CAPÍTULO V — SERVO DO AMOR
Jurandyr, conduzido pela virgem, caminhou ao encontro de Itaquê e disse:
— Grande chefe dos tocantins, Jurandyr não veiu á tua cabana para receber a hospitalidade; veiu para servir ao pai de Aracy, a formosa virgem, a quem escolheu para esposa. Permitte que elle a mereça por sua constancia no trabalho, e que a dispute aos outros guerreiros pela força de seu braço.
Itaquê respondeu:
— Aracy é filha de minha velhice. A velhice é a idade da prudencia e da sabedoria. O guerreiro que conquistar uma esposa como Aracy terá a gloria de gerar seu valor no seio da virtude. Itaquê não póde desejar para seu hospede maior alegria.
Desde esse momento, Jurandyr não foi mais estrangeiro na taba dos tocantins. Pertencia á oca de Itaquê, e devia, como servo do amor, trabalhar para o pai de sua noiva.
Os guerreiros, captivos da belleza de Aracy, conheceram que tinham de combater um adversário formidavel; mas seu amor cresceu com o receio de perder a filha de Itaquê.
Jurandyr tomou suas armas e desceu ao rio. Era a hora em que o Jacaré boia em cima das aguas como o tronco morto; e a jaçanan se balança no seio do nenuphar.
O manaty erguia a tromba, para pastar a relva na margem do rio. Ouvindo o rumor das folhas, mergulhou na corrente, mas já levava o arpéo do pescador, cravado no lombo.
Jurandyr não esperou que o peixe ferido desenrolasse toda a linha. Puxou-o para terra; e levou-o ainda vivo á cabana de Itaquê, onde tres guerreiros custaram a deital-o no giráo.
As mulheres cortaram as postas de carne e os guerreiros cavaram a terra para fazer as grelhas do biariby.
Jurandyr partiu de novo e entrou na floresta. Ao longe reboavam os gritos dos caçadores, que perseguiam a féra.
Pelo assobio o guerreiro conheceu que era um tapyr. O animal zombara dos caçadores e vinha rompendo a matta como a torrente do Xingú.
As arvores que seu peito encontrava caíam lascadas.
Jurandyr estendeu o braço. O velho tapyr, agarrado pelo pé, ficou suspenso na carreira, como o passarinho preso no laço.
Nunca até aquelle momento encontrára força maior que a sua.
Uma vez descera á lagôa para beber. A sucury, que espreitava a caça, mordeu-o na tromba. Elle fugia, esticando a serpente; e a serpente, encolhendo-se, o arrastava até á beira d'agua.
Assim tornou uma, duas, três vezes. Mas o tigre urrou de fome. O velho tapyr disparou pela floresta; e a sacury com a cau da presa á raiz da arvore arrebentou pelo meio.
O velho tapyr rompeu a serpente como se rompe uma corda de piassaba; mas não pôde abalar o braço de Jurandyr, mais firme do que o tronco do guaribú.
O estrangeiro tornou á cabana com a caça. Nenhum dos guerreiros da taba, nem mesmo o velho Itaquê, pôde aguentar com as duas mãos a fera bravia.
Então Jurandyr obrigou o animal a agachar-se aos pés de Aracy e disse:
— O braço de Jurandyr fará cair assim a teus pés o guerreiro que ouse disputar ao seu amor a tua formosura, estrella do dia.
Nunca a abundância reinára na cabana sempre farta do chefe dos tocantins, como depois que a ella chegára o estrangeiro.
Jurandyr era o maior caçador das florestas, e o primeiro pescador dos rios. Seu olhar seguro penetrava na espessura das brenhas, como na profundeza das aguas.
Nada escapava á destreza de sua mão. Onde ella não chegava, iam as unhas de suas flechas certeiras, que rasgavam o seio da victima, como as garras do jaguar.
O estrangeiro soubera de Aracy, qual era a caça que Itaquê preferia e qual o peixe que elle achava mais saboroso. Desde então nunca o velho chefe sentiu a falta do manjar predilecto.
Si não era a lua propria do peixe desejado, Jurandyr sabia onde podia encontral-o. Não tornava á cabana sem a provisão necessária para a refeição do dia.
Depois da caça e da pesca, Jurandyr trabalhava nas roças de Itaquê. Fazia no taboleiro os matumbos, para que Jacamim enterrasse as estacas da maniva e semeasse o feijão, o milho e o fumo.
Entre os filhos das florestas, a plantação devia ser feita pela mão da mulher, que era a mãi de muitos filhos; porque ella transmittia á terra sua fecundidade.
A semente que a mão da virgem depositava no seio da terra dava flôr: mas da flôr não saía fructo. E si era um guerreiro que plantava, a aypim endurecia como o pau de arco.
Nas vasantes do rio, Jurandyr capinava a terra coberta de relva e outras plantas e só deixava crescer o arroz, o inhame e as bananeiras.
Quando o estrangeiro partia pela manhã, Aracy o acompanhava de longe pela floresta. Sua vontade a levava apoz elle.
O costume da taba não consentia que a virgem desejada pelos servos de seu amor preferisse um guerreiro, antes de saber si elle a obteria por esposa.
A filha de Itaquê não queria pertencer a outro guerreiro. Mas lembrava-se que a virgem deve merecer o esposo por sua paciencia; assim como o guerreiro merece a esposa por sua constancia e fortaleza.
Então voltava ao terreiro: emquanto os outros guerreiros espreitavam sua vontade, ella tecia as franjas para a rêde do casamento.
Sua mão subtil urdia com o alvo fio do crauatá a fina penugem escarlate. Os noivos cuidavam que era a do peito do tocano; mas ella sabia que era do peito da arára e que tinha as côres de seu guerreiro.
Quando o sol chegava ao cimo dos montes, ouvia-se o canto de Jurandyr que voltava da caça. A virgem seguida pelos guerreiros ia ao encontro do estrangeiro.
Então desciam ao rio. Era a hora do banho. Aracy cortava as ondas mais linda que a garça côr de rosa; e os guerreiros a seguiam de perto, como um bando de galleirões.
Mas nenhum, nem mesmo Jurandyr, que nadava como um boto, podia alcançar a formosa virgem. Ella parecia a flor do mururê que se desprendeu da haste e passa levada pela corrente.
Uma vez a filha das aguas soltou um grito e desappareceu no seio das ondas. Jacamim cuidou que o Jacaré tinha arrebatado a filha de seu seio. Os guerreiros mergulharam para salval-a; mas não a encontraram.
Todos a julgavam perdida, quando appareceu Jurandyr que trazia nos braços o corpo da virgem formosa. Pisando em terra, ella correu para a cabana, onde foi esconder sua alegria.
Desde então era no banho que Aracy recebia o abraço de Jurandyr, sem que os outros guerreiros suspeitassem da preferencia dada ao estrangeiro. No seio das ondas ninguem a adivinhava a não ser o ouvido subtil de Jurandyr, a quem ella chamava com o doce murmúrio do irerê.
Encontravam-se no fundo do rio, emquanto durava a respiração. Depois desprendiam-se do abraço e surgiam longe um do outro.
Á tarde, voltando da caça, Jurandyr viu na floresta um rasto, que elle conhecia.
Chegado á cabana, entregou a Jacamim o veado que matara e sahiu para visitar os arredores. Nada encontrou de suspeito; o rasto, que o inquietava, não chegára até ali.
No outro dia, ao romper da alvorada, logo depois do banho, os guerreiros partiram para a caça e para a pesca. Só ficaram na cabana Jacamim e as mulheres de Itaquê.
Aracy tomou o arco e entrou na floresta. A imagem do guerreiro amado fugia naquelle instante de seus olhos; elles buscaram entre as folhas o signal de seus passos e não o descobriram. Lembrou-se a virgem que Jurandyr gostava da polpa do guaranan adoçada com o mel da abelha; e colheu os fructos encarnados que pendiam dos ramos da trepadeira.
Nesse momento a arára cantou no olho do périjá. Aracy precisava de suas plumas vermelhas, para o cocar que ella tecia em segredo.
Era o cocar do amor, com que desejava ornar a cabeça de seu guerreiro senhor, no dia em que elle a conquistasse por esposa.
A virgem armou o arco e seguiu a arára rompendo a folhagem. Quando ia disparar a setta, ouviu ao lado um rumor desusado.
Jurandyr estava perto delia e segurava o braço de uma mulher, que ainda tinha na mão a macana afiada.
Aracy conheceu a virgem araguaya, pela facha de algodão entretecida de pennas, que lhe apertava a curva da perna; e adivinhou que era Jandyra a noiva do guerreiro.
— Filha de Magé, tua mão quiz matar a virgem que Jurandyr escolheu para esposa. Tu vais morrer.
— Desde que Ubirajara abandonou Jandyra, ella começou a morrer, como a baunilha que o vento arranca da arvore. Acaba de matal-a; para que sua alma te acompanhe de dia na sombra das florestas e te fale de noite na voz dos sonhos.
— A virgem araguaya ameaçou a vida de Aracy; ella lhe pertence; disse a filha de Itaquê.
Jurandyr cortou na floresta uma comprida rama de imbê e atou as mãos de Jandyra.
— Jandyra é tua escrava. Não lhe dês a liberdade. Ella tem a astúcia da serpente e seu veneno.
— Eu era a cobra d'agua, amiga do guerreiro, que habita sua cabana e a guarda contra o inimigo. Quem foi que me fez cascavel venenosa, que traz nos labios o sorriso da morte?
Jurandyr não respondeu. Nesse momento elle teve saudade de sua cabana e lembrou-se do tempo em que, joven caçador, seguia na floresta a formosa virgem araguaya.
As duas virgens ficaram sós no claro da floresta.
Já o rumor dos passos de Jurandyr se apagára ao longe e ainda tinham ambas os olhos captivos uma da outra.
Jandyra pensou que ella não podia dar a Ubirajara a formosura da filha de Itaquê. Aracy receiou que o amor do guerreiro se voltasse outra vez para a linda, virgem araguaya.
A filha de Magé preparou-se para morrer á mão de sua rival, mas ella preferia a morte ao supplicio de contemplar sua belleza.
Aracy, a estrella do dia, cantou:
— O amor do guerreiro é a alegria da virgem; quando elle foge, a virgem fica triste como a várzea que perdeu sua relva.
«Por isso Jandyra está triste: o amor do guerreiro fugiu della; e a deixou solitaria como a nambú, a quem o companheiro abandonou.
«Mas o amor do guerreiro é como o orvalho da noite. Quando o sol queima a varzea, elle desce do céo para cobril-a de verdura e de flôres.
«Aracy está alegre; porque o amor do guerreiro voltou-se para ella; e Jurandyr vai fazel-a companheira de sua gloria e mãi de seus filhos.
«Quando a esposa de Jurandyr não tiver mais belleza para dar a seu guerreiro, ella consentirá que Jandyra durma em sua rêde.
«E o orvalho da noite descerá do céo para cobrir a varzea de verdura e de flôres. E Jandyra achará outra vez seu sorriso de mel. »
Assim cantou Aracy, a estrella do dia; e a virgem araguaya respondeu:
— A arvore que morreu não soffre quando o fogo a queima. Jandyra prefere a morte á vergonha de ser tua serva e á tristeza de ver a cada instante a formosura da estrangeira que roubou seu amor.
«Aracy, a estrella do dia, é mais bella do que Jandyra, mas não sabe amar o guerreiro, que a escolheu para mãi de seus filhos.
«Nunca Jandyra offereceria sua rêde de esposa a outra mulher; e aquella que recebesse o amor de seu guerreiro morreria por sua mão.
«Ella amaria seu esposo tanto que sua graça nunca se retirasse della; pois saberia morrer quando não tivesse mais belleza para dar.
«A nação araguaya nunca levanta a taba do valle onde acampou, sinão quando a terra já não póde dar-lhe mais fructos.
«Assim é o guerreiro. Elle não retira seu amor da esposa que habita, sinão quando ella já não sabe alegrar sua alma. »
Tornou a virgem tocantim:
— A cajazeira depois que dá seu fructo perde a folha; o guerreiro busca a sombra de outra arvore para repousar.
«Mas vem a lua das aguas e a cajazeira outra vez se cobre de folhas; sua sombra é doce ao guerreiro.
«A esposa é como a cajazeira. Quando o guerreiro não acha alegria em seus braços, ella soffre que busque outra sombra e espera que lhe volte a flor para chamal-o de novo ao seio.
«Aracy ama seu guerreiro, como Jacamim ama Itaquê. A cabana do grande chefe dos tocantins está cheia de servas; mas seu amor nunca abandonou a esposa.
«As servas deram a Itaquê muitos filhos; mas os filhos da velhice, foi só Jacamim quem os deu ao grande chefe; porque o primeiro amor do guerreiro não morre nunca.
«Elle é como a grama que nunca mais deixa a terra onde nasceu: pódem arrancal-a que brota sempre.
«Aracy quer apagar a tristeza da tua alma e beber o teu sorriso de mel, para que o esposo ache mais doces seus lábios, quando os provar.
«Tu serás irmã de Aracy e lhe darás um filho de Jurandyr, tão valente, como os que seu amor ha de gerar no seio da esposa.
Jandyra afastou os olhos da virgem dos tocantins, para desviar della sua ira.
«Tua palavra dóe como o espinho da jussara, que tem o côco mais doce que o mel.
«As flechas do teu arco não matam mais do que os sorrisos que o amor do guerreiro derrama em teu rosto, estrella do dia.
«Ubirajara deixou-me por ti; mas foi a Jandyra que elle primeiro escolheu para esposa, quando ainda era joven caçador.
«Nos campos alegres, onde vão os guerreiros quando morrem, elle me chamará; e o guanumby virá buscar a minha alma no seio da flôr do manacá para leval-a a seu amor.
«Mata-me ou deixa que eu morra para não ver mais tua belleza e não ouvir o canto de tua alegria.
Aracy caminhou para Jandyfa e desatou-lhe os pulsos.
— O amor do guerreiro não pertence á mulher que seus olhos primeiro viram; mas áquella que elle escolheu.
«Apanha teu arco; e morra aquella que não souber defender seu amor e merecer o esposo.
Aracy disse, e tirou da uiraçaba uma setta. Jandyra ficou immovel, com os pulsos cruzados, como si ainda estivessem presos.
— A vontade de Ubirajara atou os braços de Jandyra; ella rejeita a liberdade dada por ti. Aracy póde ser preferida; porém, não será mais generosa do que a filha de Magé.
CAPÍTULO VI — O COMBATE NUPCIAL
Chegou o dia, em que os noivos de Aracy deviam disputar a posse da formosa virgem.
Era a hora em que o sol, transpondo a crista da montanha, estende pelo valle sua arassoia d'ouro.
A grande nação tocantim cerca a vasta campina. No centro estão os anciões, que formam o grande carbeto.
Em frente apparece Aracy, a estrella do dia, que ha de ser o premio da constância e fortaleza do mais dextro guerreiro.
Jacamim acompanha a filha; nesse momento remoça com a lembrança do dia em que Itaquê a conquistou, lutando com os mais feros mancebos tocantins.
De um e outro lado seguem pela ordem da idade os moacaras. Cada um cerca-se da esposa, das servas e das filhas, que vieram para assistir ao combate.
É a unica das festas guerreiras em que o rito de Tupan consente a presença das mulheres, porque se trata de sua gloria.
Contemplando o esforço heroico dos mais nobres guerreiros para conquistar a formosura de uma virgem, as outras virgens aprendem a presar a castidade e as esposas se ufanam de guardar a fé ao primeiro amor.
Itaquê, o grande chefe dos tocantins, preside ao combate, orgulhoso pela valente nação que dirige, como pela formosa virgem, de que é pai.
Quando seus olhos admiram a multidão de guerreiros, servos do amor de Aracy, que se preparam a disputar a esposa, o grande chefe ergue a fronte soberba como o velho ipé da floresta coroado de flôres.
Os noivos se distinguem dos outros guerreiros pelo bracelete de contas verdes, que o guerreiro cinge ao pulso da esposa, quando rompe a liga da virgindade.
Lá caminha Pirajá, o grande pescador, senhor dos peixes do rio, a quem obedece o manaty e o golphinho.
Junto delle ergue-se Uirassú, que tomou este nome do valente guerreiro dos ares, pelo impeto do assalto.
Vem depois Arariboia, a grande serpente das lagôas, Cauatá, o corredor das florestas, Cory, o altivo pinheiro e tantos outros ainda mancebos, e já guerreiros de fama.
Entre todos porém assoma Jurandyr. Sua fronte passa por cima da cabeça dos outros guerreiros, como o sol quando se ergue entre as cristas da serrania.
Os musicos fizeram retroar os borés, annunciando o começo da festa; e os servos do amor se estenderam em linha pelo meio da campina. Então os nhengaçaras levantaram o canto nupcial.
«A esposa é a alegria e a força do guerreiro. Ella acende em suas veias um fogo mais generoso que o do cauim e prepara, para seu corpo, o repouso da cabana.
«Por isso o primeiro desejo do mancebo, quando ganha o nome de guerra, é conquistar uma esposa.
«Não basta ser valente guerreiro para merecer a virgem formosa, filha de um grande chefe; é preciso a paciência para soffrer e a perseverança no trabalho.
«Aracy, a estrella do dia, filha de Itaquê, será a alegria e a gloria do mais forte e do mais valente.
«Os filhos que ella gerar em seu seio, onde corre o sangue do grande chefe, serão os maiores guerreiros das nações.»
Itaquê deu o signal; o combate começou. Pirajá foi o primeiro que saiu a campo e clamou, esgrimindo o tacape:
— Aracy, estrella do dia, tu serás esposa do guerreiro Pirajá que te vae conquistar pela força de seu braço.
Avançou Uirassú, e disse:
— A virgem formosa ama ao guerreiro Uirassú e ha de pertencer-lhe.
A noiva cantou:
«Aracy ama o mais forte e mais valente. Ella pertencerá ao vencedor, que vencer a bravura dos outros guerreiros, como venceu a vontade da esposa.»
A voz maviosa da virgem affagou a esperança de todos os campeões; mas seus olhos ternos só viam o nobre semblante de Jurandyr, o escolhido de sua alma.
Os dois guerreiros travaram a pugna; os tacapes girando nos ares encontravam-se como dois madeiros arrojados pelo remoinho da cachoeira.
Afinal Pirajá, ameaçado pelo bote do adversario, recuou um passo do logar em que se postara. Pela lei do combate estava vencido, e teve de deixar o campo.
Arariboia tomou o seu logar; e o combate proseguiu com varia fortuna, até Gory que, expellindo o vencedor, manteve-se firme contra todos que vieram disputal-o.
Faltava Jurandyr. O estrangeiro avançou gravemente, como convinha a um grande guerreiro da nação araguaya.
Elle queria dar ao vencedor de tantos combates, o tempo preciso para descansar.
A mão do guerreiro arrastava pelo chão o tacape, que desdenhava erguer para um combate sem gloria.
Quando Jurandyr achou-se em face do vencedor, levantou a voz e disse:
— Para merecer Aracy, a estrella do dia, Jurandyr queria vencer a cem guerreiros e não combater um guerreiro fatigado.
«Tu empunhas um tacape; toma outro; habituado a vencer, elle restituirá a teu braço a força que perdeu. Basta a Jurandyr esta mão, para te arrebatar todas as tuas victorias.»
Disse e arremessou a arma aos pés do adversario.
Cory pensando que seu rival o atacava, desfechou-lhe o golpe. Mas Jurandyr aparou-o na mão firme e arrebatando o tacape que o ameaçava arrancou o guerreiro do chão.
Assim o pinheiro que o tufão arrebata, antes de partir o tronco, desprende a raiz da terra, onde nada o abalava. Jurandyr ficou no campo. Mas todos os noivos se haviam mostrado valentes guerreiros; talvez nas outras provas saíssem vencedores.
Os musicos tocaram os borés; e os jovens caçadores trouxeram para o meio do campo a figura da noiva.
Era um grosso toro de madeira, no qual a mão destra de um pagé entalhára, com o dente da cotia, a cabeça de uma mulher.
Três caçadores vergavam com o peso da carga e foram precisos dez para trazel-o desde a cabana do pagé até o campo, onde ficou semelhante a uma mulher sentada.
Na vespera o pagé burnira de novo com a folha da sambaiba o toro de madeira e o esfregára com a banha do teú para que elle escorregasse da mão do guerreiro como o lagarto da mão do caçador.
Depois os mancebos guerreiros espalharam pelo campo troncos de arvores cortadas com as ramas e as folhas; e ficaram cercas de estacas entre os barrancos da várzea que ia morrer á margem do rio.
Itaquê deu o signal; e os guerreiros começaram a nova prova, mais difficil que a primeira.
Era preciso que o guerreiro á disparada levantasse do chão, sem parar, o toro de madeira; e se defendesse dos rivaes que o assaltavam para tomal-o.
Esse jogo era o emblema da agilidade e robustez, que o marido devia possuir, para disputar a esposa e protegel-a contra os que ouzassem desejal-a.
Na primeira corrida foi Jurandyr quem mais rapido chegou. Como o condor que, rebatendo o vôo, leva nas garras a tartaruga adormecida; assim o veloz guerreiro suspendeu a figura da esposa, e com ella aremessou-se pela campina.
Os outros o seguiam ardendo em impetos de roubar-lhe a presa. Na planicie aberta seria vão intento porque nenhum corria como o estrangeiro.
Mas Jurandyr achava diante de si, para tolher-lhe o passo, as arvores derrubadas, os barrancos profundos e outros obstáculos de proposito accumulados.
Não hesitou, porém, o destimido mancebo. Salvou as corcovas, galgou as caiçaras, e subiu pelos galhos que estrepavam o chão.
Uma vez os guerreiros approximaram-se tanto que Jurandyr sentiu nos cabellos o sopro da respiração offegante. Em frente, erguia-se a alta estacada.
Si tentasse subir carregado como estava, os guerreiros com certeza o alcançariam a tempo de arrancar-lhe a presa.
Então arremessou pelos ares o toro de madeira, como si fosse o tacape de um joven caçador; e seguiu apoz.
Sempre vencedor dos assaltos dos rivaes, Jurandyr percorreu a vasta campina e foi collocar a figura da esposa no meio do carbeto dos anciões.
Alli era o termo da correria. O guerreiro que chegava a esse ponto com a sua carga, saía triumphante da prova.
Elle mostrava como arrebataria a esposa do meio dos inimigos e a defenderia contra seus ataques até recolhel-a em um asylo seguro.
De todos os guerreiros só Cory e Uirassú conseguiram ganhar a prova; mas nenhum com a galhardia de Jurandyr.
Cory por vezes foi alcançado e só á confusão dos outros deveu escapar-se. Uirassú recuperou a presa já perdida, porque Pirajá, que a havia empolgado, falseou na corrida e tombou.
Os tres vencedores entram de novo em campo para decidir entre si. O triumpho não se demorou. Jurandyr o arrebatou, como o gavião arrebata a presa que disputam duas serpes.
Soaram os borês; e ao som do canto de triumpho entoado pelos nhengacaras, os chefes e os guerreiros saudaram o vencedor dos vencedores.
Quando voltou o silencio, Ogib, o grande pagé dos tocantins, estava em pé no meio do campo.
Junto delle uma das velhas mãis dos guerreiros, segurava o camucim da constancia, que tinha o bojo pintado de vermelho.
O pagé disse:
— Não basta que o guerreiro seja forte e valente, para merecer a esposa.
«É preciso que tenha a constancia do varão, e não se perturbe com o soffrimento.
«É preciso que elle tenha a paciência do tatú e supporte sereno as mortificações das mulheres, e as importunações das creanças.
«O guerreiro que não tem constancia e paciencia, depressa gasta suas forças.
«O rio que se derrama pela varzea, nunca verá suas margens cobertas de grandes florestas.
«Assim é o guerreiro que não sabe soffrer e derrama sua alma em lamentações.
«Nunca elle será pai de uma geração forte e gloriosa nem verá sua cabana povoar-se dos guerreiros de seu sangue.
«Si queres merecer a filha de Itaquê mostra, Jurandyr, que és varão ainda maior do que o famoso guerreiro que todos admiram.»
O grande pagé levantou o tampo do camucim e descobriu uma abertura, bastante para caber o punho do mais robusto guerreiro.
Jurandyr metteu a mão no vaso. O semblante sempre grave do guerreiro cobriu-se de um sorriso doce como a luz da alvorada; e seus olhos, mais contentes que dois sahis, pousaram no rosto de Aracy.
O camucim da constancia continha um formigueiro de saúvas, que o pagé havia fechado alli na ultima lua.
Açuladas pela fome de tantos dias, as formigas vorazes se preparam para dilacerar a primeira victima que lhes cahisse nas garras.
A dentada da saúva, que anda solta no campo, dóe como uma braza; quando são muitas e com fome, queimam como a fogueira.
Todas as vistas se fitaram no semblante do guerreiro para lhe espreitar o minimo gesto de soffrimento.
Mas Jurandyr sorria; e seus labios ternos soltaram o canto do amor. De proposito o guerreiro adoçou a voz, para não parecer que disfarçava o gemido com o rumor do grito guerreiro.
Assim cantou elle:
«A dôr é que fortalece o varão, assim como o fogo é que enrija o tronco da crauba, da qual o guerreiro fabrica o arco e o tacape.
«A Jussara tem settas agudas: mas Aracy, quando atravessa a floresta, colhe o côco de mel, embora a palmeira lhe espinhe a mão.
«O ferrão da saúva dóe mais do que o espinho da jussara; mas Jurandyr acha o mel dos labios de Aracy mais doce do que o côco da palmeira.
«Quando Jurandyr era joven caçador gostava de tirar a cotia da toca, embora o seu dente agudo lhe sarjasse a carne.
«O ferrão da saúva não dóe como o dente afiado; e Jurandyr sabe que o pêlo dourado da cotia não é tão macio como o collo de Aracy.
«Jurandyr despreza a dor. Seus olhos estão bebendo o sorriso da virgem, mais suave que o leite do sapoty. Sua mão está sentindo o roçar dos cabellos da virgem formosa.»
Os anciãos deram signal para concluir a prova da constancia; mas o guerreiro continuou seu canto de amor.
«A cumary arde no lábio do guerreiro; mas torna mais gostosa a carne do veado assada no moquem.
«O cauim queima a bocca do guerreiro; mas derrama a alegria dentro d'alma.
«A saúva arde como a cumary e queima como o cauim; porém torna os beijos de Aracy mais saborosos: e o amor de Jurandyr espuma como o vinho generoso.
«Aracy ha de sorrir de felicidade, quando o filho de seu guerreiro lhe rasgar o seio.
«Jurandyr não tem corpo para soffrer, quando o sorriso de Aracy lhe enche a alma de amor.»
Foi preciso quebrar o camucim para que o guerreiro pudesse retirar a mão, de inflammada que ficara.
O grande pagé esfregou na pelle vermelha o succo de uma herva delle conhecida; e logo desappareceu a inchação.
Faltava a ultima prova, chamada a prova da virgem.
As outras serviam para conhecer o valor, a destreza e robustez do guerreiro, assim como a forca de seu amor.
Nesta era que a virgem podia mostrar seu agrado pelo seu vencedor; ou livrar-se de um esposo, que não soubera ganhar-lhe o affecto.
Os cantores disseram:
«Tupan deu azas á nambu para que ella escape ás garras do carcará.
«Tupan deu ligeireza á virgem, para que fuja do guerreiro que não quer por esposo.
«Mas a nambú, quando ouve o canto do companheiro, espera que elle chegue para fabricar seu ninho.
«A virgem, quando a segue o guerreiro que ella prefere, pensa na cabana do esposo e corre de vagar para chegar depressa.»
Aracy deixou a mãie avançou até o meio do campo.
O grande pagé collocou Jurandyr na distancia de uma mussurana, que cinge dez vezes a cintura do guerreiro.
Estrella do dia lançou para as espaduas as longas tranças negras que voaram ao sopro da brisa.
Arqueou os braços mimosos, vestidos com franjas de pennas, como as azas brilhantes do arirama, e, quando soou o signal, desferiu a corrida.
Jurandyr seguiu-a. Elle conhecia a velocidade do pé gentil de Aracy, que zombava do salto do jaguar.
Nem que pudesse alcançal-a, o guerreiro o tentaria; depois de vencedor, queria dever a esposa ao amor della e não a seu esforço.
Disputaria Aracy não só a todos os guerreiros das nações, como a todas as nações das florestas; só á vontade da própria virgem não a disputaria, pois a queria rendida e não vencida.
Mas sua gloria mandava que elle, o chefe de uma nação, se mostrasse digno da formosa virgem, que o acceitasse por esposo.
Aracy voava pela campina. Ás vezes trançava a corrida como o colibry que adeja de flôr em flôr, outras vezes fugia mais rapida do que a setta emplumada de seu arco.
Quando mostrou a todos que Jurandyr não a alcançaria nunca, si ella quizesse fugir-lhe, reclinou a cabeça para esconder o rubor.
Jurandyr abriu os braços e recebeu a esposa que se entregava a seu amor.
O guerreiro suspendeu a virgem formosa ao collo; e levou-a á cabana do amor que elle construira á margem do rio.
As ramas de jasmineiro e do craviri vestiam a cabana e matisavani o chão de flôres.
Aracy foi buscar a rêde nupcial, que ella tecera de pennas de tocano e arára; e Jurandyr conduziu os utensilios da cabana.
Então o estrangeiro sentou-se com a virgem no terreiro, e, antes de passar a soleira da porta, revelou a Aracy quem era o guerreiro que ella acceitára por esposo.
— Aracy pertence ao grande chefe da nação araguaya. Ella teve a gloria de vencer ao maior guerreiro das florestas. Ella será mãi dos filhos de Ubirajara; e terá por servas as virgens mais bellas, filhas dos chefes poderosos.
«A palmeira é formosa quando se cobre de flôres e o vento agita as suas folhas verdes que murmuram; mais formosa, porém, é quando as flôres se mudam em fructos e ella se enfeita com os seus cachos vermelhos.
«Aracy também ficará mais formosa quando de seu sorriso saírem os fructos do amor: e quando o leite encher seus peitos mimosos, para que ella suspenda ao collo os filhos de Ubirajara.»
Aracy ouviu as palavras do guerreiro, palpitante como a corça; e ornou a fronte do esposo com o cocar de plumas vermelhas, que tecera em segredo.
Depois sentindo os olhos de Ubirajara, que bebiam sua formosura, ella vestiu o aimará mais alvo do que a penna da garça.
A tunica de algodão entretecida de pennas de beija flôr desce das espaduas até á curva da perna, cingida pela liga da virgindade.
Quando Aracy passava entre os guerreiros que admiravam sua belleza, ella não corava, porque sua castidade a vestia, como a flôr á sapucaia.
Mas agora, em presença do guerreiro a quem ama e para quem guardou sua virgindade, tem pejo e esconde sua formosura ás vistas de Ubirajara.
— Os olhos do esposo são como o sol, disse o guerreiro: elles queimam a flôr do corpo de Aracy.
— Aracy tem medo que os olhos do esposo não a achem digna de seu amor; e vestiu seus enfeites.
— Aracy queria ser como a jurity e ter no corpo uma pennugem macia, que só a deixasse ver em sua formosura.
«Foi por isso que tua esposa se cobriu com o seu aimará. Os olhos de Ubirajara não lhe queimarão mais a flôr de seu corpo.
O guerreiro respondeu:
— A flor do Iguapé é mais formosa quando abre e se tinge de vermelho aos beijos do sol, do que fechada em botão e coberta de folhas verdes.
Ubirajara tomou nos braços a esposa e pôz o pé na soleira da porta.
Nesse momento soou um clamor; chegaram os guerreiros que vinham chamar o vencedor á presença de Itaquê.
O carbeto dos anciões tinha decidido que o vencedor, antes de receber a esposa, devia declarar quem era; pois fôra recebido como estrangeiro e ninguém na taba o conhecia.