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Wednesday, 18 June 2025

Wednesday's Good Reading: “O Fator Econômico no Cangaço” by Graciliano Ramos (in Portuguese)

 

O cangaço, de que tanto se têm ocupado os jornais por causa da morte de um dos seus mais notáveis componentes, é um fenômeno próprio da zona de indústria pastoril, no Nordeste. Sem dúvida lá existem malfeitores em toda parte, mas os que operam na mata, lugar de agricultura e repouso, não são cangaceiros: ordinariamente são cabras de confiança de proprietários que, para conservar os seus bens e aumentá-los, precisam organizar defesa armada. Um anacronismo, certamente. O Nordeste, porém, é atrasado em demasia, a propriedade aí se mantém pela força, às vezes cresce pela força. Esses pequenos exércitos de potentados matutos, reprodução dos troços que defendiam os castelos dos senhores feudais, são sedentários, não podiam deixar de ser sedentários numa região agrícola, e é isto precisamente o que mais os distingue dos cangaceiros, nômadas em virtude do regime de produção na catinga.

Aí não há o deserto, mas há muito de deserto. Na campina imensa, onde se achatam colinas baixas, a vegetação espinhosa definha; os rios se infiltram na areia ou formam poços na pedra; aqui e ali surgem bebedouros de água lamacenta; a terra é dura, torrada, pedregosa, varrida constantemente pelos redemoinhos.

Nesse meio agressivo os homens e os rebanhos se dizimam quando há carência de pastagem. Na verdade a pastagem de ordinário não finda pelo consumo, finda pela estiagem. Rarefeita, espalhada na planície enorme, obriga os animais a percorrer distâncias consideráveis para alimentar-se. E os pastores são meio vagabundos. As suas moradas não oferecem muito mais comodidade que as tendas. É certo que não se transportam, mas, simples construções de taipa, sem reboco, sem ladrilho, acaçapadas, arranjam-se economicamente e em poucos dias. A gente que nelas vive tem hábitos patriarcais, pelo menos em alguns lugares ainda se conservam hábitos patriarcais. A residência do chefe se assemelha às dos moradores próximos, quase todos pessoas da mesma família e quase todos vaqueiros.

Notemos que a terra aí não está dividida e que a propriedade consta de casas, algum açude, currais e gado. Sendo a forragem escassa, a distribuição da terra e as cercas tornariam impossível a única produção existente.

Um fazendeiro rico possui em geral várias fazendas, vários cascos de fazenda, como lá se diz, e quando em uma começa a faltar água ou planta, muda-se para outra. Impossível, portanto, um amor excessivo à terra: impossíveis as violências praticadas pelos senhores de engenho da mata contra vizinhos fracos, para tomar-lhes um sítio.

Como a riqueza é principalmente constituída por animais, o maior crime que lá se conhece é o furto de gado. A vida humana, exposta à seca, à fome, à cobra e à tropa volante, tem valor reduzido — e por isso o júri absolve regularmente o assassino. O ladrão de cavalos é que não acha perdão. Em regra não o submetem a julgamento: matam-no. Vi há muitos anos um sertanejo que, em companhia de dois filhos bem armados, tinha viajado umas quarenta léguas a pé, rastejando um desses criminosos. A alguém que estranhou semelhante gasto de energia e tempo, desproporcionado ao valor dum sendeiro, respondeu não ligar importância ao prejuízo, mas ao desaforo do ladrão, que merecia uma surra com vareta de espingarda. Passados alguns dias, reapareceu conduzindo o animal. Como, porém, não se havia efetuado nenhuma prisão, suponho que a surra de vareta se realizou e a vítima dela sucumbiu.

Esse rigor explica-se numa terra de vaqueiros, onde o cavalo é o único meio de transporte, absolutamente indispensável nas retiradas.

Tratando-se de cangaceiros, o procedimento é diverso: não podendo castigá-los, porque são fortes, os proprietários às vezes transigem com eles, coisa que nenhum poderia decentemente fazer com um ladrão de cavalos. Essas transações não são desonrosas, pois os salteadores inspiram medo, respeito, uma certa admiração que as cantigas dos violeiros cultivam. O ladrão de cavalos é o inimigo pequeno, que se pode suprimir. O cangaceiro é o inimigo poderoso, que é necessário agradar. Paga-se-lhe, portanto, um razoável tributo e manda-se-lhe por intermédio de confiança algum aviso útil que o livre da polícia.

Realmente o bandido nem sempre ameaça a propriedade: em alguns casos pode tornar-se um sustentáculo dela. Até o começo deste século os chefes de bandos eram em geral pessoas de consideração, homens de boa família, perseguidos por adversários políticos que eles juravam eliminar. Para isso necessitavam o apoio de indivíduos que se conservavam na legalidade. Aliança vantajosa às duas partes: ganhavam os bandoleiros, que obtinham quartéis e asilos na catinga, e ganhavam os proprietários, que se fortaleciam, engrossavam o prestígio com esse negócio temeroso. Como os salteadores de bota e gravata organizavam pequenos bandos compostos de sujeitos necessitados da classe baixa, concluiremos que o cangaço era um fenômeno social, agravado por motivos de ordem econômica.

Parece que as coisas se modificaram. Hoje os bandoleiros são de ordinário criaturas nascidas na canalha, libertas dos patrões que as orientavam, ora no trabalho do campo, ora nas lutas contra as forças do governo. Comparados aos antigos, pouco numerosos, constituem multidão, e tornaram-se muito mais cruéis. É difícil agarrá-los, mas se os agarram, tratam-nos de maneira bárbara, como aconteceu ultimamente na caçada a Lampião, uma fera mutilada com ferocidade. Enquanto não os pegam, as perseguições alcançam matutos inofensivos, que, por vingança ou desespero, avolumam os bandos. Assim, talvez acertemos supondo que atualmente o cangaço é um fato de natureza econômica, ampliado por motivos de ordem social.

O dr. Alfredo de Maia, industrial e político alagoano, fez-me há dias uma declaração interessante: afirmou-me que o bandoleiro Corisco, notável em decapitações, é filho do coronel Emiliano Fernandes, neto do coronel Manoel Fernandes da Costa, cidadão absolutamente respeitável no município de Viçosa, em Alagoas. Se Alfredo de Maia não está enganado, temos aí um caso admirável: um homem da classe dominante degradado entre bandoleiros sem que para isto hajam contribuído as perseguições e as injustiças comuns no Nordeste. É estranho que esse moço de família tenha durante longos anos servido sob as ordens de Virgulino Ferreira, um mulato, almocreve, analfabeto.

Conheci há tempo o coronel Manoel Fernandes da Costa, velho sisudo, de barbas imponentes, senhor de engenho acreditado, um esteio. O que o prejudicou foi a religião, ou antes a falta de religião: tinha era um terrível fanatismo, uma extrema veneração ao Padre Cícero do Juazeiro. Vestia-se de coronel do Exército, fardava os filhos de oficiais do Exército, a cabroeira do engenho ocupava os postos subalternos e compunha a soldadesca. Engalanado, armado, acompanhado, montado num cavalo fogoso, o coronel Manoel Fernandes encaminhava-se uma vez por ano ao Juazeiro, ao som de instrumentos em que músicos, também fardados, sopravam dobrados marciais. Gastou nisso a fortuna. Como Juazeiro fica a umas cem léguas de Viçosa, ou mais, as despesas eram graúdas — e o coronel Manoel Fernandes arruinou-se. E aí está o neto, rapaz de coragem, com estudos em colégios, seguindo as lições de Lampião e decepando cabeças.

Na evolução do cangaço notamos, pois, três fases: a princípio mandavam os grandes, os condottieri que se entendiam bem com os proprietários e às vezes se punham a serviço deles; depois a massa anônima da capangada cresceu e livremente escolheu mandões entre os seus membros; afinal vemos indivíduos que vêm de cima rebaixarem-se, misturarem-se à multidão criminosa e dela emergirem de repente, dirigindo os companheiros, como Corisco.

Essa democratização do cangaço foi provavelmente determinada pelo aumento da população numa terra demasiado pobre, que em alguns lugares chega a ter perto de cinqüenta habitantes por quilômetro quadrado. A gente mal pode lá viver. Isto nos mostra por que, não existindo no resto do país bandos de salteadores, o que é lisonjeiro, têm eles surgido e crescido assustadoramente no Nordeste.

Na zona árida há matutos que, segundo aparecem ou não aparecem as chuvas, ora se dedicam a misteres pacíficos, ora aderem aos grupos de bandoleiros, onde se tornam, por necessidade, criminosos medíocres. Em 1926, penetrando em Alagoas, Lampião demorou-se uma semana no município de Palmeira dos Índios, fronteira do sertão. Pernoitou em casa dum fazendeiro e, camarada, para não comprometê-lo com a polícia, quebrou duas cadeiras e matou uma novilha. Ao retirar-se, o proprietário deu-lhe por guia um vaqueiro que teve a má sorte de passar naquele momento diante da casa. Metido no bando, esse pobre-diabo encontrou nele alguns conhecidos da vizinhança, que lhe pediram notícias de amigos e parentes, mandaram recados e dinheiro para as famílias, ali residentes.

Um bando de cangaceiros é coisa que sempre se renova. O de Lampião tinha nesse tempo cento e vinte homens, mas ia largando pelos caminhos elementos cansados e angariando novos adeptos. Ao chegar a Mossoró, no Rio Grande do Norte, contava cerca de duzentos. Aí houve tiroteio forte, de que resultou a morte de Jararaca, e a companhia se dissolveu, para reorganizar-se meses depois.

Essas terríveis quadrilhas, que ultimamente se têm multiplicado, não encerram, pois, todos os salteadores que afligem o Nordeste: é preciso considerá-las como escolas ambulantes, onde, em época de seca, se vão exercitar os sertanejos famintos. A educação realmente não os expõe a grande perigo. Em primeiro lugar é difícil uma povoação atacada oferecer resistência; depois as lutas contra as forças do governo são raras, porque de ordinário os oficiais de polícia, demasiado prudentes, evitam choques desagradáveis; afinal, como só os chefes, com fotografias e nomes nos jornais, são de fato procurados, a tropa, a multidão mal paga e sem glória, pode, com a vinda das trovoadas, desertar impunemente e voltar às suas ocupações de ordem, até que chegue de novo a necessidade de bandear-se.

Rio de Janeiro, 1953.

Wednesday, 12 March 2025

Wednesday's Good Reading: "Lampião" by Graciliano Ramos (in Portuguese)

 

Lampião nasceu há muitos anos, em todos os estados no Nordeste. Não falo, está claro, no indivíduo Lampião, que não poderia nascer em muitos lugares e é pouco interessante. Pela descrição publicada vemos perfeitamente que o salteador cafuzo é um herói de arribação bastante chinfrim. Zarolho, corcunda, chamboqueiro, dá impressão má.

Refiro-me ao lampionismo, e nas linhas que se seguem é conveniente que o leitor não veja alusões a um homem só.

Lampião nasceu, pois, há muitos anos, mas está moço e de boa saúde. Não é verdade que seja doente dos olhos: tem, pelo contrário, excelente vista.

É analfabeto. Não foi, porém, a ignorância que o levou a abraçar a profissão que exerce.

No começo da vida sofreu numerosas injustiças e suportou muito empurrão. Arrastou a enxada, de sol a sol, ganhando dez tostões por dia, e o inspetor de quarteirão, quando se aborrecia dele, amarrava-o e entregava-o a uma tropa de cachimbos, que o conduzia para a cadeia da vila. Aí ele aguentava uma surra de vergalho de boi e dormia com o pé no tronco.

As injustiças e os maus-tratos foram grandes, mas não desencaminharam Lampião. Ele é resignado, sabe que a vontade do coronel tem força de lei e pensa que apanhar do governo não é desfeita.

O que transformou Lampião em besta-fera foi a necessidade de viver. Enquanto possuía um bocado de farinha e rapadura, trabalhou. Mas quando viu o alastrado morrer e em redor dos bebedouros secos o gado mastigando ossos, quando já não havia no mato raiz de imbu ou caroço de mucunã, pôs o chapéu de couro, o patuá com orações da cabra preta, tomou o rifle e ganhou a capoeira. Lá está como bicho montado.

Conhecidos dele, velhos, subiram para o Acre; outros, mais moços, desceram para São Paulo. Ele não: foi ao Juazeiro, confessou-se ao Padre Cícero, pediu a bênção a Nossa Senhora e entrou a matar e roubar. É natural que procure o soldado que lhe pisava no pé, na feira, o delegado que lhe dava pancada, o promotor que o denunciou, o proprietário que lhe deixava a família em jejum.

Às vezes utiliza outras vítimas. Isto se dá porque precisa conservar sempre vivo o sentimento de terror que inspira e que é a mais eficaz das suas armas.

Queima as fazendas. E ama, apressado, um bando de mulheres. Horrível. Mas certas violências, que indignam criaturas civilizadas, não impressionam quem vive perto da natureza. Algumas amantes de Lampião se envergonham, realmente, e finam-se de cabeça baixa: outras, porém, ficam até satisfeitas com a preferência e com os anéis de miçanga que recebem.

Lampião é cruel. Naturalmente. Se ele não se poupa, como pouparia os inimigos que lhe caem entre as garras? Marchas infinitas, sem destino, fome, sede, sono curto nas brenhas, longe dos companheiros, porque a traição vigia... E de vez em quando a necessidade de sapecar um amigo que deita o pé adiante da mão...

Não podemos razoavelmente esperar que ele proceda como os que têm ordenado, os que depositam dinheiro no banco, os que escrevem em jornais e os que fazem discursos. Quando a polícia o apanhar, ele estará metido numa toca, ferido, comendo uma cascavel ainda viva.

Como somos diferentes dele! Perdemos a coragem e perdemos a confiança que tínhamos em nós. Trememos diante dos professores, diante dos chefes e diante dos jornais; e se professores, chefes e jornais adoecem do fígado, não dormimos. Marcamos passo e depois ficamos em posição de sentido. Sabemos regularmente: temos o francês para os romances, umas palavras inglesas para o cinema, outras coisas emprestadas.

Apesar de tudo, muitas vezes sentimos vergonha da nossa decadência. Efetivamente valemos pouco.

O que nos consola é a ideia de que no interior existem bandidos como Lampião. Quando descobrirmos o Brasil, eles serão aproveitados.

E já agora nos trazem, em momentos de otimismo, a esperança de que não nos conservaremos sempre inúteis.

Afinal somos da mesma raça. Ou das mesmas raças.

É possível, pois, que haja em nós, escondidos, alguns vestígios da energia de Lampião. Talvez a energia esteja apenas adormecida, abafada pela verminose e pelos adjetivos idiotas que nos ensinaram na escola.

Saturday, 18 January 2025

Saturday's Good Reading: “Professores Improvisados” by Graciliano Ramos (in Portuguese)

 

Conheci um sujeito que dispunha de vasto palavreado e ensinava gramática. Ensinava por um processo engenhoso. Reunida a classe, punha os óculos, abria um livro, percorria a página de alto a baixo com o índice, gargarejava umas coisas que ninguém compreendia e terminava:

— Isso não tem importância. Vamos para diante. Tragam-me o adjetivo amanhã.

No outro dia cena igual: os mesmos óculos, o mesmo livro aberto, o mesmo gesto com o fura-bolos amarelo de cigarro, o mesmo gargarejo, a mesma conclusão:

— Adjetivo é isso que vocês sabem. Não interessa. Para a frente! Decorem o pronome.

A propósito de análise dissertava com vigor sobre a dinastia dos Sugs: falavam-lhe em concordância e ele explicava metafísica. Ao cabo de alguns anos, excetuando gramática, os alunos sabiam tudo. Houve entre eles, com o correr do tempo, agricultores, jornalistas, padres, advogados, funileiros e poetas. Sempre ignoraram a disciplina que o homem professava.

Esta história pode ser exagero ou mentira. Mas ninguém a desmancha, sustento-a — e ela permanece. Há muitas verdades assim, inconcussas por falta de quem as desmantele.

O meu conto será aceito sem dificuldade, porque, se não é rigorosamente verdadeiro, é pelo menos verossímil. Realmente esse professor, que, para livrar-se dum obstáculo, mistura alhos com bugalhos, mete os pés pelas mãos, deixa os rapazes em jejum, não é daqui nem dali: é de quase todas as cidades do interior. Músico de sete instrumentos, criatura fatigada, depois de exercer dez ofícios sem se fixar em nenhum, esbarra com um dilema temeroso — queimar os miolos ou abrir uma escola.

Se estira a canela, o prejuízo é pequeno: se se agarra à segunda hipótese, vem a lume, passados meses, um jornalzinho cheio de sonetos.

Não pretende consertar nada. O que Deus Nosso Senhor fez, ou alguém por ele, deve estar certo. Limito-me a expor um fato. E para que me acreditem, confesso, com vergonha, que sou suspeito.

Por motivo de ordem econômica, resolvi um dia, a exemplo de toda gente, ministrar aos outros alguns conhecimentos proveitosos a mim. Não me arrisquei a preparar oleiros ou sapateiros pois ninguém tomaria a sério sapato ou panela que eu fizesse. Procurei matéria exótica, de verificação difícil. Imaginando, sem grande esforço, que na Itália existia uma língua, pedi catálogos ao Garnier e dispus-me resolutamente a estropiar o italiano com a ajuda de Deus. Anunciei: “Italiano rápido e barato a cinco mil-réis por cabeça, mensalmente. Aproveitem. Lições em todos os dias úteis e inúteis. Tempo é dinheiro, como diz o gringo.”

— Isto deve ser fácil, pensei. É só arrumar no fim das palavras one ou sine. De estrangeiro cá na terra ninguém entende. E se aparecer por aí um carcamano, adoeço e perco a fala.

Pois, senhores, não me dei mal. Matricularam-se cerca de trinta idiotas: comecei a trabalhar com energia e confiança. Ainda estaria trabalhando, se dois alunos, finda a primeira quinzena, não entrassem em concorrência comigo, deslealmente, fundando escolas que italianizaram toda a localidade.

Creio que os professores sertanejos são, com diferenças pouco sensíveis, indivíduos como eu. Ensinam antes de aprenderem. Talvez fosse mais razoável aprender para ensinar. Mas poderei eu censurá-los? Não, decerto. Todos precisamos viver. E desejamos, naturalmente, aparentar o que não somos. Por que é que estou a redigir estas niquices? Por que m’as pediram? Ora essa! Não seria melhor declarar francamente e honestamente que não sei escrever?

Saturday, 30 November 2024

Saturday's Good Reading: “O Jogo do Bicho, Fator Econômico” by Graciliano Ramos (in Portuguese).

 

De todas as instituições brasileiras o jogo do bicho é com certeza a mais interessante, a que melhor descobre a alma popular. É verdade que possuímos outras capazes de provocar entusiasmos vivos e até a paixão das massas: o carnaval, o futebol, as lutas políticas, por exemplo; mas são coisas que, embora aqui tenham feição particular, existem em toda a parte. Nenhuma delas produz uma excitação permanente, todas se manifestam com intermitências mais ou menos longas.

O jogo do bicho é constante e puramente nacional. Aqui surgiu, criou raízes, e em nenhum outro país se daria tão bem. Deriva da nossa desorganização econômica e da confiança que depositamos em forças misteriosas. Todos nós, consciente ou inconscientemente, esperamos milagres, acreditamos na Divina Providência, em poderes sobrenaturais, que às vezes ficam no alto, inatingíveis e obscuros, outras vezes se põem em contato com os homens, familiarizam-se, revelam-se de maneira bastante ordinária.

As relações entre o homem e a divindade, que a princípio se manifestam sob a forma de troca, depois como transações de compra e venda, aqui se modificaram. Em toda a parte o crente oferece a Deus ou aos santos um objeto para receber um favor, ou oferece-lhes dinheiro, mas entre nós este respeitável costume se tornou uma espécie de jogo. Daí para se tornar jogo verdadeiro a distância não era grande. A nossa gente supersticiosa, que admite a realização dos sonhos e, especialmente no interior, faz promessas a Santo Antônio a propósito de casamento e a Santa Clara a propósito de chuva, encontrou meio de transformar a graça pedida em dinheiro. Podemos acompanhar a evolução do negócio do seguinte modo: oferecemos um objeto para receber um bem qualquer; oferecemos dinheiro para receber o mesmo bem; oferecemos dinheiro para receber dinheiro.

Não queremos felicidade, paz, qualquer estado de alma necessário aos místicos; desejamos coisas concretas. O mendigo que pede para o transeunte saúde e vida longa muitas vezes indica os meios que julga indispensáveis para se obter isso.

Impossibilitados de adquirir uma felicidade completa, buscamos pedaços de felicidade. E, em vista da situação precária em que vivemos, esses fragmentos são de ordinário representados por quantias insignificantes. Sabemos que a posse delas nada resolve definitivamente, que a nossa vida não se endireitará com tão pouco e, consumidas essas ínfimas parcelas de riquezas, a necessidade voltará e teremos de apelar para um novo golpe de sorte. Mas não podemos pensar no futuro quando o presente é incerteza e confusão, respiraremos com alívio se as nossas dificuldades irremediáveis forem procrastinadas por um mês, uma semana, um dia. Esperaremos que tudo se arranje depois.

Por enquanto precisamos com urgência uma determinada importância para o aluguel da casa, importância correspondente ao dinheiro que possuímos multiplicado por vinte. O brasileiro achou o modo de realizar a multiplicação, pelo menos de passar algumas horas na ilusão de que ela se realize e lhe dê recursos para satisfazer às exigências imediatas.

É verdade que a ilusão ordinariamente falha, mas pode renovar-se no dia seguinte, caso o homem não se ache absolutamente desprovido de pecúnia.

Ele poderia arriscar-se a qualquer outro jogo. Isto, porém, não lhe traria grande satisfação. Comprando bilhetes de loteria, a espera seria muito prolongada; na roleta ou no bacará seria curta demais. Ele não quer ficar muito tempo sonhando com uma sorte grande que lhe transforme a vida, nem encostar-se ao pano verde para receber emoções fortes e rápidas. Contenta-se com sortes miúdas, que lhe podem chegar diariamente, a hora certa, não se decidem no giro duma bola ou num virar de carta.

Além disso a loteria, a roleta, o bacará ficam fora das possibilidades da maior parte da população, ao passo que o jogo do bicho está ao alcance de toda a gente e possui o que é preciso para conquistar a simpatia das massas.

Em primeiro lugar promete muito e não oferece nenhuma garantia, o que está em conformidade com os hábitos dum país onde se organizam companhias sem capital e os profetas são bem recebidos, ainda que sejam os mais extraordinários salvadores. Apesar de tudo os jogadores felizes são pagos com rigorosa pontualidade, e isto é admirável, porque entre nós nunca nenhum programa se realiza, as obrigações são regularmente postas de lado. Os papelinhos riscados a lápis por um sujeito desconhecido transformam-se em valores.

Em segundo lugar é proibido, razão suficiente para viver e prosperar. Há negócios que não têm outro motivo de êxito. O nosso instinto de rebeldia sustenta-os, faz que protestemos contra algum funcionário demasiado consciencioso que pretenda enxergá-los.

Aliás com relação ao jogo do bicho talvez seja conveniente a autoridade supor que ele não existe e deixá-lo em paz. Muitos cavalheiros ficariam em apuros se, marchando para a repartição com o intuito severo de combater essa praga nacional, pensassem que suas respeitáveis senhoras elaboram listas complicadas, os rapazes no caminho da escola arriscam níqueis na dezena, o ordenado da criada foi estabelecido com a redução da importância presumível que ela retira nas compras e dá ao rapaz do talão, o fornecedor não está satisfeito com os pagamentos e espera minorar as suas dívidas com a problemática fração de riqueza que todas as manhãs lhe oferecem no balcão.

Deixemos em paz o bicheiro. Essa fração de riqueza representa a quantia que deixou de ser paga no salário do trabalhador, a conta que o bacharel se esqueceu de saldar na venda. Para que privar o operário e o vendeiro da última possibilidade que lhes resta?

O jogo do bicho significa uma tentativa muito louvável para corrigir o desarranjo em que vivemos. Uma tentativa oferecida a pessoas supersticiosas que acreditam em sonhos e ainda não podem acreditar em outra coisa, mas afinal talvez seja inconveniente suprimi-la, pelo menos por enquanto.

Saturday, 28 September 2024

Saturday Good Reading: “Um Desastre” by Graciliano Ramos (in Portuguese)

 

Alagoas é um estado pobre. Em pouco mais de vinte e oito mil quilômetros quadrados arruma-se quase um milhão de habitantes. Para bem dizer, não se arruma: na praia há charco, mosquito, sezão; na catinga há seixo, cardo, fome. Entre as duas zonas aperta-se a mata, com algodão e cana-de-açúcar, mas aí não se consegue terra facilmente, o salário é baixo — e para lá das cancelas o despotismo do proprietário vale o mosquito e o cardo juntos.

Em toda a parte o amarelão — desânimo, gordura fofa: homens cor de cera, indecisos entre a vida e a morte; raparigas velhas, uns cacos de mulheres na adolescência; meninos ramelosos, de pernas finas como cambitos, barrigas enormes, grávidas de lombrigas. E muita porcaria: falta de água no sertão, excesso no litoral, o solo empapado, lama.

Nessa penúria, os que têm restos de energia emigram; outros olham os pontos cardeais, esperando um milagre. Em cima, o fazendeiro, o negociante e o burocrata.

Escorados nos balcões das vilas, sujeitos ociosos conversam; os beiradeiros das lagoas nem força têm para conversar. Pernas arrastadas, beiços pálidos, meia dúzia de palavras bambas, como neste diálogo que Pedro Lima inventou:

— Seu compadre, se esta miséria continuar, nós acabamos pedindo esmola.

— A quem?

A população cresce demais. Se a dos outros estados fosse tão densa, o país seria uma nova China. Mais de novecentas mil sombras. Insignificante produção para tanta gente. Na roça uma família inteira se esconde nas camarinhas, nua, enquanto a mãe vai à cacimba, lavar roupa. Um indivíduo mendiga para casar.

— Como é que você sustenta mulher e filhos, criatura?

— Deus dá o jeito.

Ali por volta de 1930 só um município arrecadava cem contos. Hoje as rendas parecem ter subido um pouco. Mas terão “realmente” subido?

Não devemos falar em tais coisas a estranhos. Em vez de penalizá-los, humilhando-nos, exibimos a sala de visitas, arranjada com decência. Apesar de tudo, o alagoano tem momentos de vaidade e abomina considerações desagradáveis. Possuímos glória: Tavares Bastos, Sinimbu, heróis no Paraguai, colonizados do Amazonas. E proclamamos a República. Para alguma coisa a emigração haveria de servir.

Infelizmente precisamos renunciar por enquanto a essas lembranças consoladoras e expor os nossos males. Vieram males grandes, além dos ordinários. Chuva incessante, inundação, dilúvio. O Senhor resolveu afogar os nossos pecados. Os rios engrossaram, submergiram campos, mataram plantas, bichos e cristãos; riachinhos incharam, converteram-se em torrentes, devoraram morros numa erosão faminta e raivosa. Aluíram pontes, ruíram casas, sumiram-se povoações. Impossibilitou-se o trânsito nos caminhos alagados; descansaram as locomotivas; nos lugares onde rodavam trens e bondes vogam canoas. Fecharam-se os estabelecimentos comerciais: a indústria emperrou; trabalhadores esqueceram as suas profissões e tentaram, nervosos, defender ruínas que se dissolvem. De espaço a espaço um desmoronamento — e os restos das cidades emergem como se fossem construídos em palafitas. A agricultura foi varrida: canaviais e arrozais desceram na correnteza ou sepultaram-se no lodo.

Se as notícias calamitosas se referissem a uma cheia do Yang-Tsé-Kiang, acharíamos enorme a catástrofe distante, alargada pelasagências telegráficas. Estamos, porém, diante de uma tragédia caseira, narrada economicamente por Nelson Flores. E, julgando-nos favorecidos pela Providência, buscamos atenuar as nossas aflições.

Contudo esses horrores próximos, que dia a dia o conhecimento de pormenores engrandece, não podem ser desfeitos com sorrisos apenas. Há uma desgraça. Evidentemente o governo local não tem meio de combatê-la. É indispensável o socorro da União. E é indispensável o auxílio do particular, bondade que não faltaria se uma erupção do Aconcágua houvesse destruído algumas aldeias.

Certo não se trata de consertar as máquinas das usinas. Elas se desenferrujarão naturalmente — e o açúcar terá bom preço. A campanha iniciada aqui tende a minorar o sofrimento do homem que nunca entrou num banco e só conheceu durezas, o vaqueiro do sertão mudado em brejo, o pescador da lagoa tornada mar. Vestir os nus, curar os doentes, erguer o casebre da viúva, amparar o órfão, enfim semear naquela região infeliz uns pedaços de obras de misericórdia. Quando as águas baixarem, a maleita se desenvolverá junto aos mangues crescidos, bandos exaustos andarão trêmulos. Pensamos nessa gente mais ou menos inútil. Mas que poderia não ser inútil. E poderá talvez não ser inútil.

 

Rio de Janeiro, 25 agosto de 1944.

Saturday, 15 June 2024

Saturday's Good Reading: “Comandantes de Burros” by Graciliano Ramos (in Portuguese)

 

Quando Lampião esteve no município de Palmeira dos Índios, onde se demorou alguns dias mandando bilhetes para a cidade e sem poder entrar nela, trazia mais de cem homens que não se escondiam na capoeira nem transitavam em veredas. Corriam pela estrada real, bem-montados, espalhafatosos, pimpões, chapéus de couro enfeitados de argolas e moedas, cartucheiras enormes, alpercatas que eram uma complicação de correias, ilhós e fivelas, rifles em bandoleira, lixados, azeitados, alumiando.

O major José Lucena, chefe do destacamento que perseguia bandidos, notando a pequena eficiência da sua tropa de peões, entendeu-se com os proprietários sertanejos, que lhe ofereceram cavalos e burros para o restabelecimento da ordem. Houve algumas escaramuças e Lampião deixou Alagoas, tomou rumo para o Rio Grande do Norte, entrou em Mossoró, onde Jararaca morreu e a cabroeira se espalhou.

Os burros se tornaram inúteis.

O major Lucena separou-os em dois lotes, mandou um deles para um engenho de Viçosa, e o outro para uma povoação de Palmeira dos Índios.

Neste tempo o sr. Álvaro Paes, que projetou e iniciou trabalhos excelentes de organização municipal, viajava todas as semanas pelo interior do estado. Foi um viajante incansável e chegou a conhecer perfeitamente as árvores e os homens do sertão.

Um dia parou num povoado, com o intuito de ensinar aos matutos a cultura da pinha, da mamona e de outros vegetais que se desenvolviam bastante na imprensa da época. Estava tratando de convencer o maioral da localidade quando se aproximou dele um soldado com duas fitas, um botão fora da casa, chapéu embicado, faca de ponta à cinta. Continência e apresentação:

— Pronto, seu governador, cabo fulano, comandante dos burros do major Lucena.

Era o encarregado de tomar conta dos animais que tinham servido para afugentar Lampião.

Esta história podia findar aqui, mas não serão talvez excessivas algumas palavras sobre a classe a que pertencia esse extraordinário comandante. Horrível. Sujeitos insolentes, provocadores, preguiçosos.

A parte mais forte da nossa população rural está com Lampião — os indivíduos que dormem montados a cavalo, os que suportam as secas alimentados com raiz de imbu e caroços de mucunã, os que não trabalham porque não têm onde trabalhar, vivem nas brenhas, como bichos, ignorados pela gente do litoral.

Os que não têm coração mole encontram-se, quando o verão queima a catinga, numa situação medonha. Três saídas: morrer de fome, assentar praça na polícia, emigrar para o Sul. Antes da morte, da emigração ou da farda, essas criaturas são maltratadas pelas diligências, que não querem saber quem é bom nem quem é ruim: espancam tudo.

O caboclo apanha bordoada sempre: apanha do pai, da mãe, dos tios, dos irmãos mais velhos, apanha do proprietário que lhe toma a casa e abre a cerca da roça para o gado estragar as plantações, apanha do cangaceiro que lhe raspa o osso da canela a punhal e lhe deita espeques nas pálpebras, para ver a mulher, a filha, a irmã serem possuídas. E se um inimigo vai à rua e o acusa, o delegado manda prendê-lo e ele aguenta uma surra de facão no corpo da guarda, outra de cipó de boi no xadrez, aplicada pelo preso mais antigo, que recebe quinhentos-réis do torno e é o juiz da cadeia.

Suporta esses últimos tormentos resignado, quase com indiferença, porque enfim prisão se fez para homem e apanhar do governo não é desfeita. Às vezes morre das sovas. Outras vezes atira-se para São Paulo, para o Espírito Santo, para algum lugar onde haja café. Ou espera que a lagarta coma o algodão e as cacimbas se esgotem.

Nesse ponto tendo ódio a Deus e aos homens que o tratam mal, tem vontade de vingar-se. Pede um cartão ao doutor juiz de direito, vende o cavalo, arranja o malote e marcha para a capital, donde volta alguns meses depois, transformado, calçando perneiras, vestindo uniforme cáqui, falando difícil, terrivelmente besta, desconhecendo os amigos e perguntando o nome das coisas mais vulgares.

Abre as vogais escandalosamente, diz: Éxercito, sérviço.

Anda a peneirar-se, todo pachola, com o quepe à banda, a grenha parecendo por baixo da pala.

Bebe, não trabalha, dorme demais!

À noite mete-se nos botequins dos bairros safados ou derruba as portas das meretrizes. É mais ou menos casado com uma sujeita que lhe prepara a comida, lava a roupa e possui um baú de folha, um sagui e um papagaio.

Vai aos batuques de ponta de rua, sem ser convidado, e é bem recebido. Muita consideração. Mas quer dançar com todas as damas, e se alguma lhe mostrar má cara, faz um barulho feio: apaga-se a luz e a festa acaba em pancadaria.

 

É vaidoso, cheio de suscetibilidades. Importância imensa. Em horas de aborrecimentos sai à calçada do quartel, nu da cintura pra cima, e grita:

 

— Esta terra não tem homem:

Como nenhum homem responde, torna a gritar:

— Apareça um. Ninguém aparece.

Vai para as encruzilhadas tomar as facas dos matutos. Os matutos que têm facas levam murros porque são desordeiros, os que não têm facas levam murros porque são mofinos.

Levam murros e sentem, como é natural, o desejo de ser soldados, o desejo de cochilar horas e horas, de papo pra cima, sem obrigações, sem exercícios, sem a botina quarenta e quatro a apertar-lhes os calos, o desejo de beber vinho branco na feira e pisar os pés dos pobrezinhos que só têm armas fracas: o buranhém e a quicé de picar fumo, o desejo de comer massa, o desejo de tomar as mulheres dos outros, o desejo de comprar fiado nas bodegas sem intenção de pagar.

Um cartão do doutor juiz de direito, do promotor público, do coronel chefe político tem muito valor!

Entrouxam a roupa e embarcam.

Quando voltarem dormirão tranquilos, baterão nas prostitutas, beberão cachaça nas toldas, em companhias do inspetor e do subdelegado.

E serão, com a ajuda de Deus, alguma coisa grande.

Comandante de burros por exemplo.

 

Maceió, 27 de maio de 1933.