizado, voltara a milênios antes de sua era e descobrira que no tempo em que a Pérfida Doutrina era a cultura dominante, a cultura florescera como nunca se vira antes ou depois que ela fora extinta.

Pilates precisava que os robots explicassem para ele o sentido de muitas palavras, o contexto de muitos eventos da Civilização Anterior.

            Os livros antigos que os robôs lhe leram falavam de “amor”, algo de difícil entendimento, pareceia que a palavra designava uma vasta gama de emoções, mas em sua forma mais elevada, algo que podia levar uma pessoa a morrer por outra, por “amor” a outra. Jamais ouvira falar de cousa assim.

Por certo ele mataria sem culpa a quem precisasse, não por prazer, mas em caso de necessidade, mas jamais “se” mataria por alguém.

            Sempre agradecia ao deus protetor que lhe dera um belo corpo, apto a suscitar toda a sorte de desejos a quem estivesse perto de si e sempre agradecia a seus pais que desde tenra infância lhe ensinaram a satisfazer toda a sorte de desejos de quem estivesse perto de si e, o mais importante, como usar isso a seu favor.

            Em Ex-Paris, os robots explicaram-lhe como as Famílias uniram-se para salvaguardarem a si e seus descendentes, eliminando tudo o que era obstáculo ao seu domínio. Financiando grupos que pressionavam governos e financiando governos para cederem a tais pressões, dando suporte a ideologias cujo objetivo primeiro era impedir as pessoas de terem filhos, impedirem que pessoas nascessem, pois as Famílias achavam que a redução populacional era a chave para elas implementarem seu reino de paz, amor e real prosperidade para o mundo.

No correr do século XX começaram a materializar seu projeto de destruição de seu maior opositor, a Pérfida Congregação e sua Pérfida Doutrina. Em finais do século XXI isso foi conseguido plenamente, através de sua abolição e criminalização.

Sem a Pérfida Congregação as Famílias assinaram o Pacto de Moscou, onde todas as nações comprometeram-se a matar todas as pessoas indesejáveis aos governos e às Famílias: velhos, doentes, crianças, rebeldes.

Ninguém com mais de 35 anos podia viver pois, graças às Famílias e ao fim da Pérfida Doutrina, o único valor que regia o mundo era o econômico. Todos era vistos e se viam pelo quanto valiam aos olhos dos governos: se onerosos, deviam morrer.

Foi assim que as famílias conseguiram o desejado controle populacional: todos morriam mas ninguém nascia. Quando o número de humanos começou a ficar insuficiente para sustentar seu reinado, as Famílias começaram a usar a clonagem para substituir os mortos.

Foi um processo lento, durou cerca de 300 anos, fundado em manipulação dos governos e engenharia cultural, mas as Famílias não tinham pressa: as Famílias são eternas.

“Glória eterna às Famílias que ordenaram o mundo e o fizeram do jeito que ele sempre deveria ter sido”, dissera o último robot que Pilates ouvira no informatório.

            Mas Pilates estava inquieto: se os seus antepassados tinham criatividade, poder volitivo para ordenar o mundo, porque seus descendentes estagnaram em perene autoindulgência?

            E mais importante: o que era “amor”?

 

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