Thursday, 18 March 2021

Thursday's Serial: "O Guarani" by José de Alencar (in Portuguese) - X

Capítulo XIII: Trama

Tornemos ao lugar onde deixamos Loredano e seus dois companheiros.

O italiano depois que Álvaro e Peri se afastaram, levantou-se; passada a primeira emoção, sentira um acesso de raiva e desespero por lhe escaparem os seus inimigos.

Um instante lembrou-se de chamar os cúmplices para atacar o cavalheiro e o índio; mas essa idéia desvaneceu-se logo; o aventureiro conhecia os homens que o seguiam; sabia que podia fazer deles assassinos, mas nunca homens de energia e resolução.

Ora, os dois inimigos que tinha a combater, eram respeitáveis; e Loredano temeu comprometer ainda mais a sua causa, já muito mal parada. Devorou pois em silêncio a sua raiva, e começou a refletir nos meios de sair da posição difícil em que se achava.

Neste meio tempo Rui Soeiro e Bento Simões vinham-se aproximando receosos do que tinham visto, e temendo o menor incidente que complicasse a situação.

Loredano e seus companheiros olharam-se em silêncio um momento; havia nos olhos destes últimos uma interrogação muda e inquieta, a que respondia perfeitamente o rosto pálido e contraído do italiano.

— Não era ele!... murmurou o aventureiro com a voz surda.

— Como sabeis?

— Se fosse, acreditais que me deixasse a vida?

— É verdade; mas quem foi então?

— Não sei; porém agora pouco importa. Quem quer que fosse, é um homem que sabe o nosso segredo e pode denunciá-lo, se já não o fez.

— Um homem?... murmurou Bento Simões que até então se conservava silencioso.

— Sim; um homem. Quereis que fosse uma sombra?

— Uma sombra não, mas um espírito! acudiu o aventureiro.

O italiano sorriu de escárnio.

— Os espíritos têm mais que fazer para se ocuparem com o que vai por este mundo; guardai as vossas abusões, e pensemos seriamente no partido que devemos tomar.

— Lá quanto a isso, Loredano, é escusado; ninguém me tira que anda em tudo isto uma coisa sobrenatural.

— Quereis calar-vos, estúpido carola! replicou o italiano com impaciência.

— Estúpido!... Estúpido sois vós que não vistes que não há ouvido de criatura que pudesse ouvir as nossas palavras, nem voz humana que saia da terra. Vinde! E vou mostrar-vos se o que digo é ou não é verdade.

Os dois acompanharam Bento Simões e voltaram à touça de cardos, onde tivera lugar a sua entrevista.

— Ide, Rui e falai à goela despregada para ver se Loredano ouve uma palavra sequer.

Com efeito a experiência mostrou-lhes o que Peri tinha conhecido; que o som da voz entaipado dentro daquela espécie de tubo, se elevava e perdia no ar, sem que dos lados se pudesse perceber a menor frase. Se porém o italiano se tivesse colocado sobre o formigueiro que penetrava até ao chão onde há pouco estavam sentados, teria tido a explicação da cena anterior.

— Agora, disse Bento Simões, entrai; eu gritarei e vereis que a palavra vos passará pela cabeça e não sairá da terra.

— Quanto a isso pouco se me dá, respondeu o italiano. A outra observação, sim, tranqüiliza-me. O homem que nos ameaçou não ouviu; desconfia apenas.

— Ainda insistis em que fosse um homem?

— Escutai, amigo Bento Simões; há uma coisa de que tenho mais medo do que de uma cobra; é de um homem visionário.

— Visionário! dizei crente!

— Um vale outro. Visionário ou crente, se me falais outra vez em espíritos e milagres, prometo-vos que ficareis neste lugar onde servireis de carniça aos urubus.

O aventureiro tornou-se esverdinhado; não era a idéia da morte e sim da pena eterna que segundo uma crença religiosa, sofrem as almas cujos corpos ficam insepultos, o que mais o horrorizava.

— Pensastes?

— Sim.

— Admitis que fosse um homem?

— Admito tudo.

— Jurais.

— Juro.

— Sobre...

— Sobre a minha salvação.

O italiano soltou o braço do miserável, que caiu de joelhos pedindo ao Deus que ofendia perdão para o perjúrio que acabava de cometer.

Rui Soeiro voltou: os três seguiram calados o caminho que tinham feito, Loredano pensativo, seus companheiros cabisbaixos.

Sentaram-se à sombra de uma árvore; ai permaneceram quase uma hora, sem saber o que deviam fazer, nem o que podiam esperar. A posição era critica, reconheciam que se achavam num desses lances da vida, em que um passo, um movimento, precipita o homem no fundo do abismo, ou o salva da morte que vai cair sobre ele.

Loredano media a situação com a audácia e energia que nunca o abandonava nas ocasiões extremas; uma lata violenta se travara neste homem; só tinha agora um sentimento, uma fibra; era a sede ardente do gozo, sensualidade exacerbada pelo ascetismo do claustro e o isolamento do deserto. Comprimida desde a infância, a sua organização se expandira com veemência no meio deste pais vigoroso, aos raios do sol ardente que fazia borbulhar o sangue.

Então, no delírio dos instintos materiais, surgiram duas paixões violentas.

Uma era a paixão do ouro; a esperança de poder um dia deleitar-se na contemplação do tesouro fabuloso que como Tântalo ele ia tocar e fugia-lhe.

A outra era paixão do amor; a febre que lhe requeimava o sangue quando via aquela menina inocente e cândida, que parecia não dever inspirar senão afeições castas.

A lata que naquele momento o agitava, dava-se entre essas duas paixões. Devia fugir e salvar o seu tesouro, perdendo Cecília? Devia ficar e arriscar a vida para saciar o seu desejo infrene?

As vezes dizia consigo que bastava-lhe a riqueza para poder escolher no mundo uma mulher que amasse; outras parecia-lhe que o universo inteiro sem Cecília ficaria deserto, e inútil lhe seria todo o ouro que ia conquistar.

Por fim ergueu a cabeça. Seus companheiros esperavam uma palavra sua como o oráculo do seu destino; prepararam-se para ouvi-lo.

— Só há duas coisas a fazer, ou entrarmos na casa, ou fugirmos daqui mesmo; é preciso resolver. Que pensais vós?

— Eu penso, disse Bento Simões trêmulo ainda, que devemos fugir quanto antes, e andar dia e noite sem parar.

— E vós, Rui, sois do mesmo aviso?

— Não; fugir é nos denunciar e perder. Três homens sós neste sertão, obrigados a evitar o povoado, não podem viver; temos inimigos por toda a parte.

— Que propondes então?

— Que entremos em casa como se nada tivesse passado; ou estamos descobertos, e neste caso ainda faltam as provas para nos condenarem; ou ignoram tudo e não corremos o menor risco.

— Tendes razão, disse o italiano, devemos voltar; nessa casa está a nossa fortuna, ou a nossa ruína. Achamo-nos numa posição em que devemos ganhar tudo ou perder tudo.

Houve longa pausa durante que o italiano refletia.

— Com quantos homens contais, Rui? perguntou ele.

— Com oito.

— E vós, Bento?

— Sete.

— Decididos?

— Prontos ao menor sinal.

— Bem, disse o italiano com o desempeno de um chefe dispondo o plano da batalha; trazei cada um os vossos homens amanhã a esta hora; é preciso que à noite tudo esteja concluído.

— E agora o que vamos fazer? perguntou Bento Simões.

— Vamos esperar que escureça; à boca da noite nos achegaremos da casa. Um de nós à sorte entrará primeiro; se nada houver, dará sinal aos outros. Assim, quando um se perca, dois ao menos terão ainda esperança de salvar-se.

Os aventureiros resolveram passar o dia no mato; uma caça, algumas frutas silvestres deram-lhes simples mas abundante refeição.

Por volta de cinco horas da tarde se encaminharam à casa, a fim de sondarem o que passava, e realizarem o seu projeto.

Antes de partirem, Loredano carregou a clavina, mandou seus companheiros carregar as suas, e disse-lhes:

— Assentai bem nisto. Na posição difícil em que estamos, quem não é nosso amigo é nosso inimigo. Pode ser um espião, um denunciante; em todo o caso será depois menos um que teremos contra nós.

Os dois compreenderam a justeza dessa observação, e seguiram com as armas engatilhadas, olho vivo e ouvido alerta.

Apesar porém da sua atenção, não viram agitar-se as folhas a dois passos deles e estender-se pelos arbustos uma ondulação que parecia produzida pela correnteza do vento.

Era Peri; havia um quarto de hora que ele acompanhava os aventureiros como a sua sombra; o índio deixando D. Antônio dera pela sua ausência e conjeturando que eles tramavam alguma coisa, lançou-se em sua procura.

O italiano e seus companheiros caminhavam já havia pedaço, quando Bento Simões parou:

— Quem entrará primeiro?

— A sorte decidirá, respondeu Rui.

— Como?

— Desta maneira, disse o italiano. Vedes aquela árvore? O que primeiro chegar a ela será o último a entrar; o último será o primeiro.

— Está dito!

Os três meteram as armas à cinta e prepararam-se para a corrida.

Peri ouvindo-os teve uma inspiração: os aventureiros iam separar-se; como Loredano, ele também disse consigo:

— O último será o primeiro.

E tomando três flechas, esticou a corda do arco; mataria os aventureiros sem que um percebesse a morte dos outros.

Os três partiram; mas não tinham feito uma braça de caminho quando Bento Simões tropeçando, foi de encontro a Loredano, e estendeu-se no chão, ao fio comprido do lombo.

Loredano soltou uma blasfêmia, Bento gritou misericórdia; Rui que já ia adiante, voltou julgando que alguma coisa sucedia.

O plano de Peri tinha gorado.

— Sabeis, disse Loredano, que no páreo perde aquele que se deixou cair. Sereis o primeiro, amigo Bento.

O aventureiro não tugiu.

Peri não perdera a esperança de lhe deparar a fortuna outra ocasião favorável para realizar o seu projeto; seguiu-os. Foi então que de longe por baixo das árvores avistou Álvaro na mesma direção em que iam os aventureiros; despedindo uma seta por elevação dera ao cavalheiro o primeiro sinal, e os outros que o fizeram afastar-se.

Deixando Álvaro, a intenção do índio era atalhar os aventureiros, esperá-los junto à cerca; e quando eles se separassem para entrar um a um, matá-los.

Mas uma fatalidade parecia perseguir o índio, e proteger seus inimigos.

Quando Bento Simões, destacando-se dos companheiros, entrou a cerca, Peri ouviu naquela direção a voz de Cecília que voltava do passeio com seu pai e sua prima.

A mão do índio, que nunca tremera no meio do combate, caiu inerte; escapou-lhe o arco, só com a idéia de que a seta que ia atirar pudesse assustar a menina, quanto mais ofendê-la.

Bento Simões passou incólume.

 

 

Capítulo XIV: A Xácara

Peri viu passar pouco depois Loredano e Rui Soeiro.

Era a terceira vez que os aventureiros depois de estarem na sua mão lhe escapavam por uma espécie de fatalidade.

O índio refletiu alguns momentos e tomou uma resolução definitiva; modificou inteiramente o seu plano. A princípio decidira não atacar os três inimigos de frente, não porque os temesse, mas sim porque receava que morrendo pudessem realizar a salvo o projeto, cujo segredo só ele sabia.

Conheceu porém que não havia remédio senão recorrer a este expediente; o tempo corria; de um momento para outro podia o italiano executar a sua trama.

O que precisava era achar um meio para, no caso de sucumbir, prevenir a D. Antônio de Mariz do perigo que o ameaçava; este meio havia já acudido ao pensamento do índio.

Foi ter com Álvaro que o esperava.

O moço já o tinha esquecido; pensava em Cecília, na sua afeição quebrada, na sua mais doce esperança marcha, e talvez perdida para sempre.

Às vezes também apresentava-se ao seu espírito a imagem melancólica de Isabel; lembrava-se que ela também amava, e não era amada. Esta lembrança criava certo laço entre ele e a moca; ambos sofriam pela mesma causa, ambos sentiam o mesmo pesar, e curtiam igual desengano.

Depois vinha a idéia de que era a ele que Isabel amava; sem querer repassava na memória as ternas palavras; revia o sorriso triste e os olhares de fogo que se aveludavam com a languidez do amor. Parecia-lhe que sentia ainda o hálito perfumado da moça, a pressão da cabeça desfalecida em seu ombro, o contato das mãos trêmulas, e o eco das queixas murmuradas pela voz maviosa.

O coração lhe palpitava com violência; esquecia-se revendo a bela imagem, de um moreno suave, a que o amor dava reflexos e uma auréola esplêndida.

Mas de repente estremecia, como se a moça ainda estivesse perto dele; passava a mão pela fronte para arrancar as reminiscências que o incomodavam; e tornava à indiferença de Cecília e ao desengano de suas esperanças.

Quando Peri se aproximou, Álvaro estava num dos momentos de tédio e desapego da vida, que sucedem às dores profundas.

— Dize-me, Peri. Falaste de inimigos?

— Sim; respondeu o índio.

— Quero conhecê-los.

— Para quê?

— Para atacá-los.

— Mas são três.

— Melhor.

O índio hesitou:

— Não; Peri quer combater só os inimigos de sua senhora; se ele morrer, tu saberás tudo; acaba então o que Peri tiver começado.

— Para que este mistério? Não podes dizer já quem são esses inimigos?

— Peri pode; mas não quer dizer.

— Por quê?

— Porque tu és bom e pensas que os outros também são; tu defenderás os maus.

— Oh! que não. Fala!

— Ouve. Se Peri não aparecer amanhã, tu não tornarás a vê-lo; mas a alma de Peri voltará para te dizer os nomes deles.

— Como?

— Tu verás. São três; querem ofender a senhora, matar seu pai, a ti, a todos da casa. Têm outros que os seguem.

— Uma revolta!... exclamou Álvaro.

— O primeiro deles quer fugir e levar Ceci, que tu amas; mas Peri não deixará.

— É impossível! disse o moço surpreendido.

— Peri te diz a verdade.

— Não creio!...

Com efeito o cavalheiro atribuindo as desconfianças do índio a uma exageração filha da sua dedicação extrema pela filha de D. Antônio, não podia acreditar no horrível atentado: sua direitura de sentimentos repelia a possibilidade de um crime tal!

O fidalgo era amado e respeitado por todos os aventureiros; nunca durante dez anos que o moço o acompanhava, se tinha dado na banda um só ato de insubordinação contra a pessoa do chefe; havia faltas de disciplina, rixas entres os companheiros, tentativas de deserção; mas não passava disto.

O índio sabia que Álvaro duvidaria do que se passava; e por isso se obstinava em guardar parte do segredo, receando que o moço com seu cavalheirismo não tomasse o partido dos três aventureiros.

— Tu duvidas de Peri?

— Quem faz uma acusação tal, precisa prová-la. Tu és um amigo, Peri; mas os outros também o são, e têm o direito de se defenderem.

— Quando um homem vai morrer, tu julgas que ele mente? perguntou o índio com firmeza.

— Que queres dizer com isso?

— Peri vai vingar sua senhora; vai se separar de tudo quanto ama; se ele perder a vida, dirás ainda que se engana?

Álvaro foi abalado pelas palavras do índio.

— Melhor é que fales a D. Antônio de Mariz.

— Não; ele e tu servem para combater homens que atacam pela frente; Peri sabe caçar o tigre na floresta, e esmagar a cobra que vai lançar o bote.

— Mas então o que queres de mim?

— Que se Peri morrer, acredites no que ele te diz e faças o que ele fez; que salves a senhora!

— Assassinar?... Nunca, Peri; nunca o meu braço brandirá o ferro senão contra o ferro!

O índio lançou ao moço um olhar que brilhou nas trevas.

— Tu não amas Ceci!

Álvaro estremeceu.

— Se tu a amasses, matarias teu irmão para livrá-la de um perigo.

— Peri, talvez não compreendas o que vou dizer-te. Daria a minha vida sem hesitar por Cecília; mas a minha honra pertence a Deus e à memória de meu pai.

Os dois homens olharam-se um momento em silêncio; ambos tinham a mesma grandeza de alma e a mesma nobreza de sentimentos; entretanto as circunstâncias da vida haviam criado neles um contraste.

Em Álvaro, a honra e um espírito de lealdade cavalheiresca dominavam todas as suas ações; não havia afeição ou interesse que pudesse quebrar a linha invariável, que ele havia traçado, e era a linha do dever.

Em Peri a dedicação sobrepujava tudo; viver para sua senhora, criar em torno dela uma espécie de providência humana, era a sua vida; sacrificaria o mundo se possível fosse, contanto que pudesse, como o Noé dos índios, salvar uma palmeira onde abrigar Cecília.

Entretanto essas duas naturezas, uma filha da civilização, a outra filha da liberdade selvagem, embora separadas por distancia imensa, compreendiam-se: a sorte lhes traçara um caminho diferente; mas Deus vazara em suas almas o mesmo germe do heroísmo que nutre os grandes sentimentos.

Peri conheceu que Álvaro não cederia; Álvaro sabia que Peri apesar de sua recusa, cumpriria exatamente o que tinha resolvido.

O índio a princípio parecia impressionado pela obstinação do cavalheiro; porém ergueu a cabeça com um gesto altivo, e batendo com a mão no peito largo e vitorioso, disse em tom de energia:

— Peri só, defenderá sua senhora: não precisa de ninguém. É forte; tem como a andorinha as asas de suas flechas; como a cascavel o veneno das setas; como o tigre a força do seu braço; como a ema a velocidade de sua carreira. Só pode morrer uma vez; mas uma vida lhe basta.

— Pois bem, amigo, respondeu o cavalheiro com nobreza, vais realizar o teu sacrifício; eu cumprirei o meu dever. Tenho uma vida também, e a minha espada. Farei de uma a sombra de Cecília; com a outra traçarei em torno dela um circulo de ferro. Podes ficar certo que os inimigos que passarem por cima de teu corpo, acharão o meu antes de chegarem à tua senhora.

— Tu és grande; podias ter nascido no deserto, e ser o rei das florestas; Peri te chamaria irmão.

Apertaram as mãos e dirigiram-se a casa; em caminho Álvaro lembrou-se que ainda não conhecia os homens contra os quais tinha de defender Cecília: perguntou seus nomes; Peri recusou formalmente e prometeu que o cavalheiro saberia, quando fosse tempo.

O índio tinha a sua idéia.

Chegando à casa os dois separaram-se; Álvaro ganhou o aposento que ocupava; Peri encaminhou-se para o jardim de Cecília.

Eram então oito horas da noite; toda a família se achava reunida na ceia; o quarto da menina estava às escuras. Peri examinou os arredores para ver se tudo estava tranqüilo e em sossego; e sentou-se num banco do jardim.

Meia hora depois uma luz esclareceu a janela do quarto, e a porta abrindo-se deixou ver o corpinho gracioso de Cecília que destacava no vão esclarecido.

A menina avistando o índio correu para ele.

— Meu pobre Peri, disse ela; tu sofreste hoje muito, não é verdade? E achaste tua senhora bem má e bem ingrata, porque te mandou partir! Mas agora, meu pai disse: Ficarás conosco para sempre.

— Tu és boa, senhora: tu choravas quando Peri ia partir; pediste para ele ficar.

— Então não tens queixa de Ceci? disse a menina sorrindo.

— O escravo pode ter queixa de sua senhora? tornou o índio simplesmente.

— Mas tu não és escravo!... respondeu Cecília com um gesto de contrariedade; tu és um amigo sincero e dedicado. Duas vezes me salvaste a vida; fazes impossíveis para me veres contente e satisfeita; todos os dias te arriscas a morrer por minha causa.

O índio sorriu.

— Que queres que Peri faça de sua vida, senhora?

— Quero que estime sua senhora e lhe obedeça, e aprenda o que ela lhe ensinar, para ser um cavalheiro como meu irmão D. Diogo e o Sr. Álvaro.

Peri abanou a cabeça.

— Olha, continuou a menina; Ceci vai te ensinar a conhecer o Senhor do Céu, e a rezar também e ler bonitas historias. Quando souberes tudo isto, ela bordará um manto de seda para ti; terá uma espada, e uma cruz no peito. Sim?

— A planta precisa de sol para crescer; a flor precisa de água para abrir; Peri precisa de liberdade para viver.

— Mas tu serás livres; e nobre como meu pai!

— Não!... O pássaro que voa nos ares cai, se lhe quebram as asas; o peixe que nada no rio morre, se o deitam em terra; Peri será como o pássaro e como o peixe, se tu cortas as suas asas e o tiras da vida em que nasceu.

Cecília bateu com o pé em sinal de impaciência.

— Não te zanga, senhora.

— Não fazes o que Ceci pede?... Pois Ceci não te quer mais bem; nem te chamará mais seu amigo. Vê; já não guardo a flor que me deste.

E a linda menina, machucando a flor que arrancou dos cabelos, correu para o seu quarto e bateu a porta com violência.

O índio voltou pesaroso à sua cabana.

De repente cortou o silêncio da noite voz argentina, que cantava uma antiga xácara portuguesa, com sentimento e expressão arrebatadora. Os sons doces de uma guitarra espanhola faziam o acompanhamento da música.

 

A xácara dizia assim:

 

Foi um dia. — Infanção mouro

Deixou

Alcáçar de prata e ouro.

 

Montado no seu corcel.

Partiu

Sem pajem, sem anadel.

 

 

Do castelo à barbacã

Chegou;

Viu formosa castelã.

 

Aos pés daquela a quem ama

Jurou

Ser fiel à sua dama.

 

A gentil dona e senhora

Sorriu;

Ai! que isenta ela não fora!

 

"Tu és mouro; eu sou cristã":

Falou

A formosa castelã.

 

"Mouro, tens o meu amor;

Cristão,

Serás meu nobre sen hor".

 

Sua voz era um encanto,

O olhar

Quebrado, pedia tanto!

 

"Antes de ver-te, senhora,

Fui rei;

Serei teu escravo agora.

 

Por ti deixo meu alcáçar

Fiel;

Meus paços d'ouro e de nácar.

 

Por ti deixo o paraíso,

Meu céu

É teu mimoso sorriso".

 

A dona em um doce enleio

Tirou

Seu lindo colar do seio.

 

As duas almas cristãs,

Na cruz

Um beijo tornou irmãs.

 

A voz suave e meiga perdeu-se no silêncio do ermo; o eco repetiu um momento as suas doces modulações.

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