Saturday, 25 May 2024

Good Reading: "Florença" by Raul de Leoni (in Portuguese)

Manhã de outono...
Través a gaze fluida da neblina,
Teu panorama, trêmulo, hesitante,
Se vai furtivamente desenhando,
Na alva doçura de uma renda fina...

Do florido balcão de San Miniato,
Como num cosmorama imaginário,
Vejo aos poucos despir-se o teu cenário,
Dentro de um sereníssimo aparato...
Em tons de madrepérola cambiante,
Ao reflexo de um íris fugidio,
Sob o ar transparente e o céu macio,
Abre-se em luz a concha colorida
Do vale do Arno...

Longe onde a névoa azul se dilui sobre as linhas
Amáveis das colinas,
Em caprichosas curvas serpentinas
De oliveiras em flor, de olmeiros e de vinhas,
De pinheiros reais e amendoeiras tranquilas,
Fiésole, bucólica e galante
Mostra, numa expressão fresca de tintas,
O esmalte senhorial das suas vilas
E o cromo pastoril das suas quintas,
Dentro dos bosques do Decameron...
 
Surgem zimbórios em mosaico, perfis duros
De arrogantes palácios gibelinos,
Silhuetas de basílicas votivas,
Torres mortas e suaves perspectivas
E o coleio longínquo dos teus muros,
Recortando a moldura azul dos Apeninos...
Teus sinos cantam num prelúdio lento
A elegia das horas imortais;
É a canção do teu próprio sentimento
Na voz sonâmbula das catedrais...

E é, então, que transponho as tuas portas
E ouvindo as tuas ruínas pensativas
Sinto-me em corpo e espírito em Florença:
A mais humana das cidades vivas,
A mais divina das cidades mortas!...

Florença, ó meu retiro espiritual!
Suave vinheta do meu pensamento!
Sempre te amei com o mesmo afeto humano
Dês que tu eras a comuna guelfa
Idealista, rebelde e sanguinária,
Até o dia
Em que tua alma, flor litúrgica e sombria
Do espírito cristão,
Fugindo do “Jardim das Escrituras”,
Foi, para ver a luz de outras alturas,
Sentar-se no “Banquete de Platão”!

Nobre e amável Florença!
Doce filha de Cristo e de Epicuro!
Flor de Volúpia e de Sabedoria!
Na tua alma de Vênus e Maria
Há uma estranha harmonia ambígua, indescritível:
A castidade melancólica dos lírios
E a graça afrodisíaca das rosas;
A mansuetude ingênua de Fra Angélico!
E a alegria picante de Bocácio!
Amo-te assim, indefinida e vária!
Casta e viciosa – gótica e pagã,
Harmoniosa entre a Acrópole e o Calvário.

Ó Pátria sereníssima
Das formas puras, das ideias claras;
Das igrejas, das fontes, dos jardins;
Dos mosaicos, das rendas, dos brocados;
Dos coloristas límpidos e meigos;
Das almas furta-cor e da graça perversa;
Da discreta estesia dos requintes;
Dos vícios raros, das perversões elegantes;
Dos venenos sutis e dos punhais lascivos;
Deliciosa no crime e na virtude,
Onde a existência foi uma bela atitude
De sensibilidade e de bom gosto
E passou pela História, assim, na ronda viva
Meditativa e brilhante
De uma “Fête Galante”!...

***

Trago-te a minha gratidão latina
Porque foi no teu seio que se fez
Toda a ressurreição da Vida luminosa:
Ó Florença! Florença!
A mais humana das cidades vivas!
A mais divina das cidades mortas!...

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