18º dia do mês da Vitória
Pio XIII
Mathias
foi ordenado padre ao meio-dia e bispo ao meio da tarde.
A transição de
militar para sacerdote e bispo não foi fácil para ele.
Pio
XIII guiou-o por toda a sua primeira missa ad
Orientem, mas havia exigido dele um sermão completo e Mathias sofreu até o
íntimo dos ossos falando de improviso mas o resultado foi satisfatório, segundo
seu pequeno rebanho.
Ouvir confissões
foi outra experiência difícil. Jochum apresentou de si aspectos que Mathias
jamais poderia supor, do pecado ao arrependimento. Mas o mais difícil foi o que
Mathias experimentava em sua alma: a opressão física de demônios dirigindo a
ele um ódio mortal por seu ministério. Jamais sentira tanto medo em sua vida.
Mathias suava ao
ler a fórmula de absolvição escrita num pedacinho de papel e sua mão tremia ao
dar a benção a Jochum.
Sorte sua que
Pio XIII dava-lhe sempre assistência.
- Não tente ser
mais forte do que és, Eminência. Nós estamos em guerra; o príncipe deste mundo
está quase a derrotar seu Rei, neste mundo. Se pudesse, Satã em pessoa nos
estraçalharia. Sorte nossa que Deus o não permite.
- Eu nunca senti
um medo tão palpável, Santidade!
- Sim, mas
lembre-se: um demônio não pode mais que o teu Anjo da Guarda e teu anjo é ainda
mais poderoso que qualquer demônio porque vê a Deus face à face. Também Satã já
foi vencido pela Ressurreição de Jesus, de maneira que este seu poder, esta sua
aparente vitória sobre nós, no final, é nada.
E foi no final
da manhã seguinte que Jochum retornou espavorido e correu para Mathias.
- Oberst... quer
dizer, Eminência!
- Fale, Jochum!
(Mathias estava quase feliz por voltar a um território mais conhecido: Oberst).
- Eu estava a
fazer patrulha quando percebi abutres no céu e resolvi investigar para onde
iam. Achei o corpo de padre Luigi. Estava morto!
- Sim, e que
mais?
- Ele foi morto,
Eminência! Havia lacerações de pedras e outros cortes que pareciam ser de...
flexas ou lanças! Achei isso perto do corpo! E apresentou-lhe um triângulo mal
feito, entalhado em pedra.
Mathias
compreendeu logo que não podiam estar muito longe de algum acampamento de
sobreviventes da Grande Tragédia de doze anos atrás.
Mathias levou
Jochum a Pio XIII e apresentou-lhe os fatos.
O Papa refletiu
por alguns instantes e falou:
- Vós dois,
enterrai Luigi e depois retornai. Entretanto, estarei levando o povo para
aquele monte que está na direção do sol nascente.
Mas
Mathias e Jochum não retornaram: o grupo de sobreviventes, que culpavam a
Igreja pela destruição da Itália, cercou-os e os mataram a frexadas e lançaços.
Depois
sairam à procura de mais padres e foram encontrá-los já noite no alto duma
colina.
Pio
XIII esperou por eles à frente de seu grupo e tentou dialogar com seus
perseguidores, mas foi inutil, pois estavam cegados por desespero e ódio.
Pio
XIII foi seguro por dois de seus perseguidores e viu um a um dos seus
seguidores serem mortos. No fim, um de seus perseguidores correu para ele de
lança em riste, feliz de estar matando a causa de sua tragédia e varou-lhe o
coração.
...e então toda a glória deste mundo passou.
* * * *
VI – Flamínea
A
sala do Conselho era como um túmulo silencioso. Pilates conhecia cada uma
daquelas faces, algumas desde a infância e quase todos eram parentes seus, por
causa dos casamentos contínuos entre os membros das Famílias.
Doze
eram os membros do Conselho, cada um representando uma das doze famílias
originais.
-
No informatório aprendi que Ex-Paris em seus dias foi uma estupenda aliada de
nossos pais. Assim, esperava encontrar informações daquele tempo que nos
conduzissem ao nosso presente. Quem sabe, um dado que nos faltasse.
-
E nosso querido irmão Pilates encontrou o linque perdido?
Pilates
suava, sem saber se era por causa das fortes luzes sobre si, o se era por causa
da ansiedade que estava a sentir, mas sem a mostrar.
-
De certa forma, Senhor Conselheiro, e foi em antigas igrejas dedicadas aos
deuses daqueles tempos. Em várias havia uma escultura de um homem crucificado
de cabeça para baixo. Às vezes, essa estátua pendia sobre o altar, às vezes era
um dos deuses a pisar ou quebrar o homem crucificado. Os robots guias
explicaram-me que aquele era o Pérfido Profeta, finalmente sobrepujado pelos
deuses da Terra, que tomavam seu lugar de direito.
-
Os idiotumanos tinham crenças estranhas, não lhe parece? Por isso merecem tal
nome.
-
Estranhas, sem dúvida, Senhor Conselheiro, mas sempre testemunhas da vitória de
nossos pais. Entretanto, senhores, o que vou dizer pode soar como um escândalo,
mas é verdadeiro. Tendo visto imagens do Pérfido Profeta, movido por um
impulso, quiz conhecer a Pérfida Doutrina!
Vozes
elevaram-se no ar.
-
A Pérfida Congregação foi nosso maior adversário!
-
Passar a sua sede a ferro e fogo foi a maior glória de nossos pais!
-
Por sorte ela está quase extinta! O último grupo remanescente foi detectado
onde ficava Ex-Florença pelos robots vigilantes que estão indo para lá agora,
para exterminarem a todos!
-
Irmãos! Irmãos! – era o pai de Flamínea. Nosso irmão mais novo tem dúvidas e no
fundo, como vimos, suas motivações consideram somente o nosso bem. Ouçamo-lo
com amor e atenção!
Pilates
sabia que estava em águas perigosas. Havia algo escondido na melifluosidade da
voz de seu sogro que o inquietou, mas era necessário seguir adiante.
-
Senhores do Conselho, sim, eu procurei conhecer a Pérfida Doutrina. Não foi
fácil encontrar qualquer informação. Tudo o que encontrei estava em antiquíssimos
objetos-livro e a custo encontrei um robot com acesso à língua que se falava na
Ex-Paris de seus dias.
-
E o irmão Pilates terá encontrado algo de útil para nós?
-
Acho que sim, Senhor Conselheiro!
Novo
alarido.
-
Irmãos do Conselho, por favor! (novamente o pai de Flamínea). Ouçamo-lo!
-
Senhores do Conselho, eu devo confessar pesquisei em inúmeros livros publicados
por membros ilustres da Pérfida Congregação e devo dizer que, lamentavelmente,
não entendi todos os seus pontos. Inúmeros pontos carecem de qualquer lógica ou
mencionam coisas que não tenho idéia do que sejam.
-
Então o querido irmão convoca o conselho para dizer que foi à Ex-Paris
vasculhar no lixo da Pérfida Congregação para não entender do que eles falavam?
-
Eu não disse que não entendi nada!
-
Mas não entendeu tudo! Vem então com meias-verdades?
-
Eu acho que tenho uma pista para nos salvar...
-
Salvar-nos do que, exatamente, irmão? disse alguém com uma voz que arranhava.
-
Precisamos ser salvos da tua loucura! gritou outro.
Pilates
buscou o pai de Flamínea com os olhos e viu um homem que parecia deliciado com
a situação, mas isso foi um instante: o homem ergueu-se e impôs-se ao grupo.
-
Irmãos do Conselho! Nossos pais lutaram até a morte para criarem Edem para nós!
Não perturbemos sua glória com ódios e discussões inúteis. Irmão Pilates tem um
ponto forte a seu favor. Ele alega que estamos em decadência e apresenta fatos
para sustentar sua posição. Ora, somos fortes e sábios o suficiente para aceitar
que contra factum argumentum non est. Sejamos
dignos de nossos pais! Em sua busca por iluminação ele foi ao passado - o que é
sábio – e procurou pistas na Pérfida Doutrina. Chocante? Sim, mas quem diz que
não se aprende com o inimigo? O mínimo que se aprende com o adversário é o que
não queremos ser e quem de nós pode afirmar que não existem verdades naquilo
que o oponente diz? Heia! Sejamos grandes, irmãos! Vamos, Pilates, conta-nos o
que encontraste que nos pode ajudar?
E Pilates falou. Longa, pensada,
meticulosamente, a fim de que nenhuma palavra se perdesse por falta de
compreenção, sobre os valores esquecidos de ha muito, sobre um Pai comum e
todos servirem-se mutuamente como irmãos, o oposto do que se conhecia em Edem,
e o mais importante: como tal doutrina salvou Ex-Europa quando o Império Romano
Ocidental esfacelara-se sob as invasões bárbaras.
Mas seus
ouvintes jamais ouviram falar de romanos ou bárbaros e respondiam às suas
palavras com sorrisos de condescendência ou desprezo.
Pilates
compreendeu que estava acabado.
A
reunião acabou no final da tarde e Flamínea estava tomada de fúria!
Não
por causa da insólita pesquisa de Pilates, mas por ele se ter ousado opor ao
Reino. Ele estava a banhar-se, como se nada houvesse acontecido, mas ela sabia,
todos sabiam que Pilates estava acabado e que sua ação lhe traria
consequências, consequências graves. O Reino precisa ser uno e não dividido em
partidos e diferentes posições.
Ela
precisava falar com seu pai. Conseguir dele, talvez, fazer de Pilates uma
estátua viva para engalanar seu quarto e assim mante-lo por perto.
Por um momento
deliciou-se a imaginar...
...deixa-lo pendurado
naquela parede...
...ou
suspenso num tripé naquele canto?
O pequeno
comunicante de Flamínia soou, fazendo-a estremecer e voltar de seus sonhos.
Correu para ele,
tocou-o e viu no pequeno ecrã a face de seu pai a sorrir-lhe.
- Meu pai sorri?
- Sempre que
vejo minha filha!
- Pois estou
furiosa! Não entendo Pilates! O que foram aquelas tolices que disse?
- Tu o dizes:
tolices.
- Mas ele...!
- Sempre imagei
que estarias perturbada, pois conheces as regras de nossa sociedade. Por isso
resolvi falar-te. Daqui a pouco chamarei Pilates para uma conversa e estou
certo de que todos os problemas serão resolvidos.
- Vais matá-lo?
- Somente em último
caso; mas, se necessário, farei de modos a dar-te o seu corpo para que
aproveites dele no que te aprouver.
- Vais mesmo
tentar salva-lo?
- Farei tudo
para te ver feliz! Estou em minha sala de controle vendo-o no banho.
- Ele parece
bem?
- Sim. Pensativo,
dentro da banheira. Sem dúvida, considerando sua posição.
- Papai, o que
aconteceu com ele? O que está por detrás de suas experiências?
- Eu sei, talvez
melhor do que o próprio Pilates, mas não vou te dizer. É uma informação que
cabe somente aos membros do Conselho. Nada que uma boa, honesta conversa não
resolva. Afasta de ti todo o temor e desfrutes bem o teu noivo! Tenho certeza
de que, amanhã de manhã, já tudo estará esquecido e superado! Agora um beijo e
boa noite! disse ele num sorriso confiante e sereno.
Ela tentou
retribuir-lhe o mesmo sorriso, mas falhou completamente.
Com a
ligação encerrada, os demais membros do Conselho, escondidos atrás da câmera
comunicadora, sairam das sombras.
- É
impressionante o amor que tens por sua filha, Deimos!
Ele
sorriu e disse: quem de nós não ama seus filhos? Nossos sangue e carne! Ossos
de nossos ossos! Por isso, preocupa-me tanto o que se passa com o Conselheiro
Ário. Seu coração deve estar cheio de tristeza.
-
Tristeza, Deimos? Frustração, mas não tristeza. Todos os senhores sabem que dei
a Pilates a melhor educação e tudo fiz para mante-lo longe de... de sua...
- É uma
palavra que nos machuca a boca, não é mesmo? disse Deimos, cheio de compaixão.
Entretanto, sabemos que não podemos permitir que Pilates amadureça as suas
idéias. Eden não pode ser dividido! Mas, antes que te adiantes, Ário, fiz uma
promessa a minha filha e serei eu a cuidar de Pilates.
-
Amén, disse Ário.
Ao
receber pelo comunicante o convite de Deimos para o ver em seu escritório,
Pilates estava inseguro. Sabia que suas idéias e descobertas o haviam
desgraçado. Ainda assim, estava convicto de ter descoberto algo, de saber que
sua sociedade estava viciada numa auto-indulgência que a reduzia a nada do que
deveria ser. Seus sentimentos o faziam ver, ainda que indistintamente, um
Pilates que devia ser, mas que Edem sufocava.
...e
assim, Edem voltava e a lembrança de sua desgraça. Conhecia as leis de Edem e
sabia que Edem era indivisível e ele tornou-se a divisão, um pária.
Era
noite quando Pilates entrou no escritório luxuoso e monumental de Deimos. Um
terror intenso e sem foco o invadiu secando-lhe a boca.
O
Chefe do Conselho o recebeu com um largo sorriso e braços abertos.
-
Pilates! O maior assunto de Eden!
-
Lamento terrivelmente que minhas idéias tenham causado essa terrível impressão.
Meu desejo era elevar-nos.
-
Ninguém em Edem deseja ser elevado, Pilates, disse Deimos dirigindo-se para o
bar. Queres beber algo? Vinho, gim?
-
Não, senhor.
Enquanto
abria uma garrafa de uísque e servia dois copos, Deimos perguntou: por acaso
mudaste de idéia?
-
Para ser honesto, creio que não, senhor.
-
Ah! disse Deimos pasando-lhe um dos copos.
O
medo que Pilates sentia era u’a mão fria segurando seu coração, impedindo-o de
bater.
-
Senhor Chefe do Conselho, eu não sei bem o que se passa comigo; o que em mim
vibrou e me fez buscar o que não conhecia, que me faz querer ser... mais, ser
melhor... Não sei como definir isso. Mas também sei que não lhe posso voltar as
costas.
-
Ah, o pássaro doirado da juventude! Lembro quando teu pai mandou-te a mim para
que eu começasse tua educação. Um menininho de sete anos! Gritaste tanto, por
tantas noites! Ah, e isso te faz enrubescer? Que delicioso! Não! Podes fechar
tua roupa, não quero desfrutar-te. Mas sabes que tua pronta resposta também
deixa-me feliz? Ela mostra que teus pais e todos os demais membros do conselho
fizeram em ti um bom trabalho. Mas o momento agora, pede verdade. Gosto de tua
franqueza e honradez.
Pilates notou um
ligeriríssimo sinal de desprezo quando Deimos disse as últimas palavras.
-Sabes, meu
jovem, que nossos pais buscaram, sim, construir um mundo melhor.Foram séculos a
tentar, até que nosso senhor mostrou-lhes quão simples era tornar o sonho
realidade! Os menosumanos eram idiotas que, perdendo a pérfida doutrina,
ganharam o medo de morrer. Então fizemos doenças e fizemos a cura dessas
doenças. Mas eram eles a doença, não eram?, superpopulando o planeta,
consumindo os seus recursos. No tratamento e profilaxia das doenças que criamos
estavam a alteração genética que fez os menosumanos machos ficarem estéreis e
efeminados. Mas como eles já não se importavam mais em criar famílias, mas em
desfrute mútuo e carreira profissional, isso passou despercebido.
“Criamos
instituições mundiais para cuidarem dos que ficavam, dando-lhes os cuidados
básicos, sabendo que, cedo ou tarde, eles seriam mandados à morte digna. Fomos
reduzindo a idade mínima para a morte digna através de leis, até chegarmos ao
que temos hoje.
“Diga-me lá,
Pilates, para que um menosumano precisa viver mais que trinta anos?
“Desenvolvemos o
processo de clonagem. E em cem anos não mais haviam mais japoneses, espanhóis,
italianos e outros povos.
“Botamos
robots a preservarem as ex-cidades que nossos pais acharam interessantes manter
como resorts e museus, construímos Edem e cá estamos a viver felizes e em paz,
desfrute mútuo, sem outra lei que nossos desejos.
“Os
menosumanos vivem em prisões que lhes descrevemos como cidades, comem do nosso
lixo e também vivem, numa escala menor, entregues a seus desejos.
“O
planeta vive em paz, harmonia, sem poluição! Criamos o paraíso!
Deimos
estava triunfante, quase sem fôlego. Havia um profundo deleite malévolo em sua
expressão e sua voz subitamente soou como que arranhada.
-Beba
teu uísque, Pilates!
O comando era
irrecusável e Pilates bebeu quase o copo todo num grande gole.
-Mas, sim, algo
se foi perdendo em nós. Teus estudos fizeram-te conhecer a pérfida doutrina?
Lestes seus textos, não foi?
- Precisei da
ajuda de robots, senhor, e mesmo eles tinham dificuldade com certas palavras
que não podiam pronunciar.
-Sim. Nós
programamos os robots para reconhecerem certas palavras mas não as
pronunciarem. A pérfida doutrina precisa
ficar enterrada, entendes? Precisa! Se ela voltar, o mundo sairá de controle,
novamente!
Pilates sentia
frio no corpo. Bebeu o resto do uísque e viu quando Deimos poz seu copo sobre a
grande mesa de mogno – o copo estava ainda cheio.
Também notou que
o arranhado na voz de Deimos estava intenso e permanente, parecendo que eram
mais de uma voz a sairem de sua boca.
- Eu consegui,
Pilates! Mostrei ao Carpinteiro que a sua criação o rejeita! Venci o meu
inimigo!
- Quem venceste,
Deimos? Que inimigo?
Pilates teve por
resposta uma larga, desbragada gargalhada que fez seu sangue gelar nas veias.
...o
ar na sala subitamente estava gelado!
- Não sou
Deimos, Pilates! Sou teu deus, senhor e mestre! Aquele a quem tu serves! Eu
possuo Deimos, como possuo a todos em Edem!
Pilates tinha os
olhos turvos ou via mesmo as sombras do escritório moverem-se e tomarem formas
obscenas, como era obscena o voz que lhe falava?
- Um dia, fui
príncipe deste mundo, mas hoje, reino absoluto! Os últimos seguidores do Carpinteiro
estão sendo mortos neste momento e tu também, estás morrendo. Corpo gelado,
visão turva e agora... a dor!
Pilates rolou da
poltrona para o chão sentindo excruciante dor no estômago.
- eucus...
poem...ti...!
- O que, verme?
-...teu
inimig... o... é meu amigo! EU CUSPO EM TI! gritou Pilates com o último fôlego
de vida que tinha e morreu.
...e então toda a glória deste mundo passou.