Capítulo XIII: Trama
Tornemos ao lugar onde deixamos Loredano e seus dois companheiros.
O italiano depois que Álvaro e Peri se afastaram, levantou-se; passada a primeira emoção, sentira um acesso de raiva e desespero por lhe escaparem os seus inimigos.
Um instante lembrou-se de chamar os cúmplices para atacar o cavalheiro e o índio; mas essa idéia desvaneceu-se logo; o aventureiro conhecia os homens que o seguiam; sabia que podia fazer deles assassinos, mas nunca homens de energia e resolução.
Ora, os dois inimigos que tinha a combater, eram respeitáveis; e Loredano temeu comprometer ainda mais a sua causa, já muito mal parada. Devorou pois em silêncio a sua raiva, e começou a refletir nos meios de sair da posição difícil em que se achava.
Neste meio tempo Rui Soeiro e Bento Simões vinham-se aproximando receosos do que tinham visto, e temendo o menor incidente que complicasse a situação.
Loredano e seus companheiros olharam-se em silêncio um momento; havia nos olhos destes últimos uma interrogação muda e inquieta, a que respondia perfeitamente o rosto pálido e contraído do italiano.
— Não era ele!... murmurou o aventureiro com a voz surda.
— Como sabeis?
— Se fosse, acreditais que me deixasse a vida?
— É verdade; mas quem foi então?
— Não sei; porém agora pouco importa. Quem quer que fosse, é um homem que sabe o nosso segredo e pode denunciá-lo, se já não o fez.
— Um homem?... murmurou Bento Simões que até então se conservava silencioso.
— Sim; um homem. Quereis que fosse uma sombra?
— Uma sombra não, mas um espírito! acudiu o aventureiro.
O italiano sorriu de escárnio.
— Os espíritos têm mais que fazer para se ocuparem com o que vai por este mundo; guardai as vossas abusões, e pensemos seriamente no partido que devemos tomar.
— Lá quanto a isso, Loredano, é escusado; ninguém me tira que anda em tudo isto uma coisa sobrenatural.
— Quereis calar-vos, estúpido carola! replicou o italiano com impaciência.
— Estúpido!... Estúpido sois vós que não vistes que não há ouvido de criatura que pudesse ouvir as nossas palavras, nem voz humana que saia da terra. Vinde! E vou mostrar-vos se o que digo é ou não é verdade.
Os dois acompanharam Bento Simões e voltaram à touça de cardos, onde tivera lugar a sua entrevista.
— Ide, Rui e falai à goela despregada para ver se Loredano ouve uma palavra sequer.
Com efeito a experiência mostrou-lhes o que Peri tinha conhecido; que o som da voz entaipado dentro daquela espécie de tubo, se elevava e perdia no ar, sem que dos lados se pudesse perceber a menor frase. Se porém o italiano se tivesse colocado sobre o formigueiro que penetrava até ao chão onde há pouco estavam sentados, teria tido a explicação da cena anterior.
— Agora, disse Bento Simões, entrai; eu gritarei e vereis que a palavra vos passará pela cabeça e não sairá da terra.
— Quanto a isso pouco se me dá, respondeu o italiano. A outra observação, sim, tranqüiliza-me. O homem que nos ameaçou não ouviu; desconfia apenas.
— Ainda insistis em que fosse um homem?
— Escutai, amigo Bento Simões; há uma coisa de que tenho mais medo do que de uma cobra; é de um homem visionário.
— Visionário! dizei crente!
— Um vale outro. Visionário ou crente, se me falais outra vez em espíritos e milagres, prometo-vos que ficareis neste lugar onde servireis de carniça aos urubus.
O aventureiro tornou-se esverdinhado; não era a idéia da morte e sim da pena eterna que segundo uma crença religiosa, sofrem as almas cujos corpos ficam insepultos, o que mais o horrorizava.
— Pensastes?
— Sim.
— Admitis que fosse um homem?
— Admito tudo.
— Jurais.
— Juro.
— Sobre...
— Sobre a minha salvação.
O italiano soltou o braço do miserável, que caiu de joelhos pedindo ao Deus que ofendia perdão para o perjúrio que acabava de cometer.
Rui Soeiro voltou: os três seguiram calados o caminho que tinham feito, Loredano pensativo, seus companheiros cabisbaixos.
Sentaram-se à sombra de uma árvore; ai permaneceram quase uma hora, sem saber o que deviam fazer, nem o que podiam esperar. A posição era critica, reconheciam que se achavam num desses lances da vida, em que um passo, um movimento, precipita o homem no fundo do abismo, ou o salva da morte que vai cair sobre ele.
Loredano media a situação com a audácia e energia que nunca o abandonava nas ocasiões extremas; uma lata violenta se travara neste homem; só tinha agora um sentimento, uma fibra; era a sede ardente do gozo, sensualidade exacerbada pelo ascetismo do claustro e o isolamento do deserto. Comprimida desde a infância, a sua organização se expandira com veemência no meio deste pais vigoroso, aos raios do sol ardente que fazia borbulhar o sangue.
Então, no delírio dos instintos materiais, surgiram duas paixões violentas.
Uma era a paixão do ouro; a esperança de poder um dia deleitar-se na contemplação do tesouro fabuloso que como Tântalo ele ia tocar e fugia-lhe.
A outra era paixão do amor; a febre que lhe requeimava o sangue quando via aquela menina inocente e cândida, que parecia não dever inspirar senão afeições castas.
A lata que naquele momento o agitava, dava-se entre essas duas paixões. Devia fugir e salvar o seu tesouro, perdendo Cecília? Devia ficar e arriscar a vida para saciar o seu desejo infrene?
As vezes dizia consigo que bastava-lhe a riqueza para poder escolher no mundo uma mulher que amasse; outras parecia-lhe que o universo inteiro sem Cecília ficaria deserto, e inútil lhe seria todo o ouro que ia conquistar.
Por fim ergueu a cabeça. Seus companheiros esperavam uma palavra sua como o oráculo do seu destino; prepararam-se para ouvi-lo.
— Só há duas coisas a fazer, ou entrarmos na casa, ou fugirmos daqui mesmo; é preciso resolver. Que pensais vós?
— Eu penso, disse Bento Simões trêmulo ainda, que devemos fugir quanto antes, e andar dia e noite sem parar.
— E vós, Rui, sois do mesmo aviso?
— Não; fugir é nos denunciar e perder. Três homens sós neste sertão, obrigados a evitar o povoado, não podem viver; temos inimigos por toda a parte.
— Que propondes então?
— Que entremos em casa como se nada tivesse passado; ou estamos descobertos, e neste caso ainda faltam as provas para nos condenarem; ou ignoram tudo e não corremos o menor risco.
— Tendes razão, disse o italiano, devemos voltar; nessa casa está a nossa fortuna, ou a nossa ruína. Achamo-nos numa posição em que devemos ganhar tudo ou perder tudo.
Houve longa pausa durante que o italiano refletia.
— Com quantos homens contais, Rui? perguntou ele.
— Com oito.
— E vós, Bento?
— Sete.
— Decididos?
— Prontos ao menor sinal.
— Bem, disse o italiano com o desempeno de um chefe dispondo o plano da batalha; trazei cada um os vossos homens amanhã a esta hora; é preciso que à noite tudo esteja concluído.
— E agora o que vamos fazer? perguntou Bento Simões.
— Vamos esperar que escureça; à boca da noite nos achegaremos da casa. Um de nós à sorte entrará primeiro; se nada houver, dará sinal aos outros. Assim, quando um se perca, dois ao menos terão ainda esperança de salvar-se.
Os aventureiros resolveram passar o dia no mato; uma caça, algumas frutas silvestres deram-lhes simples mas abundante refeição.
Por volta de cinco horas da tarde se encaminharam à casa, a fim de sondarem o que passava, e realizarem o seu projeto.
Antes de partirem, Loredano carregou a clavina, mandou seus companheiros carregar as suas, e disse-lhes:
— Assentai bem nisto. Na posição difícil em que estamos, quem não é nosso amigo é nosso inimigo. Pode ser um espião, um denunciante; em todo o caso será depois menos um que teremos contra nós.
Os dois compreenderam a justeza dessa observação, e seguiram com as armas engatilhadas, olho vivo e ouvido alerta.
Apesar porém da sua atenção, não viram agitar-se as folhas a dois passos deles e estender-se pelos arbustos uma ondulação que parecia produzida pela correnteza do vento.
Era Peri; havia um quarto de hora que ele acompanhava os aventureiros como a sua sombra; o índio deixando D. Antônio dera pela sua ausência e conjeturando que eles tramavam alguma coisa, lançou-se em sua procura.
O italiano e seus companheiros caminhavam já havia pedaço, quando Bento Simões parou:
— Quem entrará primeiro?
— A sorte decidirá, respondeu Rui.
— Como?
— Desta maneira, disse o italiano. Vedes aquela árvore? O que primeiro chegar a ela será o último a entrar; o último será o primeiro.
— Está dito!
Os três meteram as armas à cinta e prepararam-se para a corrida.
Peri ouvindo-os teve uma inspiração: os aventureiros iam separar-se; como Loredano, ele também disse consigo:
— O último será o primeiro.
E tomando três flechas, esticou a corda do arco; mataria os aventureiros sem que um percebesse a morte dos outros.
Os três partiram; mas não tinham feito uma braça de caminho quando Bento Simões tropeçando, foi de encontro a Loredano, e estendeu-se no chão, ao fio comprido do lombo.
Loredano soltou uma blasfêmia, Bento gritou misericórdia; Rui que já ia adiante, voltou julgando que alguma coisa sucedia.
O plano de Peri tinha gorado.
— Sabeis, disse Loredano, que no páreo perde aquele que se deixou cair. Sereis o primeiro, amigo Bento.
O aventureiro não tugiu.
Peri não perdera a esperança de lhe deparar a fortuna outra ocasião favorável para realizar o seu projeto; seguiu-os. Foi então que de longe por baixo das árvores avistou Álvaro na mesma direção em que iam os aventureiros; despedindo uma seta por elevação dera ao cavalheiro o primeiro sinal, e os outros que o fizeram afastar-se.
Deixando Álvaro, a intenção do índio era atalhar os aventureiros, esperá-los junto à cerca; e quando eles se separassem para entrar um a um, matá-los.
Mas uma fatalidade parecia perseguir o índio, e proteger seus inimigos.
Quando Bento Simões, destacando-se dos companheiros, entrou a cerca, Peri ouviu naquela direção a voz de Cecília que voltava do passeio com seu pai e sua prima.
A mão do índio, que nunca tremera no meio do combate, caiu inerte; escapou-lhe o arco, só com a idéia de que a seta que ia atirar pudesse assustar a menina, quanto mais ofendê-la.
Bento Simões passou incólume.
Capítulo XIV: A Xácara
Peri viu passar pouco depois Loredano e Rui Soeiro.
Era a terceira vez que os aventureiros depois de estarem na sua mão lhe escapavam por uma espécie de fatalidade.
O índio refletiu alguns momentos e tomou uma resolução definitiva; modificou inteiramente o seu plano. A princípio decidira não atacar os três inimigos de frente, não porque os temesse, mas sim porque receava que morrendo pudessem realizar a salvo o projeto, cujo segredo só ele sabia.
Conheceu porém que não havia remédio senão recorrer a este expediente; o tempo corria; de um momento para outro podia o italiano executar a sua trama.
O que precisava era achar um meio para, no caso de sucumbir, prevenir a D. Antônio de Mariz do perigo que o ameaçava; este meio havia já acudido ao pensamento do índio.
Foi ter com Álvaro que o esperava.
O moço já o tinha esquecido; pensava em Cecília, na sua afeição quebrada, na sua mais doce esperança marcha, e talvez perdida para sempre.
Às vezes também apresentava-se ao seu espírito a imagem melancólica de Isabel; lembrava-se que ela também amava, e não era amada. Esta lembrança criava certo laço entre ele e a moca; ambos sofriam pela mesma causa, ambos sentiam o mesmo pesar, e curtiam igual desengano.
Depois vinha a idéia de que era a ele que Isabel amava; sem querer repassava na memória as ternas palavras; revia o sorriso triste e os olhares de fogo que se aveludavam com a languidez do amor. Parecia-lhe que sentia ainda o hálito perfumado da moça, a pressão da cabeça desfalecida em seu ombro, o contato das mãos trêmulas, e o eco das queixas murmuradas pela voz maviosa.
O coração lhe palpitava com violência; esquecia-se revendo a bela imagem, de um moreno suave, a que o amor dava reflexos e uma auréola esplêndida.
Mas de repente estremecia, como se a moça ainda estivesse perto dele; passava a mão pela fronte para arrancar as reminiscências que o incomodavam; e tornava à indiferença de Cecília e ao desengano de suas esperanças.
Quando Peri se aproximou, Álvaro estava num dos momentos de tédio e desapego da vida, que sucedem às dores profundas.
— Dize-me, Peri. Falaste de inimigos?
— Sim; respondeu o índio.
— Quero conhecê-los.
— Para quê?
— Para atacá-los.
— Mas são três.
— Melhor.
O índio hesitou:
— Não; Peri quer combater só os inimigos de sua senhora; se ele morrer, tu saberás tudo; acaba então o que Peri tiver começado.
— Para que este mistério? Não podes dizer já quem são esses inimigos?
— Peri pode; mas não quer dizer.
— Por quê?
— Porque tu és bom e pensas que os outros também são; tu defenderás os maus.
— Oh! que não. Fala!
— Ouve. Se Peri não aparecer amanhã, tu não tornarás a vê-lo; mas a alma de Peri voltará para te dizer os nomes deles.
— Como?
— Tu verás. São três; querem ofender a senhora, matar seu pai, a ti, a todos da casa. Têm outros que os seguem.
— Uma revolta!... exclamou Álvaro.
— O primeiro deles quer fugir e levar Ceci, que tu amas; mas Peri não deixará.
— É impossível! disse o moço surpreendido.
— Peri te diz a verdade.
— Não creio!...
Com efeito o cavalheiro atribuindo as desconfianças do índio a uma exageração filha da sua dedicação extrema pela filha de D. Antônio, não podia acreditar no horrível atentado: sua direitura de sentimentos repelia a possibilidade de um crime tal!
O fidalgo era amado e respeitado por todos os aventureiros; nunca durante dez anos que o moço o acompanhava, se tinha dado na banda um só ato de insubordinação contra a pessoa do chefe; havia faltas de disciplina, rixas entres os companheiros, tentativas de deserção; mas não passava disto.
O índio sabia que Álvaro duvidaria do que se passava; e por isso se obstinava em guardar parte do segredo, receando que o moço com seu cavalheirismo não tomasse o partido dos três aventureiros.
— Tu duvidas de Peri?
— Quem faz uma acusação tal, precisa prová-la. Tu és um amigo, Peri; mas os outros também o são, e têm o direito de se defenderem.
— Quando um homem vai morrer, tu julgas que ele mente? perguntou o índio com firmeza.
— Que queres dizer com isso?
— Peri vai vingar sua senhora; vai se separar de tudo quanto ama; se ele perder a vida, dirás ainda que se engana?
Álvaro foi abalado pelas palavras do índio.
— Melhor é que fales a D. Antônio de Mariz.
— Não; ele e tu servem para combater homens que atacam pela frente; Peri sabe caçar o tigre na floresta, e esmagar a cobra que vai lançar o bote.
— Mas então o que queres de mim?
— Que se Peri morrer, acredites no que ele te diz e faças o que ele fez; que salves a senhora!
— Assassinar?... Nunca, Peri; nunca o meu braço brandirá o ferro senão contra o ferro!
O índio lançou ao moço um olhar que brilhou nas trevas.
— Tu não amas Ceci!
Álvaro estremeceu.
— Se tu a amasses, matarias teu irmão para livrá-la de um perigo.
— Peri, talvez não compreendas o que vou dizer-te. Daria a minha vida sem hesitar por Cecília; mas a minha honra pertence a Deus e à memória de meu pai.
Os dois homens olharam-se um momento em silêncio; ambos tinham a mesma grandeza de alma e a mesma nobreza de sentimentos; entretanto as circunstâncias da vida haviam criado neles um contraste.
Em Álvaro, a honra e um espírito de lealdade cavalheiresca dominavam todas as suas ações; não havia afeição ou interesse que pudesse quebrar a linha invariável, que ele havia traçado, e era a linha do dever.
Em Peri a dedicação sobrepujava tudo; viver para sua senhora, criar em torno dela uma espécie de providência humana, era a sua vida; sacrificaria o mundo se possível fosse, contanto que pudesse, como o Noé dos índios, salvar uma palmeira onde abrigar Cecília.
Entretanto essas duas naturezas, uma filha da civilização, a outra filha da liberdade selvagem, embora separadas por distancia imensa, compreendiam-se: a sorte lhes traçara um caminho diferente; mas Deus vazara em suas almas o mesmo germe do heroísmo que nutre os grandes sentimentos.
Peri conheceu que Álvaro não cederia; Álvaro sabia que Peri apesar de sua recusa, cumpriria exatamente o que tinha resolvido.
O índio a princípio parecia impressionado pela obstinação do cavalheiro; porém ergueu a cabeça com um gesto altivo, e batendo com a mão no peito largo e vitorioso, disse em tom de energia:
— Peri só, defenderá sua senhora: não precisa de ninguém. É forte; tem como a andorinha as asas de suas flechas; como a cascavel o veneno das setas; como o tigre a força do seu braço; como a ema a velocidade de sua carreira. Só pode morrer uma vez; mas uma vida lhe basta.
— Pois bem, amigo, respondeu o cavalheiro com nobreza, vais realizar o teu sacrifício; eu cumprirei o meu dever. Tenho uma vida também, e a minha espada. Farei de uma a sombra de Cecília; com a outra traçarei em torno dela um circulo de ferro. Podes ficar certo que os inimigos que passarem por cima de teu corpo, acharão o meu antes de chegarem à tua senhora.
— Tu és grande; podias ter nascido no deserto, e ser o rei das florestas; Peri te chamaria irmão.
Apertaram as mãos e dirigiram-se a casa; em caminho Álvaro lembrou-se que ainda não conhecia os homens contra os quais tinha de defender Cecília: perguntou seus nomes; Peri recusou formalmente e prometeu que o cavalheiro saberia, quando fosse tempo.
O índio tinha a sua idéia.
Chegando à casa os dois separaram-se; Álvaro ganhou o aposento que ocupava; Peri encaminhou-se para o jardim de Cecília.
Eram então oito horas da noite; toda a família se achava reunida na ceia; o quarto da menina estava às escuras. Peri examinou os arredores para ver se tudo estava tranqüilo e em sossego; e sentou-se num banco do jardim.
Meia hora depois uma luz esclareceu a janela do quarto, e a porta abrindo-se deixou ver o corpinho gracioso de Cecília que destacava no vão esclarecido.
A menina avistando o índio correu para ele.
— Meu pobre Peri, disse ela; tu sofreste hoje muito, não é verdade? E achaste tua senhora bem má e bem ingrata, porque te mandou partir! Mas agora, meu pai disse: Ficarás conosco para sempre.
— Tu és boa, senhora: tu choravas quando Peri ia partir; pediste para ele ficar.
— Então não tens queixa de Ceci? disse a menina sorrindo.
— O escravo pode ter queixa de sua senhora? tornou o índio simplesmente.
— Mas tu não és escravo!... respondeu Cecília com um gesto de contrariedade; tu és um amigo sincero e dedicado. Duas vezes me salvaste a vida; fazes impossíveis para me veres contente e satisfeita; todos os dias te arriscas a morrer por minha causa.
O índio sorriu.
— Que queres que Peri faça de sua vida, senhora?
— Quero que estime sua senhora e lhe obedeça, e aprenda o que ela lhe ensinar, para ser um cavalheiro como meu irmão D. Diogo e o Sr. Álvaro.
Peri abanou a cabeça.
— Olha, continuou a menina; Ceci vai te ensinar a conhecer o Senhor do Céu, e a rezar também e ler bonitas historias. Quando souberes tudo isto, ela bordará um manto de seda para ti; terá uma espada, e uma cruz no peito. Sim?
— A planta precisa de sol para crescer; a flor precisa de água para abrir; Peri precisa de liberdade para viver.
— Mas tu serás livres; e nobre como meu pai!
— Não!... O pássaro que voa nos ares cai, se lhe quebram as asas; o peixe que nada no rio morre, se o deitam em terra; Peri será como o pássaro e como o peixe, se tu cortas as suas asas e o tiras da vida em que nasceu.
Cecília bateu com o pé em sinal de impaciência.
— Não te zanga, senhora.
— Não fazes o que Ceci pede?... Pois Ceci não te quer mais bem; nem te chamará mais seu amigo. Vê; já não guardo a flor que me deste.
E a linda menina, machucando a flor que arrancou dos cabelos, correu para o seu quarto e bateu a porta com violência.
O índio voltou pesaroso à sua cabana.
De repente cortou o silêncio da noite voz argentina, que cantava uma antiga xácara portuguesa, com sentimento e expressão arrebatadora. Os sons doces de uma guitarra espanhola faziam o acompanhamento da música.
A xácara dizia assim:
Foi um dia. — Infanção mouro
Deixou
Alcáçar de prata e ouro.
Montado no seu corcel.
Partiu
Sem pajem, sem anadel.
Do castelo à barbacã
Chegou;
Viu formosa castelã.
Aos pés daquela a quem ama
Jurou
Ser fiel à sua dama.
A gentil dona e senhora
Sorriu;
Ai! que isenta ela não fora!
‘"Tu és mouro; eu sou cristã"’:
Falou
A formosa castelã.
‘"Mouro, tens o meu amor;
Cristão,
Serás meu nobre sen hor".’
Sua voz era um encanto,
O olhar
Quebrado, pedia tanto!
"Antes de ver-te, senhora,
Fui rei;
Serei teu escravo agora.
Por ti deixo meu alcáçar
Fiel;
Meus paços d’'ouro e de nácar.
Por ti deixo o paraíso,
Meu céu
É teu mimoso sorriso".’
A dona em um doce enleio
Tirou
Seu lindo colar do seio.
As duas almas cristãs,
Na cruz
Um beijo tornou irmãs.”
A voz suave e meiga perdeu-se no silêncio do ermo; o eco repetiu um momento as suas doces modulações.
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