A Escada do claustro
Carta de Dom Guigo, Cartuxo,
ao Ir. Gervásio, sobre a vida contemplativa
SCALA CLAUSTRALIUM, de Guigo
II
Tradução de D. Timóteo A.
Anastásio, O.S.B, antigo Abade do Mosteiro de São Bento. Bahia (BRASIL).
IX - A graça se esconde
Ó minha alma, prolonguei
por muito tempo este discurso. Pois era bom para nós estar ali, e contemplar
com Pedro e João a glória do Esposo, e ficar largo tempo com ele, se ele
quisesse fazer ali não duas, nem três tendas (cf. Mt 17,4), mas uma só em que
estaríamos juntos, e juntos nos deleitássemos.
Mas eis que já diz o
Esposo, Deixa-me partir, pois já sobe a aurora (Gn 32,26), já recebeste a luz
da graça e a visita que desejavas.
Dada, pois, a bênção e
mortificado o nervo da coxa, e mudado o nome de Jacó para Israel (cf. Gn
32,25-32), o Esposo longamente desejado se retira por um pouco de tempo,
depressa escapa.
Ele se arreda, tanto em
relação à visita de que falei, quanto à doçura da contemplação. Mas permanece
sempre presente, quanto à direção, à graça, à união.
X - Como a ocultação da graça coopera para o nosso
bem
Mas não temas, esposa, não
desespere, não penses que és desprezada, se o Esposo te oculta por algum tempo
a sua face. Tudo isso concorre ao teu bem (cf. Rm 8,28), e ganhas com a partida
e com a vinda.
Ele veio para ti, e é
também para ti que ele se afasta. Vem para a consolação, afasta-se por cautela,
a fim de que a grandeza da consolação não te ensoberbeça, evitando que a
presença contínua do Esposo, te leve a desprezar as companheiras e atribuas a
consolação não à graça, mas à natureza.
Esta graça, o Esposo a
concede quando quer e a quem ele quer, e não se possui como direito
hereditário. É conhecido o provérbio que diz que a familiaridade excessiva gera
o desprezo. Ele se afasta, pois, para não ser desprezado, se é demais assíduo,
e para que, ausente, seja mais desejado, e desejado seja procurado com maior
ardor, e longamente querido, seja, enfim, achado com maior alegria.
Além disso, se nunca
faltasse essa consolação, que em relação à futura glória a revelar-se em nós
(cf. Rm 8,18), é enigmática e parcial, talvez julgássemos que temos aqui
cidadania permanente e procuraríamos menos a futura.
Assim, para não tomarmos o
exílio por pátria, o penhor pelo pleno valor, é que o Esposo vem de tempo em
tempo, ora trazendo consolação, ora a substituindo pelo leito de doente (cf.
8141,4).
Ele permite que saboreemos
por um pouco de tempo a sua doçura, mas antes que ela seja plenamente sentida,
ele se esvai. Assim, voejando sobre nós de asas abertas, ele nos provoca a voar
(cf. Dt 32,11), como se dissesse: Experimentastes um pouco da minha suavidade e
doçura, mas, se quereis saciar-vos plenamente, correi atrás de mim ao odor dos
meus perfumes (cf. Ct 1,3), levantai os corações para o alto onde estou à direita
do Pai. Aí me vereis, não mais em figura e em enigma, mas face a face, e então,
o vosso coração gozará plenamente, e o vosso gozo ninguém vos tirará (Jo
16,22).
XI - Com que cuidado a alma se deve comportar
depois da visita da graça
Mas, acautela-te, ó
esposa. Quando o Esposo se ausenta, não vai para longe. Se não o vês, ele
sempre te vê. Ele é cheio de olhos à frente e atrás (cf. Ez 1,18). Jamais podes
fugir da sua vista. Tem junto de ti seus enviados, espíritos que são como que
mensageiros muito sagazes, que vejam como te conduzes na ausência do Esposo, e
te acusem diante dele se descobrirem em ti algum sinal de impureza e de
leviandade.
Este Esposo é cheio de
zelo. Se, acaso, acolheres um outro amante, ou te empenhas em agradar mais a um
outro, ele logo se afasta de ti e se une a outras virgens fiéis.
É delicado esse Esposo, é
nobre, é o mais belo dos filhos dos homens (Sl 45,3), e assim, não quer ter uma
esposa senão perfeitamente bela. Se ele vir em ti uma mancha, ou uma ruga, logo
desvia o seu olhar.
Ele não suporta nenhuma
impureza. Sê, pois, casta, sê reservada e humilde, para merecer a visita
freqüente do teu Esposo.
Temo que este discurso se
tenha prolongado demais, mas a matéria abundante me obrigou a isto, assim como
a sua doçura. Não prolonguei por minha espontânea vontade, foi o seu encanto
que me arrastou sem sentir.
XII - Recapitulação do que foi dito
Para que se possa ver
melhor em conjunto o que foi dito em forma mais desenvolvida, vamos
recapitulá-lo em resumo.
Assim como foi notado nos
exemplos propostos, podes ver como os ditos degraus se ligam uns aos outros
entre si. E como um precede a outro, tanto no tempo, como na casualidade.
Qual primeiro fundamento,
vem a leitura. Ela fornece a matéria e nos leva à meditação.
A meditação, por sua vez,
perscruta com maior diligência o que se deve desejar, e como que cavando, acha
e mostra o tesouro. Mas, como não pode por si mesma obtê-lo, leva-nos à oração.
A oração, elevando-se a
Deus com todas as suas forças, obtém o tesouro desejável, a suavidade da
contemplação.
Sobrevindo a contemplação,
ela recompensa o trabalho dos três degraus referidos, embriagando. a alma
sedenta com o orvalho da doçura celeste.
A leitura é feita segundo
um exercício mais exterior; a meditação, segundo uma inteligência mais
interior; a oração, segundo o desejo; a contemplação passa acima de todo
sentido.
O primeiro degrau é dos
principiantes; o segundo, dos que progridem; o terceiro, dos fervorosos; o
quarto, dos bem-aventurados.
XIII - Como os mesmos degraus são ligados uns aos
outros
Estes degraus são de tal
modo ligados, e de tal forma servem uns aos outros, que os precedentes pouco ou
nada aproveitam sem os seguintes, e os seguintes, por sua vez, nunca ou só
raramente, podem ser adquiridos sem os precedentes.
Que adianta, com efeito,
ocupar o tempo em contínua leitura, percorrer os feitos e os escritos dos
santos, se não exprememos o seu suco, mastigando e ruminando, e não o passamos
até ao mais íntimo do coração, engolindo, a fim de por eles considerarmos
diligentemente o nosso estado, e cuidarmos de praticar as obras daqueles cujos
feitos queremos ler freqüentemente?
Mas, como haveremos de
cogitar estas coisas, ou como poderemos evitar que, meditando coisas erradas e
vãs, se transgridam os limites constituídos pelos santos Pais, a não ser que
sejamos antes instruídos a tal respeito pela leitura ou pelo ensino?
O ensino, de certo modo,
se relaciona com a leitura, o que nos leva habitualmente a dizer que lemos para
nós mesmos ou para os outros, mas também o que ouvimos dos mestres.
Igualmente, que vale ao homem ver pela meditação o que deve praticar, se
não pode fazê-lo senão pelo auxilio da oração e pela graça de Deus? Porque todo
dom excelente e todo dom perfeito vem de cima e desce do Pai das luzes (Tg
1,17).
Sem ele nada podemos, ao
passo que ele faz em nós as obras, mas não sem nós. Pois somos cooperadores de
Deus (1Cor 3,9), como diz o Apóstolo. Deus quer que lhe supliquemos, quer que
abramos à graça que vem e bate à porta, o seio da nossa vontade, e lhe demos o
nosso consentimento.
O Senhor exigia esse
consentimento da Samaritana, quando dizia:
Chama o teu marido (Jo
4,16), como se dissesse: Quero te infundir a graça; aplica o teu livre
arbítrio.
Dela exigia a oração: Se
soubesses o dom de Deus, e quem é que te diz: Dá-me de beber, serias tu que lhe
terias pedido a água viva (ib.1 O).
Inflamada, pois, pelo
desejo, volta-se para a oração, dizendo:
Senhor, dá-me desta água,
a fim de que eu não tenha mais sede. Assim, portanto, a palavra do Senhor que
ouvira e depois meditara, a incitou à oração.
Como haveria de tomar-se
solícita na súplica, se antes, a meditação não a tivesse feito arder? Ou de que
lhe serviria a precedente meditação, se a oração seguinte não obtivesse o que
aquela lhe mostrara?
Para que seja, pois,
frutuosa a meditação, é preciso que se lhe siga o fervor da oração, da qual é
como um efeito a doçura da contemplação.
No comments:
Post a Comment