Carta 109 (53)
"Acceptis primum", a Ripário, presbítero de Aquitânia, c. ano 404
1. Tendo recebido tuas
cartas, <ó Ripário>, julgo que não lhes responder seria arrogância; e
responder-lhes, ao contrário, seria temeridade. Com efeito, as coisas que me
perguntas não podem nem ouvir-se nem contar-se sem sacrilégio. Dizes, pois, que
este tal Vigilâncio, a quem eu, com mais propriedade, chamaria Dormitâncio,
voltou a abrir a boca suja para exalar contra as relíquias dos santos mártires
o seu terrível mau cheiro: julgando-nos adoradores de ossos, ele nos chama
cinerários e idólatras. Oh! homem infeliz e digno de pena, que, ao dizer tais
coisas, não percebe ser mais um samaritano e judeu, os quais, preferindo a
letra que mata ao Espírito, que dá vida (cf. 2Cor 3, 6), consideram impuros não
só os cadáveres, mas inclusive a mobília de suas casas. Nós, ao contrário,
recusamo-nos a adorar, não digo nem as relíquias dos mártires, mas nem sequer o
sol, a lua ou os anjos, sejam arcanjos, querubins ou serafins, nem nenhum nome
que possa haver, quer neste mundo, quer no futuro (cf. Ef 1, 21), pois não
podemos servir mais às criaturas do que ao Criador, que é bendito pelos séculos
(cf. Rm 1, 25). Veneramos, todavia, as relíquias dos mártires, a fim de
adorarmos Aquele de quem eles são mártires; honramos, sim, os servos, para que
a honra prestada a eles recaia sobre o seu Senhor, que diz: "Quem vos
recebe, a mim recebe" (Mt 10, 40). São, portanto, impuras as relíquias de
Pedro e Paulo? Quer dizer então que o corpo de Moisés, sepultado, como lemos, pelo
próprio Senhor (cf. Dt 34, 6), não passa de imundície? Sendo assim, todas as
vezes que entramos nas basílicas dos Apóstolos e profetas, como também nas de
todos os mártires, são ídolos o que ali veneramos? As velas acesas diante de
seus túmulos são, enfim, sinais de idolatria? Farei uma só pergunta mais, que
há de ou curar ou ensandecer de vez a cabeça insana deste autor, a fim de que
as almas simples não se percam por causa de tamanhos sacrilégios. Acaso era
imundo também o corpo do Senhor enquanto esteve no sepulcro? Os anjos,
portanto, com vestes resplandecentes, vigiavam aquele cadáver
"sórdido" para que, séculos mais tardes, o delirante Dormitâncio
vomitasse esta porquice e, assim como o perseguidor Juliano, destruísse nossas
igrejas, ou mesmo as convertesse em templos <pagãos>?
2. Surpreende-me que o
santo bispo em cuja paróquia, pelo que dizem, <Vigilâncio> é presbítero,
concorde com esta loucura e nem com disciplina apostólica nem com disciplina
férrea corrija esse vaso inútil "para a mortificação do seu corpo, a fim
de que a sua alma seja salva" (1Cor 5, 5). Ele deveria lembrar-se do que
dizem os Salmos: "Se vês um ladrão, te ajuntas a ele, e com adúlteros te
associas" (Sl 49, 18); e noutra passagem: "Todos os dias extirparei
da terra os ímpios, banindo da cidade do Senhor os que praticam o mal" (Sl
100, 8). E ainda: "Pois não hei de odiar, Senhor, os que vos odeiam? Os
que se levantam contra vós, não hei de abominá-los? Eu os odeio com ódio
mortal" (Sl 138, 21-22). Ora, se não se devem honrar as relíquias dos
mártires, como então lemos: "Preciosa é à vista do Senhor a morte dos seus
santos" (Sl 115, 6 [15])? Se, pois, os ossos <dos defuntos> tornam
impuros os que os tocam, como o cadáver de Eliseu, que, segundo Vigilâncio,
jazia imundo na sepultura, pôde trazer à vida outro corpo morto (cf. 2Rs 13,
21)? Logo, foram impuros todos os arraiais do exército de Israel e o próprio
povo de Deus, já que, levando consigo pelo deserto os corpos de José e dos
patriarcas, trouxeram à Terra Santa as cinzas dos mortos? Também José, deste
modo, foi profanado, ele que, com grande pompa e cortejo, partira com a ossada
de Jacó em direção a Hebron, unicamente para reunir os restos imundos de seus
parentes, juntando um morto aos outros? Oh! deveriam os médicos cortar esta
língua e pôr sob tratamento esta insanidade. Se ele [sc. Vigilâncio] não sabe
falar, que aprenda ao menos a calar-se. Eu mesmo já tive ocasião de ver outrora
este monstro e, servindo-me dos textos da Escritura como das amarras de
Hipócrates, tentei conter o seu furor; mas ele, tomando o seu partido, preferiu
fugir e refugiar-se entre as vagas do Adriático e os Alpes do rei Cócio [i. e.
Alpes Cócios], donde pôde desfazer-se em injúrias contra nós. De fato, tudo
quanto um tolo diz não é senão vociferação e barulho.
3. Tu talvez me repreendas
em teu íntimo por haver-me dirigido nestes termos a quem não está presente para
defender-se. Devo, contudo, confessar-te a minha dor. Não posso ouvir
pacientemente tal sacrilégio. Eu li, pois, sobre a lança de Finéias (cf. Nm 25,
7); sobre a austeridade de Elias (cf. 1Rs 18, 40); sobre o zelo de Simão
Cananeu; sobre a severidade de Pedro, <cujas palavras prostraram> a
Ananias e Safira (cf. At 5, 5); sobre, enfim, a constância de Paulo, punindo
com cegueira perpétua a Elimás, o Mago, que se opunha às vias do Senhor (cf. At
13, 8-11). Não há crueldade no ser temente a Deus. De fato, na própria Lei se
diz: "Se o teu irmão, ou um teu amigo, ou a tua esposa te quiserem desviar
da verdade, esteja a tua mão sobre eles, e tu lhes derramará o sangue, e
tirarás o mal de Israel" (cf. Dt 13, 6-9). Pois bem, <ó Vigilâncio>,
são imundas as relíquias dos mártires? Por que então trataram os Apóstolos de
enterrar com grande dignidade o corpo "imundo" de Estevão? Por que
fizeram a seu respeito um grande pranto (cf. At 8, 2), a fim de que a sua
lamentação se tornasse a nossa alegria? Ora, não fosse isso o bastante, tu [sc.
Ripário] também me dizes que ele despreza as vigílias. E vai nisto contra o
próprio nome, como se Vigilâncio quisesse antes dormir do que ouvir o Senhor,
que diz: "Então não pudestes vigiar uma hora comigo... Vigiai e orai para
que não entreis em tentação. O espírito está pronto, mas a carne é fraca"
(Mt 26, 40-41). E noutra passagem canta o profeta: "Em meio à noite levanto-me
para vos louvar pelos vossos decretos cheios de justiça" (Sl 118, 62).
Lemos também no Evangelho que o Senhor passava as noites orando a Deus (cf. Lc
6, 12) e que os Apóstolos, quando eram mantidos sob custódia, costumavam vigiar
e entoar salmos a noite inteira, para que a terra estremecesse, o carcereiro se
convertesse, o magistrado e a cidade se enchessem de horror (cf. At 16, 25-38).
Paulo diz: "Sede perseverantes, sede vigilantes na oração" (Col 4, 2)
e, noutro lugar, em "vigílias repetidas" (2Cor 11, 27). Que
Vigilâncio durma, então, se assim lhe aprouver, e seja sufocado com os egípcios
pelo exterminador do Egito (cf. Ex 11, 4-6). Nós, porém, digamos com Davi:
"Não, não há de dormir, não há de adormecer o guarda de Israel" (Sl
120, 4), para que venha a nós o Santo Velador <que desce do céu> (cf. Dn
4, 10) [6]. Mas se porventura, devido aos nossos pecados, Ele adormecer,
enquanto nossa barca se enche d'água, despertêmo-lO: "Levanta-Te, Senhor,
como dormes?" e clamemos: "Senhor, salva-nos, nós perecemos" (Mt
8, 25).
4. Quisera eu poder
escrever-te mais coisas, <ó Ripário>; os limites de uma simples carta,
porém, impõe-nos a modéstia do silêncio. De resto, tivesses tu nos enviado os
livros de suas cantilenas, saberíamos em detalhe a que objeções poderíamos responder.
Por ora, apenas golpeamos o ar (cf. 1Cor 9, 26) e demos a conhecer não tanto a
infidelidade dele, que é manifesta a todos, quanto a nossa própria fé. Mas se
desejares que discorramos com mais vagar a este respeito, envia-nos as suas
lamúrias e tolices, para que afinal dê ouvidos à pregação de João Batista:
"O machado já está posto à raiz das árvores: toda árvore que não produzir
bons frutos será cortada e lançada ao fogo" (Mt 3, 10).
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