O
cangaço, de que tanto se têm ocupado os jornais por causa da morte de um dos
seus mais notáveis componentes, é um fenômeno próprio da zona de indústria
pastoril, no Nordeste. Sem dúvida lá existem malfeitores em toda parte, mas os
que operam na mata, lugar de agricultura e repouso, não são cangaceiros:
ordinariamente são cabras de confiança de proprietários que, para conservar os
seus bens e aumentá-los, precisam organizar defesa armada. Um anacronismo,
certamente. O Nordeste, porém, é atrasado em demasia, a propriedade aí se
mantém pela força, às vezes cresce pela força. Esses pequenos exércitos de
potentados matutos, reprodução dos troços que defendiam os castelos dos
senhores feudais, são sedentários, não podiam deixar de ser sedentários numa
região agrícola, e é isto precisamente o que mais os distingue dos cangaceiros,
nômadas em virtude do regime de produção na catinga.
Aí não
há o deserto, mas há muito de deserto. Na campina imensa, onde se achatam
colinas baixas, a vegetação espinhosa definha; os rios se infiltram na areia ou
formam poços na pedra; aqui e ali surgem bebedouros de água lamacenta; a terra
é dura, torrada, pedregosa, varrida constantemente pelos redemoinhos.
Nesse
meio agressivo os homens e os rebanhos se dizimam quando há carência de
pastagem. Na verdade a pastagem de ordinário não finda pelo consumo, finda pela
estiagem. Rarefeita, espalhada na planície enorme, obriga os animais a
percorrer distâncias consideráveis para alimentar-se. E os pastores são meio
vagabundos. As suas moradas não oferecem muito mais comodidade que as tendas. É
certo que não se transportam, mas, simples construções de taipa, sem reboco,
sem ladrilho, acaçapadas, arranjam-se economicamente e em poucos dias. A gente
que nelas vive tem hábitos patriarcais, pelo menos em alguns lugares ainda se
conservam hábitos patriarcais. A residência do chefe se assemelha às dos
moradores próximos, quase todos pessoas da mesma família e quase todos
vaqueiros.
Notemos
que a terra aí não está dividida e que a propriedade consta de casas, algum
açude, currais e gado. Sendo a forragem escassa, a distribuição da terra e as
cercas tornariam impossível a única produção existente.
Um
fazendeiro rico possui em geral várias fazendas, vários cascos de fazenda, como
lá se diz, e quando em uma começa a faltar água ou planta, muda-se para outra.
Impossível, portanto, um amor excessivo à terra: impossíveis as violências
praticadas pelos senhores de engenho da mata contra vizinhos fracos, para
tomar-lhes um sítio.
Como a
riqueza é principalmente constituída por animais, o maior crime que lá se
conhece é o furto de gado. A vida humana, exposta à seca, à fome, à cobra e à
tropa volante, tem valor reduzido — e por isso o júri absolve regularmente o
assassino. O ladrão de cavalos é que não acha perdão. Em regra não o submetem a
julgamento: matam-no. Vi há muitos anos um sertanejo que, em companhia de dois
filhos bem armados, tinha viajado umas quarenta léguas a pé, rastejando um
desses criminosos. A alguém que estranhou semelhante gasto de energia e tempo,
desproporcionado ao valor dum sendeiro, respondeu não ligar importância ao
prejuízo, mas ao desaforo do ladrão, que merecia uma surra com vareta de
espingarda. Passados alguns dias, reapareceu conduzindo o animal. Como, porém,
não se havia efetuado nenhuma prisão, suponho que a surra de vareta se realizou
e a vítima dela sucumbiu.
Esse
rigor explica-se numa terra de vaqueiros, onde o cavalo é o único meio de
transporte, absolutamente indispensável nas retiradas.
Tratando-se
de cangaceiros, o procedimento é diverso: não podendo castigá-los, porque são
fortes, os proprietários às vezes transigem com eles, coisa que nenhum poderia
decentemente fazer com um ladrão de cavalos. Essas transações não são
desonrosas, pois os salteadores inspiram medo, respeito, uma certa admiração
que as cantigas dos violeiros cultivam. O ladrão de cavalos é o inimigo
pequeno, que se pode suprimir. O cangaceiro é o inimigo poderoso, que é
necessário agradar. Paga-se-lhe, portanto, um razoável tributo e manda-se-lhe
por intermédio de confiança algum aviso útil que o livre da polícia.
Realmente
o bandido nem sempre ameaça a propriedade: em alguns casos pode tornar-se um
sustentáculo dela. Até o começo deste século os chefes de bandos eram em geral
pessoas de consideração, homens de boa família, perseguidos por adversários
políticos que eles juravam eliminar. Para isso necessitavam o apoio de
indivíduos que se conservavam na legalidade. Aliança vantajosa às duas partes: ganhavam
os bandoleiros, que obtinham quartéis e asilos na catinga, e ganhavam os
proprietários, que se fortaleciam, engrossavam o prestígio com esse negócio
temeroso. Como os salteadores de bota e gravata organizavam pequenos bandos
compostos de sujeitos necessitados da classe baixa, concluiremos que o cangaço
era um fenômeno social, agravado por motivos de ordem econômica.
Parece
que as coisas se modificaram. Hoje os bandoleiros são de ordinário criaturas
nascidas na canalha, libertas dos patrões que as orientavam, ora no trabalho do
campo, ora nas lutas contra as forças do governo. Comparados aos antigos, pouco
numerosos, constituem multidão, e tornaram-se muito mais cruéis. É difícil
agarrá-los, mas se os agarram, tratam-nos de maneira bárbara, como aconteceu
ultimamente na caçada a Lampião, uma fera mutilada com ferocidade. Enquanto não
os pegam, as perseguições alcançam matutos inofensivos, que, por vingança ou
desespero, avolumam os bandos. Assim, talvez acertemos supondo que atualmente o
cangaço é um fato de natureza econômica, ampliado por motivos de ordem social.
O dr.
Alfredo de Maia, industrial e político alagoano, fez-me há dias uma declaração
interessante: afirmou-me que o bandoleiro Corisco, notável em decapitações, é
filho do coronel Emiliano Fernandes, neto do coronel Manoel Fernandes da Costa,
cidadão absolutamente respeitável no município de Viçosa, em Alagoas. Se
Alfredo de Maia não está enganado, temos aí um caso admirável: um homem da
classe dominante degradado entre bandoleiros sem que para isto hajam
contribuído as perseguições e as injustiças comuns no Nordeste. É estranho que
esse moço de família tenha durante longos anos servido sob as ordens de
Virgulino Ferreira, um mulato, almocreve, analfabeto.
Conheci
há tempo o coronel Manoel Fernandes da Costa, velho sisudo, de barbas
imponentes, senhor de engenho acreditado, um esteio. O que o prejudicou foi a
religião, ou antes a falta de religião: tinha era um terrível fanatismo, uma
extrema veneração ao Padre Cícero do Juazeiro. Vestia-se de coronel do
Exército, fardava os filhos de oficiais do Exército, a cabroeira do engenho
ocupava os postos subalternos e compunha a soldadesca. Engalanado, armado,
acompanhado, montado num cavalo fogoso, o coronel Manoel Fernandes
encaminhava-se uma vez por ano ao Juazeiro, ao som de instrumentos em que
músicos, também fardados, sopravam dobrados marciais. Gastou nisso a fortuna.
Como Juazeiro fica a umas cem léguas de Viçosa, ou mais, as despesas eram
graúdas — e o coronel Manoel Fernandes arruinou-se. E aí está o neto, rapaz de
coragem, com estudos em colégios, seguindo as lições de Lampião e decepando
cabeças.
Na
evolução do cangaço notamos, pois, três fases: a princípio mandavam os grandes,
os condottieri que se entendiam bem com os proprietários e às vezes se punham a
serviço deles; depois a massa anônima da capangada cresceu e livremente
escolheu mandões entre os seus membros; afinal vemos indivíduos que vêm de cima
rebaixarem-se, misturarem-se à multidão criminosa e dela emergirem de repente,
dirigindo os companheiros, como Corisco.
Essa
democratização do cangaço foi provavelmente determinada pelo aumento da
população numa terra demasiado pobre, que em alguns lugares chega a ter perto
de cinqüenta habitantes por quilômetro quadrado. A gente mal pode lá viver.
Isto nos mostra por que, não existindo no resto do país bandos de salteadores,
o que é lisonjeiro, têm eles surgido e crescido assustadoramente no Nordeste.
Na zona
árida há matutos que, segundo aparecem ou não aparecem as chuvas, ora se
dedicam a misteres pacíficos, ora aderem aos grupos de bandoleiros, onde se
tornam, por necessidade, criminosos medíocres. Em 1926, penetrando em Alagoas,
Lampião demorou-se uma semana no município de Palmeira dos Índios, fronteira do
sertão. Pernoitou em casa dum fazendeiro e, camarada, para não comprometê-lo
com a polícia, quebrou duas cadeiras e matou uma novilha. Ao retirar-se, o
proprietário deu-lhe por guia um vaqueiro que teve a má sorte de passar naquele
momento diante da casa. Metido no bando, esse pobre-diabo encontrou nele alguns
conhecidos da vizinhança, que lhe pediram notícias de amigos e parentes,
mandaram recados e dinheiro para as famílias, ali residentes.
Um
bando de cangaceiros é coisa que sempre se renova. O de Lampião tinha nesse
tempo cento e vinte homens, mas ia largando pelos caminhos elementos cansados e
angariando novos adeptos. Ao chegar a Mossoró, no Rio Grande do Norte, contava
cerca de duzentos. Aí houve tiroteio forte, de que resultou a morte de
Jararaca, e a companhia se dissolveu, para reorganizar-se meses depois.
Essas
terríveis quadrilhas, que ultimamente se têm multiplicado, não encerram, pois,
todos os salteadores que afligem o Nordeste: é preciso considerá-las como
escolas ambulantes, onde, em época de seca, se vão exercitar os sertanejos
famintos. A educação realmente não os expõe a grande perigo. Em primeiro lugar
é difícil uma povoação atacada oferecer resistência; depois as lutas contra as
forças do governo são raras, porque de ordinário os oficiais de polícia,
demasiado prudentes, evitam choques desagradáveis; afinal, como só os chefes, com
fotografias e nomes nos jornais, são de fato procurados, a tropa, a multidão
mal paga e sem glória, pode, com a vinda das trovoadas, desertar impunemente e
voltar às suas ocupações de ordem, até que chegue de novo a necessidade de
bandear-se.
Rio
de Janeiro, 1953.