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Wednesday, 29 October 2025

Wednesday's Good Reading: "Fé e Juízo Privado" by Saint John Henry Newman (translated into Portuguese by unknown translator)

 

Quando consideramos a beleza e a majestade, a plenitude, os benefícios e as consolações da religião católica, pode nos parecer surpreendente, meus irmãos, que ela não converta a multidão dos que cruzam o seu caminho. Talvez vós mesmos tenhais experimentado essa surpresa; especialmente aqueles dentre vós que há pouco se converteram, e que por experiência podem comparar esta religião com outras que milhões deste país escolhem no lugar dela. Vós sabeis por experiência o quanto são estéreis, sem sentido e sem fundamento tais religiões, quão pouco atrativos oferecem e quão pouco elas têm a dizer em sua defesa. Multidões, de fato, não têm religião alguma; e certamente não vos surpreende que pessoas incapazes sequer de suportar a ideia de Deus não se sintam atraídas pela Igreja que Ele fundou. Muitos, também, ouvem falar muito pouco de catolicismo, ou escutam uma boa dose de calúnias e difamações a seu respeito, e decerto não vos surpreende que também estes não se tornem católicos todos de uma vez. Mas o que [vos] surpreende, [a vós] que gozais das bênçãos católicas em sua plenitude, talvez seja isto: que aqueles que sempre veem a Igreja de tão longe, chegando mesmo a vislumbrar réstias ou o tênue brilho de sua majestade, no entanto não se sintam tão atraídos pelo que veem a ponto de procurá-la para ver mais; não se ponham ao menos no caminho para ser conduzidos à Verdade, a qual, naturalmente, não é reconhecida em sua autoridade divina senão por etapas. Moisés, quando viu a sarça ardente, mudou de caminho para contemplar [de perto] “aquela grande visão” (Ex 3, 3). Natanael, embora pensasse que não podia vir algo bom de Nazaré, quando Felipe lhe disse: “Vem e vê”, ao menos seguiu o Apóstolo e foi até Jesus (cf. Jo 1, 46). Mas as multidões à nossa volta veem e ouvem em alguma medida, sim (muitos em ampla medida), e no entanto não se convencem a ver e ouvir mais, não são movidas a agir de acordo com esse conhecimento. Vendo, elas não veem; e ouvindo, não ouvem; contentam-se em ficar onde estão; não são levadas a indagar, ou pelo menos não são levadas a abraçar [a Igreja].

Podem-se dar muitas explicações para essa dificuldade. Acenarei aqui a uma que vos parecerá óbvia, mas que carrega um significado. Os homens não se tornam católicos porque lhes falta fé. Podeis então perguntar-me se isso não é o mesmo que dizer: os homens não acreditam na Igreja Católica porque não creem nela — o que é a mesma coisa que nada [dizer]. Nosso Senhor declara, por exemplo: “Quem vem a mim nunca mais terá fome, e quem crê em mim nunca mais terá sede” (Jo 6, 35) — ora, vir e crer, nesta passagem, significam a mesma coisa. Se eles tivessem fé, é evidente que entrariam na Igreja, já que o significado mesmo da fé, o exercício próprio dela, é a adesão à Igreja.

Mas quero dizer mais do que isto: a fé é um estado de mente, é um modo particular de pensar e agir, exercido sempre em relação a Deus, sim, mas de modos bem variados. O que quero dizer é que a multidão de homens deste país não tem este hábito ou caráter mental. Imaginemos, por exemplo, que eles acreditassem em outras religiões que não a Igreja: isto seria fé, ainda que uma fé mal orientada. Mas eles não creem nem mesmo em suas próprias religiões; eles não acreditam em coisa alguma. Trata-se de um defeito definitivo em suas mentes: assim como se diz que uma pessoa não tem a virtude da mansidão, ou da liberalidade, ou da prudência, independentemente do exercício desta ou daquela [outra] virtude, assim também existe uma virtude religiosa da fé, e um defeito que é a sua ausência. Sustento aqui que a grande maioria dos homens deste país não tem essa virtude particular chamada fé; ela está totalmente ausente neles. Assim como um homem pode não ter olhos nem mãos, assim são eles sem a fé; trata-se de uma falha ou ausência distintiva em sua alma; e digo que, dado faltar-lhes essa faculdade da fé religiosa, não surpreende que eles não abracem aquilo que, sem tal faculdade, não pode ser abraçado. Eles não acreditam absolutamente em doutrina alguma; portanto, não acreditam na Igreja em particular.

Ora, em primeiro lugar, o que é fé? É assentir como verdadeira a uma doutrina que não vemos, que não podemos provar, e isto porque Deus, que não pode mentir, diz que ela é verdadeira. E, além disso, já que Deus diz que ela é verdadeira não com sua própria voz, mas pela voz de seus mensageiros, [fé também] é assentir ao que diz o homem, visto não como simples homem; [é assentir] ao que ele é incumbido de dizer, como mensageiro, profeta ou embaixador de Deus.

No curso ordinário deste mundo, nós tomamos as coisas como verdadeiras seja porque as vemos, seja porque podemos perceber que elas são dedutíveis a partir do que vemos; isto é, nós obtemos a verdade pela visão ou pela razão, não pela fé. Vós certamente [me] direis que aceitamos uma porção de coisas que não podemos provar nem ver com base na palavra de outras pessoas; sim, mas nesta circunstância aceitamos o que elas dizem apenas como palavra humana; e, em geral, nós não temos aquela confiança absoluta e irrestrita nelas, que nada pode abalar. Sabemos que o homem está sujeito a errar e, se a matéria é relevante, sempre nos alegra encontrar alguma confirmação do que ele disse, vinda de outras fontes; do contrário, recebemos a informação com negligência e desdém, como sendo coisa de pouca importância, ou mera opinião; se chegamos a agir de acordo com ela, é por questão de prudência, porque achamos melhor e mais seguro proceder assim. Damos à palavra recebida o peso que nos convém, e usamo-la de acordo com nossa necessidade, ou com sua probabilidade. A decisão fica a nosso critério, e reservamo-nos o direito de reabrir a questão sempre que quisermos.

Isto é muito diferente da fé divina: aquele que crê que Deus é verdadeiro, e que é sua a palavra que foi confiada aos homens, não tem dúvida nenhuma. Ele tem tanta certeza de que é verdadeira a doutrina ensinada quanto de que é verdadeiro [o] Deus [que a revela]; e ele tem certeza porque Deus é verdadeiro, porque Ele falou, não porque ele veja a sua verdade ou a possa provar. Ou seja, a fé tem duas particularidades: é muito certa, decidida, positiva, inabalável em seu assentimento; e este é dado não porque se veja com os olhos, ou com a razão, mas porque recebem-se as notícias de alguém vindo de Deus.

Eis o que era a fé no tempo dos Apóstolos, e ninguém o pode negar. E o que era a fé então, deve continuar a sê-lo agora, ou então deixa de ser a mesma coisa. Digo que certamente era assim no tempo dos Apóstolos pois, vós sabeis, eles pregaram ao mundo que Cristo era o Filho de Deus, que nascera de uma Virgem, que ascendera aos céus, e que de novo viria para julgar a todos, os vivos e os mortos. Podia o mundo ver tudo isso? Podia prová-lo? Como deviam então os homens aceitar essas coisas? Por que tantos as abraçaram? Por causa da palavra dos Apóstolos, que eram, como demonstravam os seus poderes, mensageiros de Deus. Os homens eram exortados a submeter-se a uma autoridade viva. Mais do que isso: o que quer que dissesse um Apóstolo, seus prosélitos estavam obrigados a acreditar; quando eles entravam na Igreja, entravam nela para aprender. A Igreja era sua mestra; eles não vinham para discutir, examinar e escolher, mas para aceitar o que quer que lhes fosse apresentado. Ninguém duvida nem pode duvidar [que era isto o que se dava] naqueles primeiros tempos. O cristão estava obrigado a aceitar, sem duvidar, tudo o que os Apóstolos declaravam ser verdadeiro. Se os Apóstolos falassem, ele tinha de dar um assentimento interno da mente. Guardar silêncio, não apresentar oposição, não era suficiente; acreditar até certo ponto, duvidar, não era permitido. Não: se um convertido tinha suas próprias ideias privadas a respeito do que era dito, e só as guardasse para si próprio; se ele fizesse alguma oposição secreta ao que era ensinado; se esperasse por mais provas antes de acreditar, seria uma prova de que não acreditava que os Apóstolos tinham sido enviados por Deus para revelar a sua vontade; seria uma prova de que ele definitivamente não tinha fé. A submissão imediata e incondicional da mente era, na época dos Apóstolos, o único sinal, o sinal necessário da fé; portanto, não havia lugar algum para o que hoje se chama de julgamento privado. Ninguém poderia dizer: “Eu mesmo escolherei a minha religião, crerei nisto e nisto não; não me comprometerei com nada; hei de crer somente enquanto me der na telha, e não mais; aquilo em que creio hoje, amanhã rejeitarei, se quiser. Crerei no que os Apóstolos já disseram, mas não no que dirão no futuro.” Não: ou os Apóstolos eram de Deus ou não; se eram, tudo o que pregavam devia ser crido por seus ouvintes; se não, não havia nada em que acreditar. Acreditar um pouco, acreditar mais ou menos, era impossível, uma contradição da própria noção de fé: se uma parte devia ser crida, tudo devia sê-lo; seria um absurdo acreditar em uma coisa e não em outra. Pois a palavra dos Apóstolos, que fazia ser verdade isto, fazia sê-lo também aquilo. Em si mesmos eles não eram nada, mas [ao mesmo tempo] eram tudo: uma autoridade infalível, vinda de Deus. O mundo devia ou tornar-se cristão ou fugir deles; não havia lugar algum para gostos e fantasias privadas, lugar algum para julgamentos privados.

Ora, com certeza isso fica bastante claro pela natureza da questão; mas também pelas palavras da Escritura: “Nós damos graças a Deus sem cessar”, diz São Paulo, “porque, ao receberes a palavra de Deus que ouvistes de nós, vós a acolhestes não como palavra humana, mas como o que ela é verdadeiramente: palavra de Deus” (1Ts 2, 13). Aqui vedes São Paulo expressar o que eu disse acima: que a Palavra vem de Deus, que ela é proferida pelos homens, que ela deve ser recebida não como palavra humana, mas como palavra de Deus. Mais adiante ele diz também: “Quem rejeita esta instrução, não rejeita um ser humano, mas o próprio Deus, que vos dá também o seu Espírito Santo” (1Ts 4, 8). Nosso Salvador já declarara algo semelhante: “Quem vos ouve, a mim ouve; e quem vos rejeita, a mim rejeita; quem me rejeita, rejeita aquele que me enviou” (Lc 10, 16). Na mesma linha diz São Pedro no dia de Pentecostes: “Homens de Israel, escutai estas palavras… a esse Jesus Deus ressuscitou, e disso nós todos somos testemunhas. Que toda a casa de Israel reconheça com plena certeza… a esse Jesus, a quem vós crucificastes, Deus o constituiu Senhor e Cristo” (At 2, 22.32.36). Noutra ocasião ele diz: “É preciso obedecer a Deus antes que aos homens… disso somos testemunhas, nós e o Espírito Santo, que Deus concedeu àqueles que lhe obedecem” (At 5, 29.32). E de novo: Deus “nos mandou proclamar ao povo, e testemunhar, que Deus o constituiu Juiz dos vivos e dos mortos” (At 10, 42). E, vós sabeis, a mensagem persistente dos primeiros pregadores era: “Crê e serás salvo”; eles não diziam: “Prova nossa doutrina com tua própria razão”, nem tampouco: “Espera só até que vejas, para acreditares”; mas, sim: “Crê sem ver e sem provar, porque nossa palavra não é nossa, mas de Deus”. Os homens podiam, é claro, usar a própria razão para averiguar as pretensões dos Apóstolos; podiam averiguar se eles faziam milagres ou não; podiam averiguar se eles haviam sido prenunciados no Antigo Testamento como vindos de Deus. Mas, verificado isso de forma justa, por quaisquer que fossem as vias, era necessário tomar por verdadeiro tudo o que diziam os Apóstolos, sem provas; eles deviam exercitar a sua fé; sua salvação viria pelo ouvir. É significativo, portanto, que São Paulo chame à doutrina revelada “palavra ouvida”, na passagem supracitada (cf. 1Ts 2, 13): os homens se aproximavam para ouvir, para aceitar, para obedecer, não para criticar o que se dizia. E nessa mesma linha ele pergunta noutro lugar: “Como crerão naquele a quem não ouviram? E como ouvirão, se ninguém proclamar?... A fé vem pelo ouvir; e o ouvir, pela palavra de Cristo” (Rm 10, 14.17).

Considerai agora, meus caros irmãos: não são estes dois estados ou atos da mente completamente distintos um do outro — o acreditar simplesmente no que diz uma autoridade viva; e o tomar um livro, como a Escritura, e usá-lo a bel-prazer, para dominá-lo, isto é, para assenhorar-se dele, para interpretá-lo por conta própria, e para aceitar apenas o que se escolheu ver nele, e nada mais? Não se distinguem estes dois procedimentos nisto: que no primeiro nos submetemos e no segundo emitimos juízos? Neste momento, não estou perguntando qual dos dois é melhor, não estou perguntando se um ou outro é praticável agora; mas não são eles dois meios de receber uma doutrina, ao invés de um? Submissão e julgamento não são completos opostos? Ora, não é certo que a fé no tempo dos Apóstolos consistia em submeter-se, e não em emitir juízos individuais?

Debalde alguém dirá que o homem que emite juízos sobre os escritos dos Apóstolos, primeiro se submete a esses escritos e, portanto, tem fé neles; do contrário, não faria qualquer referência a eles. Repito: há uma diferença essencial entre o ato de submeter-se a um oráculo vivo e [o de submeter-se] a suas palavras escritas. No primeiro caso, não há recurso contra quem fala; no segundo, compete ao leitor a decisão final. Consideremos quão diferente é a confiança com que relatamos as palavras de outro, estando ele presente ou não. Se não está, enchemos a boca para dizer que sustenta isto e aquilo, ou que disse tal e tal coisa; mas deixe só a pessoa pôr-se no meio de nós, para que mude imediatamente o tom da conversa. Dizemos, então: “Acho que ouvi você dizer algo mais ou menos assim, ou interpretei-o de tal modo…”; ou modificamos consideravelmente a declaração ou o fato que lhe havíamos imputado, omitindo metade por segurança, ou retirando as partes mais problemáticas; e depois de tudo isso esperamos com alguma ansiedade para ver se pelo menos alguma parte do que dissemos será aceita pela pessoa. O mesmo tipo de processo se dá no caso dos escritos de uma pessoa já falecida. Posso imaginar um homem que exponha em tom professoral a Carta de São Paulo aos Gálatas, ou aos Efésios, muito mais satisfeito com a ausência do autor que com sua súbita reaparição em nosso meio — pois, neste caso, o Apóstolo poderia tirar sua própria intenção das mãos de seu intérprete e explicá-la por si mesmo. Em uma palavra, mesmo dizendo ter fé nos escritos de São Paulo, esse homem assumidamente não tem fé alguma em São Paulo; e mesmo que fale muito da verdade tal como se acha na Escritura, não deseja de forma alguma ser como aqueles cristãos cujos nomes e feitos aparecem nela.

Penso poder presumir que esta virtude, exercida pelos primeiros cristãos, é absolutamente desconhecida dos protestantes de agora; ou pelo menos, se há casos dela, é em relação a seus mestres e teólogos, os quais negam expressamente ser objetos dignos dela e exortam seu povo a emitir juízos por si mesmo. Falando em geral, os protestantes não têm fé, no sentido primitivo da palavra; fica claro a partir do que estou dizendo, e aqui está uma confirmação disso. Se os homens acreditassem agora como nos tempos dos Apóstolos, eles não poderiam duvidar nem mudar [de opinião]. Ninguém pode pôr em dúvida que uma palavra dita por Deus deve ser crida; é evidente que deve; ao passo que qualquer pessoa modesta e humilde facilmente pode ser conduzida a duvidar de suas próprias inferências e deduções. Como os homens hoje em dia deduzem [as coisas] a partir da Escritura, ao invés de acreditar em um mestre, é esperado que os vejamos vacilar; eles sentirão a força de suas próprias deduções com mais veemência uma hora ou outra, mudarão de ideia a respeito delas ou talvez as negarão todas de uma vez. Mas isso não pode se dar se um homem tem fé, ou seja, se crê vir de Deus o que lhe está dizendo um pregador. É especialmente nisso que insiste São Paulo ao dizer-nos que os Apóstolos, os profetas, os evangelistas, os pastores, os mestres, nos são dados a fim de “chegarmos, todos justos, à unidade na fé” e, por outro lado, de modo a que não sejamos como crianças, “entregues ao sabor das ondas e levados por todo vento de doutrina” (Ef 4, 13-14). Ora, não é verdade que os homens de hoje mudam suas opiniões religiosas sem limite nenhum? Não é esta então a prova de que eles não têm a fé que os Apóstolos exigiam de seus prosélitos? Se eles tivessem fé, não mudariam. Se acreditamos que Deus falou, estamos certos de não poder desdizer o que Ele já disse; Ele não pode enganar nem mudar; o que recebemos, recebemo-lo de uma vez por todas e acreditaremos nisto para sempre.

Eis a única descrição racional e consistente da fé. Mas encontram-se tão longe de professá-la os protestantes, que riem eles da própria noção dela. Eles riem da noção mesma de um homem colocar a sua confiança em um Papa ou um Concílio; eles pensam que seja simplesmente superstição e ignorância professar apenas o que professa a Igreja, e assentir ao que quer que ela diga no porvir em matéria de doutrina. Ou seja, eles riem da simples noção de fazer o que os cristãos inegavelmente fizeram no tempo dos Apóstolos. Percebei: eles não se limitam a perguntar se a Igreja Católica tem a prerrogativa de ensinar, se tem autoridade, sem tem os carismas [para tanto] — esta é uma questão razoável. Não: eles acham que o próprio estado de mente exigido por uma tal prerrogativa, isto é, a disposição a aceitar tudo sem reserva ou questionamento, que isto é escravidão. Para eles, insistir nesta submissão da razão é artimanha clerical; e realizá-la, superstição. Ou seja, eles contestam o próprio estado de mente que todos os cristãos tiveram na época dos Apóstolos, de modo que, sem dúvidas (quem o negará?), aqueles que hoje se gabam de não ter vendas nos olhos, de julgar por si mesmos, de acreditar só no tanto e no pouco que lhes convém, de odiar imposições e assim por diante, teriam achado extremamente difícil pender da boca dos Apóstolos, caso lhes fossem contemporâneos; ou, ao contrário, teriam simplesmente resistido ao sacrifício de sua própria liberdade de pensamento, achando demasiado alto este preço para a vida eterna, e, assim, teriam morrido em sua descrença. Em sua defesa, eles argumentariam ser absurdo e infantil que lhes pedissem para acreditar sem provas; para abrir mão de sua educação, inteligência e ciência; e, não obstante todas as dificuldades da razão e dos sentidos em relação à doutrina cristã, não obstante o seu mistério, a sua obscuridade, a sua estranheza, a sua severidade, exigir deles que se submetessem ao ensinamento de alguns galileus iletrados, ou de um fariseu até letrado, mas fanático. É isso que eles teriam dito então; em sendo assim, deveria acaso surpreender-nos que [estes mesmos] não se tornem católicos agora? A explicação simples para eles permanecerem como estão é que lhes falta uma coisa: falta-lhes fé, este estado de mente, esta virtude que eles não reconhecem como sendo louvável e que eles não almejam possuir.

O que eles sentem agora, meus irmãos, é exatamente o que tanto judeus quanto gregos sentiam antes deles no tempo dos Apóstolos, e o que o homem natural sempre sentiu desde então. Os grandes e sábios da época desprezavam a fé, tanto então quanto agora, como algo indigno da natureza humana:

 

    De fato, irmãos, vede vossa vocação: não há entre vós muitos sábios segundo a carne, nem muitos poderosos, nem muitos de família nobre. O que, porém, para o mundo é loucura, Deus o escolheu para envergonhar os sábios; e o que para o mundo é fraqueza, Deus o escolheu para envergonhar aquilo que é forte. O que para o mundo é sem prestígio e desprezível Deus o escolheu, aquilo que é nada, para anular aquilo que é. Assim, ninguém poderá gloriar-se diante de Deus (1Cor 1, 26-29).

 

Daí o mesmo Apóstolo falar da “loucura da pregação” (1Cor 1, 21). Semelhante a isto é o que disse Nosso Senhor em sua oração ao Pai: “Eu te louvo, Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e entendidos e as revelaste aos pequeninos” (Mt 11, 25). Ora, não é fácil perceber que os homens de agora simplesmente herdaram os sentimentos e as tradições daqueles falsos sábios e fatalmente prudentes da época de Nosso Senhor? O mesmo obstáculo para entrar na Igreja Católica que eles trazem no coração, tinham-no antes deles os fariseus e os sofistas; é contra seu espírito acreditar na doutrina dela, não tanto por falta de evidência de que ela venha de Deus, mas porque, se ela de fato vem de Deus, suas mentes terão de submeter-se a homens vivos, que não são eles mesmos intelectualmente cultos ou profundos; e porque eles deverão aceitar, querendo ou não, inúmeras doutrinas estranhas à sua imaginação e difíceis para a sua razão. A própria marca do magistério e do mestre católicos é, para eles, uma objeção preliminar à sua adesão ao catolicismo, a ponto de obscurecer qualquer argumento, por forte que seja, em favor da missão destes mestres e da origem deste magistério. Em suma: eles não têm fé.

Não há neles o princípio da fé; e, repito, de nada adianta insistir aqui em que pelo menos eles creem firmemente na Escritura como sendo a Palavra de Deus. Na verdade, é muito de se temer que a sua própria aceitação da Escritura não seja nada mais que um preconceito ou um sentimento arraigado que lhes foi incutido quando eram crianças. Uma prova disto é que, embora professem seu estupor com os milagres católicos, apressando-se em chamá-los de “lendas mentirosas”, eles não têm dificuldade alguma com as narrativas bíblicas, que são quase tão difíceis para a razão quanto quaisquer milagres registrados nas histórias dos santos. Ao contrário, ouvi falar de católicos admirados ao ler pela primeira vez na Escritura os relatos da arca e do dilúvio, da torre de Babel, de Balaão e Balac, da fuga dos israelitas do Egito e de sua entrada na terra prometida, e da rejeição de Esaú em favor de Jacó — [relatos] que a maior parte dos protestantes aceita sem nenhum esforço mental. Como então os católicos aceitam esses relatos? Pela fé. Eles dizem: “Deus é verdadeiro, e todo homem é mentiroso.” E como chegam os protestantes a aceitá-los tão facilmente? Pela fé? Não! Suponho que, na maioria das vezes, não há submissão alguma da razão; eles simplesmente estão de tal modo familiarizados com a passagem em questão, que a narrativa não lhes apresenta à imaginação dificuldade alguma; eles não têm nada a superar. Se são levados, no entanto, a contemplar essas passagens em si mesmas, a pesá-las na balança da probabilidade, a começar a questioná-las — como acontecerá se forem intelectualmente cultos —, então não há nada para os trazer de volta à sua primeira fé habitual ou mecânica. Eles desconhecem o que seja submissão a autoridade; ou seja, nada sabem de fé; pois não têm autoridade alguma a que submeter-se. Ou eles permanecem em um estado de dúvida, sem grande perturbação mental, ou seguem em frente até chegar à descrença completa em matérias deste gênero, embora nada venham a dizer a esse respeito. Não há neles, nem antes de duvidarem nem quando duvidam, qualquer sinal da presença de um poder que sujeite a razão à Palavra de Deus. Não: o que parece ser fé é mera convicção hereditária, e não princípio pessoal; trata-se de um hábito aprendido na infância, jamais transformado em algo superior, e que se dissipa e desaparece ante a razão, tal como a névoa diante da luz.

Se há protestantes, no entanto, que não se encontram em nenhum desses estados, quer o de credulidade [mecânica], quer o de dúvida, mas que creem com firmeza apesar de todas as dificuldades, certamente estes têm algum direito de considerar-se sob a influência da fé. Mas nada indica que tais pessoas, onde quer que se encontrem, não estejam no caminho para tornar-se católicas; e talvez elas já tenham até sido chamadas a fazê-lo por seus amigos, mostrando com o seu próprio exemplo a associação lógica e indiscutível que existe entre a posse da fé e a adesão à Igreja.

Que a fé seja agora a mesma faculdade mental, o mesmo tipo de ato ou hábito da época dos Apóstolos, foi o que me propusera a demonstrar, e creio tê-lo feito bem. As duas coisas devem ser a mesma; não podem ser diferentes; a Palavra não pode ter mudado o seu sentido. Ou se diga que hoje a fé não é mais necessária em absoluto, ou se admita que ela é aquilo que os Apóstolos entendiam como fé; mas não se venha dizer que existe fé onde se mostra algo completamente diferente posto em seu lugar. Nos tempos dos Apóstolos a particularidade da fé era a submissão a uma autoridade viva; era isto o que tanto a distinguia; era isto o que a tornava, na verdade, um ato de submissão; era isto o que destruía o julgamento privado em matéria religiosa. Se não estais à procura de uma autoridade viva, se a trocastes pelo julgamento privado, então dizei de uma vez por todas que não tendes fé apostólica. E de fato não a tendes; a maior parte desta nação não a possui; confessai [pois] que não a tendes; e confessai ser esta a razão pela qual não sois católicos. Não sois católicos porque não tendes fé.

Por que os cegos não veem o sol? Porque não têm olhos. Assim também é inútil discorrer sobre a beleza, a santidade e a sublimidade da doutrina e do culto católicos, quando não se tem fé para aceitá-los como divinos. É até possível confessar-lhes a beleza, a sublimidade e a santidade, sem neles crer; pode-se até reconhecer que a religião católica seja nobre e majestosa; sua sabedoria pode até estontear, sua adequação à natureza humana pode até causar admiração, sua ternura e atratividade podem até compenetrar, sua consistência pode até impressionar. Mas entregar-se a ela é outra coisa; tomá-la por quinhão, dizer com a moabita agraciada: “Para onde fores, eu irei, e onde quer que permaneças, permanecerei contigo. Teu povo é meu povo, teu Deus é meu Deus” (Rt 1, 16) — esta é a linguagem da fé. Um homem pode reverenciar e exaltar uma coisa, sem propensão alguma a obedecer, sem intenção alguma de professá-la. E de fato isto se dá com frequência: os homens respeitam a religião católica; reconhecem seus serviços prestados à humanidade; encorajam-na, a ela e a seus mestres; gostam de conhecê-los; interessam-se por ouvir falar de suas ações, mas não são nem se tornarão católicos jamais. Eles morrerão como viveram, fora da Igreja, porque não possuíam eles mesmos a faculdade com que se deve acercar-se dela. Os católicos que não os estudaram, nem a eles nem à natureza humana, ficarão surpresos que eles permaneçam onde estão. Pior: eles mesmos (ai deles!) algumas vezes lamentarão não poder tornar-se católicos. Hão de sentir tão intimamente a bênção que é ser católico, que exclamarão: “Oh, que não daria eu para ser católico! Gostaria tanto de crer no que admiro! Mas não creio, e não posso fazê-lo por simples desejo, assim como não posso saltar uma montanha. Eu seria muito mais feliz se fosse católico, mas não sou; para que enganar a mim mesmo? Eu sou o que sou. Respeito [a Igreja], mas não posso aceitá-la.

Oh, estado deplorável! Deplorável porque total e absolutamente culposo, e porque, como eles sabem, a Escritura dá grande ênfase à necessidade da fé para a salvação, apresentando-a como fundação e princípio de toda obediência aceitável, descrevendo-a como “argumento” ou “prova de realidades que não se veem” (Hb 11, 1). Pela fé os homens entenderam que Deus existe, que criou o mundo, que recompensa aqueles que o procuram, que o dilúvio estava para vir e que seu Salvador devia nascer. “Sem a fé é impossível agradar a Deus” (Hb 11, 6); pela fé permanecemos de pé (cf. 2Cor 1, 24); “caminhamos pela fé” (2Cor 5, 7); pela fé vencemos o mundo (cf. 1Jo 5, 4). Quando Nosso Senhor deu aos Apóstolos o mandato de pregar a todo o mundo, Ele continuou: “Quem crer e for batizado será salvo, mas quem não crer, será condenado” (Mc 16, 16). E declarou a Nicodemos: “Quem nele crê não é julgado, mas quem não crê já está julgado, porque não creu no nome do Filho Unigênito de Deus” (Jo 3, 18). Aos fariseus Ele disse: “Se não crerdes que ‘eu sou’, morrereis nos vossos pecados” (Jo 8, 24). Aos judeus: “Vós não credes, porque não sois das minhas ovelhas” (Jo 10, 26). E deveis lembrar-vos que, antes de seus milagres, Ele costumava exigir a fé de quem suplicava: “Tudo é possível para aquele que crê” (Mc 9, 23); e lemos noutro lugar que Ele “não conseguia fazer ali nenhum milagre” (Mc 6, 6), por causa da incredulidade de seus habitantes.

Acaso a fé mudou de significado ou é menos necessária agora? Não é ela ainda o que era na época dos Apóstolos: o próprio distintivo do cristianismo, o instrumento especial da regeneração, a primeira disposição para ser justificado, uma das três virtudes teologais? Deus poderia ter nos regenerado por outro meios: pela visão, pela razão, pelo amor, mas Ele escolheu purificar nossos corações mediante a fé (cf. At 15, 9); foi de seu agrado eleger um instrumento desprezível aos olhos do mundo, mas de imenso poder. Em sua infinita sabedoria, Ele o preferiu a qualquer outro; e se os homens não o possuem, falta-lhes a própria matéria com que são talhados, o próprio alicerce sobre o qual são edificados, os santos e servos de Deus. E os homens não o têm; estão vivendo e morrendo sem as esperanças, sem os socorros do Evangelho, porque, não obstante todo o bem que há neles, não obstante o seu senso de dever, sua delicadeza de consciência em tantos pontos, sua benevolência, sua retidão, sua generosidade, estão eles (devo dizer) sob o domínio de um demônio orgulhoso; eles trazem este espírito arrogante dentro de si, eles se erigem como mestres de si próprios em matérias de pensamento, a respeito das quais sabem tão pouco; consideram sua própria razão melhor que a de qualquer outra pessoa; não admitirão que venha de Deus quem quer que contradiga sua própria visão de verdade.

 [Mas] quê?! Ninguém, em lugar algum, iguala-se a eles em sabedoria? Não há nenhum outro cuja palavra deva ser tomada em consideração em matéria religiosa? Não há ninguém para arrancar deles seu último recurso a si próprios? Não lhes resta, por nenhum outro meio possível, a ocasião ou a oportunidade da fé? Trata-se de uma virtude que, em razão de sua transcendente sagacidade, de sua prerrogativa de onisciência, eles devem desistir de exercer? Se as pretensões da Igreja Católica não lhes satisfazem, que vão para um outro lugar qualquer, se puderem. Se são tão exigentes a ponto de não confiar nela como oráculo de Deus, que encontrem outra mais seguramente divina que a casa que Ele mesmo instituiu, que sempre foi chamada por seu nome, que sempre preservou as mesmas prerrogativas, que sempre ensinou substancialmente a mesma doutrina e que triunfou sobre aqueles que pregaram qualquer outra. Já que a fé apostólica era no princípio a confiança em uma palavra humana como sendo de Deus, já que a fé era então o que é agora, já que é necessária para a salvação, que [eles] tentem praticá-la em relação a outra noiva, já que a do Cordeiro não lhes basta. Que ponham [sua] fé, se puderem, em algumas daquelas religiões que duraram ao todo dois ou três séculos em algum canto da terra. Que apostem suas fichas eternas em nobres e príncipes, parlamentos e soldados; que tomem por profeta de Deus alguma mera ficção de lei, ou aborto de escola, ou ídolo do populacho, ou aproveitador de alguma crise, ou oráculo de sala de aula. Ai deles: estarão muito mal arranjados, se devem possuir uma virtude que não têm meios de exercer; se devem fazer um ato de fé, sem saber em quem, sem saber por quê!

Que ação de graças não devemos render ao Deus onipotente, meus caros irmãos, por nos fazer ser o que somos! É uma questão de graça. Existem, é claro, muitos argumentos convincentes para levar alguém à Igreja Católica, mas eles não forçam a vontade. Nós podemos conhecê-los, sem que sejamos movidos a agir por causa deles. Podemos estar convencidos sem que sejamos persuadidos. As duas coisas são bem diferentes uma da outra: ver que deves acreditar, e acreditar; a razão, abandonada a si própria, levar-te-á à conclusão de que há motivos de sobra para acreditar, mas o [ato mesmo de] crer é dom da graça. Portanto, és o que és não por alguma excelência ou mérito de tua parte, mas por graça de Deus, que escolheu-te para crer. Tu poderias ter sido como o selvagem da África, ou o livre-pensador da Europa, com graça suficiente para condenar-te, porque ela não auxiliou a tua salvação. Tu poderias ter recebido fortes inspirações da graça, e resistido a elas, e então não te seria dada mais graça para superar a tua resistência.

Deus não dá a todos a mesma medida de sua graça. Acaso não vos visitou Ele com [sua] graça superabundante? E não foi necessário para vossos corações endurecidos receber mais do que as outras pessoas? Louvai-o e bendizei-o continuamente pelo benefício; não vos esqueçais que é de graça o tempo que passa; não vos deixeis ensoberbecer por causa dela; rezai sempre a fim de não perdê-la; e fazei o vosso melhor para tornar as outras pessoas partícipes dela.

E vós também, meus irmãos, se acaso estais presentes, vós que ainda não sois católicos, mas que, ao virdes aqui, pareceis demonstrar interesse em nossa doutrina, e desejais conhecer mais a respeito dela, lembrai-vos também vós que, mesmo ainda não possuindo fé na Igreja, Deus vos colocou no caminho para obtê-la. Vós estais sob o influxo da sua graça. Ele vos fez dar um passo a mais em vossa jornada, e deseja levar-vos mais longe, deseja conceder-vos a plenitude de suas bênçãos, e fazer-vos católicos. Ainda estais em vossos pecados; provavelmente carregais a culpa de muitos anos, a culpa acumulada de muitas ofensas mortais e profundas, que nenhuma contrição [ainda] lavou, e sobre as quais nenhum sacramento [ainda] foi aplicado. Por ora, perturba-vos uma consciência inquieta, uma razão insatisfeita, um coração impuro e uma vontade dividida; vós precisais de conversão. No entanto, os primeiros convites da graça estão a operar agora dentro de vossas almas, prontos para transformar-se em perdão do vosso passado e santidade para o vosso futuro. Deus vos está movendo a fazer atos de fé, esperança, caridade, aversão ao pecado e arrependimento; não o desaponteis, não o contrarieis, cooperai com Ele, obedecei-lhe. Vós olhais para o alto e vedes, por assim dizer, uma grande montanha a ser escalada; dizeis: “Como poderei jamais encontrar um caminho, em meio a esses entraves gigantescos que encontro na via para tornar-me católico? Não compreendo esta doutrina, e sofro por isso. Uma outra parece-me impossível. Nunca hei de familiarizar-me com uma prática e tenho medo de outra. Sinto-me confuso e desconfortável, prestes a naufragar no desespero”. Não digais isto, meus caros irmãos: olhai para o alto com esperança, tende confiança naquele que vos chama a seguir adiante. “Quem és tu, grande monte? Diante de Zorobabel, uma planície” (Zc 4, 7). Passo a passo, Ele vos conduzirá adiante, assim como conduziu a muitos outros antes de vós. Ele endireitará o que é torto e aplainará o que é áspero, desviará as torrentes e secará os rios que se acham em vossa estrada. Ele tornará velozes os vossos pés, como os da corça, e vos firmará nas alturas (cf. Sl 18, 34); abrirá largo caminho aos vossos passos, e não vacilarão os vossos pés (cf. Sl 18, 37). “Não há outro Deus, como o Deus dos justos, que paira sobre os céus, para teu auxílio, e sobre as nuvens majestosamente. A sua habitação é lá no alto, e cá embaixo estão os seus braços eternos. Ele expulsará da tua presença o inimigo e dirá: ‘Sê reduzido a pó’” (Dt 33, 26-27). “Até os adolescentes se afadigam e cansam, e mesmo os jovens às vezes tropeçam! Aqueles, porém, que esperam no Senhor, renovam suas forças, criam asas como de águia, correm e não se afadigam, caminham e não se cansam” (Is 40, 30-31).

 

Referências

[São] John Henry Newman, “Faith and Private Judgment”. In: Discourses to Mixed Congregations. New York & Bombai: Longmans, Green, and Co.: 1906, pp. 192-213.

 

Wednesday, 15 October 2025

Wednesday's Good Reading: "The Fisherman and the Little Fish" by Aesop (translated into English)

            A Fisherman who lived on the produce of his nets, one day caught a single small Fish as the result of his day's labor. The Fish, panting convulsively, thus entreated for his life: "O Sir, what good can I be to you, and how little am I worth? I am not yet come to my full size.  Pray spare my life, and put me back into the sea. I shall soon become a large fish fit for the tables of the rich, and then you can catch me again, and make a handsome profit of me." The Fisherman replied, "I should indeed be a very simple fellow if, for the chance of a greater uncertain profit, I were to forego my present certain gain."  

Saturday, 13 September 2025

"Humani Generis" by Pope Pius XII (translated into Portuguese)

 

CARTA ENCÍCLICA HUMANI GENERIS DO SUMO PONTÍFICE PAPA PIO XII AOS VENERÁVEIS IRMÃOS, PATRIARCAS, PRIMAZES, ARCEBISPOS E BISPOS E OUTROS ORDINÁRIOS DO LUGAR EM PAZ E COMUNHÃO COM A SÉ APOSTÓLICA SOBRE OPINIÕES FALSAS QUE AMEAÇAM A DOUTRINA CATÓLICA

 

INTRODUÇÃO

1. As dissensões e erros do gênero humano em questões religiosas e morais têm sido sempre fonte e causa de intensa dor para todas as pessoas de boa vontade e, principalmente, para os filhos fiéis e sinceros da Igreja; mas, de maneira especial, o continuam sendo hoje em dia, quando vemos combatidos até os próprios princípios da cultura cristã.

2. Não é de admirar que haja constantemente discórdias e erros fora do redil de Cristo. Pois, embora possa realmente a razão humana com suas forças e sua luz natural chegar de forma absoluta ao conhecimento verdadeiro e certo de Deus, único e pessoal, que sustém e governa o mundo com sua providência, bem como ao conhecimento da lei natural, impressa pelo Criador em nossas almas, entretanto, não são poucos os obstáculos que impedem a razão de fazer uso eficaz e frutuoso dessa sua capacidade natural. De fato, as verdades que se referem a Deus e às relações entre os homens e Deus transcendem por completo a ordem dos seres sensíveis e, quando entram na prática da vida e a enformam, exigem o sacrifício e a abnegação própria. Ora, o entendimento humano encontra dificuldades na aquisição de tais verdades, já pela ação dos sentidos e da imaginação, já pelas más inclinações, nascidas do pecado original. Isso faz com que os homens, em semelhantes questões, facilmente se persuadam de ser falso e duvidoso o que não querem que seja verdadeiro.

3. Por isso deve-se defender que a revelação divina é moralmente necessária para que, mesmo no estado atual do gênero humano, todos possam conhecer com facilidade, com firme certeza e sem nenhum erro, as verdades religiosas e morais que não são por si inacessíveis à razão.[1]

 

4. Ademais, por vezes, pode a mente humana encontrar dificuldade mesmo para formar juízo certo sobre a credibilidade da fé católica, não obstante os múltiplos e admiráveis indícios externos ordenados por Deus para se poder provar certamente, por meio deles, a origem divina da religião cristã, exclusivamente com a luz da razão. Isso ocorre porque o homem, levado por preconceitos, ou instigado pelas paixões e pela má vontade, não só pode negar a evidência desses sinais externos, mas também resistir às inspirações sobrenaturais que Deus infunde em nossas almas.

 

I. FALSAS DOUTRINAS ATUALMENTE EM VOGA

5. Se olharmos para fora do redil de Cristo, facilmente descobriremos as principais direções que seguem não poucos dos homens de estudo. Uns admitem sem discrição nem prudência o sistema evolucionista, que até no próprio campo das ciências naturais não foi ainda indiscutivelmente provado, pretendendo que se deve estendê-lo à origem de todas as coisas, e com ousadia sustentam a hipótese monista e panteísta de um mundo submetido a perpétua evolução. Dessa hipótese se valem os comunistas para defender e propagar seu materialismo dialético e arrancar das almas toda noção de Deus.

6. As falsas afirmações de semelhante evolucionismo pelas quais se rechaça tudo o que é absoluto, firme e imutável, vieram abrir o caminho a uma moderna pseudo-filosofia que, em concorrência contra o idealismo, o imanentismo e o pragmatismo, foi denominada existencialismo, porque nega as essências imutáveis das coisas e não se preocupa mais senão com a "existência" de cada uma delas.

7. Existe igualmente um falso historicismo, que se atém só aos acontecimentos da vida humana e, tanto no campo da filosofia como no dos dogmas cristãos, destrói os fundamentos de toda verdade e lei absoluta.

8. Em meio a tanta confusão de opiniões nos é de algum consolo ao ver os que hoje, não raramente, abandonando as doutrinas do racionalismo em que haviam sido educados, desejam voltar aos mananciais da verdade revelada e reconhecer e professar a palavra de Deus conservada na Sagrada Escritura como fundamento da ciência sagrada. Contudo, ao mesmo tempo, lamentamos que não poucos desses, quanto mais firmemente aderem à palavra de Deus, tanto mais rebaixam o valor da razão humana; e quanto mais entusiasticamente enaltecem a autoridade de Deus revelador, tanto mais asperamente desprezam o magistério da Igreja, instituído por nosso Senhor Jesus Cristo para defender e interpretar as verdades reveladas. Esse modo de proceder não só está em contradição aberta com a Sagrada Escritura, como ainda pela experiência se mostra equívoco. Tanto é assim que os próprios "dissidentes" com freqüência se lamentam publicamente da discórdia que entre eles reina em questões dogmáticas, a tal ponto que se vêem obrigados a confessar a necessidade de um magistério vivo.

 

II. INFILTRAÇÃO DESSES ERROS NO PENSAMENTO CATÓLICO

9. Os teólogos e filósofos católicos, que têm o grave encargo de defender e imprimir nas almas dos homens as verdades divinas e humanas, não devem ignorar nem desatender essas opiniões que, mais ou menos, se apartam do reto caminho. Pelo contrário, é necessário que as conheçam bem; pois não se podem curar as enfermidades antes de serem bem conhecidas; ademais, nas mesmas falsas afirmações se oculta por vezes um pouco de verdade; e, por fim, essas opiniões falsas incitam a mente a investigar e ponderar com maior diligência algumas verdades filosóficas ou teológicas.

10. Se nossos filósofos e teólogos somente procurassem tirar esse fruto daquelas doutrinas, estudando-as com cautela, não teria motivo para intervir o magistério da Igreja. Embora saibamos que os doutores católicos em geral evitam contaminar-se com tais erros, consta-nos, entretanto, que não faltam hoje os que, como nos tempos apostólicos, amando a novidade mais do que o devido e também temendo que os tenham por ignorantes dos progressos da ciência, intentam subtrair-se à direção do sagrado Magistério e, por esse motivo, acham-se no perigo de apartar-se insensivelmente da verdade revelada e fazer cair a outros consigo no erra.

11. Existe também outro perigo, que é tanto mais grave quanto se oculta sob a capa de virtude. Muitos, deplorando a discórdia do gênero humano e a confusão reinante nas inteligências dos homens e guiados por imprudente zelo das almas, sentem-se levados por interno impulso e ardente desejo a romper as barreiras que separam entre si as pessoas boas e honradas; e propugnam uma espécie de "irenismo" que, passando por alto as questões que dividem os homens, se propõe não somente a combater em união de forças contra o ateísmo avassalaste, senão também a reconciliar opiniões contrárias, mesmo no campo dogmático. E, como houve antigamente os que se perguntavam se a apologética tradicional da Igreja constituía mais impedimento do que ajuda para ganhar almas a Cristo, assim também não faltam agora os que se atreveram a propor seriamente a dúvida de que talvez seja conveniente não só aperfeiçoar mas também reformar completamente a teologia e o método que atualmente, com aprovação eclesiástica, se emprega no ensino teológico, a fim de que se propague mais eficazmente o reino de Cristo em todo o mundo, entre os homens de todas as civilizações e de todas as opiniões religiosas.

12. Se tais propugnadores não pretendessem mais do que acomodar, com alguma renovação, o ensino eclesiástico e seus métodos às condições e necessidades atuais, não haveria quase nada que temer; contudo, alguns deles, arrebatados por imprudente "irenismo", parecem considerar como óbice para restabelecer a unidade fraterna justamente aquilo que se fundamenta nas próprias leis e princípios legados por Cristo e nas instituições por ele fundadas, ou o que constitui a defesa e o sustentáculo da integridade da fé, com a queda do qual se uniriam todas as coisas, sim, mas somente na comum ruína.

13. Os que, ou por repreensível desejo de novidade, ou por algum motivo louvável, propugnam essas novas opiniões, nem sempre as propõem com a mesma intensidade, nem com a mesma clareza, nem com idênticos termos, nem sempre com unanimidade de pareceres; o que hoje ensinam alguns mais encobertamente, com certas cautelas e distinções, outros mais audazes propalarão amanhã abertamente e sem limitações, com escândalo de muitos, em especial do clero jovem, e com detrimento da autoridade eclesiástica. Mais cautelosamente é costume tratar dessas matérias nos livros que são postos à publicidade, já com maior liberdade se fala nos folhetos distribuídos privadamente e nas conferências e reuniões. E não se divulgam somente estas doutrinas entre os membros de um e outro clero, nos seminários e institutos religiosos, mas também entre os seculares, principalmente aqueles que se dedicam ao ensino da juventude.

 

III. CONSEQÜÊNCIAS

1. Desprezo da teologia escolástica

14. Quanto à teologia, o que alguns pretendem é diminuir o mais possível o significado dos dogmas e libertá­los da maneira de exprimi-los já tradicional na Igreja, e dos conceitos filosóficos usados pelos doutores católicos, a fim de voltar, na exposição da doutrina católica, às expressões empregadas pela Sagrada Escritura e pelos santos Padres. Esperam que, desse modo, o dogma, despojado de elementos que chamam extrínsecos à revelação divina, possa comparar-se frutuosamente com as opiniões dogmáticas dos que estão separados da unidade da Igreja, e que, por esse caminho, se chegue pouco a pouco à assimilação do dogma católico e das opiniões dos dissidentes.

15. Reduzindo a doutrina católica a tais condições, crêem que se abre também o caminho para obter, segundo exigem as necessidades atuais, que o dogma seja formulado com as categorias da filosofia moderna, quer se trate do imanentismo, ou do idealismo, ou do existencialismo, ou de qualquer outro sistema. Alguns mais audazes afirmam que isso se pode e se deve fazer também em virtude de que, segundo eles, os mistérios da fé nunca se podem expressar por conceitos plenamente verdadeiros, mas só por conceitos aproximativos e que mudam continuamente, por meio dos quais a verdade se indica, é certo, mas também necessariamente se desfigura. Por isso não pensam ser absurdo, mas antes, pelo contrário, crêem ser de todo necessário que a teologia, conforme os diversos sistemas filosóficos que no decurso do tempo lhe servem de instrumento, vá substituindo os antigos conceitos por outros novos; de sorte que, de maneiras diversas e até certo ponto opostas, porém, segundo eles, equivalentes, faça humanas aquelas verdades divinas. Acrescentam que a história dos dogmas consiste em expor as várias formas que sucessivamente foi tomando a verdade revelada, de acordo com as várias doutrinas e opiniões que através dos séculos foram aparecendo.

16. Pelo que foi dito é evidente que tais esforços não somente levam ao relativismo dogmático, mas já de fato o contém, pois o desprezo da doutrina tradicional e de sua terminologia favorece tal relativismo e o fomenta. Ninguém ignora que os termos empregados, tanto no ensino da teologia como pelo próprio magistério da Igreja, para expressar tais conceitos podem ser aperfeiçoados e enriquecidos. É sabido também que a Igreja não foi sempre constante no uso dos mesmos termos. Ademais, é evidente que a Igreja não se pode ligar a qualquer efêmero sistema filosófico; entretanto, as noções e os termos que os doutores católicos, com geral aprovação, foram compondo durante o espaço de vários séculos para chegar a obter alguma inteligência do dogma não se assentam, sem dúvida, sobre bases tão escorregadias. Fundam-se realmente em princípios e noções deduzidas do verdadeiro conhecimento das coisas criadas; dedução realizada à luz da verdade revelada, que, por meio da Igreja, iluminava, como uma estrela, a mente humana. Por isso, não há que admirar terem sido algumas dessas noções não só empregadas mas também sancionadas por concílios ecumênicos; de sorte que não é lícito apartar-se delas.

17. Abandonar, pois, ou repelir, ou negar valor a tantas e tão importantes noções e expressões que homens de talento e santidade não comuns, com esforço multissecular, sob a vigilância do sagrado magistério e com a luz e guia do Espírito Santo, conceberam, expressaram e aperfeiçoaram para exprimir as verdades da fé cada vez com maior exatidão, e substituí-las por noções hipotéticas e expressões flutuantes e vagas de uma filosofia moderna que, assim como a flor do campo, hoje existe e amanhã cairá, não só é de suma imprudência, mas também converte o dogma numa cana agitada pelo vento. O desprezo dos termos e noções que os teólogos escolásticos costumam empregar leva naturalmente a abalar a teologia especulativa, a qual, por fundar-se em razões teológicas, eles julgam carecer de verdadeira certeza.

 

2. Desprezo do magistério da Igreja

18. Desgraçadamente, esses amigos de novidades facilmente passam do desprezo da teologia escolástica ao pouco caso e até mesmo ao desprezo do próprio magistério da Igreja, que tanto prestígio tem dado com a sua autoridade àquela teologia. Apresentam este magistério como empecilho ao progresso e obstáculo à ciência; e já existem acatólicos que o consideram como freio injusto, que impede alguns teólogos mais cultos de renovar a teologia. Embora este sagrado magistério, em questões de fé e moral, deva ser para todo teólogo a norma próxima e universal da verdade (visto que a ele confiou nosso Senhor Jesus Cristo a guarda, a defesa e a interpretação do depósito da fé, ou seja, das Sagradas Escrituras e da Tradição divina), contudo, por vezes se ignora, como se não existisse, a obrigação que têm todos os fiéis de fugir mesmo daqueles erros que se aproximam mais ou menos da heresia e, portanto, de observar também as constituições e decretos em que a Santa Sé proscreveu e proibiu tais falsas opiniões. [2] Alguns há que de propósito desconhecem tudo quanto os sumos pontífices expuseram nas encíclicas sobre o caráter e a constituição da Igreja, a fim de fazer prevalecer um conceito vago, que eles professam e dizem ter tirado dos antigos Padres, principalmente dos gregos. Os sumos pontífices, dizem eles, não querem dirimir questões disputadas entre os teólogos; e, assim, cumpre voltar às fontes primitivas e explicar com os escritos dos antigos as modernas constituições e decretos do magistério.

19. Esse modo de falar pode parecer eloqüente, mas não carece de falácia. Pois é verdade que os romanos pontífices em geral concedem liberdade aos teólogos nas questões controvertidas entre os mais acreditados doutores; porém, a história ensina que muitas questões que antes eram objeto de livre discussão já não podem ser discutidas.

20. Nem se deve crer que os ensinamentos das encíclicas não exijam, por si, assentimento, sob alegação de que os sumos pontífices não exercem nelas o supremo poder de seu magistério. Entretanto, tais ensinamentos provêm do magistério ordinário, para o qual valem também aquelas palavras: "Quem vos ouve a mim ouve" (Lc 10, 16); e, na maioria das vezes, o que é proposto e inculcado nas encíclicas, já por outras razões pertence ao patrimônio da doutrina católica. E, se os romanos pontífices em suas constituições pronunciam de caso pensado uma sentença em matéria controvertida, é evidente que, segundo a intenção e vontade dos mesmos pontífices, essa questão já não pode ser tida como objeto de livre discussão entre os teólogos.

21. Também é verdade que os teólogos devem sempre voltar às fontes da revelação; pois, a eles cabe indicar de que maneira "se encontra, explícita ou implicitamente" na Sagrada Escritura e na divina Tradição o que ensina o magistério vivo. Ademais, ambas as fontes da doutrina revelada contêm tantos e tão sublimes tesouros de verdade que nunca realmente se esgotarão. Por isso, com o estudo das fontes sagradas rejuvenescem continuamente as sagradas ciências; ao passo que, pelo contrário, a especulação que deixa de investigar o depósito da fé se torna estéril, como vemos pela experiência. Entretanto, isto não autoriza a fazer da teologia, mesmo da chamada positiva, uma ciência meramente histórica. Pois, junto com as sagradas fontes, Deus deu à sua Igreja o magistério vivo para esclarecer também e salientar o que no depósito da fé não se acha senão obscura e como que implicitamente. E o divino Redentor não confiou a interpretação autêntica desse depósito a cada um dos fiéis, nem mesmo aos teólogos, mas exclusivamente ao magistério da Igreja. Se a Igreja exerce esse múnus (como o tem feito com freqüência no decurso dos séculos pelo exercício, quer ordinário, quer extraordinário desse mesmo ofício), é evidentemente falso o método que pretende explicar o claro pelo obscuro; antes, pelo contrário, faz-se mister que todos sigam a ordem inversa. Eis porque nosso predecessor de imortal memória, Pio IX, ao ensinar que é dever nobilíssimo da teologia mostrar como uma doutrina definida pela Igreja está contida nas fontes, não sem grave motivo acrescentou aquelas palavras; "com o mesmo sentido com o qual foi definida pela Igreja".[3]

 

3. Desprezo das Sagradas Escrituras

22. Voltando às novas teorias de que acima tratamos, alguns há que propõem ou insinuam nos ânimos muitas opiniões que diminuem a autoridade divina da Sagrada Escritura. Pois atrevem-se a adulterar o sentido das palavras com que o concílio Vaticano define que Deus é o autor da Sagrada Escritura, e renovam uma teoria já muitas vezes condenada, segundo a qual a inerrância da Sagrada Escritura se estende unicamente aos textos que tratam de Deus mesmo, ou da religião, ou da moral. Ainda mais, sem razão falam de um sentido humano da Bíblia, sob o qual se oculta o sentido divino, que é, segundo eles, o único infalível. Na interpretação da Sagrada Escritura não querem levar em consideração a analogia da fé nem a tradição da Igreja; de modo que a doutrina dos santos Padres e do Sagrado magistério deveria ser aferida por aquela das Sagradas Escrituras explicadas pelos exegetas de modo puramente humano; o que seria preferível a expor a sagrada Escritura conforme a mente da Igreja, que foi constituída por nosso Senhor Jesus Cristo guarda e intérprete de todo o depósito das verdades reveladas.

23. Além disso, o sentido literal da Sagrada Escritura e sua exposição, que tantos e tão exímios exegetas, sob a vigilância da Igreja, elaboraram, deve ceder lugar, segundo essas falsas opiniões, a uma nova exegese a que chamam simbólica ou espiritual; por meio dela, os livros do Antigo Testamento, que seriam atualmente na Igreja uma fonte fechada e oculta, se abririam finalmente para todos. Dessa maneira, afirmam, desaparecerão todas as dificuldades que somente encontram os que se atêm ao sentido literal das Escrituras.

24. Todos vêem quanto se afastam essas opiniões dos princípios e normas de hermenêutica justamente estabelecidos por nossos predecessores de feliz memória, Leão XIII, na encíclica Providentissimus, e Bento XV, na encíclica Spiritus Paraclitus, e também por nós mesmo, na encíclica Divino Afflante Spiritu.

 

4 . Erros subseqüentes

25. E não há que admirar terem essas novidades produzido frutos venenosos em quase todos os capítulos da teologia. Põe-se em dúvida que a razão humana, sem o auxílio da divina revelação e da graça divina, possa demonstrar a existência de Deus pessoal, com argumentos tirados das coisas criadas; nega-se que o mundo tenha tido princípio e afirma-se que a criação do mundo é necessária, pois procede da necessária liberalidade do amor divino; nega-se também a Deus a presciência eterna e infalível das ações livres dos homens; opiniões de todo contrárias às declarações do concílio Vaticano.[4]

26. Alguns também põem em discussão se os anjos são pessoas; e se a matéria difere essencialmente do espírito. Outros desvirtuam o conceito de gratuidade da ordem sobrenatural, sustentando que Deus não pode criar seres inteligentes sem ordená-los e chamá-los à visão beatífica. E não só isso, mas, ainda, passando por cima das definições do concílio de Trento, destrói-se o conceito de pecado original juntamente com o de pecado em geral, como ofensa a Deus, e também o da satisfação que Cristo ofereceu por nós. Nem faltam os que defendem que a doutrina da transubstanciação, baseada como está num conceito filosófico já antiquado de substância, deve ser corrigida; de maneira que a presença real de Cristo na santíssima eucaristia se reduza a um simbolismo, no qual as espécies consagradas não são mais do que sinais externos da presença espiritual de Cristo e de sua união íntima com os féis, membros seus no corpo místico.

27. Alguns não se consideram obrigados a abraçar a doutrina que há poucos anos expusemos numa encíclica e que está fundamentada nas fontes da revelação, segundo a qual o corpo místico de Cristo e a Igreja católica romana são uma mesma coisa.[5] Outros reduzem a uma fórmula vã a necessidade de pertencer à Igreja verdadeira para conseguir a salvação eterna. E outros, malmente, não admitem o caráter racional da credibilidade da fé cristã.

28. Sabemos que esses e outros erros semelhantes serpenteiam entre alguns filhos nossos, desviados pelo zelo imprudente ou pela falsa ciência; e nos vemos obrigado a repetir-lhes, com tristeza, verdades conhecidíssimas e erros manifestos, e a indicar-lhes, não sem ansiedade, os perigos de erro a que se expõem.

 

5. Desprezo da filosofia escolástica

29. É coisa sabida o quanto estima a Igreja a humana razão, à qual compete demonstrar com certeza a existência de Deus único e pessoal, comprovar invencivelmente os fundamentos da própria fé cristã por meio de suas notas divinas, expressar de maneira conveniente a lei que o Criador imprimiu nas almas dos homens, e, por fim, alcançar algum conhecimento, por certo frutuosíssimo, dos mistérios.[6] Mas a razão somente poderá exercer tal oficio de modo apto e seguro se tiver sido cultivada convenientemente, isto é, se houver sido nutrida com aquela sã filosofia, que é já como que um patrimônio herdado das precedentes gerações cristãs e que por conseguinte goza de uma autoridade de ordem superior, porquanto o próprio Magistério da Igreja utilizou os seus princípios e os seus fundamentais assertos, manifestados e definidos lentamente por homens de grande talento, para comprovar a mesma revelação divina. Essa filosofia, reconhecida e aceita pela Igreja, defende o verdadeiro e reto valor do conhecimento humano, os inconcussos princípios metafísicos, a saber, os da razão suficiente, causalidade e finalidade, e a posse da verdade certa e imutável.

30. É verdade que em tal filosofia se expõem muitas coisas que, nem direta, nem indiretamente, se referem à fé ou aos costumes, e que, por isso mesmo, a Igreja deixa à livre disputa dos peritos; entretanto, em outras muitas não existe tal liberdade, principalmente no que diz respeito aos princípios e aos fundamentais assertos que há pouco recordamos. Mesmo nessas questões fundamentais pode-se revestir a filosofia com mais aptas e ricas vestes, reforçá-la com mais eficazes expressões, despojá-la de certos modos escolares menos adequados, enriquecê-la com cautela com certos elementos do progressivo pensamento humano; contudo, jamais é licito derrubá-la ou contaminá-la com falsos princípios, ou estimá-la como um grande monumento, mas já fora de moda. Pois a verdade e sua expressão filosófica não podem mudar com o tempo, principalmente quando se trata dos princípios que a mente humana conhece por si mesmos, ou daqueles juízos que se apóiam tanto na sabedoria dos séculos como no consenso e fundamento da revelação divina. Qualquer verdade que a mente humana, procurando com retidão, descobre não pode estar em contradição com outra verdade já alcançada, pois Deus, verdade suprema, criou e rege a humana inteligência, de tal modo que não opõe cada dia novas verdades às já adquiridas, mas, apartados os erros que porventura se tiverem introduzido, edifica a verdade sobre a verdade, de forma tão ordenada e orgânica como vemos estar constituída a própria natureza da qual se extrai a verdade. Por esse motivo o cristão, seja filósofo, seja teólogo, não abraça apressada e levianamente qualquer novidade que no decurso do tempo se proponha, mas deve sopesá-la com suma diligência e submetê-la a justo exame a fim de que não venha perder a verdade já adquirida ou a corrompa, com grave perigo e detrimento da mesma fé.

31. Se tudo quanto expusemos for bem considerado, facilmente se compreenderá porque a Igreja exige que os futuros sacerdotes sejam instruídos nas disciplinas filosóficas,  segundo o método, a doutrina e os princípios do Doutor Angélico,[7] visto que, através da experiência de muitos séculos, conhece perfeitamente que o método e o sistema do Aquinate se distinguem por seu valor singular, tanto para a educação dos jovens quanto para a investigação das mais recônditas verdades, e que sua doutrina está afinada como que em uníssono com a divina revelação e é eficacíssima para assegurar os fundamentos da fé e para recolher de modo útil e seguro os frutos do são progresso.[8]

32. E, pois, altamente deplorável que hoje em dia desprezem alguns a filosofia que a Igreja aceitou e aprovou, e que, imprudentemente, a tachem de antiquada em suas formas e racionalística, como dizem, em seus processos. Pois afirmam que essa nossa filosofa defende erroneamente a possibilidade de uma metafísica absolutamente verdadeira, ao passo que eles sustentam, contrariamente, que as verdades, principalmente as transcendentes, só podem ser expressas por doutrinas divergentes que mutuamente se completam, embora pareçam opor-se entre si. Pelo que, concedem que a filosofia ensinada em nossas escolas, com a lúcida exposição e solução dos problemas, com a exata precisão de conceitos e com as claras distinções, pode ser conveniente preparação ao estudo da teologia, como de fato o foi adaptando-se perfeitamente à mentalidade medieval; crêem, porém, que não é o método que corresponde à cultura e às necessidades modernas. Acrescentam, ainda, que a filosofia perene é só a filosofia das essências imutáveis, enquanto a mente moderna deve considerar a "existência" de cada um dos seres e a vida em sua fluência contínua. E, ao desprezarem esta filosofia, enaltecem outras, antigas ou modernas, orientais ou ocidentais, de forma tal a parecer insinuar que toda filosofia ou doutrina opinável, com o acréscimo de algumas correções ou complementos, se for necessário, harmonizar-se-á com o dogma católico; o que nenhum fiel pode duvidar seja de todo falso, principalmente quando se trata dos errôneos sistemas chamados imanentismo, ou idealismo, ou materialismo, seja histórico, seja dialético, ou também existencialismo, tanto no caso de defender o ateísmo, quanto no de impugnar o valor do raciocínio metafísico.

33. Por fim, acusam a filosofia ensinada em nossas escolas do defeito de atender só à inteligência no processo do conhecimento, sem levar em conta o papel da vontade e dos sentimentos. O que certamente não é verdade; de fato, a filosofia cristã jamais negou a utilidade e a eficácia das boas disposições de toda alma para conhecer e abraçar plenamente os princípios religiosos e morais; ainda mais, sempre ensinou que a falta de tais disposições pode ser a causa de que o entendimento, sufocado pelas paixões e pela má vontade, se obscureça a ponto de não mais ver como convém. E o Doutor Comum crê que o entendimento é capaz de perceber de certo modo os mais altos bens correspondentes à ordem moral, tanto natural como sobrenatural, enquanto experimentar no íntimo certa afetiva "conaturalidade" com esses mesmos bens, seja ela natural, seja fruto da graça; [9] e claro está quanto esse conhecimento, por assim dizer, subconsciente, ajuda as investigações da razão. Porém, uma coisa é reconhecer a força dos sentimentos para auxiliar a razão a alcançar conhecimento mais certo e mais seguro das realidades morais, e outra o que intentam esses inovadores, isto é, atribuir às faculdades volitiva e afetiva certo poder de intuição, e afirmar que o homem, quando, pelo exercício da razão, não pode discernir o que deva abraçar como verdadeiro, recorra à vontade, mediante a qual escolherá livremente entre as opiniões opostas, com inaceitável mistura de conhecimento e de vontade.

34. Nem há que admirar se ponham em perigo, com essas novas opiniões, as duas disciplinas filosóficas que, pela sua própria natureza, estão estreitamente relacionadas com a doutrina católica, a saber, a teodicéia e a ética, cuja função acreditam não seja demonstrar coisa alguma acerca de Deus ou de qualquer outro ser transcendente, mas antes mostrar que os ensinamentos da fé sobre Deus, ser pessoal, e seus preceitos, estão inteiramente de acordo com as necessidades da vida e que por isso mesmo todos devem aceitá-los para evitar a desesperação e obter a salvação eterna; tudo isso está em oposição aberta aos documentos de nossos predecessores Leão XIII e Pio X e não se pode conciliar com os decretos do concílio Vaticano. Não haveria, certamente, tais desvios da verdade que deplorar se também no terreno filosófico todos olhassem com a devida reverência ao magistério da Igreja, ao qual compete, por divina instituição, não só custodiar e interpretar o depósito da verdade revelada, mas também vigiar sobre as disciplinas filosóficas para que os dogmas católicos não sofram dano algum da parte das opiniões não corretas.

 

6. Erros relativos a certas ciências positivas

35. Resta-nos agora dizer algo acerca de algumas questões que, embora pertençam às disciplinas a que é costume chamar positivas, entretanto, se entrelaçam mais ou menos com as verdades da fé cristã. Não poucos rogam insistentemente que a religião católica tenha em máxima conta a tais ciências; o que é certamente digno de louvor quando se trata de fatos na realidade demonstrados, mas que hão de admitir-se com cautela quando se trata de hipóteses, ainda que de algum modo apoiadas na ciência humana, que tocam a doutrina contida na sagrada Escritura ou na tradição. Se tais conjecturas opináveis se opõem direta ou indiretamente à doutrina que Deus revelou, então esses postulados não se podem admitir de modo algum.

36. Por isso o magistério da Igreja não proíbe que nas investigações e disputas entre homens doutos de ambos os campos se trate da doutrina do evolucionismo, que busca a origem do corpo humano em matéria viva preexistente (pois a fé nos obriga a reter que as almas são diretamente criadas por Deus), segundo o estágio atual das ciências humanas e da sagrada teologia, de modo que as razões de uma e outra opinião, isto é, dos que defendem ou impugnam tal doutrina, sejam ponderadas e julgadas com a devida gravidade, moderação e comedimento, contanto que todos estejam dispostos a obedecer ao ditame da Igreja, a quem Cristo conferiu o encargo de interpretar autenticamente as Sagradas Escrituras e de defender os dogmas da fé.[10] Porém, certas pessoas, ultrapassam com temerária audácia essa liberdade de discussão, agindo como se a própria origem do corpo humano a partir de matéria viva preexistente fosse já certa e absolutamente demonstrada pelos indícios até agora achados e pelos raciocínios neles baseados, e como se nada houvesse nas fontes da revelação que exigisse a máxima moderação e cautela nessa matéria.

37. Mas, tratando-se de outra hipótese, isto é, a do poligenismo, os filhos da Igreja não gozam da mesma liberdade, pois os fiéis cristãos não podem abraçar a teoria de que depois de Adão tenha havido na terra verdadeiros homens não procedentes do mesmo protoparente por geração natural, ou, ainda, que Adão signifique o conjunto dos primeiros pais; já que não se vê claro de que modo tal afirmação pode harmonizar-se com o que as fontes da verdade revelada e os documentos do magistério da Igreja ensinam acerca do pecado original, que procede do pecado verdadeiramente cometido por um só Adão e que, transmitindo-se a todos os homens pela geração, é próprio de cada um deles.[11]

38. Da mesma forma que nas ciências biológicas e antropológicas, há alguns que também nas históricas ultrapassam audazmente os limites e cautelas estabelecidos pela Igreja. De modo particular, é deplorável a maneira extraordinariamente livre de interpretar os livros históricos do Antigo Testamento. Os fautores dessa tendência, para defender a sua causa, invocam indevidamente a carta que há não muito tempo a Comissão Pontifícia para os estudos bíblicos enviou ao arcebispo de Paris.[12] Essa carta adverte claramente que os onze primeiros capítulos do Gênesis, embora não concordem propriamente com o método histórico usado pelos exímios historiadores greco-latinos e modernos, não obstante, pertencem ao gênero histórico em sentido verdadeiro, que os exegetas hão de investigar e precisar; e que os mesmos capítulos, com estilo singelo e figurado, acomodado à mente do povo pouco culto, contêm as verdades principais e fundamentais em que se apóia a nossa própria salvação, bem como uma descrição popular da origem do gênero humano e do povo escolhido. Mas, se os antigos hagiógrafos tomaram alguma coisa das tradições populares (o que se pode certamente conceder), nunca se deve esquecer que eles assim agiram ajudados pelo sopro da divina inspiração, a qual os tornava imunes de todo erro ao escolher e julgar aqueles documentos.

39. Todavia, o que se inseriu na Sagrada Escritura tirado das narrações populares, de modo algum deve comparar-se com as mitologias e outras narrações de tal gênero, as quais procedem mais de uma ilimitada imaginação do que daquele amor à simplicidade e à verdade que tanto resplandece nos livros do Antigo Testamento, a tal ponto que os nossos hagiógrafos devem ser tidos neste particular como claramente superiores aos antigos escritores profanos.

 

IV. DIRETRIZES

40. Sabemos, é verdade, que a maior parte dos doutores católicos, que com sumo proveito trabalham nas universidades, nos seminários e nos colégios religiosos, estão muito longe desses erros que hoje aberta e ocultamente se divulgam, ou por certo afã de novidades, ou por imoderado desejo de apostolado. Porém, sabemos também que tais opiniões novas podem atrair os incautos, e, por isso mesmo, preferimos nos opor aos começos do que oferecer remédio a uma enfermidade inveterada.

41. Pelo que, depois de meditar e considerar largamente diante do Senhor, para não faltar ao nosso sagrado dever, mandamos aos bispos e aos superiores religiosos, onerando gravissimamente suas consciências, que com a máxima diligência procurem que, nem nas classes, nem nas reuniões, nem em escritos de qualquer gênero, se exponham tais opiniões de modo algum, nem aos clérigos, nem aos fiéis cristãos.

42. Saibam quantos ensinam em institutos eclesiásticos que não poderão em consciência exercer o oficio de ensinar, que lhes foi comado, se não receberem religiosamente as normas que temos dado e se não as cumprirem escrupulosamente na formação dos discípulos. E procurem infundir nas mentes e nos corações dos mesmos aquela reverência e obediência que eles próprios em seu assíduo labor devem professar ao magistério da Igreja.

43. Esforcem-se com todo o alento e emulação por fazer avançar as ciências que professam; mas, evitem também ultrapassar os limites por nós estabelecidos para salvaguardar a verdade da fé e da doutrina católica. Às novas questões que a moderna cultura e o progresso do tempo suscitaram, apliquem sua mais diligente investigação, entretanto, com a conveniente prudência e cautela; e, finalmente, não creiam, cedendo a um falso "irenismo", que os dissidentes e os que estão no erro possam ser atraídos com pleno êxito, a não ser que a verdade íntegra que está viva na Igreja seja ensinada por todos sinceramente, sem corrupção nem diminuição alguma.

 

V. CONCLUSÃO

44. Fundados nessa esperança, que vossa pastoral solicitude ainda aumentará, concedemos, de todo o coração, como penhor dos dons celestiais e em sinal de nossa paterna benevolência, a todos vós, veneráveis irmãos, a vosso clero e a vosso povo, a bênção apostólica.

 

Dado em Roma, junto de São Pedro, no dia 12 de agosto de 1950, ano XII de nosso pontificado.

 

PIO PP. XII

 

Notas

[1] Conc. Vat. I, Const. Dei Filius de Fide Cath., c. 2, "De revelatione".

[2] CIC, cân.1324; cf. Conc. Vat. I, Const. Dei Filius, de Fide cath., c. 4, "De fide et ratione", post canones.

[3] Pio IX, Inter gravissimas, de 28 de outubro de 1870, Pio IX P.M. Acta, vol. V, p. 260.

[4] Cf. Conc.Vat. I, Const. Dei Filius de fide cath., c. l, "De Deo rerum omnium creatore".

[5] Cf. Carta. Enc. Mystici Corporis Christi, AAS 35(1943), p.193ss.

[6] Cf. Conc. Vat. I, Const. Dei Filius de fide cath., c. 4 "De fide et ratione".

[7] CIC, cân.1366, § 2.

[8] AAS 38 (1946), p. 387.

[9] Cf. S. Tomás, Summa Theol, II-II, q. l, a. 4 ad 3; q. 45, a. 2, in c.

[10] Cf. Aloc. Pont. aos membros da Academia das Ciências, 30 nov 1941; AAS, 33(1941), p. 506.

[11] Cf. Rm 5, 12-19; Conc. Trid., sess. V, cân. l - 4.

[12] Dia 16 de janeiro de 1948, AAS 40(1948), pp. 45-48.