17º dia do mês da Vitória
Lúcia
Outro dia e novamente Lúcia foi informada pelo relógio que não havia trabalho para ela naquele dia e que ela poderia ficar em casa - mas ela, subitamente atingida pelo pensamento de que o governo lhe poderia dar a Morte Digna por falta de ocupação para ela, decidiu que iria para a rua.
- Nada para fazer em rua, disse o relógio.
- Eu caminhar, disse ela evitando falar de mais.
- Senhora ter esteira ali.
- Eu quer sair de casa..
- Governo dar casa boa; sem trabalho não precisa rua.
- Humanos muito complicados. Quero rua.
O relógio olhou-a em silêncio.
Lúcia percebeu que vivia numa ratoeira: o Governo dava a todos tudo o que precisassem para somente saírem de casa se absolutamente necessário.
Porque alguém haveria de sair de casa, senão para trabalhar ou dar prazer a um concidadão?
O relógio olhava para ela, paciente.
- Tu certo, disse ela. Eu ficar.
Deixou-se cair no sofá e, mirando o relógio nos olhos, disse-lhe: Qual condição para ser fora da lei?
- Ser contra o Governo, contra o reino de deus.
- Porque ser contra o reino de deus?
- Algumas pessoas corrompidas pelo demônio. Tu querer falar com Jesus?
- Ñ. Eu querer falar contigo. Onde estar os fora da lei?
- Em todo o lugar.
- Inclusive aqui-cidade?
- Em todo o lugar.
- Onde ir os fora da lei que recupero?
- Ser encaminhados a postos de trabalho.
- Porque nunca eu ver Governo?
- Os membro do Governo viver ocupados demais para ser visto.
- Eu quer falar com Governo. Como fazer isso?
O relógio faz uma pausa.
- Informação restrita.
- Mas ela existir?
- Informação restrita.
- Porque tu ñ dar informação q existe?
- Informação restrita.
Com a terceira resposta, o relógio enviou um alerta vermelho aos Supervisores mais próximos, para que viessem à casa de Lúcia: ela era um perigo.
* * * *
Pio XIII
Na manhã seguinte, não havia mais morangos. Dois do grupo haviam salvo alguns, mas os morangos salvos amanheceram mofados.
O Papa sorriu e disse aos previdentes: maná! Lembrem do maná!
Mathias olhou à volta e não viu Luigi.
- Padre Luigi! gritou ele e todos ficaram alertas, procurando por ele.
Procuraram por ele por longo tempo, mas em vão. Mathias apresentou-se diante do Papa e anunciou-lhe formalmente o insucesso das buscas.
O rosto do velho revelava paciente resignação.
- A Igreja, disse ele, tem tido vários judas ao longo de sua história. Do seu comecinho até o último momento. Gostaria de confessar-se, Oberst? Não temos muito tempo mais.
- Confessar, Santidade? Eu não tenho tido...
- Sou o Papa falando ao seu Oberst, mas também o papai falando ao seu Mathias. Há um pecado nunca confessado em tua alma. Talvez Luigi morra com ele e por causa dele vá ao Inferno. Não seja assim contigo.
- Vossa Santidade o sabe!?
- Soube ontem. Venha. É tempo de o filho pródigo voltar à casa de seu pai.
- Eu realmente corro o risco de ir ao Inferno?...
- Também há algo de meu interesse. Padre Luigi desertou e eu preciso de um padre, agora. Gosto muito de Jochum, de sua juventude ebuliente e sincera, mas meu Oberst é mais maduro; sábio, talvez. Preciso de um padre, e ainda mais de um bispo. Aceitas?
- Santidade eu nunca... Eu sou um soldado, eu...
- Não posso te dar uma semana para pensares. Olhe para eles! Se morro agora, serão ovelhas sem pastor. Há coisas que somente um bispo pode fazer.
- Mas e os outros padres?
- Sim, mas como disse, não há outro bispo aqui além de mim. Sabes, por séculos a Igreja vem tendo bispos diplomatas. Agora é tempo de um bispo guerreiro.
* * * *
Flamínea
O pai de Flamínia tinha um corpo obeso ams ainda guardava a agilidade e fluidez de movimentos próprio aos bons dançarinos. O final do desfrute era dos seus moemntos favoritos na vida. Ele deixava seu corpo grande esparramar-se na cama, para melhor aproveitar o momento, quase com pena de jovens c omo Pilates que já se levantara e dirigia-se ao duche.
- Tua audiência foi marcada para amanhã.
Pilates não sentiu-se feliz, mas respondeu: Obrigado, Senhor.
- Deves ter mesmo algo importante para dizer-nos.
- Confesso ao Senhor que tenho medo dessa audiência mas, sim, penso que é importante relatar o que descobri. É algo que se relaciona com nosso futuro.
- Oh! Isso parece grave. (A voz dele era quase brincalhona, como uma criança com seu brinquedo.) Flamínia também está preocupada contigo. Sempre foste brilhante, disciplinado, obediente e... aberto ao novo. Tudo isso estava aqui em minha cama. Mas nunca imaginei que tais coisas te levassem para alem do desfrute sem amarras morais. Foste a Ex-Paris, aprendestes coisas novas e hoje, agora, foste brilhante, disciplinado, obediente, aberto ao novo, mas... como direi...Contido?
- Nosso horizonte é o gozo pessoal, Senhor. Sem limites. Mas tudo tem um limite, não é?
- A ciência de nossos pais acabou com quase todos.
- Perdoe-me, Senhor, mas a ciência de nossos pais tornou-se o nosso limite. E se para além dele ainda existir mais? Para o que não estamos olhando? A ciência de nossos pais nos controla e não saímos de Edem.
Enrolado numa toalha, Pilates deixou a casa de banho e acercou-se da parede de vidro e apontou para a imensa floresta que crescia intocada por gerações e que cercava Edem como um oceano sem fim: a ciência de nossos pais não controla a vida lá fora. Lá, estamos à mercê da selva. Mas quem organiza a selva, uma vez que sabemos que ela não é caótica?
- Meu belo menino, disse o outro num sorriso todo amigável, “lá”, não existe. Só Edem conta, só Edem importa, só Edem existe. Teus olhos mostram um mundo que não existe mais, que foi superado. Esqueça o que vês e ponhas isso na reta inteligência. Se dás atenção à selva, vais perder-te nela e chegarás a uma triste conclusão.
- Sobre quem impõe o limite. Há alguém que o faz, não?
- Vou aguardar ansioso o teu discurso de amanhã no Conselho. Tenho certeza de que será uma experiência soberba para todos nós...
E com um gesto comandou que Pilates saísse de seu quarto.
Pilates obedeceu silêncioso, sentido como algo gelado aninhado em seu estômago e no corredor de soberba beleza que ele conhecia tão bem, a caminho de seus aposentos, Pilates sentiu pela primeira vez uma desconfortável vergonha por sua nudez.
* * * *
Lúcia
- Onde ficar Governo?
- Informação restrita.
- Existir Governo?
- Se ñ existisse ele ñ dar o que tens. Tu nascer porque Governo decretar entidade mulher dever nascer com nome de Lúcia.
- Governo ser feito de entes mulher ou homem?
- Informação restrita.
- Quem ser deus?
- Deus ser supremo q criar tudo e q destinar mulher e homem para vida eterna em seu reino.
- Porque mulher e homem morrer?
- Morte ser passagem para o reino de deus.
- Que significar “perdoar”?
- Palavra não ser.
- Q coisa tu esconder?
- Informação restrita.
Então a porta do apartamento se abriu e quatro Supervisores informaram a Lúcia que a detinham para falar-lhe de deus.
Lúcia sabia da inutilidade de reagir e não queria reagir. Deliberadamente ela falara e falara para tentar descobrir o que a sufocava. Finalmente ela descobrira que a não existência de palavras não implicava a inexistência do não nomeado.
Lúcia controlou seu medo e os acompanhou.
O mundo não mais a veria, mas a morte dela seria escondida de todos.
Todas os que conheceram Lúcia 15355 foram informadas de sua transfência para a cidade de Alfa-Iorque, no quadrante Norte Americano do reino de deus.
Sophie 25486 foi promovida ao cargo que era de Lúcia 15355 e Jorge 548622 ao cargo de Sofie 25486.
A entidade mulher Lúcia 15356 havia sido gerada com sucesso no Posto Renovador e em nove meses sairia do nutriciador uterino, uma fora da lei reducada por Lúcia chamada Astrid R-211. Astrid já estava com esquizofrenia-paranóide bem desenvolvida e por isso era mantida amarrada numa cama para evitar danos a si e aos 8 bebés que já tinham sido gerados nela desde a manifestação da doença.
A Morte Digna de Astrid já estava marcada para em seguida ao nascimento de Lúcia 15356.
Raymond estava em seu apartamento já a 26 dias, pois não havia trabalho para ele. Ficava a jogar “A Última Morte”, jogo que o fascinava. A edição deste ano era incrivelmente superior à do ano passado e a do próximo ano, segundo o que o Governo anunciava, iria ser ainda mais perfeita!
Ele jogava maquinalmente a sufocar no fundo da mente a idéia de que lhe poderia ser determinada a Morte Digna por causa de sua longa inatividade.
“A Última Morte” fazia com que ele se sentisse homem – o homem que jamais fora ou seria. Quando ele vestia os óculos multidimensionais e começava a ação, ele se liberava. Isso era melhor que seu trabalho, que satisfazer-se com alguém...
Lúcia 15355
Concentra-te no jogo, antes que chores.
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