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Saturday, 22 March 2025

Saturday's Good Reading: “O Grilo” by Monteiro Lobato (in Portuguese)

 

Os papéis, recém - redigidos, são 'envelhecidos' na fumaça do fogão ou segundo um método bem mais perfeito: são postos em gavetas junto com centenas de grilos vivos; com o tempo, os grilos morrem, apodrecem e liberam toxinas, que provocam manchas no papel, “envelhecendo-o”- vem daí o termo “grileiro”.

 *

Insistente nas palestras como certas moscas em dia de calor, é, nas regiões do Noroeste, a palavra "grilo". "Grilo" e seus derivados, "grileiro", "engrilar", em acepção muito diversa da que devem ter entre os nipônicos, onde grileiros engrilam grilos de verdade em gaiolinhas, como fazemos aqui com o sabiá, o canário, o pintassilgo e mais passarinhos tolos que morrem pela garganta.

Em certas zonas chega a ser obsessão. Todo mundo fala em terras griladas e comenta feitos de grileiros famosos.

E agora que o grilo penetrou na arte, e vai perpetuar-se em mármore e bronze no monumento da Independência, (1) vem a talho de foice um apanhado geral sobre a conspícua instituição - viveiro onde se fermenta a aristocracia dinheirosa de amanhã. As velhas fidalguias da Europa entroncam no banditismo dos cruzados. Ter na linhagem um facínora encoscorado de ferro, que saqueou, queimou, violou, matou à larga no Oriente, é o maior padrão de glória de um marquês de França. Ter entre os avós um grileiro de hoje vai ser o orgulho supremo dos nossos milionários futuros. Matarás, roubarás, são os mandamentos de alto bordo do decálogo humano, eternos e irredutíveis, que a ingênua lei de Moisés tentou inverter, antepondo-lhes um inócuo "não".

Grilo é uma propriedade territorial legalizada por meio de um título falso; grileiro é o advogado ou "águia" qualquer manipulador de grilos; terras "grilentas" ou "engriladas", as que têm maromba de alquimia forense no título.

Como o grilo proliferou na Noroeste mais do que o permite o coeficiente tolerável da patota humana, as conversas ressentem-se ali de muita insistência no assunto.

- Vou comprar terras do grilo do doutor Honestino dos Anjos.

- Não caia nessa! O Honestino é um grileiro sujo. Qualquer dia escangalham-lhe com a patota. Grilo de primeiríssima, que dá gosto, é o do Pizarro! Esse, sim... Porque há grilos geniais, obra de verdadeiros Cagliostros encarnados nos bacharéis do "venerando mosteiro"; e os há ineptos, mancos, fabricados aí por meros "curiosos" da trampolinagem, sem dedo para a coisa. Aqueles gozam de toda a consideração social devida aos mestres de vistas largas, ao passo que estes o povo os cobre de irrisão.

- Ali vai o senador Pizarro, um grileiro macota!

- E que me diz do Dr. Cunha?

- Um sujo. Borrou-se com aquele grilinho indecente da Pedra Azul e anda agora a tentar outro mais inepto ainda. É um crime deixar a polícia soltos pelas ruas tipos dessa ordem...

- Não tem a pinta! . . .

- É isso.

O grileiro é um alquimista. Envelhece papéis, ressuscita selos do Império, inventa guias de impostos, promove genealogias, dá como sabendo escrever velhos urumbebas que morreram analfabetos, embaça juízes, suborna escrivães - e, novo Jeová, tira a terra do nada. Seu laboratório lembra as espeluncas dos Faustos medievais; mais prático, porém, não procura ali a pedra filosofal ou o elixir da longa vida. Fausto virou rábula: manipula a propriedade. Envelhecer um título falso, "enverdadeirá-lo", é toda uma ciência. Mas conseguem-no. Dão-lhe a cor, o tom, o cheiro da velhice, fazem-no muitas vezes mais autêntico do que os reais. Expõem-no ao fumeiro, a tal distância da fumaça conforme o grau de ancianidade requerido, e conseguem assim a gama dos amarelidos, segredo até aqui do Tempo.

Enquanto o papel se defuma, fazem-lhe aspersões sábias, que lhes dêem a rugosidade peculiar às celuloses d’antanho.

Finalmente, para impregná-lo do cheirinho, do bouquet dos decênios, passeiam-no a cavalo, metido entre o baixeiro e a carona...

E mais coisas fazem que os leigos não pescam e constituem o segredo do "ponto de bala".

Mas tudo isso às vezes é pouco. Veste o lobo a pele da velhice e fica com o rabo da mocidade de fora...

Conta-se de um grilo superiormente engenhado que faliu por artes de um raio de sol. O documento engrilado era perfeito, sem o mínimo cochilo por onde o advogado contrário, preposto a destramar a marosca, pudesse levantar a perdiz. Por mais que virasse e revirasse o papel, e analisasse a letra, e cotejasse os dizeres, e cheirasse, e apalpasse, não atinava com o calcanhar de Aquiles. Já com dor de cabeça ia pôr de parte o grilo, quando Apolo intervêm. Um raio de sol entra pela janela e dá de chapa contra o título. Àquela súbita e intensa iluminação o perito pôde vislumbrar as letras d’água com que a fábrica marcara o papel. Lá estava a estrela da República naquele documento do século dezessete...

Ao trabalhinho de laboratório aliam-se ao ar livre os atos anexos e complementares - violências, suborno, incêndio de cartórios, sumiço de autos, etc.

Porque o grilo é proteiforme e para completar-se sobe até a ótica, subornando até os teodolitos dos engenheiros.

Que prodígios não opera neste campo! O primeiro é substituir a corrente, o podômetro, o teodolito, a trigonometria e o mais por um instrumento só, de alta engenhosidade: o olhômetro.

Só o olhômetro merece fé aos grileiros, esse aparelho maravilhoso, de criação nossa, e já muito usado pelos governos em estudos estatísticos.

Por intermédio do olhômetro mudam-se os cursos dos rios, passa-se um afluente da margem esquerda para a direita, criam-se cachoeiras em sítios onde o nível é manso, e operam-se quantas mais revoluções geográficas se fazem mister à patota.

Um grileiro está na posse do nome de um rio que a natureza esqueceu de criar; se ele consegue localizar esse rio no mapa, o grilo sairá de primeiríssima. E lá vai ele, com o rio às costas, em procura de colocação...

A outro fazia grande conta uma cachoeira em certo ponto das divisas.

O homem não pestaneja: constrói a cachoeira. Os contrários protestam.

Há intervenção judiciária. Na vistoria chamam para perito o morador mais antigo das redondezas. O caboclo chega, defronta-se com a cachoeira fantástica e abre a boca. Há cinqüenta anos que vive ali, conhece a zona como a palma de sua mão - como é que nunca viu aquele "poder d’água", barulhento e atravancador? Mas desconfia – e entrando na água desfaz com dois pontapés a cachoeira de mentira, que lá rola, rio abaixo, transformada em tranqueira de galhaça e cipós

. . . Era uma cachoeira grilo . . .

O grilo come nas terras apossadas pelos caboclos mal apetrechados contra os percevejos da lei, tanto quanto nas terras devolutas, as quais, engriladas a Norte, Sul, Leste e Oeste, estão se derretendo como torrão de açúcar n’ água.

Calcula uma autoridade no assunto em três milhões de alqueires a área das terras griladas na Noroeste. E esses milhões caminham para quatro, visto como agora a indústria do grilo passou a interessar os altos paredros da política, verdadeiras piranhas em matéria de voracidade.

Não há exagero no cálculo de três milhões, sabendo-se que há grilos de 200, 300 e 400 mil alqueires – territórios equivalentes à metade da Bélgica, quase à Saxônia, e tamanhos como antigos ducados principados alemães!...

Verdade seja que estes grilos são os grilos-mães, os canhões 420 da espécie.

Um existe de 480 mil alqueires - o rei dos grilos - notável não só pelo tamanho como pela perfeição da sua gênese.

É o grilo recorde, e merece publicidade para lição dos que querem enriquecer depressa mas andam por aí a malbaratar o engenho com  patotinhas vagabundas.

Na posse de um título autêntico que lhe dava domínio sobre três mil alqueires, um dos nossos águias resolve tomá-lo como base para um grilo. Estuda bem o caso e um dia requer cópia dos autos onde vinha a partilha da gleba em questão, delimitada de um lado nestes termos "... e daí em linha reta de duas léguas, até encontrar o rio tal".

Ao chegar neste ponto, o escrevente do cartório, que tirava a cópia, sofre uma alucinação ótica e escreve "vinte e duas léguas" onde estavam "duas". Mesmo fora das bebedeiras é comum esta visão dupla das coisas, que há de ter em medicina um nome grego.

Concluída a cópia, vai ela ao juiz para os sacramentos. Juiz, promotor e coletor subscrevem-na, depois de lançados o "conferido e concertado" do estilo. Mas nenhum deles realmente conferiu nem concertou coisa nenhuma, de acordo com a mais louvável das praxes, porque é preciso ter confiança no escrivão, que diabo! E destarte o grileiro entrou na posse duns autos tão autênticos perante a lei quanto os originais.

Intervalo de quinze minutos.

Um advogado surge no cartório e pede vista dos autos originais.

Obtém-na, passa recibo e leva para casa o calhamaço.

Terceiro quadro: dias depois o grileiro denuncia esse advogado como tendo perdido o papelório. O juiz se assanha e intima o advogado a entregá-lo sob as penas da lei: prisão ou reconstrução dos autos perdidos. O advogado, consternadíssimo, alega que de fato os perdeu, - e segue para o xadrez como um verdadeiro mártir da urucubaca. E lá, entre grades, antes de meditar Silvio Pelico e Dostoievsky, sente na cabeça o famoso estalo de Arquimedes:

- Eureka!...

Lembra-se que em mãos de um amigo existe cópia conferida e concertada, e compromete-se a dá-la em troca do original que o saci (evidentemente o saci! . . . ) lhe furtara da gaveta.

Quarto ato: deferimento do juiz, soltura do advogado preso e solene entrada em cartório do grilo triunfante, com as 22 léguas em vez de apenas 2. Cai o pano. Reacendem-se as luzes e o grileiro de gênio entra na posse de 400 e tantos mil alqueires de terra em vez dos miseráveis três mil primitivos.

É ou não um rasgo yankee, merecedor dum filme? Não se conhecem os nossos progressos lá fora. Não imaginam o galope do nosso cavalo.

Galope tão grande que já se reflete na língua. Todos os dias o povo surge com palavras novas que dêem medida à evolução da esperteza. Para batismo destes "looping-the-loop" da aviação forense só entre os bichos que voam encontra o povo analogias competentes: águias, grilo, aguismo.

Mas não basta. Há necessidade de formas novas, combinações estapafúrdias, conúbios de rapinagem de alta envergadura com ruminantes de pé ultra-ligeiro. Só estas cabriolas vocabulares têm força expressiva no caso.

Ouvimos uma vez, em roda onde se comentavam estes tremendos malabarismos, cair em crise de entusiasmo um dos ouvintes; piscou, faiscou os olhos e improvisou este soberbo jato de impressionismo zoológico, única forma capaz de dizer toda a imensidade da sua admiração:

- Que cabras águias!

 

(1) Alusão ao projeto do escultor Ximenes, que venceu no concurso para o monumento e que Monteiro Lobato muito combateu em "Idéias de Jéca Tatú."

 in  "A onda verde". In: Obras completas,Vol. 5, Editora Brasiliense, 1948.

 

 

Saturday, 14 December 2013

"A Reforma da Natureza" by Monteiro Lobato (in Portuguese)

CAPÍTULO 1
A Reforma da Natureza

Quando a guerra da Europa terminou, os ditadores, reis e presidentes cuidaram da discussão da paz. Reuniram-se num campo aberto, sob uma grande barraca de pano, porque já não havia cidades: todas haviam sido arrasadas pêlos bombardeios aéreos. E puseram-se a discutir, mas por mais que discutissem não saía paz nenhuma. Parecia a continuação da guerra, com palavrões em vez de granadas e perdigotos em vez de balas de fuzil.

Foi então que o Rei Carol da Romênia se levantou e disse:

- Meus senhores, a paz não sai porque somos todos aqui representantes de países e cada um de nós puxa a brasa para a sua sardinha. Ora a brasa é uma só e as sardinhas são muitas.

Ainda que discutamos durante um século, não haverá acordo possível. O meio de arrumarmos a situação é convidarmos para esta conferência alguns representantes da humanidade. Só essas criaturas poderão propor uma paz que satisfazendo a toda a humanidade também satisfaça aos povos, porque a humanidade é um todo do qual os povos são as partes.

Ou melhor: a humanidade é uma laranja da qual os povos são os gomos.
       Essas palavras profundamente sábias muito impressionaram àqueles homens. Mas onde encontrar criaturas que representassem a humanidade e não viessem com as mesquinharias das que só representam povos, isto é, gomos da humanidade?

O Rei Carol, depois de cochichar com o General de Gaulle, prosseguiu no seu discurso.

- Só conheço - disse ele - duas criaturas em condições de representar a humanidade, porque são as mais humanas do mundo e também são grandes estadistas.

A pequena república que elas governam sempre nadou na maior felicidade.

            Mussolini, enciumado, levantou o queixo.

- Quem são essas maravilhas!

- Dona Benta e tia Nastácia - respondeu o Rei Carol - as duas respeitáveis matronas que governam o Sítio do Pica-pau Amarelo, lá na América do Sul. Proponho que a Conferência mande buscar as duas maravilhas para que nos ensinem o segredo de bem governar os povos.

- Muito bem! - aprovou o Duque de Windsor, que era o representante dos ingleses. - A Duquesa me leu a história desse maravilhoso pequeno país, um verdadeiro paraíso na terra, e também estou convencido de que unicamente por meio da sabedoria de Dona Benta e do bom-senso de tia Nastácia o mundo poderá ser consertado. No dia em que o nosso planeta ficar inteirinho como é o sítio, não só teremos paz eterna como a mais perfeita felicidade.

Os grandes ditadores e os outros chefes da Europa nada sabiam do sítio. Admiraram-se daquelas palavras e pediram informações. O Duque de Windsor começou a contar, desde o começo, as famosas brincadeiras de Narizinho, Pedrinho e Emília no Pica-pau Amarelo. O interesse foi tanto que pouco depois todos aqueles homens estavam sentados no chão, em redor do Duque, ouvindo as histórias e lembrando-se com saudades do bom tempo em que haviam sido crianças e, em vez de matar gente com canhões e bombas, brincavam na maior alegria de "esconde-esconde" e " chicote-queimado.”

Comoveram-se e aprovaram a proposta do Rei Carol.

Eis explicada a razão do convite a Dona Benta, tia Nastácia e o Visconde de Sabugosa para irem representar a Humanidade e o Bom-Senso na Conferência da Paz de 1945.

Com grande naturalidade Dona Benta aceitou o convite e deliberou seguir com todo o seu pessoalzinho - menos a Emília. Emília recusou-se a partir porque estava com a idéia que lhe veio pela primeira vez quando ouviu a fábula do Reformador da Natureza. Fazia já meses que Dona Benta havia contado essa fábula assim:

O Reformador da Natureza, Américo Pisca-Pisca, tinha o hábito de botar defeito em todas as coisas. O mundo para ele estava errado e a Natureza só fazia tolices.

- Tolices, Américo?

- Pois então?!... Aqui neste pomar você tem a prova disso. Lá está aquela jabuticabeira enorme sustendo frutas pequeninas e mais adiante vejo uma colossal abóbora presa ao caule duma planta rasteira.

Não era lógico que fosse justamente o contrário? Se as coisas tivessem de ser reorganizadas por mim, eu trocaria as bolas - punha as jabuticabas na aboboreira e as abóboras na jabuticabeira. Não acha que tenho razão?

E assim discorrendo, Américo provou que tudo estava errado e só ele era capaz de dispor com inteligência o mundo.

- Mas o melhor - concluiu - é não pensar nisso e tirar uma soneca à sombra destas árvores, não acha?

E Américo Pisca-Pisca, pisca-piscando que não acabava mais, estirou-se de papo para cima à sombra da jabuticabeira.

Dormiu. Dormiu e sonhou. Sonhou com o mundo novo, inteirinho reformado pelas suas mãos. Que beleza!
De repente, porém, no melhor do sonho, plaf! uma jabuticaba cai do galho bem em cima do seu nariz.

Américo despertou de um pulo. Piscou, piscou. Meditou sobre o caso e afinal reconheceu que o mundo não estava tão mal feito como ele dizia. E lá se foi para casa, refletindo:

- Que espiga! ... Pois não é que se o mundo tivesse sido reformado por mim a primeira vítima teria sido eu mesmo? Eu, Américo Pisca- Pisca, morto pela abóbora por mim posta em lugar da jabuticaba? Hum!... Deixemo-nos de reformas. Fique tudo como está que está tudo muito bom.

E Pisca-Pisca lá continuou a piscar pela vida em fora, mas desde então perdeu a cisma de corrigir a Natureza.

Ao ouvirem Dona Benta contar essa fábula todos concordaram com a moralidade, menos Emília.

- Sempre achei a Natureza errada - disse ela - e depois de ouvir a história do Américo Pisca-Pisca, acho-a mais errada ainda. Pois não é um erro fazer um sujeito pisca-piscar? Para que tanto "pisco"? Tudo que é demais está errado. E quanto mais eu "estudo a Natureza" mais vejo erros. Para que tanto beiço em tia Nastácia? Por que dois chifres na frente das vacas e nenhum atrás? Os inimigos atacam mais por trás do que pela frente. E é tudo assim. Erradíssimo. Eu, se fosse reformar o mundo, deixava tudo um encanto, e começava reformando essa fábula e esse Américo Pisca-Pisca.

A discussão foi longe naquele dia; todos se puseram contra a reforma, mas a teimosa criaturinha não cedeu. Berrou que tudo estava errado e que ela havia de reformar a Natureza.

- Quando, Marquesa? - perguntou ironicamente Narizinho.

- Da primeira vez em que me pilhar aqui sozinha.

Saturday, 16 November 2013

Letter from Monteiro Lobato to Getúlio Vargas (in Portuguese)


São Paulo, 20 de janeiro de 1935

Dr. Getúlio Vargas

   Por intermédio do meu amigo Rônald de Carvalho, procurei no dia 15 do corrente, fazer chegar ao seu conhecimento uma exposição confidencial sobre o caso do petróleo, estou na incerteza se esse escrito chegou a destino. Talvez se perdesse no desastre do dia 20. E como se trata de documento de muita importância pelas revelações que faz, seria de toda conveniência que eu fosse informado a respeito. Nele denuncio as manobras da Standard Oil para senhorear-se das nossas melhores terras potencialmente petrolíferas, confissão feita em carta pelo próprio diretor dos serviços geológicos da Standard Oil of Argentina, que é o tentáculo do polvo que manipula o brasil. E isso com a cooperação efetiva do sr. Victor Oppenheim e Mark Malamphy, elementos seus que essa companhia insinuou ou no Serviço Geológico e agora dirigem tudo lá, sob o olho palerma e inocentíssimo do dr. Fleuri da Rocha. É de tal valor a confissão, que se eu der a público com os respectivos comentários o público ficará seriamente abalado.

   Acabo agora de obter mais uma prova da duplicidade desse Oppenheim, cornaca do Fleuri. Em comunicação reservada que ele enviou para a Argentina ele diz justamente o contrário, quanto às possibilidades petrolíferas do Sul do Brasil, do que faz aqui o Fleuri pelos jornais, com o objetivo de embaraçar a marcha dos trabalhos da Companhia Petróleos.

   O assunto é extremamente sério e faz jus ao exame sereno do Presidente da República, pois que as nossas melhores jazidas de minérios já caíram em mãos estrangeiras e no passo em que as coisas vão o mesmo se dará com as terras potencialmente petrolíferas. E já hoje ninguém poderá negar isso visto que tenho uma carta em que o chefe dos serviços geológicos da Standard ingenuamente confessa tudo, e declara que a intenção dessa companhia é manter o Brasil em estado de "escravização petrolífera".

   Aproveito o ensejo para lembrar que ainda não recebi os papéis, ou estudos preliminares do serviço que V. Excia. Tinha em vista organizar, por ocasião do encontro que tivemos em fins do ano passado, no Palácio Guanabara.

Respeitosamente,

J. B. Monteiro Lobato

Sunday, 22 September 2013

"Reinações de Narizinho" by Monteiro Lobato (in Portuguese)

extract from Reinações de Narizinho.

Numa casinha branca, lá no sítio do Pica-pau Amarelo, mora uma velha de mais de sessenta anos. Chama-se dona Benta. Quem passa pela estrada e a vê na varanda, de cestinha de costura ao colo e óculos de ouro na ponta do nariz, segue seu caminho pensando:
— Que tristeza viver assim tão sozinha neste deserto...
Mas engana-se. Dona Benta é a mais feliz das vovós, porque vive em companhia da mais encantadora das netas — Lúcia, a menina do narizinho arrebitado, ou Narizinho como todos dizem.
Narizinho tem sete anos, é morena como jambo, gosta muito de pipoca e já sabe fazer uns bolinhos de polvilho bem gostosos.
Na casa ainda existem duas pessoas — tia Nastácia, negra de estimação que carregou Lúcia em pequena, e Emília, uma boneca de pano bastante desajeitada de corpo. Emília foi feita por tia Nastácia, com olhos de retrós preto e sobrancelhas tão lá em cima que é ver uma bruxa. Apesar disso Narizinho gosta muito dela; não almoça nem janta sem a ter ao lado, nem se deita sem primeiro acomodá-la numa redinha entre dois pés de cadeira.
Além da boneca, o outro encanto da menina é o ribeirão que passa pelos fundos do pomar. Suas águas, muito apressadinhas e mexeriqueiras, correm por entre pedras negras de limo, que Lúcia chama as “tias Nastácias do rio”.
Todas as tardes Lúcia toma a boneca e vai passear à beira d’água, onde se senta na raiz dum velho ingazeiro para dar farelo de pão aos lambaris.
Não há peixe do rio que a não conheça; assim que ela aparece, todos acodem numa grande faminteza. Os mais miúdos chegam pertinho; os graúdos parece que desconfiam da boneca, pois ficam ressabiados, a espiar de longe. E nesse divertimento leva a menina horas, até que tia Nastácia apareça no portão do pomar e grite na sua voz sossegada:
— Narizinho, vovó está chamando!...

Wednesday, 4 September 2013

"O Bom Diabo" from "Histórias de Tia Nastácia" by Monteiro Lobato (in Portuguese)

XII
O Bom Diabo
      Houve um rei que tinha um filho de dezoito anos.
     "Meu filho — disse a rainha — é tempo de eu ler a tua sina" — e leu a sina do moço. Oh, bem triste! O moço tinha a sina de morrer enforcado. A rainha caiu numa grande tristeza, mas nada contou ao filho. "Que abatimento é esse, minha mãe?" — perguntava ele, e a rainha suspirava.
     Mas tanto ele insistiu com sua mãe para que lhe contasse a causa da tristeza, que ela contou.  "Meu filho, é que tua sina é morreres enforcado."
    O rapaz procurou consolá-la, dizendo que morrer todos morriam, e que tanto fazia morrer disto como daquilo. Mas já que sua sina era aquela, só desejava uma coisa: licença para correr mundo e ser enforcado longe dali, de modo que não desse maior desgosto aos seus. A rainha sentiu mas concedeu a licença pedida.
      No dia da partida o rei deu-lhe uma grande soma de dinheiro para a viagem — e lá se foi ele pelo mundo afora. Correu cidades e reinos, até que por fim chegou a um sítio onde havia uma capela de S. Miguel, com a imagem deste santo e a figura do diabo, mas tudo em ruínas. O príncipe parou ali, com a idéia de reconstruir a capelinha e restaurar as imagens.
      Chamou operários e pôs mãos à obra. Deixou tudo novinho em folha, uma beleza. Quando o pintor veio receber o seu dinheiro, contou que sobrara um pouco de tinta porque havia deixado de pintar a figura do diabo.
      — Por que o não pintou? Pinte o diabo também — ordenou o príncipe. E o pintor pintou o diabo.
      Concluída aquela tarefa, o príncipe continuou sua viagem pelo mundo. Certo dia foi dar à casa duma velha, à qual pediu pouso. Entrou, jantou, e depois começou a contar o dinheiro que ainda lhe restava. Vendo aquilo, a velha foi correndo dizer às autoridades que estava em sua casa um ladrão, contando o dinheiro que lhe havia roubado.
      Veio uma escolta, que prendeu o príncipe. Foi processado, julgado e condenado à morte na forca.  Mas no dia em que tinha de ser morto, lá na capelinha de S. Miguel o santo pôs-se a conversar com o diabo.
      — Então, estás agora bonito, hein diabo?
      — É verdade. Pintaram-me inteirinho.
      — E não sabes quem consertou esta capela e nos pintou?
      O diabo não sabia; o santo contou-lhe a história do príncipe que passara por ali, e disse mais que esse pobre moço fora preso, processado e julgado, e naquele mesmo dia ia ser erguido a uma forca por causa das intrigas de certa velha.
      O diabo não quis ouvir mais. Pulou num cavalo e foi voando à casa da velha; agarrou-a e levou-a ao rei, fazendo-a confessar toda a sua maquinação contra o moço. O rei deu ordens para que soltassem o preso e o trouxessem à sua presença.
      O diabo montou no cavalo e voou para a prisão onde o príncipe ia ser enforcado, e apresentou ao carrasco a ordem de soltura. O carrasco entregou-lhe o condenado, que lá se foi com o diabo para o palácio do rei.
      O rei indagou do príncipe quem era ele e de onde vinha. Sabendo de tudo, condenou a velha a restituir-lhe o dinheiro e a ir para a prisão em lugar dele. Terminado o caso, o moço partiu novamente a correr mundo.
      Pelo caminho encontrou um fidalgo, ao qual contou tudo.
      O fidalgo disse:
      — E não sabes quem te valeu?
      — Não sei de nada — respondeu o príncipe.
     — Pois fica sabendo que foi o diabo da capelinha de S. Miguel, e esse diabo sou eu. No dia em que iam enforcar-te S. Miguel me contou tudo. Montei num cavalo e voei à casa da velha; agarrei-a e levei-a ao rei, para que tudo se esclarecesse.
      — E a que devo eu tanta bondade? — perguntou o príncipe.
      — Ah! — exclamou o diabo, rindo-se. — Tudo deves àquele bocadinho de tinta que mandaste aplicar sobre minha figura. Agora estás livres da má sina, porque a velha vai ser enforcada em teu lugar. Podes voltar sossegadamente ao reino de teu pai, que nada mais te acontecerá.
      O príncipe assim fez. Antes, porém, voltou à capelinha de S. Miguel para agradecer ao bom santo — e enquanto rezava viu a figura do diabo muito contente da vida na sua pintura nova.
+++
      — Pois gostei! — gritou Emília. — Está aí uma historinha que descansa a gente daquelas repetições das outras. E mais que tudo gostei da camaradagem entre o santo e o diabo.
      — Sim — disse dona Benta. — Como os dois vivessem na mesma capela, sozinhos, acabaram em muito bons termos, como se vê na história. O diabo é o símbolo da maldade, mas até a maldade amansa quando em companhia da bondade. De viverem juntos ali na capelinha, o santo e o diabo se transformaram em amigos, e os bons sentimentos de um passaram para o outro.
      — Influência do meio! — gritou Pedrinho, que andava a ler Darwin.
      Narizinho confessou que gostava muito das histórias com o diabo dentro, e disse que todas elas confirmavam o dito popular de que o diabo não é tão feio como o pintam.
      — Credo! — exclamou tia Nastácia fazendo três benzeduras. — Como é que uma menina de boa educação tem coragem de dizer isso do canhoto?
      Narizinho arregalou os olhos.
      — Como? É boa! Pois você mesma não acaba de contar a história dum diabo bom?
      — Mas isso é história, menina. História é mentira. O "cão" é "cão". Não muda de ruindade.
      — Se o cão é cão, viva o diabo! — gritou Emília. — Não há animal melhor, nem mais nobre que o cão. Chamar ao diabo cão, é fazer-lhe o maior elogio possível.
      — Dona Benta — exclamou tia Nastácia horrorizada — tranque a boca dessas crianças. Estão ficando os maiores hereges deste mundo. Chegam até a defender o canhoto, credo!...
      — Olhe, Nastácia, se você conta mais três histórias de diabo como essa, até eu sou capaz de dar um viva ao canhoto — respondeu respondeu dona Benta.
      Tia Nastácia botou as mãos e pôs-se a rezar.