Capítulo VII - No Precipício
Peri tinha parado para ver Cecília de longe.
Aires Gomes ergueu-se, correu para o índio e deitou-lhe a mão ao braço.
— Afinal pilhei-o, dom caboclo! Safa!... Deu-me água pela barba!... disse o escudeiro resfolgando.
— Deixa! respondeu o índio sem se mover.
— Deixar-te! Uma figa! Depois de ter batido esta mataria toda à tua procura! Tinha que ver!
Com efeito, D. Lauriana desejando ver o índio fora de casa quanto antes, havia expedido o escudeiro em busca de Peri, para trazê-lo à presença de D. Antônio de Mariz.
Aires Gomes, fiel executor das ordens de seus amos, corria o mato havia boas duas horas; todos os incidentes cômicos, possíveis ou imagináveis, tinham-se como que de propósito colocado em seu caminho.
Aqui era uma casa de marimbondos, que ele assanhava com o chapéu, e o faziam bater em retirada honrosa, correndo a todo o estirão das pernas; ali era um desses lagartos de longa cauda que pilhado de improviso se enrolara pelas pernas do escudeiro com uma formidável chicotada.
Isto sem falar das urtigas, e das unhas-de-gato, cabeçadas e quedas, que faziam o digno escudeiro arrenegar-se, e maldizer da selvajaria de semelhante terra! Ah! quem o dera nos tojos e charnecas de sua pátria!
Tinha pois Aires Gomes razão de sobra para não querer largar o índio causa de todas as tribulações por que passara; infelizmente Peri não estava de acordo.
— Larga, já te disse! exclamou o índio começando a irritar-se.
— Tem santa paciência, caboclinho de minha alma! Fé de Aires Gomes, não é possível; e tu sabes! Quando eu digo que não é possível, é como se a nossa madre igreja... Que diabo ia rezarlhe? Ai! que chamei sem querer a madre igreja de diabo! Forte heresia! Quem se mete a tagarelar dos santos com esta casta de pagão... Tagarelar dos santos!... Virgem Santíssima! Estou incapaz! Cala-te, boca! não me pies mais!
Enquanto o escudeiro desfiava esse discurso, meio solilóquio, no qual havia ao menos o mérito da franqueza, Peri não o ouvia, embebido como estava em olhar para a janela; depois, desprendendo-se da mão que segurava-lhe o braço, continuou o seu caminho.
Aires acompanhou-o pisada sobre pisada, com a impassibilidade de um autômato.
— Que vens fazer? perguntou-lhe o índio.
— E esta! Seguir-te e levar-te à casa; é a ordem.
— Peri vai longe!
— Ainda que vás ao fim do mundo, é o mesmo, filho.
O índio voltou-se para ele com um gesto decidido.
— Peri não quer que tu o sigas.
— Lá quanto a isto, mestre bugre, perdes o teu tempo; por força ainda ninguém levou o filho de meu pai, que bom é que saibas, foi homem de faca e calhau.
— Peri não manda duas vezes!
— Nem Aires Gomes olha atrás quando executa uma ordem.
Peri, o homem da cega dedicação, reconheceu no escudeiro o homem da obediência passiva; sentiu que não havia meio de convencer este executor fiel: assim, resolveu livrar-se dele por meio decisivo.
— Quem te deu a ordem?
— D. Lauriana.
— Para quê?
— Para te levar à casa.
— Peri vai só.
— Veremos!
O índio tirou a sua faca.
— Hein!... gritou o escudeiro. A conversa vai agora nesse tom? Se o Sr. D. Antônio não me tivesse proibido expressamente, eu te mostraria! Mas... Podes matar-me, que eu não arredo pé.
— Peri só mata o seu inimigo, e tu não és; tu teimas, Peri te amarra.
— Como?... Como é lá isso?
O índio começou a cortar com a maior calma um longo cipó que se engranzava pelos galhos das árvores; o escudeiro meio espantado sentia a mostarda subir-lhe ao nariz, esteve quase não quase, atirando-se ao selvagem.
Mas a ordem de D. Antônio era formal; via-se pois obrigado a respeitar o índio; o mais que o digno escudeiro podia fazer era defender-se valentemente.
Quando Peri cortou umas dez braças do cipó que ia enrolando ao pescoço, embainhou a faca, e voltou-se para o escudeiro sorrindo. Aires Gomes sem trepidar puxou a espada e pôs-se em guarda, segundo as regras da nobre e liberal arte do jogo de espadão, que professava desde a mais tenra idade.
Era um duelo original e curioso, como talvez não tenha havido segundo, combate em que as armas lutavam contra a agilidade, e o ferro contra um vime delgado.
— Mestre Cacique, disse o escudeiro rugando o sobrolho; deixa-te de partes: porque, palavra de Aires Gomes, se te encostas, espeto-te na durindana!
Peri estendeu o lábio inferior, em sinal de pouco caso; e começou a voltear rapidamente em torno do escudeiro, num círculo de seis passos de diâmetro que o punha fora do alcance da espada; a sua tenção era assaltar o adversário pelas costas.
Aires Gomes apoiado a um tronco, e obrigado a girar sobre si mesmo para defender as costas, sentiu a cabeça tontear e vacilou. O índio aproveitou o momento, atirou-se a ele, pilhou-o de costas, agarrou-o pelos dois braços, e passou a amarrá-lo ao mesmo tronco da árvore em que estava encostado.
Quando o escudeiro voltou a si da vertigem, uma rodilha de cipós ligava-o ao tronco desde o joelho até os ombros; o índio seguira seu caminho placidamente.
— Bugre de um demo! Perro infernal! gritava o digno escudeiro, tu me pagarás com língua de palmo!... Sem prestar a menor atenção à ladainha de nomes injuriosos com que o mimoseava Aires Gomes, Peri aproximou-se da casa.
Via Cecília, com a face apoiada na mão, a olhar tristemente o fosso profundo que passava embaixo de sua janela.
A menina, depois do primeiro momento de surpresa em que adivinhou o ciúme de Isabel e o seu amor por Álvaro, conseguiu dominar-se. Tinha a nobre altivez da castidade; não quis deixar ver à sua prima o que sentia nesse momento; era boa também, amava Isabel, e não desejava magoá-la.
Não lhe disse pois uma só palavra de exprobração nem de queixa: ao contrário ergueu-a, beijou-a com carinho, e pediu-lhe que a deixasse só.
— Pobre Isabel! murmurou ela; como deve ter sofrido!
Esquecia-se de si para pensar em sua prima; mas as lágrimas que saltaram de seus olhos, e o soluço que fez arfar os seios mimosos a chamaram ao seu próprio sofrimento.
Ela, a menina alegre e feiticeira que só aprendera a sorrir, ela, o anjinho do prazer que bafejava tudo quanto a rodeava, achou um gozo inefável em chorar. Quando enxugou as lágrimas, sofria menos; sentiu-se aliviada; pôde então refletir sobre o que havia passado.
O amor revelava-se para ela sob uma nova forma; até aquele dia a afeição que sentia por Álvaro era apenas um enleio que a fazia corar, e um prazer que a fazia sorrir.
Nunca se lembrara que esta afeição pudesse passar daquilo que era, e produzir outras emoções que não fossem o rubor e o sorriso; o exclusivismo do amor, a ambição de tornar seu e unicamente seu o objeto da paixão, acabava de ser-lhe revelado por sua prima.
Ficou por muito tempo pensativa; consultou o seu coração e conheceu que não amava assim; nunca a afeição que tinha a Álvaro podia obrigá-la a odiar sua prima, a quem queria como irmã.
Cecília não compreendia essa lata do amor com os outros sentimentos do coração, luta terrível em que quase sempre a paixão vitoriosa subjuga o dever, e a razão. Na sua ingênua simplicidade acreditava que podia ligar perfeitamente a veneração que tinha por seu pai, o respeito que votava à sua mãe, o afeto que sentia por Álvaro, o amor fraternal que consagrava a seu irmão e a Isabel, e a amizade que tinha a Peri.
Estes sentimentos eram toda a sua vida; no meio deles sentia-se feliz; nada lhe faltava: também nada mais ambicionava. Enquanto pudesse beijar a mão de seu pai e de sua mãe, receber uma carícia de seu irmão e de sua prima, sorrir a seu cavalheiro e brincar com o seu escravo, a existência para ela seria de flores.
Assustou-se pois com a necessidade de quebrar um dos fios de ouro que teciam os seus dias inocentes e felizes; sofreu com a idéia de ver em luta duas das afeições calmas e serenas de sua vida.
Teria menos um encanto na sua vida, menos uma imagem nos seus sonhos, menos uma flor na sua alma; porém não faria a ninguém desgraçado, e sobretudo à sua prima Isabel, que às vezes se mostrava tão melancólica.
Restavam-lhe suas outras afeições; com elas pensava Cecília que a existência ainda podia sorrir-lhe; não devia tornar-se egoísta.
Para assim pensar era preciso ser uma menina pura e isenta como ela; era preciso ter o coração como recente botão, que ainda não começou a desatar-se com o primeiro raio do sol.
Estes pensamentos adejavam ainda na mente de Cecília enquanto ela olhava pensativa o fosso, onde tinha caldo o objeto que viera modificar a sua existência.
— Se eu pudesse obter essa prenda? dizia consigo. Mostraria a Isabel como eu a amo e quanto a desejo feliz.
Vendo sua senhora olhar tristemente o fundo do precipício, Peri compreendeu parte do que passava no seu espírito; sem poder adivinhar como Cecília soubera que o objeto tinha caldo ali, percebeu que a moça sentia por isso um pesar.
Nem tanto bastava para que o índio fizesse tudo a fim de trazer a alegria ao rostinho de Cecília; além de que já tinha prometido a Álvaro endireitar isto, como ele dizia na sua linguagem simples.
Chegou-se ao fosso.
Uma cortina de musgos e trepadeiras lastrando pelas bordas do profundo precipício cobria as fendas da pedra; por cima era um tapete de verde risonho sobre o qual adejavam as borboletas de cores vivas; embaixo uma cava cheia de limo onde a luz não penetrava.
Às vezes ouviam-se partir do fundo do balseiro os silvos das serpentes, os pios tristes de algum pássaro, que magnetizado ia entregar-se à morte; ou o tanger de um pequeno chocalho sobre a pedra.
Quando o sol estava a pino, como então, via-se entre a relva, sobre o cálice das campânulas roxas, os olhos verdes de alguma serpente, ou uma linda fita de escamas pretas e vermelhas enlaçando a haste de um arbusto.
Peri pouco se importava com estes habitantes do fosso e com o acolhimento que lhe fariam na sua morada; o que o inquietava era o receio de que não tivesse luz bastante no fundo para descobrir o objeto que ia procurar.
Cortou o galho de uma árvore, que pela sua propriedade, os colonizadores chamaram candeia; tirou o fogo, e começou a descer com o facho aceso. Foi só nessa ocasião que Cecília embebida nos seus pensamentos, viu defronte de sua janela o índio a descer pela encosta.
A menina assustou-se; porque a presença de Peri lembrou-lhe de repente o que se passara pela manhã; era mais uma afeição perdida.
Dois laços quebrados ao mesmo tempo, dois hábitos rompidos um sobre o outro, era muito; duas lágrimas correram pelas suas faces, como se cada uma fosse vertida pelas cordas do coração que acabavam de ser vibradas.
— Peri!
O índio levantou os olhos para ela.
— Tu choras, senhora? disse ele estremecendo.
A menina sorriu-lhe; mas com um sorriso tão triste que partia a alma.
— Não chora, senhora, disse o índio suplicante; Peri vai te dar o que desejas.
— O que eu desejo?
— Sim; Peri sabe.
A moça abanou a cabeça.
— Está ali; e apontou para o fundo do precipício.
— Quem te disse? perguntou a menina admirada.
— Os olhos de Peri.
— Tu viste?
— Sim.
O índio continuou a descer.
— Que vais fazer? exclamou Cecília assustada.
— Buscar o que é teu.
— Meu!... murmurou melancolicamente.
— Ele te deu.
— Ele quem?
— Álvaro.
A moça corou; mas o susto reprimiu o pejo; abaixando os olhos sobre o precipício, tinha visto um réptil deslizando pela folhagem e ouvido o murmúrio confuso e sinistro que vinha do fundo do abismo.
— Peri, disse empalidecendo, não desças; volta!
— Não; Peri não volta sem trazer o que te fez chorar.
— Mas tu vais morrer!
— Não tem medo.
— Peri, disse Cecília com severidade, tua senhora manda que não desças.
O índio parou indeciso; uma ordem de sua senhora era uma fatalidade para ele; cumpria-se irremissivelmente.
Fitou na moça um olhar tímido; nesse momento Cecília, vendo Álvaro na ponta da esplanada junto da cabana do selvagem, retirava-se para dentro da janela corando.
O índio sorriu.
— Peri desobedece à tua voz, senhora, para obedecer ao teu coração. E o índio desapareceu sob as trepadeiras que cobriam o precipício. Cecília soltou um grito, e debruçou-se no parapeito à janela
Capítulo VIII - O Bracelete
O que Cecília viu, debruçando-se à janela, gelou-a de espanto e horror.
De todos os lados surgiam répteis enormes que, fugindo pelos alcantis, lançavam-se na floresta; as víboras escapavam das fendas dos rochedos, e aranhas venenosas suspendiam-se aos ramos das árvores pelos fios da teia.
No meio do concerto horrível que formava o sibilar das cobras e o estrídulo dos grilos, ouvia-se o canto monótono e tristonho da cauã no fundo do abismo.
O índio tinha desaparecido; apenas se via o reflexo da luz do facho.
Cecília, pálida e trêmula julgava impossível que Peri não estivesse morto e já quase devorado por esses monstros de mil formas; chorava o seu amigo perdido, e balbuciava preces pedindo a Deus um milagre para salvá-lo.
Às vezes fechava os olhos para não ver o quadro terrível que se desenrolava diante dela, e abria-os logo para perscrutar o abismo e descobrir o índio.
Em um desses momentos um dos insetos que pululavam no meio da folhagem agitada esvoaçou, e veio pousar no seu ombro; era uma esperança, um desses lindos coleópteros verdes que a poesia popular chama lavandeira-de-deus.
A alma nos momentos supremos de aflição suspende-se ao fio o mais tênue da esperança; Cecília sorriu-se entre as lágrimas, tomou a lavandeira entre os seus dedos rosados e acariciou-a.
Precisava esperar; esperou, reanimou-se, e pôde proferir uma palavra ainda com a voz trêmula e fraca:
— Peri!
No curto instante que sucedeu a este chamado, sofreu uma ansiedade cruel; se o índio não respondesse, estava morto; mas Peri falou:
— Espera, senhora!
Entretanto, apesar da alegria que lhe causaram estas palavras, pareceu à menina que eram pronunciadas por um homem que sofria: a voz chegou-lhe ao ouvido surda e rouca.
— Estás ferido? perguntou inquieta.
Não houve resposta; um grito agudo partiu do fundo do abismo, e ecoou pelas fráguas; depois a cauã cantou de novo, e uma cascavel silvando bravia passou seguida por uma ninhada de filhos.
Cecília vacilou; soltando um gemido plangente caiu desmaiada de encontro à almofada da janela.
Quando, passado um quarto de hora, a menina abriu os olhos, viu diante dela Peri que chegava naquele momento, e lhe apresentava sorrindo uma bolsa de malha de retrós, dentro da qual havia uma caixinha de velado escarlate.
Sem se importar com a jóia, Cecília ainda impressionada pelo quadro horrível que presenciara, tomou as mãos do índio e perguntou-lhe com sofreguidão:
— Não estás mordido, Peri?... Não sofres?... Dize!
O índio olhou-a admirado do susto que via no seu semblante.
— Tiveste medo, senhora?
— Muito! exclamou a menina.
O índio sorriu.
— Peri é um selvagem, filho das florestas; nasceu no deserto, no meio das cobras; elas conhecem Peri e o respeitam.
O índio dizia a verdade; o que acabava de fazer era a sua vida de todos os dias no meio dos campos: não havia nisto o menor perigo.
Tinha-lhe bastado a luz do seu facho e o canto da cauã que ele imitava perfeitamente para evitar os répteis venenosos que são devorados por essa ave. Com este simples expediente de que os selvagens ordinariamente se serviam quando atravessavam as matas de noite, Peri descera e tivera a felicidade de encontrar presa aos ramos de uma trepadeira a bolsa de seda, que adivinhou ser o objeto dado por Álvaro.
Soltou então um grito de prazer que Cecília tomou por grito de dor: assim como antes tinha tomado o eco do precipício por uma voz cava e surda.
Entretanto Cecília que não podia compreender como um homem passava assim no meio de tantos animais venenosos sem ser ofendido por eles, atribuía a salvação do índio a um milagre, e considerava a ação simples e natural que acabava de praticar como um heroísmo admirável. A sua alegria por ver Peri livre de perigo, e por ter nas suas mãos a prenda de Álvaro foi tal, que esqueceu tudo o que se tinha passado.
A caixinha continha um simples bracelete de pérolas; mas estas eram do mais puro esmalte e lindas como pérolas que eram; bem mostravam que tinham sido escolhidas pelos olhos de Álvaro, e destinadas ao braço de Cecília.
A menina admirou-as um momento com o sentimento de faceirice que é inato na mulher, e lhe serve de sétimo sentido; pensou que devia ir-lhe bem esse bracelete; levada por esta idéia cingiu-o ao braço, e mostrou a Peri que a contemplava satisfeito de si mesmo.
— Peri sente uma coisa.
— O quê?
— Não ter contas mais bonitas do que estas para dar-te.
— E por que sentes isso?
— Porque te acompanhariam sempre.
Cecília sorriu; ia fazer uma travessura.
— Assim, tu ficarias contente se tua senhora em vez de trazer este bracelete, trouxesse um presente dado por ti?
— Muito.
— E o que me dás tu para que eu me faça bonita? perguntou a menina gracejando.
O índio correu os olhos ao redor de si e ficou triste; podia dar a sua vida, que de nada valia; mas onde iria ele, pobre selvagem, buscar um adorno digno de sua senhora!
Cecília teve pena do seu embaraço.
— Vai buscar uma flor que tua senhora deitará nos seus cabelos, em vez deste bracelete que ela nunca deitará no seu braço.
Estas últimas palavras foram ditas com um tom de energia, que revelava a firmeza do caráter desta menina; ela fechou outra vez o bracelete na caixa e ficou um momento melancólica e pensativa.
Peri voltou trazendo uma linda flor silvestre que encontrara no jardim; era uma parasita aveludada, de lindo escarlate. A menina prendeu a flor nos cabelos, satisfeita por ter cumprido um inocente desejo de Peri, que só vivia para cumprir os seus; e dirigiu-se ao quarto de sua prima, ocultando no seio a caixinha de veludo.
Isabel pretextara uma indisposição; não saíra do seu quarto depois que voltara do aposento de Cecília, tendo traído o segredo de seu amor.
As lágrimas que derramou não foram como as de sua prima, de alivio e consolo; foram lágrimas ardentes, que em vez de refrescarem o coração, o queimam como o rescaldo da paixão.
Às vezes, ainda umedecidos de pranto, seus olhos negros brilhavam com um fulgor extraordinário; parecia que um pensamento delirante passava rapidamente no seu espírito desvairado. Então ajoelhava-se, e fazia uma oração, no meio da qual suas lágrimas vinham de novo orvalhar-lhe as faces.
Quando Cecília entrou, ela estava sentada à beira do leito, com os olhos fitos na janela, por entre a qual se via uma nesga do céu.
Estava bela da melancolia e languidez que prostrava o seu corpo num enlevo sedutor, fazendo realçar as linhas harmoniosas de seu talhe gracioso.
Cecília aproximou-se sem ser vista, e estalou um beijo na face morena de sua prima.
— Já te disse que não te quero ver triste.
— Cecília!... exclamou Isabel sobressaltando-se.
— Que é isto? Faço-te medo?
— Não... mas...
— Mas, o quê?
— Nada...
— Sei o que queres dizer, Isabel, julgaste que conservava uma queixa de ti. Confessa!
— Julguei, disse a moca balbuciando, que me tinha tornado indigna de tua amizade.
— E por quê? Fizeste-me tu algum mal? Não somos nós duas irmãs, que nos devemos amar sempre?
— Cecília, o que tu dizes não é o que tu sentes! exclamou Isabel admirada.
— Algum dia te enganei? replicou Cecília magoada.
— Não; perdoa; porém é que...
A moça não continuou; o olhar terminou o seu pensamento, e exprimiu o espanto que lhe causava o procedimento de Cecília. Mas de repente uma idéia assaltou-lhe o espírito.
Cuidou que Cecília não tinha ciúmes dela, porque a julgava indigna de merecer um só olhar de Álvaro; esta lembrança a fez sorrir amargamente.
— Assim, está entendido, disse Cecília com volubilidade, nada se passou entre nós; não é verdade?
— Tu o queres!
— Quero, sim; nada se passou; somos as mesmas, com uma diferença, acrescentou Cecília corando, que de hoje em diante tu não deves ter segredos para comigo.
— Segredos! Tinha um que já te pertence! murmurou Isabel.
— Porque o adivinhei! Não é assim que desejo; prefiro ouvir de tua boca; quero consolar-te quando estiveres toda tristezinha como agora, e rir-me contigo quando ficares contente. Sim?
— Ah! nunca! Não me peças uma coisa impossível, Cecília! Já sabes demais; não me obrigues a morrer a teus pés de vergonha.
— E por que te causaria isto vergonha? Assim como tu me amas, não podes amar uma outra pessoa?
Isabel escondeu o rosto nas mãos para disfarçar o rubor que subia-lhe às faces; Cecília um pouco comovida olhava sua prima e compreendia nesse momento a causa por que ela própria corava quando sentia os olhos de Álvaro fitos nos seus.
— Cecília, disse Isabel fazendo um esforço supremo, não me iludas, minha prima; tu és boa, tu me amas, e não queres magoar-me; mas não zombes da minha fraqueza. Se soubesses como sofro!
— Não te iludo, já te disse; não desejo que sofras, e menos que sofras por minha causa; entendes?
— Entendo, e juro-te que saberei fazer calar meu coração; se for preciso ele morrerá antes do que dar-te uma sombra de tristeza.
— Não, exclamou Cecília, tu não me compreendes: não é isto que eu te peço, bem ao contrário quero que... sejas feliz!
— Que eu seja feliz? perguntou Isabel arrebatadamente.
— Sim, respondeu a menina abraçando-a e falandolhe baixinho ao ouvido; que o ames a ele e a mim também.
Isabel ergueu-se pálida, e duvidando do que ouvia; Cecília teve bastante força para sorrir-lhe com um dos seus divinos sorrisos.
— Não, é impossível Tu me queres tornar louca, Cecília?
— Quero tornar-te alegre, respondeu a menina acariciando-a; quero que deixes esse rostinho melancólico, e me abraces como tua irmã. Não o mereço?
— Oh! sim, minha irmã; tu és um anjo de bondade, mas o teu sacrifício é perdido; eu não posso ser feliz, Cecília.
— Por quê?
— Porque ele te ama! murmurou Isabel.
A menina corou.
— Não digas isto, é falso.
— E bem verdade.
— Ele te disse?
— Não, mas adivinhei-o antes de ti mesma.
— Pois te enganaste; e sabes que mais, não me fales nisto. Que me importa o que ele sente a meu respeito?
E a menina conhecendo que a emoção se apoderava dela, fugiu mas voltou da porta.
— Ah! esqueci-me de dar-te uma coisa que trouxe para ti. Tirou a caixinha de veludo, e abrindo-a, atou o bracelete de pérolas ao braço de Isabel.
— Como te vão bem! Como assentam no teu moreno tão lindo! Ele te achará bonita!
— Este bracelete!...
Isabel teve de repente uma suspeita.
A menina percebeu; ia mentir pela primeira vez na sua vida.
— Foi meu pai que mo deu ontem; mandou vir dois irmãos: um para mim, e outro que eu lhe pedi para ti. Assim, não tens que recusar senão agasto-me contigo.
Isabel abaixou a cabeça.
— Não o tires; eu vou deitar o meu e ficaremos irmãs. Adeus, até logo.
E apinhando os dedos atirou um beijo à prima e saiu correndo.
A travessura e jovialidade do seu gênio já tinham dissipado as impressões tristes da manhã.
Capítulo IX - Testamento
No momento em que Cecília deixou Isabel, D. Antônio de Mariz subia a esplanada, preocupado por algum objeto importante, que dava à sua fisionomia expressão ainda mais grave que a habitual.
O velho fidalgo avistou de longe seu filho D. Diogo e Álvaro passeando ao longo da cerca que passava no fundo da casa; fez-lhes sinal de que se aproximassem.
Os moços obedeceram prontamente, e acompanharam D. Antônio de Mariz até o seu gabinete d’armas, pequena saleta que ficava ao lado do oratório, e que nada tinha de notável, a não ser a portinha de uma escada que descia para uma espécie de cava ou adega servindo de paiol.
Na ocasião em que se abriram os alicerces da casa, os obreiros descobriram um socavão profundo talhado na pedra; D. Antônio como homem previdente, lembrando-se da necessidade que teria para o futuro de não contar senão com os seus próprios recursos, mandou aproveitar essa abóbada natural, e fazer dela um depósito que pudesse conter algumas arrobas de pólvora.
O fidalgo achara ainda uma outra grande vantagem na sua lembrança; era a tranquilidade de sua família, cuja vida não estaria sujeita a um descuido de qualquer doméstico ou aventureiro; porque no seu gabinete d’armas ninguém entrava, senão estando ele presente.
D. Antônio sentou-se junto da mesa coberta com um couro de moscóvia e fez sinal aos dois moços para que se sentassem a seu lado.
— Tenho que falar-vos de objeto muito sério, de objeto de família, disse o fidalgo. Chamei-vos para me ouvirdes como em uma coisa que vos interessa e a mim antes do que a todos.
D. Diogo inclinou-se diante de seu pai; Álvaro imitou-o, sentindo um sobressalto ao ouvir aquelas palavras graves e pausadas do velho fidalgo.
— Tenho sessenta anos, continuou D. Antônio; estou velho. O contato deste solo virgem do Brasil, o ar paro destes desertos, remoçou-me durante os últimos anos; mas a natureza reassume os seus direitos; e sinto que o antigo vigor cede a lei da criação que manda voltar à terra aquilo que veio da terra.
Os dois moços iam dizer alguma doce palavra como quando procuramos iludir a verdade àqueles a quem prezamos, esforçando por nos iludirmos a nós próprios.
D. Antônio conteve-os com um gesto nobre:
— Não me interrompais. Não é uma queixa que vos faço; é sim uma declaração que deveis receber, pois é necessária para que possais compreender o que tenho de dizer-vos ainda. Quando durante quarenta anos jogamos nossa vida quase todos os dias, quando vimos a morte cem vezes sobre nossa cabeça, ou debaixo de nossos pés, podemos olhar tranquilos o termo da viagem que fazemos neste vale de lágrimas.
— Oh! nunca duvidamos de vós, meu pai! exclamou D. Diogo; mas é a segunda vez em dois dias que me falais da possibilidade de uma tal desgraça; e esta só idéia me assusta! Estais forte e vigoroso ainda!
— Decerto, retrucou Álvaro; dizíeis há pouco que o Brasil vos tinha remoçado; e eu afirmovos que ainda estais na juventude da segunda vida que vos deu o novo mundo.
— Obrigado, Álvaro, obrigado, meu filho, disse D. Antônio sorrindo; quero acreditar nas vossas palavras. Contudo julgareis que é prudente da parte de um homem que chega ao último quartel da vida, dispor a sua última vontade, e fazer o seu testamento.
— O vosso testamento, meu pai! disse D. Diogo pálido.
— Sim: a vida pertence a Deus, e o homem que pensa no futuro, deve preveni-lo. É costume encarregar-se isto a um escriba; nem o tenho aqui, nem o julgo necessário. Um fidalgo não pode confiar melhor a sua última vontade do que a duas almas nobres e leais como as vossas. Perde-se um papel, rompe-se, queima-se; o coração de um cavalheiro que tem sua espada para defendê-lo, e seu dever para guiá-lo, é um documento vivo e um executor fiel. Este será pois o meu testamento. Ouvi-me.
Os dois cavalheiros conheceram pela firmeza com que falava D. Antônio, que sua resolução era inabalável; se dispuseram a ouvi-lo com uma emoção de tristeza e respeito.
— Não trato de vós, D. Diogo; a minha fortuna pertencevos como chefe da família que sereis; não trato de vossa mãe, porque perdendo um esposo restar-lhe-á um filho devotado: amo-vos a ambos, e vos bendirei na última hora. Há porém duas coisas que mais prezo neste mundo, duas coisas sagradas que devo zelar como um tesouro ainda mesmo depois que me partir desta vida. É a felicidade de minha filha, e a nobreza do meu nome; uma foi presente que recebi do céu, o outro legado que me deixou meu pai.
O fidalgo fez pausa, e volveu um olhar do rosto triste de D. Diogo para o semblante de Álvaro, que estava em extraordinária agitação.
— A vós, D. Diogo, transmito o legado de meu pai; estou convencido que conservareis o seu nome tão puro como a vossa alma, e os esforçareis por elevá-lo, servindo uma causa santa e justa. A vós, Álvaro, confio a felicidade de minha Cecília; e creio que Deus enviando-vos a mim, fazem já dez anos, não quis senão completar o dom que me havia concedido.
Os dois moços tinham deitado um joelho em terra, e beijavam cada uma das mãos do velho fidalgo, que colocado no meio deles envolvia-os num mesmo olhar de amor paternal.
— Erguei-vos, meus filhos, abraçai-vos como irmãos, e ouvide-me ainda.
D. Diogo abriu os braços, e apertou Álvaro ao peito; um instante os dois corações nobres bateram um de encontro ao outro.
— O que me resta a dizer-vos é difícil; custa sempre confessar uma falta, ainda mesmo quando se fala a almas generosas. Tenho uma filha natural: a estima que voto a minha mulher e o receio de fazer essa pobre menina corar de seu nascimento, obrigaram-me a dar-lhe em vida o título de sobrinha.
— Isabel?... exclamou D. Diogo.
— Sim, Isabel é minha filha. Peço-vos a ambos que a trateis sempre como tal; que a ameis como irmã, e a rodeeis de tanto afeto e carinho, que ela possa ser feliz, e perdoar-me a indiferença que lhe mostrei e a infelicidade involuntária que causei à sua mãe.
A voz do velho fidalgo tornou-se um tanto trêmula e comovida; sentia-se que uma recordação dolorosa, adormecida no fundo do coração, havia despertado.
— Pobre mulher!... murmurou ele.
Levantou-se, passeou pelo aposento, e conseguindo dominar a sua emoção, voltou ao dois moços.
— Eis a minha última disposição; sei que a cumprireis; não vos peço um juramento; basta-me a vossa palavra.
D. Diogo estendeu a mão, Álvaro levou a sua ao coração: D. Antônio, que compreendeu tudo quanto dizia essa muda promessa, abraçou-os.
— Agora deixai a tristeza; quero-vos risonhos; eu o estou, vede! A tranquilidade sobre o futuro vai remoçar-me de novo; e esperareis muito tempo talvez, antes que tenhais de executar a minha vontade, que até lá fica sepultada no vosso coração, como testamento que é.
— Assim o tinha entendido, disse Álvaro.
— Pois então, replicou o fidalgo sorrindo, deveis ficar entendendo também um ponto; é que talvez me incumba eu mesmo de realizar uma das partes do meu testamento. Sabeis qual?
— A da minha felicidade!... respondeu o moço corando.
D. Antônio apertou-lhe a mão.
— Estou contente e satisfeito, disse o fidalgo; pena é que tenha um triste dever a cumprir. Sabeis de Peri, Álvaro?
— Vi-o há pouco. — Ide e mandai-o a mim.
O moço retirou-se.
— Fazei chamar vossa mãe e vossa irmã, meu filho.
D. Diogo obedeceu.
O fidalgo sentou-se à mesa e escreveu numa tira de pergaminho, que fechou com um retrós e selou com as suas armas.
D. Lauriana e Cecília entraram acompanhadas por D. Diogo.
— Sentai-vos, minha mulher.
D. Antônio reunia sua família para dar uma certa solenidade ao ato que ia praticar.
Quando Cecília entrou, ele perguntou-lhe ao ouvido:
— Que queres tu dar-lhe?
A menina compreendeu imediatamente; a afeição pouco comum que tinham a Peri, a gratidão que lhe votavam, era uma espécie de segredo entre esses dois corações; era uma planta delicada que não queriam expor ao reparo que causaria aos outros amizade tão sincera por um selvagem.
Ouvindo a pergunta de seu pai, Cecília, que neste dia tinha sofrido tantas emoções diversas, lembrou-se do que se tratava.
— Como! sempre pretendeis mandá-lo embora! exclamou ela.
— É necessário; eu te disse.
— Sim; mas pensei que depois houvésseis resolvido o contrário.
— Impossível!
— Que mal faz ele aqui?
— Sabes quanto eu o estimo; quando digo que é impossível, deves crer-me.
— Não vos agasteis!...
— Assim não te opões?
Cecília calou-se.
— Se não queres absolutamente, não se fará; mas tua mãe sofrerá, e eu, porque lhe prometi.
— Não; a vossa palavra antes de tudo, meu pai.
Peri apareceu na porta da sala; uma vaga inquietação ressumbrava no seu rosto, quando viu-se no meio da família reunida.
A atitude era respeitosa, mas o seu porte tinha a altivez inata das organizações superiores; seus olhos grandes, negros e límpidos, percorreram o aposento e fixaram-se na fisionomia venerável do cavalheiro.
Cecília prevendo o que se ia passar tinha-se escondido por detrás de seu irmão D. Diogo.
— Peri, acreditas que D. Antônio de Mariz é teu amigo? perguntou o fidalgo.
— Tanto quanto um homem branco pode ser de um homem de outra cor.
— Acreditas que D. Antônio de Mariz te estima?
— Sim; porque o disse e mostrou.
— Acreditas que D. Antônio de Mariz deseja poder pagar-te o que fizeste por ele, salvando sua filha?
— Se fosse preciso, sim.
— Pois bem, Peri; D. Antônio de Mariz, teu amigo, te pede que voltes à tua tribo.
O índio estremeceu.
— Por que pedes isto?
— Porque assim é preciso, amigo.
— Peri entende; estás cansado de dar-lhe hospitalidade!
— Não!
— Quando Peri te disse que ficava não te pediu nada; sua casa é feita de palha em cima de uma pedra; as árvores do mato lhe dão o sustento; sua roupa foi tecida por sua mãe que veio trazê-la na outra lua. Peri não te custa nada.
Cecília chorava; D. Antônio e seu filho estavam comovidos; D. Lauriana mesma parecia enternecida.
— Não digas isto, Peri! Nunca na minha casa te faltaria a menor coisa, se tu não recusasses tudo e não quisesses viver isolado na tua cabana. Mesmo agora dize o que desejas, o que te agrada, e é teu.
— Por que então mandas Peri embora?
D. Antônio não sabia o que responder; e foi obrigado a procurar um pretexto para explicar ao índio o seu procedimento: a idéia da religião, que todos os povos compreendem, pareceu-lhe a mais própria.
— Tu sabes que nós os brancos temos um Deus, que mora lá em cima, a quem amamos, respeitamos e obedecemos.
— Sim.
— Esse Deus não quer que viva no meio de nós um homem que não o adora, e não o conhece; até hoje lhe desobedecemos; agora ele manda.
— O Deus de Peri também mandava que ele ficasse com sua mãe, na sua tribo, junto dos ossos de seu pai; e Peri abandonou tudo para seguir-te.
Houve um momento de silêncio; D. Antônio não sabia o que replicar.
— Peri não te quer aborrecer; só espera a ordem da senhora. Tu mandas que Peri vá, senhora?
D. Lauriana que apenas se tinha falado em religião, voltara às suas prevenções contra o índio, fez um gesto imperioso à sua filha.
— Sim! balbuciou Cecília.
O índio abaixou a cabeça; uma lágrima deslizou-lhe pela face.
O que ele sofria é impossível dizer: a palavra não sabe o segredo das tormentas profundas de uma alma forte e vigorosa, que pela primeira vez sente-se vencida pela dor.
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