Monday, 20 October 2014

"The Ladder of Monks" letter from Guigo II to Gervasio - second part (in Portuguese)



A Escada do claustro
Carta de Dom Guigo, Cartuxo,
ao Ir. Gervásio, sobre a vida contemplativa

SCALA CLAUSTRALIUM, de Guigo II
Tradução de D. Timóteo A. Anastásio, O.S.B, antigo Abade do Mosteiro de São Bento. Bahia (BRASIL).

III - Qual a função de cada um dos citados degraus
            A leitura procura a doçura da vida bem-aventurada, a meditação a encontra, a oração a pede, a contemplação a experimenta.
            A leitura, de certo modo, leva à boca o alimento sólido, a meditação o mastiga e tritura, a oração consegue o sabor, a contemplação é a própria doçura que regala e refaz.
            A leitura está na casca, a meditação na substância, a oração na petição do desejo, a contemplação no gozo da doçura obtida. Para que se possa ver isto de modo mais expressivo, suponhamos um exemplo entre muitos.

IV - A função da leitura
            À leitura, eu escuto: Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus (Mt 5,8).
            Eis uma palavra curta, mas cheia de suaves sentidos para o repasto da alma. Ela oferece como que um cacho de uva. A alma, depois de o examinar com cuidado, diz em si mesma: "Pode haver aqui algum bem, voltarei ao meu coração e tentarei, se possível, entender e encontrar esta pureza. Pois é preciosa e desejável tal coisa, cujos possuidores são ditos bem-aventurados, e à qual se promete a visão de Deus, que é a vida eterna, e que é louvada por tantos testemunhos da Sagrada Escritura".
            Desejosa de explicar mais plenamente a si mesma esta coisa, começa a mastigar e a triturar essa uva, e a põe no lagar, enquanto excita a razão a procurar o que é e como pode ser adquirida tão preciosa pureza.

V - A função da meditação
            Começa, então, diligente meditação. Ela não se detém no exterior, não pára na superfície, apóia o pé mais profundamente, penetra no interior, perscruta cada aspecto.
            Considera, atenta, que não se disse: Bem-aventurados os puros de corpo, mas, sim, "os puros de coração". Pois não basta ter as mãos inocentes de más obras, se não estivermos, no espírito, purificados de pensamentos depravados. Isto o profeta confirma por sua autoridade, ao dizer: Quem subirá o monte do Senhor? Ou quem estará de pé no seu santuário? Aquele que for inocente nas mãos e de coração puro (Sl 24,3-4).
            Depois ela considera quanto o próprio profeta deseja essa pureza, ao orar: Cria em mim, Ó Deus, um coração puro (Sl 51,12) e ainda: Se olhei a iniqüidade no meu coração, o Senhor não me ouvirá (Sl 66,18).
            A meditação pensa em como era o bem-aventurado Jó solícito por essa guarda, pois dizia: Fiz um pacto com os meus olhos para não pensar em nenhuma virgem (Jó 31,1). Eis como se dominava o santo homem . que fechava seus olhos para não ver o que é vão, evitando olhar imprudentemente o que depois desejaria contra a sua vontade.
            Depois de ter refletido sobre esses pontos e outros semelhantes no que toca à pureza do coração, a meditação começa a pensar no prêmio:
            Como seria glorioso e deleitável ver a face desejada do Senhor, mais bela do que a de todos os homens (Sl 45,3), não mais abjeta e vil (cf. Is 53,2), não mais tendo a aparência com que o revestiu sua mãe, mas envergando a estola da imortalidade, e coroado com o diadema que seu Pai lhe deu no dia da ressurreição e da glória, o dia que o Senhor fez (Sl 118,24).
            Ela concebe que nesta visão haverá aquela saciedade esperada pelo profeta, ao dizer: Serei saciado quando aparecer a tua glória (Sl 17,15).
            Vês quanto licor emanou daquela pequena uva, quanto fogo nasceu duma centelha, quanto se alargou na bigorna da meditação, este pequeno pedaço de metal: Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus!
            Mas, quanto mais poderia alargar-se, se alguém experiente viesse ajudar!
            Sinto como "é fundo o poço", mas não passo ainda de um noviço rude, que mal cheguei a tirar poucas gotas.
            Inflamada por esses fachos, incitada por tais desejos, a alma começa a pressentir, quebrado o alabastro, a suavidade do ungüento. Não é ainda o gosto, mas é já o cheiro.
            Por esse, a alma compreende quão suave seria experimentar essa pureza, cuja meditação a faz saber quanta alegria ela dá. Mas que fará ela?
            Ardendo ao desejo de possuí-Ia, não encontra em si como a pode ter.
            E quanto mais a procura, mais tem sede.
            Enquanto se dá à meditação, sua dor aumenta, porque ainda não sente a doçura que a meditação mostra existir na pureza de coração, mas sem a dar.
            Porque não cabe a quem lê nem a quem medita sentir tal doçura, se não recebe do alto (10 19,11) esse dom. Ler e meditar é comum tanto aos bons quanto aos maus, e os próprios filósofos pagãos encontraram, pelo exercício da razão, em que consiste, em suma, o verdadeiro bem.
            Mas, tendo conhecido a Deus, não o glorificaram como Deus (Rm 1,21) e, presumindo de suas forças, diziam: Venceremos graças à nossa língua, nossos lábios são nossos (Sl 12,5). Assim, não mereceram receber o que tinham podido ver. Perderam-se em seus pensamentos (Rm 1,21), e a sua sabedoria foi devorada (Sl 107,27)
            A sabedoria deles tinha as suas fontes no estudo das ciências humanas, e não no Espírito de sabedoria que é o único a dar a verdadeira sabedoria, isto é, a ciência saborosa que alegra e nutre, com inestimável sabor, a alma que a possui. É dela que foi escrito: A sabedoria não entrará na alma perversa (Sb 1,4).
            Esta procede só de Deus. E como o Senhor deu a muitos a missão de batizar, mas guardou só para si o poder e a autoridade de perdoar os pecados pelo batismo, o que levou João a dizer, por antonomásia e de modo preciso: É ele que batiza, assim também podemos dizer: É ele que dá sabor à sabedoria, e faz saborosa a ciência da alma.
            A palavra é dada a todos; a sabedoria do espírito, que o Senhor distribui a quem quer e quando quer (cf. 1 Cor 12,11), a poucos é dada.

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