A Escada do
claustro
Carta de Dom
Guigo, Cartuxo,
ao Ir. Gervásio,
sobre a vida contemplativa
SCALA CLAUSTRALIUM, de Guigo
II
Tradução de D. Timóteo A.
Anastásio, O.S.B, antigo Abade do Mosteiro de São Bento. Bahia (BRASIL).
III - Qual a função de cada um dos citados degraus
A leitura procura a doçura
da vida bem-aventurada, a meditação a encontra, a oração a pede, a contemplação
a experimenta.
A leitura, de certo modo,
leva à boca o alimento sólido, a meditação o mastiga e tritura, a oração
consegue o sabor, a contemplação é a própria doçura que regala e refaz.
A leitura está na casca, a
meditação na substância, a oração na petição do desejo, a contemplação no gozo
da doçura obtida. Para que se possa ver isto de modo mais expressivo,
suponhamos um exemplo entre muitos.
IV - A função da leitura
À leitura, eu escuto:
Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus (Mt 5,8).
Eis uma palavra curta, mas
cheia de suaves sentidos para o repasto da alma. Ela oferece como que um cacho
de uva. A alma, depois de o examinar com cuidado, diz em si mesma: "Pode
haver aqui algum bem, voltarei ao meu coração e tentarei, se possível, entender
e encontrar esta pureza. Pois é preciosa e desejável tal coisa, cujos
possuidores são ditos bem-aventurados, e à qual se promete a visão de Deus, que
é a vida eterna, e que é louvada por tantos testemunhos da Sagrada
Escritura".
Desejosa de explicar mais
plenamente a si mesma esta coisa, começa a mastigar e a triturar essa uva, e a
põe no lagar, enquanto excita a razão a procurar o que é e como pode ser
adquirida tão preciosa pureza.
V - A função da meditação
Começa, então, diligente meditação.
Ela não se detém no exterior, não pára na superfície, apóia o pé mais
profundamente, penetra no interior, perscruta cada aspecto.
Considera, atenta, que não
se disse: Bem-aventurados os puros de corpo, mas, sim, "os puros de
coração". Pois não basta ter as mãos inocentes de más obras, se não
estivermos, no espírito, purificados de pensamentos depravados. Isto o profeta
confirma por sua autoridade, ao dizer: Quem subirá o monte do Senhor? Ou quem
estará de pé no seu santuário? Aquele que for inocente nas mãos e de coração
puro (Sl 24,3-4).
Depois ela considera
quanto o próprio profeta deseja essa pureza, ao orar: Cria em mim, Ó Deus, um
coração puro (Sl 51,12) e ainda: Se olhei a iniqüidade no meu coração, o Senhor
não me ouvirá (Sl 66,18).
A meditação pensa em como
era o bem-aventurado Jó solícito por essa guarda, pois dizia: Fiz um pacto com
os meus olhos para não pensar em nenhuma virgem (Jó 31,1). Eis como se dominava
o santo homem . que fechava seus olhos para não ver o que é vão, evitando olhar
imprudentemente o que depois desejaria contra a sua vontade.
Depois de ter refletido
sobre esses pontos e outros semelhantes no que toca à pureza do coração, a
meditação começa a pensar no prêmio:
Como seria glorioso e
deleitável ver a face desejada do Senhor, mais bela do que a de todos os homens
(Sl 45,3), não mais abjeta e vil (cf. Is 53,2), não mais tendo a aparência com
que o revestiu sua mãe, mas envergando a estola da imortalidade, e coroado com
o diadema que seu Pai lhe deu no dia da ressurreição e da glória, o dia que o
Senhor fez (Sl 118,24).
Ela concebe que nesta
visão haverá aquela saciedade esperada pelo profeta, ao dizer: Serei saciado
quando aparecer a tua glória (Sl 17,15).
Vês quanto licor emanou
daquela pequena uva, quanto fogo nasceu duma centelha, quanto se alargou na
bigorna da meditação, este pequeno pedaço de metal: Bem-aventurados os puros de
coração, porque verão a Deus!
Mas, quanto mais poderia
alargar-se, se alguém experiente viesse ajudar!
Sinto como "é fundo o
poço", mas não passo ainda de um noviço rude, que mal cheguei a tirar
poucas gotas.
Inflamada por esses
fachos, incitada por tais desejos, a alma começa a pressentir, quebrado o
alabastro, a suavidade do ungüento. Não é ainda o gosto, mas é já o cheiro.
Por esse, a alma
compreende quão suave seria experimentar essa pureza, cuja meditação a faz
saber quanta alegria ela dá. Mas que fará ela?
Ardendo ao desejo de
possuí-Ia, não encontra em si como a pode ter.
E quanto mais a procura,
mais tem sede.
Enquanto se dá à
meditação, sua dor aumenta, porque ainda não sente a doçura que a meditação
mostra existir na pureza de coração, mas sem a dar.
Porque não cabe a quem lê
nem a quem medita sentir tal doçura, se não recebe do alto (10 19,11) esse dom.
Ler e meditar é comum tanto aos bons quanto aos maus, e os próprios filósofos
pagãos encontraram, pelo exercício da razão, em que consiste, em suma, o
verdadeiro bem.
Mas, tendo conhecido a
Deus, não o glorificaram como Deus (Rm 1,21) e, presumindo de suas forças,
diziam: Venceremos graças à nossa língua, nossos lábios são nossos (Sl 12,5).
Assim, não mereceram receber o que tinham podido ver. Perderam-se em seus
pensamentos (Rm 1,21), e a sua sabedoria foi devorada (Sl 107,27)
A sabedoria deles tinha as
suas fontes no estudo das ciências humanas, e não no Espírito de sabedoria que
é o único a dar a verdadeira sabedoria, isto é, a ciência saborosa que alegra e
nutre, com inestimável sabor, a alma que a possui. É dela que foi escrito: A
sabedoria não entrará na alma perversa (Sb 1,4).
Esta procede só de Deus. E
como o Senhor deu a muitos a missão de batizar, mas guardou só para si o poder
e a autoridade de perdoar os pecados pelo batismo, o que levou João a dizer,
por antonomásia e de modo preciso: É ele que batiza, assim também podemos
dizer: É ele que dá sabor à sabedoria, e faz saborosa a ciência da alma.
A palavra é dada a todos;
a sabedoria do espírito, que o Senhor distribui a quem quer e quando quer (cf.
1 Cor 12,11), a poucos é dada.
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