A Igreja, guardiã fiel do Depósito
22. Mas
é proveitoso que examinemos com maior diligência esta frase do Apóstolo:
“Ó Timóteo, guarda o bem que te foi confiado! Evita as conversas
frívolas e mundanas, assim como as contradições de pretensa ciência”. (1Tm
6,20)
Este
grito é o grito de alguém que sabe e ama. Previa os erros que surgiriam e se
doía por ele enormemente. Quem é hoje Timóteo senão a Igreja universal em
geral, e de modo particular o corpo de bispos, os quais, principalmente, devem
possuir um conhecimento puro da religião cristã, e ademais transmiti-lo aos
demais? E o que quer dizer “guarda o bem que te foi confiado”? Esteja atento,
lhe diz, aos ladrões e aos inimigos; não suceda que enquanto todos dormem,
venham em oculto a lançar a cizânia no meio da boa semente que o Filho do homem
semeou em seu campo. Mas, o que é um depósito? O depósito é o que te foi
confiado, não encontrado por ti; tu o recebestes, não o excogitastes com tuas
próprias forças. Não é o fruto de teu engenho pessoal, mas da doutrina; não
está reservado para um uso privado, mas que pertence a uma tradição pública.
Não saiu de ti, mas que a ti veio: a seu respeito tu não podes comportar-se
como se fosse seu autor, mas como seu simples guardião. Não és tu quem o
iniciou, mas és seu discípulo; não te cabe dirigi-lo, mas é teu dever segui-lo.
Guarda o bem que te foi confiado, diz; quer dizer, conserva inviolado e sem
mancha o talento da fé católica. O que te foi confiado é o que deve guardar
junto a ti e transmitir. Recebeste ouro; devolve, pois, ouro. Não posso admitir
que substituas uma coisa por outra. Não, tu não podes desavergonhadamente
substituir o ouro por chumbo, ou tratar de enganar dando bronze em lugar de
metal precioso. Quero ouro puro, e não algo que só tenha sua aparência. Ó
Timóteo! Ó sacerdote! Intérprete das Escrituras, doutor, se a graça divina te
deu o talento por engenho, experiência, doutrina, deves ser o Beseleel do
Tabernáculo espiritual. Trabalha as pedras preciosas do dogma divino, reúne-as
fielmente, adorna-as com sabedoria, acrescenta-lhes esplendor, graça, beleza:
Que tuas explicações façam que se compreenda com mais claridade o que se ainda
se crê de maneira bem obscura. Que as gerações futuras se congratulem de terem
compreendido por tua meditação o que seus pais veneravam sem compreender. Mas
hás de estar atento a ensinar somente o que aprendeste: não suceda que por
buscar maneiras novas de dizer a doutrina de sempre, acabes também por dizer
também coisas novas.
O progresso do dogma e suas condições
23.
Talvez alguém diga: então nenhum progresso da religião é possível na Igreja de
Cristo? Certamente que deve haver progresso, e grandíssimo! Quem poderá sertão
hostil aos homens e tão contrário a Deus que tentaria impedi-lo? Mas a condição
de que se trate verdadeiramente de progresso pela fé, não de modificação. É
característica do progresso de todas as maneiras possíveis a inteligência, o
conhecimento, a sabedoria, tanto da coletividade como do indivíduo, de toda a
Igreja, segundo as idades e os séculos; com tal de que isso suceda exatamente
segundo sua natureza peculiar, no mesmo dogma, no mesmo sentido, segundo uma
mesma interpretação. Que a religião das almas imite o modo de desenvolvimento
dos corpos, cujos elementos, ainda que com o passar dos anos se desenvolvem e
crescem, sem embargo permanecem sendo sempre eles mesmos. Há grande diferença
entre a flor da infância e a maturidade da velhice; não obstante, quem agora é
velho são os mesmos que foram adolescentes. O aspecto e o porte de um indivíduo
mudarão, mas se tratará sempre da mesma natureza e da mesma pessoa. Os membros
de um lactante são pequenos e maiores os dos jovens, e seguem sendo os mesmos.
Tantos membros têm os adultos quanto têm as crianças; e se algo novo aparece em
idade mais madura, já pré-existia no embrião; assim, nada novo se manifesta no
adulto que já não se encontrasse de forma latente na criança. Não cabe nenhuma
duvida de que este é o processo regular e normal do progresso, segundo a ordem
precisa e belíssima do crescimento: o crescer na idade revela nos grandes as
mesmas partes e proporções que a sabedoria do Criador havia delineado nos
pequeninos. Se a forma humana adotasse com o tempo um aspecto estranho a sua
espécie, se lhe adicionasse ou lhe tirasse algum membro, necessariamente todo o
corpo morreria ou se faria monstruoso, ou ao menos se debilitaria.A estas
mesmas leis de crescimento deve seguir o dogma cristão, de modo que com o
passar dos anos se vá consolidando, se vá desenvolvendo no tempo, se vá
tornando mais majestoso com a idade, mas de tal maneira que siga sempre incorrupto
e incontaminado, íntegro e perfeito em todas as suas partes, e, por assim
dizer, em todos seus membros e sentidos, sem admitir nenhuma alteração, nenhuma
perda de suas propriedades, nenhuma variação no que está definido. Vejamos um
exemplo. Nossos pais, no passado, semearam no campo da Igreja a boa semente da
fé; seria por demais injusto e inconveniente se nós, seus descendentes, em
lugar de trigo da autêntica verdade tivéssemos que replantar acizânia
fraudulenta do erro. Em troca, é justo que a sega corresponda à semeadura que
recolhemos, quando o grão da doutrina chega à maturidade, o trigo do dogma. Se
com o passar do tempo, uma parte da semente original se desenvolveu alcançando
felizmente a maturidade plena, não se pode dizer que tenha mudado o caráter
específico da semente; pode se dar uma mudança no aspecto, na forma, uma
formação mais precisa, mas a natureza própria de cada espécie permanece
intacta. Não suceda jamais, pois, que os roseirais da doutrina católica se
transformem em cardos espinhosos. Não suceda jamais, repito, que neste paraíso
espiritual de onde brotam o cinamomo e o bálsamo, despontem às escondidas
acizânia e o acônito. Tudo que a fé dos pais têm semeado no campo de Deus que é
a Igreja, é o que deve ser cultivado e guardado pelo zelo dos filhos; somente
este deve florescer, e não outra coisa; deve florescer e amadurecer, crer e
alcançar a perfeição. É legítimo que os antigos dogmas da filosofia celestial,
ao correr dos séculos, se afinem, se aparem, se lustrem; mas seria ímpio mudá-los,
desfigurá-los, mutilá-los. Adquirem, ao contrário, maior evidência, clareza,
precisão; mas é necessário que conservem sempre sua plenitude, integridade,
propriedade. Se começa a misturar o novo com o antigo, o estranho com o que é
familiar, o profano com o sagrado, em breve esta desordem se difundirá por
todos os lados, e nada na Igreja permanecerá intacto, íntegro, sem mancha; e
onde antes se levantava o santuário da verdade pura e incorrupta, exatamente
neste lugar, se levantará um prostíbulo de infâmias e torpes erros. Que a
misericórdia divina mantenha afastado da mente dos seus este crime; que isto
não seja mais que uma loucura dos ímpios. A Igreja de Cristo, guardiã vigilante
e prudente dos dogmas que lhe são confiados, não muda nada neles, nem lhes tira
ou acrescenta nada; não rejeita o que é necessário nem acrescenta o que é
supérfluo; não deixa que escape o que é seu nem se apropria do que pertence a
outrem. Ao tomar cautelosamente e com fidelidade e prudência as doutrinas
antigas, só busca fazer com sumo zelo o seguinte: reforçar o que tem sido
expresso com precisão; guardar o que tem sido confirmado e definido. Na
realidade, que fim se propôs obter sempre a Igreja com os decretos conciliares,
senão que se creia com maior conhecimento o que antes já se cria com
simplicidade; que se pregue com maior insistência o que antes se pregava com
menor empenho; que se venere com maior solicitude o que já antes se honrava com
demasiada calma? Isto e não outra coisa tem feito sempre a Igreja com os
decretos dos concílios, provocada pelas inovações dos hereges: transmitir à
posteridade em documentos escritos o que fora recebido de nossos pais mediante
somente a tradição; resumir em fórmulas breves uma grande quantidade de noções
e, mais frequentemente, com o fim de ilustrar a inteligência, especificar com
termos novos e apropriados uma doutrina não nova.
Estar atentos ante os hereges
24.
Então voltemos à exortação do Apóstolo:
“Ó Timóteo, guarda o bem que te foi confiado! Evita as conversas
frívolas e mundanas, assim como as contradições de pretensa ciência.”
Evita,
disse-lhe, como se faz com uma víbora, comum escorpião, com um basilisco, para
que não somente o contato, mas nem sequer sua vista ou seu sopro te firam.
Agora bem: o que significa evitar?
“Com tais indivíduos nem sequer deveis comer” (1Cor 5,11)
E
também:
“Se alguém vier a vós sem trazer esta doutrina– e que doutrina é esta
senão a católica universal, que permanece sendo única e a mesma através dos
séculos, em uma incorrupta tradição de verdade, e que permanecerá assim sempre
– não o recebais em vossa casa, nem o saudeis. Porque quem o saúda toma parte
em suas obras más”. (2Jo 1,10-11)
O
Apóstolo nos falava de novidades profanas nas expressões (N. do T.: na tradução
para o português usou-se a Bíblia Ave Maria, que apresenta este versículo:
Evita as conversas frívolas e mundanas). Agora bem, profano é o que não tem
nada de sagrado nem de religioso, e é totalmente estranho ao santuário da
Igreja, templo de Deus. As novidades profanas nas expressões são, pois, as
novidades concernentes aos dogmas, coisas e opiniões em contraste com a
tradição e a antiguidade; sua aceitação implicaria necessariamente a violação
pouco menos que total da fé dos Santos Padres. Levará necessariamente a dizer
que todos os fiéis de todos os tempos, todos os santos, os castos, os
continentes, as virgens, os clérigos, os levitas e os bispos, os milhares de
confessores, os exércitos de mártires, um número imenso de cidades e de povos,
ilhas e províncias, de reis, de pessoas, de reinos enações, em uma palavra, o
mundo inteiro incorporado a Cristo cabeça mediante a fé católica, durante um
grande número de séculos tinha ignorado, errado, blasfemado, sem saber no que
deveria crer. Evita, pois, as novidades profanas ns expressões, já que
recebê-las e segui-las nunca foi costume dos católicos, e sim dos hereges. Na
verdade, que heresia não tenha surgido sob um nome num lugar e numa época
determinadas? Quem jamais tenha fundado uma heresia sem se separar assim do
acordo com a universalidade e a antiguidade da Igreja Católica? Os exemplos nos
mostram isto de maneira evidente. Com efeito, quem nunca, antes do ímpio
Pelágio, teve a presunção de atribuir ao livre-arbítrio o poder tão grande de
pensar que o auxílio da graça não é necessário para cada um dos atos, para
levar a cabo as boas obras? Quem, antes de seu monstruoso discípulo Celestino,
negou que todo o gênero humano está contaminado pelo pecado de Adão? Antes do
sacrílego Ário, quem teve a audácia de rasgar a unidade da Trindade ou de
confundi-la, como o pérfido Sabélio? Antes do rígido Novaciano, quem tinha dito
que Deus era cruel, porque preferia a morte do agonizante a que ele se
convertesse e vivesse? Quem, antes de Simão Mago, duramente castigado pela
reprimenda apostólica – e de quem provém a antiga enxurrada de torpezas que,
por sucessão ininterrupta e oculta, tenha chegado até Prisciliano – se atreveu
a dizer que Deus criador é o autor do mal, ou seja, de nossos delitos, de
nossas impiedades, de nossos vícios? Este afirma que Deus, com suas próprias
mãos, cria a natureza estruturada de maneira que, por movimento espontâneo e
sob o impulso de uma vontade necessitada, não pode mais, não quer mais que
pecar. Agitada e incendiada pelas fúrias de todos os vícios, se vê arrastada
com ânsia inesgotável aos abismos de toda sorte de crimes. Exemplos como estes
existem e não acabam mais, mas deixemo-los para sermos breves. Demonstram a
todos com evidência que a atitude normal e comum de qualquer heresia é gozar-se
nas novidades profanas e sentir repulsa pelos dogmas da antiguidade, até o
ponto de naufragar na fé por causa de discussões de uma falsa ciência. Ao
contrário, é próprio dos católicos guardar o depósito transmitido pelos Santos
Padres, condenar as novidades profanas e, como muitas vezes repetiu o Apóstolo,
descarregar o anátema sobre quem tem a audácia de anunciar algo diferente do
que foi recebido.
Os hereges recorrem à Escritura
25. Mas
alguém se dirá: então os hereges não se servem dos testemunhos da Sagrada Escritura?
Certamente que se servem, e com tão apaixonada veemência! Os vemos passar de um
livro a outro da Lei Santa: desde Moisés aos livros dos Reis, desde os Salmos
aos Apóstolos, desde os Evangelhos aos Profetas. Em suas assembléias, com os
estranhos, em privado, em público, nos discursos e nos escritos, durante as
refeições e nas praças públicas, é raro que mantenham alguma coisa sem que
antes não a tenham revestido com a autoridade da Sagrada Escritura. Basta ler
as obras de Paulo de Samosata, de Prisciliano, de Eunomio, de Joviniano e de
todas as outras pestes; imediatamente se nota o cúmulo infinito de textos
bíblicos: quase não há página que não esteja colorida e assinalada com citações
do Antigo e do Novo Testamento. Mas se torna mais necessário estar em
vigilância e temer-lhes quando mais tentam ocultar-se e esconder-se sob a
sombra da Lei Divina. Efetivamente, sabem que suas exalações pestilentas,
desnudadas e diretas, não encontrariam o favor de ninguém; por isso as perfumam
com o aroma da palavra celestial, já que quem facilmente rejeitaria um erro
humano não está dispôs toa depreciar com tanta facilidade os oráculos divinos.
Fazem o que aqueles que, para suavizar a amargura dos remédios destinados às
crianças, untam de mel a borda do frasco; as crianças com a simplicidade
ingênua de sua idade, uma vez que provaram o doce, bebem sem suspeitar nem
temer o amargo. Da mesma maneira atuam quem mascaram com nomes medicinais ervas
nocivas e sucos venenosos, para que ninguém, ao ler a etiqueta, possa suspeitar
que se trata de venenos e que não são remédios para cuidar da saúde. A este
propósito o Salvador gritava:
“Guardai-vos dos falsos profetas. Eles vêm a vós disfarçados de ovelhas,
mas por dentro são lobos arrebatadores” (Mt 7,15)
Que
outra coisa são estas peles de ovelhas senão as palavras dos Profetas e dos
Apóstolos, com as quais estes mesmos, com mansa simplicidade, revestiram como
um véu ao Cordeiro imaculado que tira o pecado do mundo? Quem são, ao
contrário, os lobos vorazes, senão as doutrinas selvagens e raivosas dos
hereges, que infectam o redil da Igreja, para desgarrar, da melhor maneira
possível, o rebanho de Cristo? Para surpreender mais facilmente as incautas
ovelhas, mascaram seu aspecto de lobos, ainda que conservando sua ferocidade,
vestindo-se com frases da lei Divina como a um véu, para que, ao sentir a
brandura da lã, as ovelhas não suspeitem de seus dentes afiados. Mas, o que nos
diz o Salvador?
“Pelos seus frutos os conhecereis” (Mt7,16)
Quer
dizer, quando já não se dão por satisfeitos em citar e pregar as palavras
divinas, e então começam a explicar e comentá-las, se manifestará sua amargura,
sua aspereza e sua raiva; então se exalará um novo odor e aparecerão as
novidades ímpias; então se verá pela primeira vez as setas arrancadas e
ultrapassados os limites postos pelos pais; ultrajada a fé católica e o dogma
da Igreja feito em pedaços. Pessoas desta ralé eram as fustigadas pelo Apóstolo
em sua segunda carta aos Coríntios:
“Esses tais são falsos apóstolos, operários desonestos, que se disfarçam
em apóstolos de Cristo,” (2Cor 11,13)
Que
significa “se disfarçam em apóstolos de Cristo”? Os Apóstolos citavam textos da
Lei Divina, e aqueles faziam o mesmo; os Apóstolos se apoiavam na autoridade
dos Salmos e dos Profetas, e aqueles também. Mas quando começaram a interpretar
de maneira diferente os mesmos textos, então se distinguiram os sinceros dos
falsários, os genuínos dos artificiais, os retos dos perversos, em uma palavra,
os verdadeiros Apóstolos dos falsos.
“O que não é de espantar – explica São Paulo – Pois, se o próprio
Satanás se transfigura e manjo de luz, parece bem normal que seus ministros se
disfarcem em ministros de justiça” (2Cor 11,14-15)
Segundo
o ensinamento do Apóstolo, cada vez que os falsos apóstolos, os falsos
profetas, os falsos doutores citam passagens da Lei Divina com as quais, as
interpretando mal, buscam apontar seus erros, não cabe dúvida de que seguem a
tática pérfida de seu autor e mestre, o qual certamente não a usaria se não
compreendesse que não há melhor caminho para induzir ao engano aos fiéis, que
introduzir fraudulentamente um erro cobrindo-o com a autoridade das palavras
divinas.
A Escritura na boca de Satanás
26.
Alguém poderia então perguntar: como se explica que o diabo utilize as citações
da Sagrada Escritura? Não precisa mais que abrir o Evangelho e ler. Encontrará
escrito:
“O demônio transportou-o – ao Senhor – à Cidade Santa, colocou-o no
ponto mais alto do templo e disse-lhe: “Se és Filho de Deus, lança-te abaixo,
pois está escrito: Ele deu a seus anjos ordens a teu respeito; proteger-te-ão
com as mãos, com cuidado, para não machucares o teu pé em alguma pedra (Sl
90,11s)” (Mt 4,5-6)
O que
não fará a nós, pobres mortais, aquele que teve a ousadia de assaltar, com
testemunhos da Escritura, ao mesmo Senhor da majestade?
“Se és Filho de Deus – disse-lhe – lança-te abaixo.”
Por
quê?
“Porque está escrito…”
Devemos
prestar muita atenção à doutrina aqui exposta e retê-la bem em nossas mentes,
para que, postos em vigilância pela autoridade de um exemplo evangélico tão
grande, não duvidemos nem por um instante que é o diabo quem fala pela boca
daqueles que citam contra a fé católica passagens dos Apóstolos e dos Profetas.
Então era a cabeça quem falava à Cabeça, agora são os membros que falam aos
membros; ou seja, os membros do diabo aos membros de Cristo, os renegados aos
fiéis, os sacrílegos aos homens piedosos, os hereges aos católicos. Mas o que
eles dizem? Se tu és o Filho de Deus, lança-te abaixo. Ou seja, se queres ser
realmente filho de Deus e receber a herança do reino celestial, lança-te abaixo
de cima da doutrina e da tradição desta Igreja sublime, templo de Deus. E se
alguém pergunta a qualquer herege que quer persuadi-lo da verdade disto: Em que
provas te fundamentas para afirmar que eu devo abandonar a antiga e universal
fé da Igreja Católica? Imediatamente responderá: “Está escrito”, e sem mais
amontoará mi ltestemunhos, mil exemplos, mil argumentos com os quais,
interpretados de nova e errada maneira, buscará precipitar a alma do desgraçado
desde o alto da rocha católica ao abismo da heresia. Mas é com promessas como
as que agora vamos mostrar que os hereges costumam enganar, com uma arte que é
uma verdadeira maravilha, aqueles que não estão prevenidos. Efetivamente, ousam
prometer e ensinar que em sua igreja, ou melhor, em seu conventículo de sua
seita, está presente uma graça de Deus extraordinária, especial, absolutamente
pessoal; e é de tal classe que sem fadiga, sem esforço, sem ansiedade alguma,
inclusive ainda que não peçam, nem busquem, nem almejem, todos os que fazem
parte de seu número obtém de Deus esse auxílio, até o ponto de serem levados
por mãos angélicas e guardados por sua proteção, sem que seu pé nunca tropece
em alguma pedra, ou seja, sem sofrer escândalo.
Como vencer as insídias diabólicas dos hereges
27.
Depois de tudo que temos dito, seria lógico perguntar: se o diabo e seus
discípulos – os falsos apóstolos, profetas, mestres e hereges em geral –
costumam utilizar as palavras, as sentenças, as profecias da Escritura, como
deverão se comportar os católicos, os filhos da Madre Igreja? Que deverão fazer
para distinguir nas Sagradas Escrituras a verdade do erro? Tenham grande
preocupação por seguir as normas que, ao início destas notas escrevi, foram
transmitidas por doutos e piedosos homens; ou seja, interpretarão o Cânon
divino segundo as tradições da Igreja universal e as regras do dogma católico;
na mesma Igreja Católica e Apostólica deverão seguir a universalidade, a
antiguidade e a unanimidade de consenso. Por conseguinte se acontecesse que uma
parte se rebelasse contra a universalidade, que a novidade se levantasse contra
a antiguidade, que a dissensão deum ou poucos equivocados se elevasse contra o
consenso de todos ou ao menos deum número bem grande de católicos, se deverá
preferir a integridade da totalidade à corrupção de uma parte; dentro da mesma
universalidade, será preciso preferir a religião antiga à novidade profana; e,
na antiguidade, há que antepor à temeridade de pouquíssimos os decretos gerais,
se os há, de um concílio universal; no caso de que não os tenha, se deverá
seguir o que próximo esteja deles, ou seja, as opiniões concordes de muitos e
grandes mestres. Se, com a ajuda do Senhor, observamos com fidelidade e solicitude
estas regras, conseguiremos descobrir sem grande dificuldade, e desde sua mesma
fonte, os erros nocivos dos hereges.
Os Padres e a Tradição Católica
28.
Penso que talvez seja oportuno demonstrar, por meio de exemplos, como podem ser
descobertas e condenadas as novidades heréticas, investigando e confrontando
entre si as opiniões concordes dos antigos mestres. De todos os modos, é
evidente que este consenso antigo e unânime dos Santos Padres não devemos
invocá-lo apenas em questões minuciosas da Lei Divina; mas que será objeto da
mais ativa investigação e adesão só no que se refere à regra da fé. Nem
tampouco todas as heresias, de todos os tempos, podem ser combatidas desta
maneira; somente as novas e mais recentes, em sua primeira floração e em suas
primeiras manifestações, antes de que, pela mesma escassez de tempo, tenham a
possibilidade de falsear a regra antiga da fé e de infeccionar com seu veneno
os livros dos Padres. Em relação àquelas que já foram difundidas e já fincaram
raízes profundas, não podem ser combatidas por este caminho, porque o largo
prazo de tempo de que dispuseram foi ocasião mais que favorável para erodir a
verdade, e por isso é que as impiedades mais antigas, tanto heréticas como
cismáticas, não podemos refutá-la mais que com a autoridade da Escritura, ou
evitálas desde que já estão refutadas e condenadas por antigos Concílios
universais do Episcopado Católico. Apenas, pois, começa a se estender a
podridão de um novo erro e este, para justificar-se, se apodera de alguns versículos
da Escritura, que ademais interpreta com falsidade e fraude, é preciso
imediatamente abrir mão das sentenças dos Padres interpretando as passagens em
questão; com seu auxilio, qualquer novidade profana será no ato desmascarada
sem nenhuma ambigüidade e condenadas em vacilação. Em relação aos Padres,
deve-se consultar o pensamento de quem santamente, sabiamente e com constância
viveu, ensinou e permaneceu firme na fé e na comunhão católica, e morreram
fiéis a Cristo ou mereceram a alegria de dar sua vida por Ele. Mas a estes se
deve prestar fé seguindo esta regra: o que todos, ou ao menos a maioria, têm
afirmado claramente, através de concílio de mestres perfeitamente unânimes, e
que têm confirmado ao aceitá-lo, conservá-lo e transmiti-lo, isso é o que deve
ser mantido como induvidável, certo e verdadeiro. Ao contrário, tudo que, fora
da doutrina comum, e inclusive contra ela, tenha pensado um apenas, ainda que
seja um santo e um douto, um bispo, um confessor, um mártir, deve ser relegado
entre as opiniões pessoais, não oficiais, privadas, que não tem a autoridade da
opinião comum, pública e geral; não nos suceda, com sumo perigo para nossa
salvação eterna, que abandonemos a antiga verdade da doutrina católica para
seguir o erro novo de um só indivíduo, segundo o sacrílego costume dos hereges
e cismáticos. Para que não haja quem se atreva a depreciar este acordo sagrado
e universal dos Padres, o Apóstolo escreveu em sua primeira carta aos
Coríntios:
“Na Igreja, Deus constituiu primeiramente os apóstolos (ele era um
deles), em segundo lugar os profetas (como lemos nos Atos dos Apóstolos que era
Ágabo), em terceiro lugar os doutores” (1Cor 12,28),
Mas o
mesmo Apóstolo às vezes os chama profetas, porque explicam ao povo cristão os
mistérios da mensagem profética. Quem quer que se atreva a depreciar a estes
homens postos por Deus em sua Igreja segundo os lugares e os tempos, e que
estão de acordo na interpretação do dogma católico, não estará depreciando a um
homem, mas ao próprio Deus. E com o fim de que ninguém esteja em desacordo com
sua unidade, a única verdadeira, o mesmo Apóstolo disse:
“Rogo-vos, irmãos, em nome de nosso Senhor Jesus Cristo, que todos
estejais em pleno acordo e que não haja entre vós divisões. Vivei em boa
harmonia, no mesmo espírito e no mesmo sentimento”. (1Cor 1,10)
E se
alguém deixa de estar de acordo com sua doutrina, escute o que diz o Apóstolo:
“Porquanto Deus não é Deus de confusão, mas de paz”. (1Cor 14,33)
Ou
seja, não é Deus de quem rompe a unidade e a concórdia, mas de quem permanece
na paz de um só sentimento.
“Como em todas as igrejas dos santos” (1Cor 14,34),
Ou
seja, dos católicos, e são coisas santas precisamente porque permanecem na
comunhão da fé. E com o propósito de que ninguém se arrogue a pretensão de ser
ele somente escutado e crido, sem ter em conta aos demais, pergunta:
“Porventura foi dentre vós que saiu a palavra de Deus? Ou veio ela
tão-somente para vós?” (1Cor14,36)
Ademais,
para evitar que suas palavras fossem tomadas à ligeira, acrescenta:
“Se alguém se julga profeta ou agraciado com dons espirituais, reconheça
que as coisas que vos escrevo são um mandamento do Senhor”. (1Cor 14,37)
Mas de
que mandamentos se trata, senão de qualquer um que seja profeta o pessoa
espiritual, ou seja, mestre das coisas espirituais, deve ter o maior cuidado em
cultivar a imparcialidade e a unidade, a fim de que não chegue a preferir sua
opinião pessoal à dos demais ou a separar-se do sentimento comum? “Mas –
adverte o Apóstolo – se alguém quiser ignorá-lo, que o ignore!” (1Cor 14,38) ou
seja, quem não aprende as coisas que não sabe ou se desfaz das que sabe, será
tido por indigno de ser incluído por Deus no número daqueles que estão unidos
na fé e iguais na humildade. Se poderia pensar um mal tão grande? Precisamente
isto é o que, como sabemos, ocorreu, de acordo com a ameaça do Apóstolo, ao
pelagiano Juliano, que se negou a compartilhar a doutrina de seus colegas e
teve a presunção de separar-se deles. Mas é chegado o momento de trazer à luz o
exemplo a que nos referimos, e mostrar onde e de que maneira, por decreto e
autoridade de um concílio, recorreu-se às opiniões dos Padres, com o fim de
fixar, seguindo-as, a regra de fé da Igreja.Para maior comodidade, ponho aqui
fim a estas notas. O resto tratarei em uma segunda parte.(O segundo
Commonitorium desapareceu; não ficou dele mais que a segunda parte, que é uma
simples recapitulação e que acrescentamos a seguir.)
É legítimo recorrer aos Padres
29.
Creio ter chegado o momento de recapitular ao final deste segundo Comonitório
tudo o que foi tratado nos dois Comonitórios. No primeiro disse que os
católicos tiveram sempre o costume, e continuam tendo, de determinar a
verdadeira fé de duas maneiras: com a autoridade da Escritura divina e com a
tradição da Igreja Católica. Não porque a Escritura, por si só, não seja
suficiente em todos os casos, mas porque muitos, interpretando a seu capricho
as palavras divinas, acabam por inventar uma quantidade incrível de doutrinas
errôneas. Por este motivo é necessário que a exegese da Escritura divina seja
guiada pela única regra do sentir católico, especialmente nas questões que
tocam os fundamentos de todo o dogma católico. Também afirmei que na mesma
Igreja é necessário ter em conta a universalidade e a antiguidade, com o fim de
que não nos suceda que nos separemos da unidade do conjunto e acabar
desagregados, no fragmentarismo particularista do cisma, ou nos precipitar, desde
a antiga fé, em novidades heréticas. Disse ainda, em relação à antiguidade, que
é preciso a todo custo terpresente duas coisas e se agarrar a elas
profundamente, se não queremos nos converter em hereges; primeiro: ver se
houvera antigamente algum decreto por parte de todos os bispos da Igreja
Católica, emanado sob a autoridade de um concílio universal; depois, no caso de
que surja uma nova questão, em torno da qual não se encontre nada definido,
recorrer às sentenças dos Padres, mas somente a aqueles que, por haverem
permanecido, em seu tempo e lugar, dentro da unidade da comunhão e da fé, se
converteram em mestres provados. Tudo aquilo que se encontre e que tenha sido
por eles mantido com unanimidade de sentir e de consenso pode ser submetido sem
temor algum como expressão da verdadeira fé católica. Como poderia parecer que
eu afirmava estas coisas por minha conta, porém baseando-me na autoridade da
Igreja, fiz referência ao exemplo do Santo Concílio ocorrido há três anos em
Éfeso, na Ásia, sob o consulado dos preclaros Basso e Antíoco. No curso das
discussões que ali se tiveram para estabelecer a regra da fé, com o fim de
evitar que uma novidade ímpia se insinuasse do mesmo modo que se levou a cabo a
perfídia de Rimini, pareceu a todos os bispos, reunidos em número de quase
duzentos, que o melhor procedimento, o mais católico e o mais conforme a fé,
era o de remeter-se às sentenças dos Santos Padres, alguns dos quais foram
mártires, outros confessores, de tal modo que de todos eles houvera constância
de que foram bispos católicos e que perseveraram como tais. Fortalecidos por
seu consenso, foi confirmada por decreto, em devida forma e solene, a antiga
fé, e condenada a blasfêmia da nova impiedade. À luz deste procedimento, e com
todo direito e merecidamente, o ímpio Nestório foi julgado por estar em
desacordo com a antiguidade católica, e o bem aventurado Cirilo em comunhão com
a santíssima fé antiga. Para que nada faltasse à fidelidade dos fatos que
narrei, proporcionei também os nomes e o número dos padres (ainda que tenha
trocado a ordem), de conformidade com cuja sentença unânime foram interpretadas
as palavras da Sagrada Escritura, e foi confirmada a regra da fé divina. Penso
que não será supérfluo voltar a recordar, para refrescar minha memória.
Os Padres citados em Éfeso
30. Eis
aqui, pois, os nomes daqueles cujos escritos foram citados naquele Concílio
como juízes e testemunhas. São Pedro bispo de Alexandria, doutor insigne e
mártir; Santo Atanásio, bispo da mesma cidade, mestre fidelíssimo e confessor
exímio; São Teófilo, também bispo de Alexandria, célebre por sua fé, vida e
ciência; seu sucessor, o venerável Cirilo, que atualmente ilustra a igreja
alexandrina. E para que não se pensasse que aquela era a doutrina de uma só
cidade ou província, se recorreu também às celebérrimas luminárias da
Capadócia: São Gregório, bispo de Nanziano e confessor; São Basílio, bispo de
Cesaréia da Capadócia e confessor; o outro Gregório, bispo de Nissa, por fé,
costumes e sabedoria realmente digno de seu irmão Basílio. Ademais, para
demonstrar que não apenas a Grécia e o Oriente, mas também o Ocidente, o mundo
latino, tinha mantido a mesma fé, foram lidas algumas cartas de São Félix
Mártir e de São Júlio, bispos da cidade de Roma. Mas não somente a cabeça do
mundo, também as partes secundárias proporcionaram seu testemunho àquela
sentença. Dos meridionais foi citado o beatíssimo Cipriano, bispo de Cartago e
mártir; das terras do Norte, Santo Ambrósio, bispo de Milão e confessor. Sem
dúvida poderia citar um número maior de Padres, mas não foi necessário. Não
era, com efeito, conveniente ocupar o tempo numa multidão de textos, desde o
momento em que ninguém duvidada de que a opinião daqueles dez era a de todos os
demais colegas.
O Concílio de Éfeso proclamava a antiga fé
31.
Ademais, consignei as palavras do bem-aventurado Cirilo, tal como estão
contidas nas mesmas Atas eclesiásticas. Elas dizem que, apenas foi lida a carta
de Capreolo, o santo bispo de Cartago, que não pedia nem desejava mais que se
rejeitasse a novidade e se defendesse a antiguidade, tomou a palavra o bispo
Cirilo. Não parece inútil que cite aqui de novo suas palavras. Segundo está
escrito ao final das Atas, ele disse:
“A cartado venerando e religiosíssimo bispo de Cartago, Capreolo, que
nos foi lida, deve ser incluída nas Atas oficiais. Pois se pensa mente é
claríssimo: quer que sejam confirmados os dogmas da antiga fé e reprovadas e
condenadas as novidades inutilmente excogitadas e impiamente pregadas. Todos os
bispos o aprovaram e maltas vozes: essas palavras são nossas, expressam o
pensamento de todos nós, este é o voto de todos”.
Quais
eram, pois, as opiniões de todos? Quais os desejos comuns? Que se mantivesse
tudo o que havia sido transmitido desde a antiguidade e se rejeitasse oque
recentemente se havia acrescentado. Foi admirado e proclamado a humildade e a
santidade desse Concílio. Os bispos reunidos ali em grande número, a maior
parte dos quais eram metropolitas, possuíam uma tal erudição e doutrina, que
podiam quase todos discutir sobre questões dogmáticas, e o fato de se
encontrarem todos reunidos pôde lhes animar e lhes afirmar na sua capacidade
para deduzir por si mesmos. Ao contrário, se preocuparam por todos meios de
transmitir à posteridade somente o que receberam dos Padres, com o fim não
somente de resolver bem as questões do presente, mas também de oferecer às
gerações futuras o exemplo de como se devem venerar os dogmas da antiguidade
sagrada e condenar as novidades ímpias. Também foi impugnado a presunção
criminosa de Nestório, que seu fanava de ter sido o primeiro e o único a
compreender a Sagrada Escritura, tachando de ignorantes a todos aqueles que,
antes dele, investidos do ofício do Magistério, explicaram a Palavra Divina, ou
seja, a todos os bispos, a todos os confessores, a todos os mártires. Alguns
destes tinham explicado a Lei de Deus, outros haviam aceitado as explicações
que lhes deram e prestaram fé. Ao contrário, segundo o parecer de Nestório, a
Igreja se equivocara sempre, e continuava equivocando-se por ter seguido, segundo
ele, a doutores ignorantes e heréticos.
Intervenções de Sixto III e de Celestino I contra as inovações ímpias
32.
Ainda que todos estes exemplos são mais que suficientes para destroçar e
aniquilar as novidades ímpias, sem embargo, para que não possa parecer que
falta alguma coisa a tão grande número de provas, acrescentei ao final dois
documentos da Sé Apostólica: um do Santo Papa Sixto, que na atualidade ilustra
a Igreja de Roma, e outro de seu predecessor de feliz memória, o Papa
Celestino. Creio ser necessário reproduzir aqui também estes dois documentos.
Na carta que o santo Papa Sixto enviou ao bispo de Antioquia a propósito de
Nestório, escreveu: “Posto que o Apóstolo disse que uma é a fé (cfr. Ef4,5), a
fé que se impôs abertamente, acreditamos no que devemos falar e pregamos o que
devemos manter”. Queremos saber o que é aquilo que devemos crer e pregar?
Ouçamos o que ele diz a seguir:
“Nada é lícito à novidade, porque nada é lícito acrescentar à
antiguidade. A fé límpida de nossos pais e sua religiosidade não devem ser
turvadas por nenhuma mistura de lama”.
Sentença
verdadeiramente apostólica, que descreve a fé dos pais como limpidez
cristalina, e as novidades ímpias como mistura de lama. No Papa Celestino
encontramos o mesmo pensamento. Na carta que enviou aos bispos das Gálias, os
censurava que, de fato, estavam coniventes com os propagadores de novidades,
enquanto que seu silêncio culpável vinha a aviltar a fé antiga e permitia, por
conseguinte, que se difundissem as novidades ímpias.
“Com toda razão – diz – devemos nos
considerar responsáveis se, com nosso silêncio, favorecemos o erro. Estes
homens devem ser repreendidos; não têm a faculdade de pregar livremente!”
A
alguns poderia lhes explicar a dúvida acerca da identidade das pessoas a quem
está proibido pregar como lhes apraz: se serão os pregadores da antiga fé ou os
inventores de novidades. Que o próprio Papa fale e resolva as dúvidas dos
leitores. Com efeito, acrescenta: “Se isso é verdade…”, quer dizer se é verdade
isso de que alguns os têm acusado, ou seja, que vossas cidades e províncias
acolhem as novidades, “se isso é verdade, que a novidade cesse de lançar
impropérios e acusações contra a antiguidade”. O venerando parecer do
bem-aventurado Celestino não foi, pois, que a fé antiga deixasse de opor-se com
todas as suas forças à novidade, mas que esta parasse já de molestar e
perseguir a antiguidade.
Conclusão
33.
Qualquer um que se oponha a estas decisões apostólicas e católicas, ofende ante
tudo a memória de São Celestino, o qual decretou que a novidade devia cessar de
acusar a antiga fé; se burla do juízo de São Sixto, que decretou que não
poderia tolerar as novidades, porque não se pode acrescentar nada à
antiguidade; por último, deprecia a decisão do bem-aventurado Cirilo, que
louvou em alta voz o zelo do venerando Capreolo, desejoso de que os dogmas da
antiga fé fossem confirmadas e condenadas as invenções inovadoras. O mesmo
Sínodo de Éfeso seria violado, quer dizer, as definições dos Santos Bispos de
todo o Oriente, os quais, divinamente inspirados, decretaram que a posteridade
não deveria crer ou coisa mais que o que a antiguidade sagrada dos Santos
Padres, unanimemente concordes em Cristo, havia mantido. Com altas vozes e
aclamações todos a uma, deram testemunho de que a sentença, o desejo, o juízo
de todos era que, do mesmo modo que foram condenados os hereges anteriores a
Nestório, por depreciar a fé antiga e manter novidades, fosse também condenado
Nestório, que igualmente era autor de novidades e adversário da antiguidade. Se
alguém é contrário a este consenso unânime, que foi santamente inspirado pela
graça celeste, se segue que julga condenada injustamente a impiedade de
Nestório. Como última e lógica conseqüência, deprecia como lixo a toda a Igreja
de Cristo e a seus Mestres, Apóstolos e Profetas, de maneira especial ao
Apóstolo Paulo, que escreveu:
“Oh, Timóteo, guarda o depósito evitando as novidades profanas nas
expressões”
E
também:
“Qualquer um que os anuncie um Evangelho diferente do que haveis recebido,
seja anátema”
Assim,
pois, se as decisões dos Apóstolos e os decretos da Igreja não podem ser
transgredidos – em virtude dos quais, segundo o consenso sagrado da
universalidade e da antiguidade, todos os hereges têm sido sempre e justamente condenados
– em consequência, é dever absoluto de todos os católicos, que desejam
demonstrar que são filhos legítimos da Mãe Igreja, aderir-se, agarrar-se à fé
dos Santos Padres, e morrer por ela, ao mesmo tempo que detestam, tem horror,
combatem, perseguem as novidades ímpias. Isto é tudo o que, mais ou menos,
expus nos dois Comonitórios, e que resumi aqui brevemente. Desta forma, minha
memória, cujo auxílio escrevi estas notas, poderá consultá-las com freqüência e
tirar proveito, sem sentir-se agoniada por uma expressão prolixa.