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Saturday, 2 August 2025

Saturday's Good Reading: “Um Profeta” by Graciliano Ramos (in English)

 

Em Sant’Ana do Ipanema, no estado de Alagoas, há um ser extraordinário. É um homem trigueiro, baixo, forte, de olhos e cabelos pretos, nariz levemente recurvado. Parece ter algumas gotas de sangue judeu. Conversei com ele meia hora. Tomei-o a princípio por um indivíduo comum, mas compreendi logo o meu erro e agucei, com atenção, os ouvidos e os olhos. Como ele me confessou, pouca gente o entende.

— Dizem que sou maluco, declarou-me, mas é engano. O que eu sou é profeta.

Sim, senhores, profeta, raridade nestes tempos que atravessamos. Um cidadão de vaidade imensa, que pretende, como outros, antigos e modernos, consertar tudo, porque tudo está errado, na opinião dele. E na minha também. Ignoro os meios que ele tenciona empregar para corrigir todas as iniquidades que pululam neste mundo imperfeito. O que sei é que se entende com personagens celestes de alta categoria: fala com a Virgem diariamente e uma vez por semana com Deus Padre Todo-Poderoso. Esses encontros, porém, não se realizam de maneira uniforme. Nossa Senhora exterioriza-se, como costumava fazer há séculos, de roupa azul e nimbo; o Padre Eterno aparece, invariavelmente, por via subjetiva. A Mãe de Deus palestra humanizada e familiar; da presença do Ente Supremo o nosso profeta recebe apenas intuições luminosas, que o induzem a rebelar-se contra as religiões oficiais, a afirmar que longe dele não há salvação possível, a pregar o reino do Céu, a declamar enfim uma série considerável de novidades.

Compreendi que o vidente notava no meu físico alguma coisa que denunciava em mim um possível adepto da nova doutrina. Lisonjeado, fiz-lhe várias perguntas, e ele, paternal e solícito, ministrou-me ensinamentos preciosos. Não se considera filho de Deus: sabe perfeitamente que a sua origem é ordinária. Mas, por graça especial do Além, recebeu o dom de profetizar e os atributos de um Salvador de segunda classe. Possui toda a ciência, não a ciência humana, que é lacunosa e contingente, mas a ciência divina, que... não é lacunosa nem contingente, penso eu. Desconheço as duas, infelizmente, e limito-me a registrar as ideias do homem.

Diz ele que o papa é um ignorante, que todos nós somos ignorantes, que quem desejar aprender qualquer coisa deve ir a Sant’Ana do Ipanema. Eu realmente aprendi pouco, pois a minha compreensão é fraca e o automóvel estava à porta, mas aqui deixo a advertência, útil àqueles que pretenderem salvar a alma e instruir-se.

Presentemente o profeta nutre duas ambições: derrubar a igreja local, ou aproveitá-la depois de expurgada, caso lhe seja possível iluminar o vigário, que está nas trevas, e converter o chefe do Estado, grande pecador também.

Infelizmente, em vinte anos de cavação espiritual o nosso profeta não conseguiu fazer um prosélito, e isto porque entre as massas existe uma criminosa indiferença para os assuntos celestes. Vivemos, efetivamente, muito afastados do bom caminho.

O resultado de semelhante procedimento foi o Ente Supremo encolher-se, ressentido, e negar aos homens alguns fenômenos interessantes que antigamente lhes fornecia a granel e de graça. Vejam. Os milagres tornaram-se raríssimos. As almas do outro mundo vivem bisonhas, escondidas, parece que têm medo de gente. Até os lobisomens, vulgares outrora, ficaram inteiramente invisíveis.

Ora num planeta sem milagres, sem almas do outro mundo e sem lobisomens, um profeta, por muito que trabalhe, não alcança grande coisa. É em vão que ele busca o martírio e odeia os que não acreditam nele. Ninguém hoje é capaz de odiá-lo, e as autoridades que o deveriam condenar, se a tradição se não tivesse partido, riem-se quando o veem. O meu profeta nasceu tarde. Não chegará, provavelmente, a fundador de religião.

Mas se chegar... Ah! Se chegar, creio que ninguém, com justiça, me negará o título de evangelista. Tenham paciência. Isto é uma espécie de evangelho. Não está feito de acordo com os clássicos, é certo, mas se eu fosse imitar os outros, os senhores me chamariam caturra e me atacariam a sintaxe. É um evangelho. Um evangelho vagabundo, um evangelho de jornal, um evangelho para ser lido em botequins. Mas evangelho.

Julgo que não há perigo. Eu e o meu profeta desapareceremos logo. Mas se por acaso em 3930 ele tivesse estátuas nos altares, toda a gente acharia o meu evangelho muito direito.

 

27 de abril de 1930.

Wednesday, 30 July 2025

Wednesday's Good Reading: “Inácio da Catingueira e Romano” by Graciliano Ramos (in Portuguese)

 

Li, há dias, numa revista a cantoria ou “martelo” que, há perto de setenta anos, Inácio da Catingueira teve com Romano, em Patos, na Paraíba. Inácio da Catingueira, um negro, era apenas Inácio; Romano, pessoa de família, possuía um nome mais comprido — era Francisco Romano do Teixeira, irmão de Veríssimo Romano, cangaceiro e poeta, pai de Josué Romano, também cantador, enfim, um Romano bem classificado, cheio de suficiência, até com alguns discípulos.

Nessa antiga pendência, de que se espalharam pelo Nordeste muitas versões, Inácio tratava o outro por “meu branco”, declarava-se inferior a ele. Com imensa bazófia, Romano concordava, achava que era assim mesmo, e de quando em quando introduzia no “martelo” uma palavra difícil com o intuito evidente de atrapalhar o adversário. O preto defendia-se a seu modo, torcia o corpo, inclinava-se modesto: “Seu Romano, eu só garanto é que ciência eu não tenho.”

Essa ironia, essa deliciosa malícia negra, não fez mossa na casca de Francisco Romano, que recebeu as alfinetadas como se elas fossem elogios e no fim da cantiga esmagou o inimigo com uma razoável quantidade de burrice, tudo sem nexo, à toa: “Latona, Cibele, Ísis, Vulcano, Netuno...” Jogou o disparate em cima do outro e pediu a resposta, que não podia vir, naturalmente, porque Inácio era analfabeto, nunca ouvira falar em semelhantes horrores e fez o que devia fazer — amunhecou, entregou os pontos, assim: “Seu Romano, desse jeito eu não posso acompanhá-lo. Se desse um nó em ‘martelo’, viria eu desatá-lo. Mas como foi em ciência, cante só, que eu já me calo.”

Com o entusiasmo dos ouvintes, Romano, vencedor, ofereceu umas palavras de consolação ao pobre do negro, palavras idiotas que serviram para enterrá-lo.

Isto aconteceu há setenta anos. E desde então, o herói de Patos se multiplicou em descendentes que nos têm impingido com abundância variantes de Cibele, Ísis, Latona, Vulcano etc.

Muita gente aceita isso. Nauseada, mas aceita, para mostrar sabedoria, quando todos deviam gritar honestamente que, tratando-se de “martelo”, Netuno e Minerva não têm cabimento.

Inácio da Catingueira, que homem! Foi uma das figuras mais interessantes da literatura brasileira, apesar de não saber ler. Como os seus olhos brindados de negro viam as coisas! É certo que temos outros sabidos demais. Mas há uma sabedoria alambicada que nos torna ridículos.

O ano passado vi o livro dum sujeito notável que declarava, com medonhos solecismos, ter sido um ótimo estudante de gramática. Não podia haver coisa mais extraordinária. O cidadão a afirmar, numa linguagem erradíssima, que sabia escrever.

Imaginei as caras dos outros leitores. Não vi nenhuma. Como, porém, ninguém protestou, julgo que todos, gramáticos e literatos, engoliram o que o homem disse, exatamente como aconteceu em Patos, há setenta anos.

Que pedantismo e que miséria! Ali bocados de mitologia, aqui um português arrevesado, pretensioso e manco.

Não devemos, contudo, perder as esperanças. Inácio da Catingueira, esse honesto conterrâneo do sr. José Américo e do sr. Lins do Rego, esse tipo direito, sensato, extravagância viva num país de insensatos, deixou descendentes. Graças a Deus isto é verdade. Será preciso mencioná-los? Talvez não seja, talvez os parentes dele se ofendam, porque enfim, Inácio era preto e, se não me engano, solteiro.

Certamente muitos preferem descender dos Romanos, que sempre foram os donos intelectuais do Brasil.

Rio de Janeiro, 19 de dezembro de 1937.

Wednesday, 18 June 2025

Wednesday's Good Reading: “O Fator Econômico no Cangaço” by Graciliano Ramos (in Portuguese)

 

O cangaço, de que tanto se têm ocupado os jornais por causa da morte de um dos seus mais notáveis componentes, é um fenômeno próprio da zona de indústria pastoril, no Nordeste. Sem dúvida lá existem malfeitores em toda parte, mas os que operam na mata, lugar de agricultura e repouso, não são cangaceiros: ordinariamente são cabras de confiança de proprietários que, para conservar os seus bens e aumentá-los, precisam organizar defesa armada. Um anacronismo, certamente. O Nordeste, porém, é atrasado em demasia, a propriedade aí se mantém pela força, às vezes cresce pela força. Esses pequenos exércitos de potentados matutos, reprodução dos troços que defendiam os castelos dos senhores feudais, são sedentários, não podiam deixar de ser sedentários numa região agrícola, e é isto precisamente o que mais os distingue dos cangaceiros, nômadas em virtude do regime de produção na catinga.

Aí não há o deserto, mas há muito de deserto. Na campina imensa, onde se achatam colinas baixas, a vegetação espinhosa definha; os rios se infiltram na areia ou formam poços na pedra; aqui e ali surgem bebedouros de água lamacenta; a terra é dura, torrada, pedregosa, varrida constantemente pelos redemoinhos.

Nesse meio agressivo os homens e os rebanhos se dizimam quando há carência de pastagem. Na verdade a pastagem de ordinário não finda pelo consumo, finda pela estiagem. Rarefeita, espalhada na planície enorme, obriga os animais a percorrer distâncias consideráveis para alimentar-se. E os pastores são meio vagabundos. As suas moradas não oferecem muito mais comodidade que as tendas. É certo que não se transportam, mas, simples construções de taipa, sem reboco, sem ladrilho, acaçapadas, arranjam-se economicamente e em poucos dias. A gente que nelas vive tem hábitos patriarcais, pelo menos em alguns lugares ainda se conservam hábitos patriarcais. A residência do chefe se assemelha às dos moradores próximos, quase todos pessoas da mesma família e quase todos vaqueiros.

Notemos que a terra aí não está dividida e que a propriedade consta de casas, algum açude, currais e gado. Sendo a forragem escassa, a distribuição da terra e as cercas tornariam impossível a única produção existente.

Um fazendeiro rico possui em geral várias fazendas, vários cascos de fazenda, como lá se diz, e quando em uma começa a faltar água ou planta, muda-se para outra. Impossível, portanto, um amor excessivo à terra: impossíveis as violências praticadas pelos senhores de engenho da mata contra vizinhos fracos, para tomar-lhes um sítio.

Como a riqueza é principalmente constituída por animais, o maior crime que lá se conhece é o furto de gado. A vida humana, exposta à seca, à fome, à cobra e à tropa volante, tem valor reduzido — e por isso o júri absolve regularmente o assassino. O ladrão de cavalos é que não acha perdão. Em regra não o submetem a julgamento: matam-no. Vi há muitos anos um sertanejo que, em companhia de dois filhos bem armados, tinha viajado umas quarenta léguas a pé, rastejando um desses criminosos. A alguém que estranhou semelhante gasto de energia e tempo, desproporcionado ao valor dum sendeiro, respondeu não ligar importância ao prejuízo, mas ao desaforo do ladrão, que merecia uma surra com vareta de espingarda. Passados alguns dias, reapareceu conduzindo o animal. Como, porém, não se havia efetuado nenhuma prisão, suponho que a surra de vareta se realizou e a vítima dela sucumbiu.

Esse rigor explica-se numa terra de vaqueiros, onde o cavalo é o único meio de transporte, absolutamente indispensável nas retiradas.

Tratando-se de cangaceiros, o procedimento é diverso: não podendo castigá-los, porque são fortes, os proprietários às vezes transigem com eles, coisa que nenhum poderia decentemente fazer com um ladrão de cavalos. Essas transações não são desonrosas, pois os salteadores inspiram medo, respeito, uma certa admiração que as cantigas dos violeiros cultivam. O ladrão de cavalos é o inimigo pequeno, que se pode suprimir. O cangaceiro é o inimigo poderoso, que é necessário agradar. Paga-se-lhe, portanto, um razoável tributo e manda-se-lhe por intermédio de confiança algum aviso útil que o livre da polícia.

Realmente o bandido nem sempre ameaça a propriedade: em alguns casos pode tornar-se um sustentáculo dela. Até o começo deste século os chefes de bandos eram em geral pessoas de consideração, homens de boa família, perseguidos por adversários políticos que eles juravam eliminar. Para isso necessitavam o apoio de indivíduos que se conservavam na legalidade. Aliança vantajosa às duas partes: ganhavam os bandoleiros, que obtinham quartéis e asilos na catinga, e ganhavam os proprietários, que se fortaleciam, engrossavam o prestígio com esse negócio temeroso. Como os salteadores de bota e gravata organizavam pequenos bandos compostos de sujeitos necessitados da classe baixa, concluiremos que o cangaço era um fenômeno social, agravado por motivos de ordem econômica.

Parece que as coisas se modificaram. Hoje os bandoleiros são de ordinário criaturas nascidas na canalha, libertas dos patrões que as orientavam, ora no trabalho do campo, ora nas lutas contra as forças do governo. Comparados aos antigos, pouco numerosos, constituem multidão, e tornaram-se muito mais cruéis. É difícil agarrá-los, mas se os agarram, tratam-nos de maneira bárbara, como aconteceu ultimamente na caçada a Lampião, uma fera mutilada com ferocidade. Enquanto não os pegam, as perseguições alcançam matutos inofensivos, que, por vingança ou desespero, avolumam os bandos. Assim, talvez acertemos supondo que atualmente o cangaço é um fato de natureza econômica, ampliado por motivos de ordem social.

O dr. Alfredo de Maia, industrial e político alagoano, fez-me há dias uma declaração interessante: afirmou-me que o bandoleiro Corisco, notável em decapitações, é filho do coronel Emiliano Fernandes, neto do coronel Manoel Fernandes da Costa, cidadão absolutamente respeitável no município de Viçosa, em Alagoas. Se Alfredo de Maia não está enganado, temos aí um caso admirável: um homem da classe dominante degradado entre bandoleiros sem que para isto hajam contribuído as perseguições e as injustiças comuns no Nordeste. É estranho que esse moço de família tenha durante longos anos servido sob as ordens de Virgulino Ferreira, um mulato, almocreve, analfabeto.

Conheci há tempo o coronel Manoel Fernandes da Costa, velho sisudo, de barbas imponentes, senhor de engenho acreditado, um esteio. O que o prejudicou foi a religião, ou antes a falta de religião: tinha era um terrível fanatismo, uma extrema veneração ao Padre Cícero do Juazeiro. Vestia-se de coronel do Exército, fardava os filhos de oficiais do Exército, a cabroeira do engenho ocupava os postos subalternos e compunha a soldadesca. Engalanado, armado, acompanhado, montado num cavalo fogoso, o coronel Manoel Fernandes encaminhava-se uma vez por ano ao Juazeiro, ao som de instrumentos em que músicos, também fardados, sopravam dobrados marciais. Gastou nisso a fortuna. Como Juazeiro fica a umas cem léguas de Viçosa, ou mais, as despesas eram graúdas — e o coronel Manoel Fernandes arruinou-se. E aí está o neto, rapaz de coragem, com estudos em colégios, seguindo as lições de Lampião e decepando cabeças.

Na evolução do cangaço notamos, pois, três fases: a princípio mandavam os grandes, os condottieri que se entendiam bem com os proprietários e às vezes se punham a serviço deles; depois a massa anônima da capangada cresceu e livremente escolheu mandões entre os seus membros; afinal vemos indivíduos que vêm de cima rebaixarem-se, misturarem-se à multidão criminosa e dela emergirem de repente, dirigindo os companheiros, como Corisco.

Essa democratização do cangaço foi provavelmente determinada pelo aumento da população numa terra demasiado pobre, que em alguns lugares chega a ter perto de cinqüenta habitantes por quilômetro quadrado. A gente mal pode lá viver. Isto nos mostra por que, não existindo no resto do país bandos de salteadores, o que é lisonjeiro, têm eles surgido e crescido assustadoramente no Nordeste.

Na zona árida há matutos que, segundo aparecem ou não aparecem as chuvas, ora se dedicam a misteres pacíficos, ora aderem aos grupos de bandoleiros, onde se tornam, por necessidade, criminosos medíocres. Em 1926, penetrando em Alagoas, Lampião demorou-se uma semana no município de Palmeira dos Índios, fronteira do sertão. Pernoitou em casa dum fazendeiro e, camarada, para não comprometê-lo com a polícia, quebrou duas cadeiras e matou uma novilha. Ao retirar-se, o proprietário deu-lhe por guia um vaqueiro que teve a má sorte de passar naquele momento diante da casa. Metido no bando, esse pobre-diabo encontrou nele alguns conhecidos da vizinhança, que lhe pediram notícias de amigos e parentes, mandaram recados e dinheiro para as famílias, ali residentes.

Um bando de cangaceiros é coisa que sempre se renova. O de Lampião tinha nesse tempo cento e vinte homens, mas ia largando pelos caminhos elementos cansados e angariando novos adeptos. Ao chegar a Mossoró, no Rio Grande do Norte, contava cerca de duzentos. Aí houve tiroteio forte, de que resultou a morte de Jararaca, e a companhia se dissolveu, para reorganizar-se meses depois.

Essas terríveis quadrilhas, que ultimamente se têm multiplicado, não encerram, pois, todos os salteadores que afligem o Nordeste: é preciso considerá-las como escolas ambulantes, onde, em época de seca, se vão exercitar os sertanejos famintos. A educação realmente não os expõe a grande perigo. Em primeiro lugar é difícil uma povoação atacada oferecer resistência; depois as lutas contra as forças do governo são raras, porque de ordinário os oficiais de polícia, demasiado prudentes, evitam choques desagradáveis; afinal, como só os chefes, com fotografias e nomes nos jornais, são de fato procurados, a tropa, a multidão mal paga e sem glória, pode, com a vinda das trovoadas, desertar impunemente e voltar às suas ocupações de ordem, até que chegue de novo a necessidade de bandear-se.

Rio de Janeiro, 1953.

Wednesday, 12 March 2025

Wednesday's Good Reading: "Lampião" by Graciliano Ramos (in Portuguese)

 

Lampião nasceu há muitos anos, em todos os estados no Nordeste. Não falo, está claro, no indivíduo Lampião, que não poderia nascer em muitos lugares e é pouco interessante. Pela descrição publicada vemos perfeitamente que o salteador cafuzo é um herói de arribação bastante chinfrim. Zarolho, corcunda, chamboqueiro, dá impressão má.

Refiro-me ao lampionismo, e nas linhas que se seguem é conveniente que o leitor não veja alusões a um homem só.

Lampião nasceu, pois, há muitos anos, mas está moço e de boa saúde. Não é verdade que seja doente dos olhos: tem, pelo contrário, excelente vista.

É analfabeto. Não foi, porém, a ignorância que o levou a abraçar a profissão que exerce.

No começo da vida sofreu numerosas injustiças e suportou muito empurrão. Arrastou a enxada, de sol a sol, ganhando dez tostões por dia, e o inspetor de quarteirão, quando se aborrecia dele, amarrava-o e entregava-o a uma tropa de cachimbos, que o conduzia para a cadeia da vila. Aí ele aguentava uma surra de vergalho de boi e dormia com o pé no tronco.

As injustiças e os maus-tratos foram grandes, mas não desencaminharam Lampião. Ele é resignado, sabe que a vontade do coronel tem força de lei e pensa que apanhar do governo não é desfeita.

O que transformou Lampião em besta-fera foi a necessidade de viver. Enquanto possuía um bocado de farinha e rapadura, trabalhou. Mas quando viu o alastrado morrer e em redor dos bebedouros secos o gado mastigando ossos, quando já não havia no mato raiz de imbu ou caroço de mucunã, pôs o chapéu de couro, o patuá com orações da cabra preta, tomou o rifle e ganhou a capoeira. Lá está como bicho montado.

Conhecidos dele, velhos, subiram para o Acre; outros, mais moços, desceram para São Paulo. Ele não: foi ao Juazeiro, confessou-se ao Padre Cícero, pediu a bênção a Nossa Senhora e entrou a matar e roubar. É natural que procure o soldado que lhe pisava no pé, na feira, o delegado que lhe dava pancada, o promotor que o denunciou, o proprietário que lhe deixava a família em jejum.

Às vezes utiliza outras vítimas. Isto se dá porque precisa conservar sempre vivo o sentimento de terror que inspira e que é a mais eficaz das suas armas.

Queima as fazendas. E ama, apressado, um bando de mulheres. Horrível. Mas certas violências, que indignam criaturas civilizadas, não impressionam quem vive perto da natureza. Algumas amantes de Lampião se envergonham, realmente, e finam-se de cabeça baixa: outras, porém, ficam até satisfeitas com a preferência e com os anéis de miçanga que recebem.

Lampião é cruel. Naturalmente. Se ele não se poupa, como pouparia os inimigos que lhe caem entre as garras? Marchas infinitas, sem destino, fome, sede, sono curto nas brenhas, longe dos companheiros, porque a traição vigia... E de vez em quando a necessidade de sapecar um amigo que deita o pé adiante da mão...

Não podemos razoavelmente esperar que ele proceda como os que têm ordenado, os que depositam dinheiro no banco, os que escrevem em jornais e os que fazem discursos. Quando a polícia o apanhar, ele estará metido numa toca, ferido, comendo uma cascavel ainda viva.

Como somos diferentes dele! Perdemos a coragem e perdemos a confiança que tínhamos em nós. Trememos diante dos professores, diante dos chefes e diante dos jornais; e se professores, chefes e jornais adoecem do fígado, não dormimos. Marcamos passo e depois ficamos em posição de sentido. Sabemos regularmente: temos o francês para os romances, umas palavras inglesas para o cinema, outras coisas emprestadas.

Apesar de tudo, muitas vezes sentimos vergonha da nossa decadência. Efetivamente valemos pouco.

O que nos consola é a ideia de que no interior existem bandidos como Lampião. Quando descobrirmos o Brasil, eles serão aproveitados.

E já agora nos trazem, em momentos de otimismo, a esperança de que não nos conservaremos sempre inúteis.

Afinal somos da mesma raça. Ou das mesmas raças.

É possível, pois, que haja em nós, escondidos, alguns vestígios da energia de Lampião. Talvez a energia esteja apenas adormecida, abafada pela verminose e pelos adjetivos idiotas que nos ensinaram na escola.