Thursday, 25 March 2021

Thursday's Serial: "O Guarani" by José de Alencar (in Portuguese) - XI

 TERCEIRA PARTE: OS AIMORÉS

 

 

CAPÍTULO I: PARTIDA

Na segunda-feira, eram seis horas da manhã, quando D. Antônio de Mariz chamou seu filho.

O velho fidalgo velara uma boa parte da noite; ou escrevendo ou refletindo sobre os perigos que ameaçavam sua família.

Peri lhe havia contado todas as particularidades de seu encontro com os Aimorés; e o cavalheiro, que conhecia a ferocidade e o espírito vingativo dessa raça selvagem, esperava a cada momento ser atacado.

Por isso, de acordo com Álvaro, D. Diogo e seu escudeiro Aires Gomes, tinha tomado todas as medidas de precaução que as circunstâncias e sua longa experiência lhe aconselhavam.

Quando seu filho entrou, o velho fidalgo acabava de selar duas cartas que escrevera na véspera.

— Meu filho, disse ele com uma ligeira emoção, refleti esta noite sobre o que nos pode acontecer, e assentei que deveis partir hoje mesmo para São Sebastião.

— Não é possível, senhor!... Afastais-me de vós justamente quando correis um perigo?

— Sim! É justamente quando um grande perigo nos ameaça, que eu, chefe da casa, entendo ser do meu dever salvar o representante do meu nome e meu herdeiro legitimo, o protetor de minha família órfã.

— Confio em Deus, meu pai, que vossos receios serão infundados; mas se ele nos quiser submeter a tal provança, o único lagar que compete a vosso filho e herdeiro de vosso nome é nesta casa ameaçada, ao vosso lado, para defender-vos e partilhar a vossa sorte, qualquer que ela seja.

D. Antônio apertou seu filho ao peito.

— Eu te reconheço; tu és meu filho; é o meu sangue juvenil que gira em tuas veias, e o meu coração de moço que fala pelos teus lábios. Deixa porém que os cinqüenta anos de experiência que desde então passaram sobre minha cabeça encanecida te ensinem o que vai da mocidade à velhice, o que vai do ardente cavalheiro ao pai de uma família.

— Eu vos escuto, senhor; mas pelo amor que vos consagro poupai-me a dor e a vergonha de deixar-vos no momento em que mais precisais de um servidor fiel e dedicado.

O fidalgo prosseguiu já calmo:

— Não é uma espada, D. Diogo, que nos dará a vitória, fosse ela valente e forte como a vossa: entre quarenta combatentes que vão se medir talvez contra centenas e centenas de inimigos, um de mais ou de menos não importa ao resultado.

— Que assim seja, respondeu o cavalheiro com energia; reclamo o meu posto de honra e a minha parte do perigo; não vos ajudarei a vencer, porém morrerei junto dos meus.

— E é por esse nobre mas estéril orgulho que quereis sacrificar o único meio de salvação que talvez nos reste, se, como temo, as minhas previsões se realizarem?

— Que dizeis, senhor?

— Qualquer que seja a força e o número dos inimigos, conto que o valor português e a posição desta casa me ajudarão a resistir-lhe por algum tempo, por vinte dias, mesmo por um mês; mas por fim teremos de sucumbir.

— Então?... exclamou D. Diogo pálido.

— Então se meu filho D. Diogo, em vez de ficar nesta casa por uma obstinação imprudente, tiver ido ao Rio de Janeiro, e pedido o auxilio que fidalgos portugueses não lhe recusarão decerto, poderá voar em socorro de seu pai, e chegar com tempo para defender sua família. Então verá que esta glória de ser o salvador de sua casa vale bem a honra de um perigo inútil.

D. Diogo deitou o joelho em terra, e beijou com ternura a mão do fidalgo:

— Perdão, meu pai, por não vos ter compreendido. Eu devia adivinhar que D. Antônio de Mariz não pode querer para o filho senão o que é digno do pai.

— Vamos, D. Diogo, não há tempo a perder. Lembrai-vos que uma hora, um minuto de tardança talvez tenha de ser contado ansiosamente por aqueles que vão esperar-vos.

— Parto neste instante, disse o cavalheiro dirigindo-se à porta.

— Tomai; esta carta é para Martim de Sá, governador desta capitania; esta outra é para meu cunhado e vosso tio Crispim Tenreiro, valente fidalgo que vos poupará o trabalho de procurardes defensores para vossa família. Ide despedir-vos de vossa mãe, e vossas irmãs; eu farei tudo preparar para a partida.

O fidalgo, reprimindo a sua emoção, saiu do gabinete onde se passava esta cena, e foi ter com Álvaro que o procurava.

— Álvaro, escolhei quatro homens que acompanhem D. Diogo ao Rio de Janeiro.

— D. Diogo parte?... perguntou o moço admirado.

— Sim, depois vos direi as razões. Por agora dai-vos pressa em que tudo esteja pronto dentro de uma hora.

Álvaro dirigiu-se imediatamente ao fundo da casa onde habitavam os aventureiros.

Havia ai grande agitação; uns falavam em tom de queixa, outros murmuravam apenas palavras entrecortadas; e alguns finalmente riam e motejavam do descontentamento de seus companheiros.

Aires Gomes com todo o seu arreganho militar passeava no meio do terreiro, a mão no punho da espada, a cabeça alta e o bigode retorcido. Quando o escudeiro passava, a voz dos aventureiros descia dois tons; mas à medida que ele se afastava, cada um dava livre desabafo ao seu mau humor.

Entre os mais inquietos e turbulentos distinguiam-se três grupos presididos por personagens de nosso conhecimento: Loredano, Rui Soeiro e Bento Simões.

A causa desse descontentamento quase geral era a seguinte:

Por volta de seis horas da manhã, Rui, em virtude do emprazamento da véspera, dirigiu-se o primeiro à escada para ganhar o mato.

Chegando ao fim da esplanada admirou-se de ver aí Vasco Afonso e Martim Vaz de vigia, o que era extraordinário, pois só à noite se usava de uma tal precaução, e esta cessava apenas amanhecia.

Ainda mais admirado porém ficou quando os dois aventureiros cruzando as espadas, proferiram quase ao mesmo tempo estas palavras:

— Não se passa.

— E por que razão?

— É a ordem, respondeu Martim Vaz.

Rui empalideceu, e voltou apressadamente; a primeira idéia que lhe acudiu foi que os tinham denunciado, e cuidou em prevenir a Loredano.

Aires Gomes porém embargou-lhe o passo, e dirigiuse com ele para o terreiro: ai o digno escudeiro desempenando o corpo, e levando a mão à boca em forma de buzina, gritou.

— Olá! À frente toda a banda!

Os aventureiros chegaram-se formando um círculo ao redor de Aires Gomes; Rui já tinha tido ocasião de lançar uma palavra ao ouvido do italiano; e ambos, um pouco pálidos mas resolutos, esperavam o desfecho daquela cena.

— O Sr. D. Antônio de Mariz, disse o escudeiro, por meu intermédio vos faz saber a sua vontade: e manda que ninguém se afaste um passo da casa sem sua ordem. Quem o contrário fizer, pereça morte natural.

Um silêncio morno acolheu a enunciação desta ordem. Loredano trocou uma vista rápida com os seus dois cúmplices.

— Estais entendidos? disse Aires Gomes.

— O que nem eu, nem meus companheiros entendemos e a razão disto, retrucou o italiano avançando um passo.

— Sim; a razão? exclamou em coro a maioria dos aventureiros.

— As ordens cumprem-se, e não se discutem, respondeu o escudeiro com uma certa solenidade.

— Contudo nós... ia dizendo Loredano.

— Toca a debandar! gritou Aires Gomes. Aquele que não estiver contente, que o diga ao Sr. D. Antônio de Mariz.

E o escudeiro com uma fleuma imperturbável rompeu o circulo e começou a passear pelo terreiro olhando de traves os aventureiros e rindo à sorrelfa do seu desapontamento.

Quase todos estavam contrariados; sem falar dos conspiradores que se haviam emprazado para concertarem seu plano de campanha, os outros, cujo divertimento era caçar e bater os matos, não recebiam a ordem com prazer. Apenas alguns de gênio mais bonachão e jovial tinham tomado a coisa à boa parte, e zombavam da contrariedade que sofriam seus companheiros.

Quando Álvaro se aproximou todos os olhos se voltaram para ele, esperando a explicação do que se passava.

— Sr. cavalheiro, disse Aires Gomes, acabo de transmitir a ordem para que ninguém arrede pé da casa.

— Bem, respondeu o moço, e continuou dirigindo-se aos aventureiros: assim é preciso, meus amigos, estamos ameaçados de um ataque dos selvagens, e toda a prudência é pouca nestas ocasiões. Não é só a nossa vida que temos a defender, e essa pouco vale para cada um de nós; é sim a pessoa daquele que confia em nosso zelo e coragem, e mais ainda o sossego de uma família honrada que todos prezamos.

As nobres palavras do cavalheiro, e a afabilidade do gesto que suavizava a firmeza de sua voz, serenaram completamente os ânimos; todos os descontentes mostraram-se satisfeitos.

Apenas Loredano estava desesperado por ser obrigado a retardar a combinação do seu plano; pois era arriscado tentá-lo em casa, onde o menor gesto o podia trair.

Álvaro trocou poucas palavras com Aires Gomes, e voltou-se para os aventureiros:

— D. Antônio de Mariz precisa de quatro homens dedicados para acompanharem seu filho D. Diogo à cidade de São Sebastião. É uma missão perigosa; quatro homens nestes desertos marcham de perigo em perigo. Quem de vós se oferece para desempenhá-la?

Vinte homens se adiantaram; o cavalheiro escolheu três entre eles.

— Vós sereis o quarto, Loredano.

O italiano que se tinha escondido entre os seus companheiros, ficou como fulminado por estas palavras; sair naquela ocasião da casa era perder para sempre a sua mais ardente esperança; durante a ausência tudo podia se descobrir.

— Pesa-me ser obrigado a negar-me ao serviço que exigis de mim; mas sinto-me doente, e sem forças para uma viagem.

O cavalheiro sorriu.

— Não há enfermidade que prive um homem de cumprir o seu dever; sobretudo quando é um homem valente e leal como vós, Loredano.

Depois abaixou a voz para não ser ouvido pelos outros aventureiros:

— Se não partis, sereis arcabuzado em uma hora. Esqueceis que tenho a vossa vida em minha mão e vos faço esmola mandando-vos sair desta casa?

O italiano compreendeu que não tinha remédio senão partir; bastava que o moço o acusasse de ter atirado sobre ele, bastava a palavra de Álvaro para fazê-lo condenar pelo chefe e pelos seus próprios companheiros.

— Aviai-vos, disse o cavalheiro aos quatro aventureiros escolhidos por ele; partis em meia hora.

Álvaro retirou-se.

Loredano ficou um momento abatido pela fatalidade que pesava sobre ele; mas a pouco e pouco foi recobrando a calma, animando-se; por fim sorriu. Para que sorrisse era necessário que alguma inspiração infernal tivesse subido do centro da terra a essa inteligência votada ao crime. Fez um aceno a Rui Soeiro, e os dois encaminharam-se para um cubículo que o italiano ocupava no fim da esplanada. Aí conversaram algum tempo, rapidamente e em voz baixa.

Foram interrompidos por Aires Gomes, que bateu com a espada na porta:

— Eh! lá! Loredano. A cavalo, homem; e boa viagem.

O italiano abriu a porta, e ia sair; mas voltou-se para dizer a Rui Soeiro:

— Olhai os homens da guarda; é o principal.

— Ide tranqüilo.

Alguns minutos depois, D. Diogo com o coração cerrado e as lágrimas nos olhos, apertava nos braços sua mãe querida, Cecília que ele adorava, e Isabel que já amava também como irmã.

Depois desprendendo-se com um esforço, encaminhou-se apressadamente para a escada e desceu ao vale; ai recebeu a bênção de seu pai e abraçando a Álvaro saltou na sela do cavalo, que Aires Gomes tinha pela rédea.

A pequena cavalgata partiu; com pouco sumia-se na volta do caminho.

 

 

CAPÍTULO II: PREPARATIVOS

Ao tempo que D. Antônio de Mariz e seu filho conversaram no gabinete, Peri examinava as suas armas, carregava as pistolas que sua senhora lhe havia dado na véspera, e saia da cabana.

A fisionomia do selvagem tinha uma expressão de energia e ardimento, que revelava resolução violenta, talvez desesperada.

O que ia fazer, nem ele mesmo sabia. Certo de que o italiano e seus companheiros se reuniriam naquela manhã, contava, antes que a reunião se efetuasse, ter mudado inteiramente a face das coisas.

Só tinha uma vida, como dissera; mas essa com a sua agilidade e a sua força e coragem valia por muitas; tranqüilo sobre o futuro pela promessa de Álvaro, não lhe importava o número dos inimigos: podia morrer, mas esperava deixar pouco ou talvez nada que fazer ao cavalheiro.

Saindo de sua cabana, Peri entrou no jardim: Cecília estava sentada num tapete de peles sobre a relva, e amimava ao seio a sua rolinha predileta, oferecendo os lábios de carmim às carícias que a ave lhe fazia com o bico delicado.

A menina estava pensativa; doce melancolia desvanecia a vivacidade natural de seu semblante.

— Tu estás agastada com Peri, senhora?

— Não, respondeu a menina fitando nele os grandes olhos azuis. Não quiseste fazer o que eu pedi; tua senhora ficou triste.

Ela dizia a verdade com a ingênua franqueza da inocência. Na véspera, quando se tinha recolhido enfadada pela recusa de Peri, ficara contrariada.

Educada no fervor religioso de sua mãe, embora sem os prejuízos que a razão de D. Antônio corrigira no espírito de sua filha, Cecília tinha a fé cristã em toda a pureza e santidade. Por isso se afligia com a idéia de que Peri, a quem votava uma amizade profunda, não salvasse a sua alma, e não conhecesse o Deus bom e compassivo a quem ela dirigia suas preces.

Conhecia que a razão, por que sua mãe e os outros desprezavam o índio, era o seu gentilismo; e a menina no seu reconhecimento queria elevar o amigo e torná-lo digno da estima de todos.

Eis a razão por que ficara triste; era a gratidão por Peri, que defendera sua vida de tantos perigos, e a quem ela queria retribuir salvando a sua alma.

Nesta disposição de espírito, seus olhos caíram sobre a guitarra espanhola que estava em cima da cômoda e veio-lhe vontade de cantar. É coisa singular como a melancolia inspira! Seja por uma necessidade de expansão, seja porque a música e a poesia suavizem a dor, toda a criatura triste acha no canto um supremo consolo.

A menina tirou ligeiros prelúdios do instrumento enquanto repassava na memória as letras de alguns solaus e cantigas que sua mãe lhe havia ensinado. A que lhe acudiu mais naturalmente foi a xácara que ouvimos: havia nessa composição uns longes, um quer que seja que ela não sabia explicar, mas ia com seus pensamentos.

Quando acabou de cantar levantou-se, apanhou a flor de Peri que tinha atirado ao chão, deitou-a nos cabelos, e fazendo a sua oração da noite, adormeceu tranqüilamente. O último pensamento que rogou a sua fronte alva foi um voto de gratidão pelo amigo que lhe salvara a vida naquela manhã. Depois um sorriso adejou sobre seu rosto gracioso, como se a alma durante o sono dos olhos viesse brincar nos lábios entreabertos.

O índio, ouvindo as palavras que acabava de proferir Cecília, sentiu que pela primeira vez tinha causado uma mágoa real a sua senhora.

— Tu não entendeste Peri, senhora; Peri te pediu que o deixasses na vida em que nasceu, porque precisa desta vida para servir-te.

— Como?... Não te entendo!

— Peri, selvagem, é o primeiro dos seus; só tem uma lei, uma religião, é sua senhora; Peri, cristão, será o último dos teus; será um escravo, e não poderá defender-te.

— Um escravo!... Não! Serás um amigo. Eu te juro! exclamou a menina com vivacidade.

O índio sorriu:

— Se Peri fosse cristão, e um homem quisesse te ofender, ele não poderia matá-lo, porque o teu Deus manda que um homem não mate outro. Peri selvagem não respeita ninguém; quem ofende sua senhora é seu inimigo, e, morre!

Cecília, pálida de emoção, olhou o índio, admirada não tanto da sublime dedicação, como do raciocínio; ela ignorava a conversa que o índio tivera na véspera com o cavalheiro.

— Peri te desobedeceu por ti somente; quando já não correres perigo, ele virá ajoelhar a teus pés, e beijar a cruz que tu lhe deste. Não fica zangada!

— Meu Deus!... murmurou Cecília pondo os olhos no céu. É possível que uma dedicação tamanha não seja inspirada por vossa santa religião!...

A alegria serena e doce de sua alma irradiava na fisionomia encantadora:

— Eu sabia que tu não me negarias o que te pedi; assim não exijo mais; espero. Lembra-te somente que no dia em que tu fores cristão, tua senhora te estimará ainda mais.

— Não ficas triste?

— Não; agora estou satisfeita, contente, muito contente! — Peri quer pedir-te uma coisa.

— Dize, o que é?

— Peri quer que tu risques um papel para ele.

— Riscar um papel?...

— Como este que teu pai deu hoje a Peri.

— Ah! queres que eu escreva?

— Sim.

— O quê?

— Peri vai dizer.

— Espera.

Ligeira e graciosa, a menina correu à banquinha, e tomando uma folha de papel e uma pena fez sinal a Peri que se aproximasse.

Não devia ela satisfazer os desejos do índio, como este satisfazia às suas menores fantasias?

— Vamos: fala que eu escrevo.

— Peri a Álvaro, disse o índio.

— É uma carta ao Sr. Álvaro? perguntou a menina corando.

— Sim; é para ele.

— Que vais tu dizer-lhe?

— Escreve.

A menina traçou a primeira linha, e depois por pedido de Peri, o nome de Loredano e dos seus dois cúmplices.

— Agora, disse o índio, fecha.

Cecília selou a carta.

— Entrega à tarde; antes não.

— Mas que quer isto dizer? perguntou Cecília sem compreender.

— Ele te dirá.

— Não, que eu...

A menina balbuciou, corando, estas palavras; ia dizer que não falaria ao cavalheiro e arrependeu-se; não queria revelar a Peri o que se tinha passado. Sabia que se o índio suspeitasse a cena da véspera, odiaria Isabel e Álvaro, só por lhe terem causado um pesar involuntário.

Enquanto Cecília confusa procurava disfarçar o enleio, Peri fitava nela o seu olhar brilhante; mal pensava a menina que aquele olhar era o adeus extremo que o índio lhe dizia.

Mas para isto fora preciso que adivinhasse o plano desesperado que ele havia concebido de exterminar naquele dia todos os inimigos da casa.

D. Diogo entrou nesse momento no quarto de sua irmã: vinha despedir-se dela.

Quanto a Peri, deixando Cecília, dirigiu-se à escada e achou os mesmos vigias, que depois embargaram a passagem de Rui Soeiro.

— Não se passa, disseram os aventureiros cruzando as espadas.

O índio levantou os ombros desdenhosamente; e antes que as sentinelas voltassem a si da surpresa, tinha mergulhado sob as espadas e descido a escada. Então ganhou a mata, examinou de novo as suas armas e esperou; já estava cansado quando viu passar a pequena cavalgata.

Peri não compreendeu o que sucedia; mas conheceu que o seu plano tinha abortado.

Foi ter com Álvaro.

O cavalheiro explicou-lhe como se aproveitara da ida de D. Diogo ao Rio de Janeiro para expulsar o italiano sem rumor e sem escândalo. Então o índio por sua vez contou ao moço o que tinha ouvido na touça de cardos; o projeto que formara de matar os três aventureiros naquela manhã; e finalmente a carta que lhe escrevera por intermédio de Cecília, para, no caso de sucumbir ele, saber o cavalheiro quem eram os inimigos.

Álvaro duvidava ainda acreditar em tanta perfídia do italiano.

— Agora, concluiu Peri, é preciso que os dois também saiam; se ficarem, o outro pode voltar.

— Não se animará! disse o cavalheiro.

— Peri não se engana! Manda sair os dois.

— Fica descansado. Falarei com D. Antônio de Mariz.

O resto do dia passou tranqüilamente; mas a tristeza tinha entrado nessa casa ainda na véspera tão alegre e feliz; a partida de D. Diogo, o temor vago que produz o perigo quando se aproxima, e o receio de um ataque dos selvagens, preocupavam os moradores do Paquequer.

Os aventureiros dirigidos por D. Antônio, executavam trabalhos de defesa tornando ainda mais inacessível o rochedo em que estava situada a casa.

Uns construíam paliçadas em roda da esplanada: outros arrastavam para a frente da casa uma colubrina que o fidalgo por excesso de cautela mandara vir de São Sebastião havia dois anos. Toda a casa enfim apresentava um aspecto marcial, que indicava as vésperas de um combate; D. Antônio preparava-se para receber dignamente o inimigo.

Apenas em toda esta casa uma pessoa se conservava alheia ao que passava: era Isabel, que só pensava no seu amor.

Depois de sua confissão, arrancada violentamente ao seu coração por uma força irresistível, por um impulso que ela não sabia explicar, a pobre menina quando se vira só, no seu quarto, à noite, quase morreu de vergonha.

Lembrava-se de suas palavras, e perguntava a si mesma como tivera a coragem de dizer aquilo, que antes nem mesmo os seus olhos se animavam a exprimir silenciosamente. Parecia-lhe que era impossível tornar a ver Álvaro sem que cada um dos olhares do moço queimasse as suas faces e a obrigasse a esconder o rosto de pejo.

Entretanto nem por isso seu amor era menos ardente; ao contrário agora é que a paixão, por muito tempo reprimida, se exacerbava com as lutas e contrariedades.

As poucas palavras doces que o moço lhe dirigia, a pressão das mãos, e o aperto rápido sobre o coração de Álvaro num momento de alucinação, passavam e repassavam na sua memória a todo o momento.

Seu espírito, como uma borboleta em torno da flor, esvoaçava constantemente em torno das reminiscências ainda vivas, como para libar todo o mel que encerravam aquelas sensações, as primeiras de seu infeliz amor.

Nesse mesmo dia de segunda-feira, à tarde, Álvaro encontrou-se um momento com Isabel na esplanada. Ambos ficaram mudos, e coraram. Álvaro ia retirar-se.

— Sr. Álvaro... balbuciou a moça trêmula.

— Que quereis de mim, D. Isabel? perguntou o moço perturbado.

— Esqueci-me o restituir-vos ontem o que não me pertence.

— E ainda esse malfadado bracelete?

— Sim, respondeu a moça docemente, é este malfadado bracelete: Cecília teima que

é ele vosso.

— Se meu é, vos peço que o aceiteis.

— Não, Sr. Álvaro, não tenho direito.

— Uma irmã não tem direito de aceitar a prenda que lhe oferece seu irmão?

— Tendes razão, respondeu a moça suspirando, eu o guardarei como lembrança vossa; não será adorno para mim, senão relíquia.

O moço não respondeu; retirou-se para cortar a conversa.

Desde a véspera Álvaro não podia eximir-se à impressão poderosa que causara nele a paixão de Isabel; era preciso que não fosse homem para não se sentir profundamente comovido pelo amor ardente de uma mulher bela, e pelas palavras de fogo que corriam dos lábios de Isabel impregnadas de perfume e sentimento.

Mas a razão direita do cavalheiro recalcava essa impressão no fundo do coração; ele não se pertencia; tinha aceitado o legado de D. Antônio de Mariz e jurado dar a sua mão a Cecília.

Embora não esperasse mais realizar o seu sonho dourado, entendia que estava vigorosamente obrigado a sujeitar-se a vontade do fidalgo, a proteger sua filha, a dedicar-lhe sua existência. Quando Cecília o repelisse abertamente, e D. Antônio o desobrigasse de sua promessa, então seu coração seria livre, se não estivesse morto pelo desengano.

O único fato notável que se deu nesse dia foi a chegada de seis aventureiros das vizinhanças, que prevenidos por D. Diogo vinham oferecer seus serviços a D. Antônio.

Chegaram ao lusco-fusco; à frente deles vinha o nosso conhecido mestre Nunes, que um ano antes dera hospitalidade no seu pouso a Frei Ângelo di Luca.

 

 

CAPÍTULO III: VERME E FLOR

Eram onze horas da noite.

O silêncio reinava na habitação e seus arredores; tudo estava tranqüilo e sereno. Algumas estrelas brilhavam no céu; os sopros escassos da viração sussurravam na folhagem.

Os dois homens de vigia, apoiados ao arcabuz e reclinados sobre o alcantil, sondavam a sombra espessa que se estendia pela aba do rochedo.

O vulto majestoso de D. Antônio de Mariz passou lentamente pela esplanada, e desapareceu no canto da casa. O fidalgo fazia sua ronda noturna, como um general na véspera de uma batalha.

Passados alguns momentos ouviu-se cantar uma coruja no vale, junto da escada de pedra; um dos vigias abaixou-se, e tomando dois pequenos seixos deixou-os cair um depois do outro.

O som fraco que produziu a queda das pedras sobre o arvoredo da várzea foi quase imperceptível; seria difícil distingui-lo do rumor do vento nas folhas.

Um instante depois um vulto subiu ligeiramente a escada, e reuniu-se aos dois homens que faziam a guarda noturna::

— Tudo está pronto?

— Só esperamos por vós.

— Vamos! Não há tempo a perder.

Trocadas estas palavras rapidamente entre o que chegava e um dos vigias, os três encaminharam-se com todas as precauções para a alpendrada em que habitava a banda dos aventureiros.

Aí, como no resto da casa, tudo estava calmo e tranqüilo; apenas via-se luzir na soleira da porta do aposento de Aires Gomes a claridade de uma luz.

Um dos três chegou-se à entrada do alpendre, e esgueirando-se pela parede perdeu-se na escuridão que havia no interior.

Os outros dois se dirigiam ao fim da casa, e ai ocultos pela sombra e pelo ângulo que formava um largo pilar do edifício, começaram um diálogo breve e rápido.

— Quantos são? perguntou o homem que chegara.

— Vinte ao todo.

— Restam-nos?

— Dezenove.

— Bem. A senha?.

— Prata.

— E o fogo?

— Pronto.

— Aonde?

— Nos quatro cantos.

— Quantos sobram?

— Dois apenas.

— Seremos nós.

— Precisais de mim?

— Sim.

Houve uma pequena pausa, em que um dos aventureiros parecia refletir profundamente enquanto o outro esperava; por fim o primeiro ergueu a cabeça:

— Rui, vós me sois dedicado?

— Dei-vos a prova.

— Preciso de um amigo fiel.

— Contai comigo.

— Obrigado.

O desconhecido apertou a mão de seu companheiro.

— Sabeis que amo uma mulher?

— Vós mo dissestes.

— Sabeis que é mais por essa mulher do que por este tesouro fabuloso que concebi esse plano horrível?

— Não; não o sabia.

— Pois é a verdade; pouco me importa a riqueza; sede meu amigo; servi-me lealmente, e tereis a maior parte do meu tesouro.

— Falei; que quereis que eu faça?

— Um juramento; mas um juramento sagrado, terrível.

— Qual? Dizei!

— Hoje essa mulher me pertencerá; entretanto se por qualquer acaso eu vier a morrer, quero que...

O desconhecido hesitou.

— Quero que nenhum homem possa amá-la, que nenhum homem possa gozar a felicidade suprema que ela pode dar.

— Mas como?

— Matando-a!

Rui sentiu um calafrio.

— Matando-a, para que a mesma cova receba nossos dois corpos; não sei por quê, mas parece-me que ainda cadáver, o contato dessa mulher deve ser para mim um gozo imenso.

— Loredano!... exclamou seu companheiro horrorizado.

— Sois meu amigo e sereis meu herdeiro! disse o italiano agarrando-lhe convulsivamente no braço. É a minha condição; se recusais, outro aceitará o tesouro que rejeitais!

O aventureiro estava em lata com dois sentimentos opostos; mas a ambição violenta, cega, esvairada, abafou o grito fraco da consciência.

— Jurais? perguntou Loredano.

— Juro!... respondeu Rui com a voz estrangulada.

— Avante então!

Loredano abriu a porta do seu cubículo, e voltou algum tempo depois trazendo uma tábua longa e estreita que colocou sobre o despenhadeiro como uma espécie de ponte suspensa.

— Ides segurar esta tábua, Rui. Entrego em vossas mãos a minha vida, e nisto dou-vos a maior prova de confiança. Basta que deixeis esta prancha mover-se para que eu me precipite sobre os rochedos.

O italiano achava-se então no mesmo lugar que na noite da chegada, algumas braças distante da janela de Cecília, onde não podia chegar por causa do ângulo que formavam o rochedo e o edifício.

A tábua foi colocada na direção da janela; a primeira vez tinha-lhe bastado o seu punhal; agora também necessitava de um apoio seguro, e do livre movimento de seus braços. Rui colocou-se sobre a ponta da tábua, e segurando-se a um frechal do alpendre manteve imóvel sobre o precipício essa ponte pênsil em que o italiano ia arriscar-se.

Quanto a este, sem hesitar, tirou as suas armas para ficar mais leve, descalçou-se, segurou a longa faca entre os dentes, e pôs o pé sobre a prancha.

— Esperar-me-eis do outro lado, disse o italiano.

— Sim, respondeu Rui com voz trêmula.

A razão por que a voz de Rui tremia, era um pensamento diabólico que começava a fermentar no seu espírito. Lembrou-lhe que tinha na mão Loredano e o seu segredo; que para ver-se livre de um e senhor do outro, bastava afastar o pé e deixar a tábua inclinar sobre o abismo.

Entretanto hesitava; não que o remorso antecipado lhe exprobrasse o crime que ia cometer; já tinha-se afundado muito no vício e na depravação para recuar. Mas o italiano exercia sobre os seus cúmplices tal prestigio e influência tão poderosa, que Rui não podia mesmo nesse momento esquivar-se a ela.

Loredano estava suspenso sobre o abismo pela sua mão; podia salvá-lo ou precipitá-lo no despenhadeiro; e contudo dessa posição ainda ele impunha respeito ao aventureiro.

Rui tinha medo: não compreendia o motivo desse terror irresistível; mas o sentia como uma obsessão e um pesadelo.

No entanto a imagem da riqueza esplêndida, brilhante, radiando galas e luzimentos, passava diante de seus olhos e o deslumbrada; um pouco de coragem, e seria o único senhor do tesouro fabuloso, cujo era o italiano depositário do segredo.

Mas coragem é o que lhe faltava; por duas ou três vezes o aventureiro teve um ímpeto de suspender-se ao frechal, e deixar a tábua rolar no abismo; não passou de um desejo.

Venceu afinal a tentação.

Teve um momento de desvario: os joelhos acurvaram-se; a tábua sofreu uma oscilação tão forte, que Rui admirou-se de como o italiano se tinha podia suster.

Então o medo desapareceu; foi substituído por uma espécie de raiva e frenesi que se apoderou do aventureiro; o primeiro esforço lhe dera a ousadia, como a vista do sangue excita a fera.

Um segundo abalo mais forte agitou a tábua, que oscilou à borda do rochedo; porém não se ouviu o baque de um corpo; não se ouviu mais que o choque da madeira sobre a pedra. Rui, desesperado, ia soltar a prancha, quando chegou-lhe ao ouvido, abafada e sumida, a voz do italiano, que apenas se percebia no silêncio profundo da noite.

— Estais cansado, Rui?... Podeis tirar a tábua; não preciso mais dela.

O aventureiro ficou espavorido; decididamente esse homem era um espírito infernal que planava sobre o abismo, e escarnecia do perigo; um ente superior a quem a morte não podia tocar.

Ele ignorava que Loredano, com a sua previdência ordinária, quando entrara no seu cubículo para tirar a prancha, tivera o cuidado de passar por um caibro do alpendre, que era de telha-vã, a ponta de uma longa corda, que caiu sobre a parte de fora da parede uma braça distante da janela de Cecília.

Assim, apenas deu o primeiro passo sobre a ponte improvisada, o italiano não se descuidou de estender o braço e agarrar a ponta da corda, que logo atou à cintura; então se o apoio lhe faltasse, ficaria suspenso no ar, e, embora com mais dificuldade, realizaria o seu intento.

Foi por isso que os dois abalos produzidos pelo seu cúmplice não tiveram o resultado que ele esperava; logo do primeiro, Loredano adivinhou o que se passava na alma de Rui; mas não querendo dar-lhe a perceber que conhecia a sua traição, serviu-se de um meio indireto para dizer-lhe que estava em segurança, e que era inútil a tentativa de precipitá-lo.

A tábua não fez mais um só movimento; conservou-se imóvel como se estivera solidamente pregada ao rochedo.

Loredano adiantou-se, tocou a janela da moça, e com a ponta da faca conseguiu levantar a aldraba; as gelosias abrindo-se afastaram as cortinas de cassa que vendavam o asilo do pudor e da inocência.

Cecília dormia envolta nas alvas roupas do seu leito; sua cabecinha loura aparecia entre as rendas finíssimas sobre as quais se desenrolavam os lindos anéis dourados de seus cabelos. O doce amortecimento de um sono calmo e sereno vendava seu rosto gracioso, como a sombra esvaecida que desmaia o semblante das virgens de Murilo; seu sorriso era apenas enlevo.

O talho de sua anágua abrindo-se deixava entrever um colo de linhas puras, mais alvo do que a cambraia; e com a ondulação que a respiração branda imprimia ao seu peito, desenhavam-se sob a lençaria diáfana os seios mimosos.

Tudo isto ressaltava como um quadro dentre as ondas de uma colcha de damasco azul que nas suas largas dobras moldava sobre a alvura transparente do linho os contornos harmoniosos e puros.

Havia porém nessa beleza adormecida uma expressão indefinível, um quer que seja de tão casto e inocente, que envolvia essa menina no seu sono tranqüilo e parecia afugentar dela um pensamento profano.

Chegando-se à beira daquele leito, um homem ajoelharia antes como ao pé de uma santa, do que se animaria a tocar na ponta dessas roupagens brancas que protegiam a inocência.

Loredano aproximou-se, tremendo, pálido e ofegante; toda a força de sua vigorosa organização, toda a sua vontade poderosa e irresistível, estava ai vencida, subjugada, diante de uma menina adormecida. O que sentiu quando seu olhar ardente caiu sobre o leito, é difícil dizer, é talvez mesmo difícil de compreender. Foi a um tempo suprema ventura e horrível suplício.

A paixão brutal o devorava escaldando-lhe o sangue nas veias e fazendo saltar-lhe o coração; entretanto o aspecto dessa menina que não tinha para sua defesa senão a sua castidade, o encadeava.

Sentia que o fogo queimava-lhe o seio; sentia que seus lábios tinham sede de prazer; e a mão gelada e inerte, não se podia erguer, e o corpo estava paralisado; apenas o olhar cintilava e as narinas dilatadas aspiravam as emanações voluptuosas de que estava impregnada a sua atmosfera.

E a menina sorria no seu plácido sono enleando-se talvez nalgum sonho gracioso, nalgum dos sonhos azuis que Deus esparge como folhas de rosas sobre o leito das virgens.

Era o anjo em face do demônio; era a mulher em face da serpente; a virtude em face do vício.

O italiano fez um esforço supremo, e passando a mão pelos olhos como para arrancar uma visão importuna, encaminhou-se a um bufete e acendeu uma vela de cera cor-de-rosa.

O aposento, até então esclarecido apenas por uma lamparina colocada sobre uma cantoneira, iluminou-se; e a imagem graciosa de Cecília apareceu cercada de uma auréola.

Sentindo a impressão da luz sobre os olhos, a menina fez um movimento, e voltando um pouco o rosto para o lado oposto continuou o sono, que nem fora interrompido.

Loredano passou entre o leito e a parede, e pôde então admirá-la em toda a sua beleza; não se lembrava de nada mais, esquecera o mundo e seu tesouro: nem pensava no rapto que ia praticar.

A rolinha que dormia sobre a cômoda no seu ninho de algodão ergueu-se e agitou as asas; o italiano, despertado por este rumor, conheceu que já era tarde e que não tinha tempo a perder.

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