A Escada do claustro
Carta de Dom Guigo, Cartuxo,
ao Ir. Gervásio, sobre a vida contemplativa
SCALA CLAUSTRALIUM, de Guigo
II
Tradução de D. Timóteo A.
Anastásio, O.S.B, antigo Abade do Mosteiro de São Bento. Bahia (BRASIL).
VI - A função da oração
Vendo, pois, a alma que
não pode por si mesma atingir a desejada doçura de conhecimento e da
experiência, e que quanto mais se aproxima do fundo do coração (Sl 64,7), tanto
mais distante é Deus (cf. Sl 64,8), ela se humilha e se refugia na oração. E
diz: Senhor, que não és contemplado senão pelos corações puros, eu procuro,
pela leitura e pela meditação, qual é, e como pode ser adquirida a verdadeira
doçura do coração, a fim de por ela conhecer-te, ao menos um pouco.
Eu buscava, Senhor, a tua
face, a tua face Senhor, eu buscava (cf. Sl 27,8); meditei muito tempo em meu
coração, e na minha meditação cresceu um fogo (cf. Sl 39,4) e o desejo de te
conhecer ainda mais.
Quando me repartes o pão
da Sagrada Escritura, na fração do pão te tomas. conhecido por mim (cf. Lc 24,35).
E quanto mais te conheço, tanto mais desejo conhecer-te, não já na casca da
leitura, mas no sabor da experiência.
Isto não peço, Senhor, por
meus méritos, mas pela tua misericórdia.
Confesso-me indigna
pecadora, mas até os cãezinhos comem das migalhas que caem da mesa dos seus
donos (Mt 15,27).
Dá-me, pois, Senhor, o
penhor da herança futura, uma gota ao menos da chuva celeste, para arrefecer a
minha sede, pois ardo de amor (cf. Ct 2,5).
VII - Efeitos da contemplação
Com essas e outras
palavras, a alma inflama o seu desejo, mostra assim o que nela se fez, por
encantações invoca o seu Esposo.
E o Senhor, cujos olhos
são fixos nos justos e cujos ouvidos estão não só atentos às suas preces (cf.
Sl 34, 16), mas presentes nelas, não espera a prece acabar. Pois, interrompendo
o curso da oração, apressa-se a vir à alma que o deseja, banhado de orvalho da
doçura celeste, ungido dos perfumes melhores.
Ele recria a alma
fatigada, nutre a que tem fome, sacia a sua aridez, lhe faz esquecer tudo o que
é terrestre, vivifica-a, mortificando-a por um admirável esquecimento de si
mesma, e embriagando-a, sóbria a torna.
Como em certas funções
carnais a alma se deixa a tal ponto vencer pela concupiscência, que perde o
próprio uso da razão e o homem se toma todo carnal, assim, ao contrário, nessa
contemplação superior, os movimentos carnais são de tal modo vencidos e
absorvidos pela alma, que a carne não contradiz em nada ao espírito, e o homem
se torna quase todo espiritual.
VIII - Sinais da vinda da graça
Mas, Senhor, como
descobrir quando realizas tudo isso, e qual é o sinal da tua vinda?
São, por acaso, os
suspiros e as lágrimas os mensageiros e testemunhas da consolação e da alegria?
Se assim é, estamos em presença duma nova antinomia e de uma significação inusitada.
Qual é, com efeito, a
relação entre consolação e suspiros, alegria e lágrimas? Se é que se podem
chamar lágrimas estas lágrimas, e não antes, abundância transbordante do
orvalho interior derramado do céu, indício da purificação interior, limpeza do
homem exterior.
No batismo de crianças, a
purificação do homem interior é figurada e significada pela ablução exterior.
Aqui, ao contrário, a purificação exterior procede da ablução interior.
Ó felizes lágrimas, pelas
quais são lavadas as manchas interiores, e as labaredas do pecado se apagam!
Bem-aventurados os que assim chorais, porque rireis (cf. Mt 5,5).
Nessas lágrimas reconhece,
ó alma, o teu Esposo, abraça o Desejado, embriaga-te em torrente de delícias,
suga do seio da consolação o leite e o mel. Estes são os maravilhosos
presentinhos e consolos que teu Esposo te distribui e concede, isto é, tuas
lágrimas e suspiros.
Ele te trouxe nessas
lágrimas a poção sob medida, o pão de dia e de noite, aquele pão que confirma o
coração do homem e é mais doce do que o favo de mel.
Ó Senhor Jesus, se são tão
doces essas lágrimas que brotam da tua lembrança e do teu desejo, quão doce
haverá de ser o gozo experimentado em tua visão manifesta!
Se é tão doce chorar por
ti, quanto mais doce será gozar de ti?
Mas, por que exprimimos de
público tais secretos colóquios? Por que me esforço por revelar em termos
comuns essas inefáveis ternuras? Os que não as experimentaram, não as
compreenderão. Eles as leriam mais claramente no livro da experiência, onde a
unção divina ensina por si mesma (cf. l Jo 2,27).
De qualquer modo, porém, a
letra exterior não aproveita ao leitor, pois a leitura da letra exterior é de
pouco sabor, a não ser que uma explicação tire do coração o sentido interior.
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