Tuesday, 18 February 2020

Tuesday's Serial: “Mistério do Natal” by Coelho Netto (in Portuguese) - the end


CAPÍTULO XX: DOR         
Tomando a urna, ao clarear d’alva, quando o velho pastor saia com o rebanho, José acompanhou-o para que ele o guiasse à fonte.
Logo que os dois homens desapareceram, as ervas que ourelavam a caverna cresceram prodigiosamente, emaranhando-se em tapigo que encobriu a entrada.
A Virgem, de instante a instante, abria os olhos e, soerguendo-se, ficava em êxtase contemplando o filho,cujo hálito débil cheirava docemente a leite. Posto que apenas tivesse horas, já ela lhe havia descoberto todos os encantos e se lho arrebatassem dos braços, confundindo-o com mil crianças, reconhecê-lo-ia sem trabalho, tanto o tinha nos olhos e no coração gravado.
Olhava-o quando o sentiu mover-se, contorcendo-se. Num tremor de sobressalto enrijou os bracinhos, bateu as palhas com os pés rosados e rompeu num choro forte que repercutia no interior como se as pedras chorassem com ele, comovidas.
Tomou-o Maria ao colo, acalentando-o ao calor do seio. Falava-lhe com ternura, interrogava-o, chamava-o e, sem poder aliviá-lo, pôs-se a chorar aflita e, sobre a divina face as suas lágrimas caiam gota a gota como o orvalho cai das folhas sacudidas pelo vento.
Ai! dela, como se julgava culpada e infeliz vendo sofrer o pequenino amor, tão novo, tão inocente, tão sem culpa e já suportando as torturas herdadas da carne.
Começava a divindade a visitar o sofrimento; a peregrinação de Deus através da agonia anunciava-se pelo primeiro choro.
Ele havia de conhecer todas as dores, todas as angústias para poder julgá-las aliviando o homem, cuja redenção trazia.
Teatro, mal pousado na vida, já estrebuchava doridamente. E começava apenas – era a iniciação.
Outros maiores tormentos formavam a falange suplicante, a alameda trágica da existência, onde a alegria é como o nimbo solar que passa dificilmente por entre as frondes compactas.
Que fazer? Deu-lhe o peito. Pôs-se o infante a mamar vagindo, estremecendo a ela, relanceando em torno dos olhos úmidos e aflitos, implorava o mistério.
Tudo era silêncio em volta, ninguém que a socorresse. E os anjos? Já haviam regressado ao céu.
O infante ficara entregue ao seu piedoso voto. Deus entrara desacompanhado no mundo, ser como os demais seres, homem como os outros homens, integrando-se na humanidade.
Só lhe valeram os carinhos de Maria; o calor do colo, o enlace amoroso dos braços, os beijos repetidos foram, pouco a pouco, aliviando-o e, de novo, adormeceu tranqüilo, não mais sobre a palha loura, mas aconchegado ao seio, ninado pelas palpitações do coração materno.


CAPÍTULO XXI: RECEIO  
Fino raio de sol insinuando-se na caverna pousou na palha abrindo um aro de ouro em torno da cabeça do infante adormecido.
Todas as aves chilreavam, gárrulas moças passavam na estrada. Às vezes eram récuas de dromedários desfilando em ruidoso atropelo.
Maria prestava atenção ao rumor, receando pelo filho. Tomou-o muito ao seio e, quase de rastros, aprofundou-se na sombra escondendo o seu tesouro com amorosa avareza.
Tão lindo! quem não o desejaria! E se um daqueles homens, descobrindo-o, investisse para arrebatá-lo, quem o defenderia?
Na treva ficava a coberto de todos os olhares.
No fundo da caverna lentejava tristemente uma mina e a cada gota do estilicídio respondia um som lacrimoso.
O ar era frio e úmido, as paredes luziam lutulentas e, fora, o sol brilhava, alegre e tépido, em fitas, em nimbos de ouro, lampejando nas arestas agudas da abóbada escabrosa.
Quando José reapareceu, a erva da entrada subitamente esmarriu. Vendo deserta a palha estacou, olhando espantado com apreensões de desgraça.
Que seria feito deles? Caminhou alguns passos. O coração batia-lhe, tremia-lhe a urna ao ombro. Maria, reconhecendo-o, falou do seu esconderijo:
- Aqui, meu senhor. O patriarca adiantou-se e, sentindo a friagem do sítio, ouvindo o triste gotejar na laje, perguntou:
- Por que buscaste tão obscura jazida onde o ar regela e a luz não chega? Lá fora há um calor macio e sente-se o aroma da ervas vivas, ouvem-se as vozes alegres. Aqui há o silêncio e a melancólica espessidão dos túmulos.
- Eu estava só, meu senhor e o coração, dantes tão animoso, é agora tão tímido que eu viveria, de boa mente, num subterrâneo só para que os olhos maus não fitassem meu filho nem o invejassem adoentando-o.
Não sei que voz me fala dentro do coração pedindo-me que o defenda. Ouço-a a todo o instante.
Dizem-me os anjos que ele é Deus. Não me passaram despercebidos os prodígios da noite: tudo vi, tudo ouvi, mas minh’alma ordena-me que o resguarde, que não o perca de vista, que sempre o traga acautelado, talvez porque é pequeno e fraco.
Não sei se peco com a presunção de defender quem é onipotente, mas como hei de lutar contra mim?
- Mas se o céu nos diz e prova que ele é o filho de Deus, por que hás de recear os homens?
- É o coração que receia.
- E entre o que diz o coração e o que afirmam os anjos hesitas, Maria?
- Senhor, os anjos falam pelo céu, o coração fala pelo meu amor. Se Deus acha-me rebelde, curvo-me ao seu castigo.
E, humildemente, ajoelhou-se ante o berço.
Jesus, abrindo os olhos claros, profundos, fitou-os nela e, como se quisesse responder, sorriu.


CAPÍTULO XXII: O SONO              
Maria mal umedeceu os lábios à borda do tarro de leite de ovelha que o pastor ordenhara antes de partir. Cuidados traziam-na apreensiva. Se o filho estremecia sobressaltava-lhe o coração, se o via imóvel, dormindo, temia que houvesse morrido e logo, ansiosamente, afagando-o, chamando-o, despertava-o.
- Deixa-o dormir, disse-lhe o patriarca, o sono é necessário à vida, é a sombra em que a alma repousa.
O espírito das crianças refugia-se no sono como o dos velhinhos – o primeiro porque dele saiu e ainda o tem por ninho; o segundo porque o procura como abrigo. Não o despertes, deixa-o dormir.
- É que me parece estar morto. Não faz o mais leve movimento e, quando ele assim fica, meu coração pára retransido.
- É a serenidade. Só o sono dos maus transmite ao corpo a convulsão do pesadelo.
O sono é uma visita à morte. Os inocentes fazem-na sorrindo, os pecadores fazem-na espavoridos.
Não receies que ele passe tão cedo à eternidade de onde veio. Ainda que não trouxesse a missão que o fez baixar ao mundo, fosse ele tão da terra como o filho da zagala dos montes, não o deverias tirar do repouso.
Não desenterras a semente por não a veres à flor do solo, deixas que ela venha a flux e rebente, abra o renovo e cresça.
O sonho é uma incubação. Por que não sonha? porque não tem impressões. O sonho é como um reflexo em que há eco, é a reprodução confusa da vida com a repercussão indistinta das vozes e dos ruídos.
Há quem veja presságios no sonho como o nômade vê realidades na miragem.
Com que há de sonhar quem não tem consciência da vida? Deixa-o dormir.
É a noite que a floresta cresce e a criança é como a árvore.
O luar é manso, é uma luz silenciosa de vigília, uma túnica diáfana sobre a treva – não desperta. As estrelas são meigas porque a noite deve ser tranqüila para que a natureza descanse. Deixa-o dormir.
Conserva-te imóvel e calada, não perturbes a vida misteriosa. Demais, ele é o Eterno. A morte passa por ele como a lâmina de uma espada por um raio de sol. Deixa-o dormir.
em sei que o egoísmo das mães chega a insurgir-se contra as leis de Deus; não te insurjas tu, que o geraste. Ele precisa rever a humanidade entrando pela vida e gozando, saindo, talvez, pela morte com sofrimento.
- Meu senhor! Exclamou a Virgem estendendo as mãos, comovida.
- São palavras, Maria. Ai! de mim, quem sou eu para pronunciar oráculos sobre aquele que tem o destino da vida em sua mão direita!
São palavras que digo. Deixa-o dormir.


CAPÍTULO XXIII: PALAVRAS DE MARIA  
Como eu agora compreendo que se viva escravizada a um sorriso!
Quando tenho meu filho ao colo, nutrindo-se do meu sangue, que deixa a cor da púrpura e veste-se de branco para não macular os lábios inocentes, toda a minha vida nele se concentra.
A felicidade e a desgraça sentam-se junto de mim, sinto-as no contentamento que me alvoroça e nos presságios estranhos que me ocorrem.
É preciso ser mãe, ter gerado para conhecer o verdadeiro amor.
A alma sai-me do corpo e fica junto do infante. Se me arredo um momento sinto-me logo atraída como por uma pesada corrente que se me prende ao coração. E tanto o contemplo, tanto! que fico com ele dentro dos olhos como quem fita um objeto ao sol e depois o vê em toda a parte, ainda na treva mais densa.
Dantes, quando as mães falavam-me de seus filhos, sempre eu as achava exageradas nos louvores. Que diriam de mim as que agora me ouvissem!
O meu desejo era não ter na boca outras palavras senão estas: “Meu filho!” São as que o coração me inspira, são as que me agradam ouvir.
Elas fazem um giro alegre como um casal de passarinhos brincando. Saem-me dos lábios, entram-me pelos ouvidos cantando, circulam o meu coração e me tornam à boca.
Meu filho! E não há todo um mundo de amor dentro delas? Que mais é preciso para a ventura?
Quando as suas pálpebras se descerram inclino-me e busco ver nas suas pupilas – que são agora os meus espelhos – o que elas contém.
Fico tão perto que elas só a mim reproduzem.
Do mais tenho ciúme, nem quero que seus olhos tenham outros habitantes.
Quando ele estremece, tremo. Quando ele sorri é tão grande a minha alegria que fico num atordoamento desvairado, sem saber que faça, e choro e rio.
Ai! de mim quando ele chora.
Não tendes notado que eu sou agora como uma faminta perdida que não se sacia de alimento?
Não é que tenha fome, não; mas penso nele e, como é preciso que ele encontre sempre farto o peito em que se nutre, transformo-me em celeiro.
Dormir, nem sei se durmo, porque ao mais leve movimento que ele faça surpreendo-me a mim mesma achando-me a seu lado, agasalhando-o, afagando-o, procurando readormecê-lo ou acalentando-o, se chora.
Eu não era assim amorosa, meu senhor. Agora que o tenho não parece que vivo no mundo, só dele me lembro. Onde ele está aí é que me apraz viver.
O seu berço é o oásis em imenso deserto.
Dizeis, às vezes, que me distraio porque não vos respondo de pronto. Não é distração, é que alma está junto dele – o corpo fica vazio como uma casa fechada cujo dono trabalha na seara.
Disseste uma vez: “As mães adivinham.” Como conheceis o coração materno!
E há mais que ficam no mundo quando lhes morre o filho. Como se podem guiar na vida? Como podem caminhar sem arrimo? Como podem ver sem a luz? Como não soçobram no pranto? Eu...
- Por que choras, Maria?
- Porque sou feliz, meu senhor...


CAPÍTULO XXIV: AS DUAS MÃES              
Junto a uma velha figueira, que ficava a dois passos da caverna, onde a estrada, bifurcando-se, dava uma sinuosa trilha para os montes e um caminho direito para os campos, sentara-se Maria com Jesus ao colo, gozando o frescor da manhã serena e vendo os pombos revoarem, com um rumoroso ruflo d’asas, passando, repassando em torno.
José descera à fonte.
Zagalejos passavam soprando frautas e o sol, acendendo as camarinhas do orvalho, fazia da paisagem uma extensa cintilação.
A Virgem entretinha-se, enlevada no pequenito que acompanhava a ronda alígera das aves, quando uma pálida mulher, andrajosa e descalça, os cabelos desgrenhados, os olhos fundos, a caveira estalando a pele seca, apareceu no caminho, tão lenta e tão alto e angustioso arquejo que foi por ele que Maria sentiu a aproximação da infeliz.
Era ainda moça, conservava na miséria um resto de emurchecida beleza.
Os olhos negros ardiam febris como dois carvões em que faiscassem fagulhas; as rosas das faces haviam amarelecido, os lábios, ressecados e lívidos, estalavam em fendas como golpes.
Trazia nos braços, envolta em grosseiras faixas, uma criança que vagia.
Diante da Virgem deteve-se. Arrasaram-se-lhe os olhos d’água e, parada, tremendo, estendeu a mão magra a pedir.
Maria encarou-a compadecida e, como não possuísse moeda, não respondeu à infeliz, alanceada de pena. E a mulher soluçou:
- Não é por mim que peço, é por ele. Tenho-o, desde ontem, ao seio, bebendo sangue – não é o peito que lhe dou, mas uma ferida. A boca do pobrezinho está da cor da anêmona.
Não lamentaria a dor com que a sua fome me apunhala se o visse saciado, mas o sangue não farta e, ainda que eu não lhe recuse o que me resta de vida, sinto-o enfraquecer a mais e mais.
Já não chora, nem abre os olhos, começa a agonizar, como a planta que o sol mirra na terra adusta.
Dai-me o bastante para que ele viva um dia, só enquanto eu viva. Que ele morra depois de mim para que eu o receba na morte.
Maria fez lugar junto à figueira para a enferma e, entregando-lhe Jesus, tomou o pequenino moribundo. Pôs-lhe na boca o peito túrgido e logo o sentiu sugar avidamente.
A mísera mulher embalava o divino infante, apertava-o ao colo com medo de que chorasse e interrompesse a esmola que seu filho recebia.
Tão enlevada estava vendo o seu penhor mamar que nem sentiu que os seus peitos, junto aos quais Jesus agasalhava-se, enchiam-se, apojavam-se. E toda ela refazia-se: a carne renovava-se-lhe robusta, voltava-lhe a cor ao rosto.
Satisfeita, a criança adormeceu ao colo de Maria e da boquinha entreaberta escorreu, rolou na grama uma gota de leite, caindo, como uma pérola, na raiz da figueira.
As duas mães olharam-se caladas porque as crianças dormiam. Trocaram-nas tomando, cada qual, a que lhe pertencia e a miserável, agradecendo a esmola, foi-se por entre as margaridas do caminho.
Perdeu-se no meio das árvores, reapareceu no lançante do cerro.
De repente, já no cimo, envolta em luz, estacou derreando a cabeça como para olhar o céu e súbito, lançando os braços, tombou sobre os joelhos.
Dera, sem dúvida, pelos peitos cheios.
Maria, para segui-la com o olhar, levantou-se e, como se apoiasse à figueira, uma folha caiu. Sentindo os dedos úmidos mirou-os – estavam molhados de leite.
De onde proviria? da fina haste da figueira de onde se destacara a folha.
A árvore sorvera a gota de leite que rolara da boca do pobrezinho e sempre a verte mostrando-a aos incrédulos, mal se lhe arranca uma folha ou se lhe golpeia um galho, como uma prova da misericórdia suave.


CAPÍTULO XXV: A ESTRELA          
Ao declinar do sol, quando cessava a alegria rural e, quietos, em mangotes brancos, os rebanhos desciam das pasturas e o canto das aves morria em estribilhos tristes, José, à entrada da caverna, as mãos cruzadas sobre o cajado, contemplava o céu macio, barrado de ouro no ocidente, onde os outeiros pareciam arder como altas piras sobre as quais flamejasse um lume votivo.
Um mole, lânguido quebranto prostrava a natureza.
As árvores espreguiçavam-se em movimentos morosos; raros pássaros aligeiravam o vôo atravessando a luz vesperal.
Nas alquebradas sombrias crescia a voz das águas borbulhantes, saltando, escachoando de pedra em pedra até fluírem massas sob as pendidas ramas que pareciam tremer de frio.
Longe, na cidade, ressoava o tumulto humano. Grossos rolos de fumo negro subiam nos ares, fundiam-se, dissipavam-se e, à medida que a noite conquistava a paisagem, apontavam pequeninas estrelas esmaltando o céu.
A voz de Maria no fundo da caverna entoava suavemente. Era o encantamento maternal, a mimosa cantilena com que Jesus adormecia.
O patriarca, recolhido em pensamento, olhava, e, como se voltasse para o lado do oriente obscuro, viu um como fúlgido alfanje chamejando na treva.
Tremeu e, fitando o olhar na estranha aparição, notou que avançava no céu vagarosamente.Era uma estrela enorme, de brilho coruscante, que parecia haver atravessado a teia da Via Láctea, tendo dela trazido um rútilo farrapo que a seguia através do espaço.
O astro subia em marcha grave e as demais estrelas esmoreciam à sua passagem como se se retraíssem tímidas.
Pelos caminhos, pelos outeiros homens, mulheres paravam atônitos olhando o prodígio.Alguns, atemorizados, invocavam deuses, rojando-se por terra; crianças choravam espavoridas.
E quando a noite negrejou fechada, o astro, com a flamejante cauda aberta, pairou no céu, sobre a caverna, como uma palma de luz que assinalasse o berço do Messias.


CAPÍTULO XXVI: EPIFANIA          
Pastores, que faziam a vigília no campo, contemplavam embevecidamente a estrela maravilhosa, quando ouviram cantares e rumorosa estropeada como se festiva e densa turba viesse pela encosta do cerro mais alto.
Ergueram-se estranhando a caravana e viram romper, à luz de archotes, cujo clarão tingia sanguineamente a noite, um cortejo brilhante e desusado.
Os animais pareciam ajaezados de ouro, com recamos de pedrarias, tamanho era o fulgor que irradiavam nos cabelos árdegos em que vinham.
Onagros, tangidos por negros, trotavam sacolejando fardos e três dromedários enxairelados caminhavam entre lanças garbosamente empunhadas por cavaleiros robustos.

***

Tamborinos e anafis soavam em concerto, regulando o ritmo da marcha. Vozes bradavam e a turba descia assustando as ovelhas e os grandes bois que tresmalhavam metendo-se pelos matos.
Os cães de guarda, atentos, d’orelhas fitas, conservavam-se silenciosas como se reconhecessem os chegadiços.
Por vezes as lanças chocavam-se, tinindo, e cerrada, na claridade fulva dos archotes, a caravana aproximava-se.
Na planície, ao rouco estrugir de uma buzina, estacou em ordem.
Ligeiramente, destros e açodados negros desfizeram grandes rolos, fincaram cepos e, em pouco, tendas retesaram-se.
Os animais, aliviados da carga, deixaram-se na erva fresca, espojavam-se contentes e, em volta das tendas, como uma sebe de guerra, os cavaleiros cravaram as lanças pelos cantos ficando os ferros luzindo como estrelas.
Os pastores, esgueirando-se na sombra, procuravam chegar ao acampamento para ver de perto os chefes da hoste que com tanta grandeza se movia.
Um deles, mais ousado, foi descoberto por um grande negro que trazia às costas, suspenso duma corrente, um dardo de ferro.
Sem tempo de fugir caiu em poder do vigia que logo o conduziu à tenda mais suntuosa, toda alfaiada de seda e púrpura e nublada de aromatas .
Lampadários de ouro iluminavam-na. A erva desaparecia sob tapetes altos, escudos lampejavam e, como o, negro o impelisse, viu-se o pastor na presença de três homens, ricamente paramentados com fotas na cabeça rutilantes de gemas.
Eram magos das terras remotas.
Um alvo, a barba negra e farta espalhada no peito cintilante de pedrarias; outro da cor amarelada dos filhos das extremas da Ásia; o terceiro, negro, com imensas camândulas de ouro em volta do pescoço, braceletes nos punhos, argolas nas orelhas e na fronte alta, preso por um mastro, um diamante que coruscava.
O pastor ajoelhou-se e, medroso, espera ouvir palavras severas, quando um dos homens tranqüilizadoramente perguntou:
- Se sabia em que paço, por ali perto, nascera o rei dos judeus. O rústico, sem entender a pergunta, ficou arvoado, imaginando-se vítima de uma zombaria. Lembrou-se, porém, dos anjos e de todos os prodígios da noite messiânica, respondeu vagamente:
- Perto daqui nasceu – e os céus festejaram o seu natal – um menino, filho de pobres, vindos de terras longínquas. Ainda lá está no mesmo tugúrio, ao colo da mãe, que é uma linda moça, sob a guarda de um ancião venerável. É bem perto daqui, na caverna do outeiro sobre a qual paira e brilha a estrela alada que apareceu no céu.
Levantaram-se os três homens – o pastor saiu da tenda e, estendendo o braço na direção do outeiro, disse:
- É ali, sob a estrela.
- Deve ser, disse o negro. E os dois outros concordaram. E, despedindo o pastor com uma bolsa de moedas de ouro, ficaram de pé, em silêncio, contemplando adorativamente a estrela que resplandecia.


CAPÍTULO XXVII: ADORAÇÃO DOS MAGOS         
Ao dealbar tronaram as buzinas e a caravana moveu-se em direção à caverna.
A grande estrela ainda luzia no céu.
Os magos seguiram à frente nos dromedários e, em torno deles, nitiam , caracolavam os ginetes dos cavaleiros com que os seus telizes dourados, os seus caparações de púrpura.
Quando a turba defrontou com a caverna todos os homens apearam e, respeitosamente, com humildade de servos, deixando no limiar os papuzes marchetados, os magos penetraram zumbridos , como se fossem os rastos, levando nas mãos, devotamente, as páreas significativas.
Recebeu-os o patriarca e, como a Virgem se levantasse, com Jesus ao colo, os três homens prostraram-se de joelhos, descobrindo-se, depondo os turbantes e, inclinando a cabeça, ficaram um momento em veneração silenciosa.
O primeiro falou oferecendo a mirra.
- Homem, filho de Deus, a árvore do deserto deu do seu trono a resina que te ofereço; o seu perfuma é uma força que se opões à destruição da carne: eterniza o corpo como a virtude eterniza o espírito.
O segundo inclinou-se com um escrínio cheio de ouro:
- Rei, das minas, onde fervilham os veios rutilantes, deram a poeira que te ofereço: ouro, símbolo do poder, chama fria da terra. Tudo ele vence: a miséria e a própria virtude. Desoprime e escraviza, redime e perverte, é o bem e é o mal. Nas mãos mumificas é luz que aclara e salva; nas mãos cruéis é chama que consome.
O negro falou por último com uma patena de incenso:
- A árvore instila a lágrima que recende, lágrima que, ao lume, se converte em fumo e evola, demandando o céu, como homenagem de terra.
Como lágrima, é uma concentração; como aroma, é uma oblata. É o incenso com que se glorificam os deuses. É a oferenda das terras negras ao Deus que redime.
Gente, que afluíra à caverna, pastores e seareiros, mesteirais, velhos, mulheres e crianças das arribanas próximas entraram e, diante da palha humilde, toda a grandeza e toda a humildade confraternizaram e também o sol, como enviado do céu, adorando o infante da misericórdia que baixara para cumprir as profecias trazendo aos homens a religião do amor.
E Maria, deslumbrada, sem ouvir as vozes glorificadoras, olhava, contemplava, adorava o pequenino filho.
O sol cercou-se de esplendor e a Virgem, de pé no meio da turba, com Jesus ao colo, era o puríssimo altar sobre o qual se mostrava às gentes o divino perdão.

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