CAPÍTULO XX: DOR
Tomando
a urna, ao clarear d’alva, quando o velho pastor saia com o rebanho, José
acompanhou-o para que ele o guiasse à fonte.
Logo
que os dois homens desapareceram, as ervas que ourelavam a caverna cresceram
prodigiosamente, emaranhando-se em tapigo que encobriu a entrada.
A
Virgem, de instante a instante, abria os olhos e, soerguendo-se, ficava em
êxtase contemplando o filho,cujo hálito débil cheirava docemente a leite. Posto
que apenas tivesse horas, já ela lhe havia descoberto todos os encantos e se
lho arrebatassem dos braços, confundindo-o com mil crianças, reconhecê-lo-ia
sem trabalho, tanto o tinha nos olhos e no coração gravado.
Olhava-o
quando o sentiu mover-se, contorcendo-se. Num tremor de sobressalto enrijou os
bracinhos, bateu as palhas com os pés rosados e rompeu num choro forte que
repercutia no interior como se as pedras chorassem com ele, comovidas.
Tomou-o
Maria ao colo, acalentando-o ao calor do seio. Falava-lhe com ternura, interrogava-o,
chamava-o e, sem poder aliviá-lo, pôs-se a chorar aflita e, sobre a divina face
as suas lágrimas caiam gota a gota como o orvalho cai das folhas sacudidas pelo
vento.
Ai!
dela, como se julgava culpada e infeliz vendo sofrer o pequenino amor, tão
novo, tão inocente, tão sem culpa e já suportando as torturas herdadas da
carne.
Começava
a divindade a visitar o sofrimento; a peregrinação de Deus através da agonia
anunciava-se pelo primeiro choro.
Ele
havia de conhecer todas as dores, todas as angústias para poder julgá-las
aliviando o homem, cuja redenção trazia.
Teatro,
mal pousado na vida, já estrebuchava doridamente. E começava apenas – era a
iniciação.
Outros
maiores tormentos formavam a falange suplicante, a alameda trágica da
existência, onde a alegria é como o nimbo solar que passa dificilmente por
entre as frondes compactas.
Que
fazer? Deu-lhe o peito. Pôs-se o infante a mamar vagindo, estremecendo a ela,
relanceando em torno dos olhos úmidos e aflitos, implorava o mistério.
Tudo
era silêncio em volta, ninguém que a socorresse. E os anjos? Já haviam
regressado ao céu.
O infante ficara entregue ao seu piedoso voto.
Deus entrara desacompanhado no mundo, ser como os demais seres, homem como os
outros homens, integrando-se na humanidade.
Só lhe
valeram os carinhos de Maria; o calor do colo, o enlace amoroso dos braços, os
beijos repetidos foram, pouco a pouco, aliviando-o e, de novo, adormeceu
tranqüilo, não mais sobre a palha loura, mas aconchegado ao seio, ninado pelas
palpitações do coração materno.
CAPÍTULO XXI: RECEIO
Fino
raio de sol insinuando-se na caverna pousou na palha abrindo um aro de ouro em
torno da cabeça do infante adormecido.
Todas
as aves chilreavam, gárrulas moças passavam na estrada. Às vezes eram récuas de
dromedários desfilando em ruidoso atropelo.
Maria
prestava atenção ao rumor, receando pelo filho. Tomou-o muito ao seio e, quase
de rastros, aprofundou-se na sombra escondendo o seu tesouro com amorosa
avareza.
Tão
lindo! quem não o desejaria! E se um daqueles homens, descobrindo-o, investisse
para arrebatá-lo, quem o defenderia?
Na
treva ficava a coberto de todos os olhares.
No
fundo da caverna lentejava tristemente uma mina e a cada gota do estilicídio
respondia um som lacrimoso.
O ar
era frio e úmido, as paredes luziam lutulentas e, fora, o sol brilhava, alegre
e tépido, em fitas, em nimbos de ouro, lampejando nas arestas agudas da abóbada
escabrosa.
Quando
José reapareceu, a erva da entrada subitamente esmarriu. Vendo deserta a palha
estacou, olhando espantado com apreensões de desgraça.
Que
seria feito deles? Caminhou alguns passos. O coração batia-lhe, tremia-lhe a
urna ao ombro. Maria, reconhecendo-o, falou do seu esconderijo:
- Aqui,
meu senhor. O patriarca adiantou-se e, sentindo a friagem do sítio, ouvindo o
triste gotejar na laje, perguntou:
- Por
que buscaste tão obscura jazida onde o ar regela e a luz não chega? Lá fora há
um calor macio e sente-se o aroma da ervas vivas, ouvem-se as vozes alegres.
Aqui há o silêncio e a melancólica espessidão dos túmulos.
- Eu
estava só, meu senhor e o coração, dantes tão animoso, é agora tão tímido que
eu viveria, de boa mente, num subterrâneo só para que os olhos maus não
fitassem meu filho nem o invejassem adoentando-o.
Não sei
que voz me fala dentro do coração pedindo-me que o defenda. Ouço-a a todo o
instante.
Dizem-me
os anjos que ele é Deus. Não me passaram despercebidos os prodígios da noite:
tudo vi, tudo ouvi, mas minh’alma ordena-me que o resguarde, que não o perca de
vista, que sempre o traga acautelado, talvez porque é pequeno e fraco.
Não sei
se peco com a presunção de defender quem é onipotente, mas como hei de lutar
contra mim?
- Mas
se o céu nos diz e prova que ele é o filho de Deus, por que hás de recear os
homens?
- É o
coração que receia.
- E
entre o que diz o coração e o que afirmam os anjos hesitas, Maria?
-
Senhor, os anjos falam pelo céu, o coração fala pelo meu amor. Se Deus acha-me
rebelde, curvo-me ao seu castigo.
E,
humildemente, ajoelhou-se ante o berço.
Jesus,
abrindo os olhos claros, profundos, fitou-os nela e, como se quisesse
responder, sorriu.
CAPÍTULO XXII: O SONO
Maria
mal umedeceu os lábios à borda do tarro de leite de ovelha que o pastor
ordenhara antes de partir. Cuidados traziam-na apreensiva. Se o filho
estremecia sobressaltava-lhe o coração, se o via imóvel, dormindo, temia que
houvesse morrido e logo, ansiosamente, afagando-o, chamando-o, despertava-o.
-
Deixa-o dormir, disse-lhe o patriarca, o sono é necessário à vida, é a sombra
em que a alma repousa.
O
espírito das crianças refugia-se no sono como o dos velhinhos – o primeiro
porque dele saiu e ainda o tem por ninho; o segundo porque o procura como
abrigo. Não o despertes, deixa-o dormir.
- É que
me parece estar morto. Não faz o mais leve movimento e, quando ele assim fica,
meu coração pára retransido.
- É a serenidade.
Só o sono dos maus transmite ao corpo a convulsão do pesadelo.
O sono
é uma visita à morte. Os inocentes fazem-na sorrindo, os pecadores fazem-na
espavoridos.
Não
receies que ele passe tão cedo à eternidade de onde veio. Ainda que não
trouxesse a missão que o fez baixar ao mundo, fosse ele tão da terra como o
filho da zagala dos montes, não o deverias tirar do repouso.
Não
desenterras a semente por não a veres à flor do solo, deixas que ela venha a
flux e rebente, abra o renovo e cresça.
O sonho
é uma incubação. Por que não sonha? porque não tem impressões. O sonho é como
um reflexo em que há eco, é a reprodução confusa da vida com a repercussão
indistinta das vozes e dos ruídos.
Há quem
veja presságios no sonho como o nômade vê realidades na miragem.
Com que
há de sonhar quem não tem consciência da vida? Deixa-o dormir.
É a
noite que a floresta cresce e a criança é como a árvore.
O luar
é manso, é uma luz silenciosa de vigília, uma túnica diáfana sobre a treva –
não desperta. As estrelas são meigas porque a noite deve ser tranqüila para que
a natureza descanse. Deixa-o dormir.
Conserva-te
imóvel e calada, não perturbes a vida misteriosa. Demais, ele é o Eterno. A
morte passa por ele como a lâmina de uma espada por um raio de sol. Deixa-o dormir.
em sei
que o egoísmo das mães chega a insurgir-se contra as leis de Deus; não te
insurjas tu, que o geraste. Ele precisa rever a humanidade entrando pela vida e
gozando, saindo, talvez, pela morte com sofrimento.
- Meu
senhor! Exclamou a Virgem estendendo as mãos, comovida.
- São
palavras, Maria. Ai! de mim, quem sou eu para pronunciar oráculos sobre aquele
que tem o destino da vida em sua mão direita!
São
palavras que digo. Deixa-o dormir.
CAPÍTULO XXIII: PALAVRAS DE MARIA
Como eu
agora compreendo que se viva escravizada a um sorriso!
Quando
tenho meu filho ao colo, nutrindo-se do meu sangue, que deixa a cor da púrpura
e veste-se de branco para não macular os lábios inocentes, toda a minha vida
nele se concentra.
A
felicidade e a desgraça sentam-se junto de mim, sinto-as no contentamento que
me alvoroça e nos presságios estranhos que me ocorrem.
É
preciso ser mãe, ter gerado para conhecer o verdadeiro amor.
A alma
sai-me do corpo e fica junto do infante. Se me arredo um momento sinto-me logo
atraída como por uma pesada corrente que se me prende ao coração. E tanto o
contemplo, tanto! que fico com ele dentro dos olhos como quem fita um objeto ao
sol e depois o vê em toda a parte, ainda na treva mais densa.
Dantes,
quando as mães falavam-me de seus filhos, sempre eu as achava exageradas nos
louvores. Que diriam de mim as que agora me ouvissem!
O meu
desejo era não ter na boca outras palavras senão estas: “Meu filho!” São as que
o coração me inspira, são as que me agradam ouvir.
Elas
fazem um giro alegre como um casal de passarinhos brincando. Saem-me dos
lábios, entram-me pelos ouvidos cantando, circulam o meu coração e me tornam à
boca.
Meu
filho! E não há todo um mundo de amor dentro delas? Que mais é preciso para a
ventura?
Quando
as suas pálpebras se descerram inclino-me e busco ver nas suas pupilas – que
são agora os meus espelhos – o que elas contém.
Fico
tão perto que elas só a mim reproduzem.
Do mais
tenho ciúme, nem quero que seus olhos tenham outros habitantes.
Quando
ele estremece, tremo. Quando ele sorri é tão grande a minha alegria que fico
num atordoamento desvairado, sem saber que faça, e choro e rio.
Ai! de
mim quando ele chora.
Não
tendes notado que eu sou agora como uma faminta perdida que não se sacia de
alimento?
Não é
que tenha fome, não; mas penso nele e, como é preciso que ele encontre sempre
farto o peito em que se nutre, transformo-me em celeiro.
Dormir,
nem sei se durmo, porque ao mais leve movimento que ele faça surpreendo-me a
mim mesma achando-me a seu lado, agasalhando-o, afagando-o, procurando
readormecê-lo ou acalentando-o, se chora.
Eu não
era assim amorosa, meu senhor. Agora que o tenho não parece que vivo no mundo,
só dele me lembro. Onde ele está aí é que me apraz viver.
O seu
berço é o oásis em imenso deserto.
Dizeis,
às vezes, que me distraio porque não vos respondo de pronto. Não é distração, é
que alma está junto dele – o corpo fica vazio como uma casa fechada cujo dono
trabalha na seara.
Disseste
uma vez: “As mães adivinham.” Como conheceis o coração materno!
E há
mais que ficam no mundo quando lhes morre o filho. Como se podem guiar na vida?
Como podem caminhar sem arrimo? Como podem ver sem a luz? Como não soçobram no
pranto? Eu...
- Por
que choras, Maria?
-
Porque sou feliz, meu senhor...
CAPÍTULO XXIV: AS DUAS MÃES
Junto a
uma velha figueira, que ficava a dois passos da caverna, onde a estrada,
bifurcando-se, dava uma sinuosa trilha para os montes e um caminho direito para
os campos, sentara-se Maria com Jesus ao colo, gozando o frescor da manhã
serena e vendo os pombos revoarem, com um rumoroso ruflo d’asas, passando,
repassando em torno.
José
descera à fonte.
Zagalejos
passavam soprando frautas e o sol, acendendo as camarinhas do orvalho, fazia da
paisagem uma extensa cintilação.
A
Virgem entretinha-se, enlevada no pequenito que acompanhava a ronda alígera das
aves, quando uma pálida mulher, andrajosa e descalça, os cabelos desgrenhados,
os olhos fundos, a caveira estalando a pele seca, apareceu no caminho, tão
lenta e tão alto e angustioso arquejo que foi por ele que Maria sentiu a
aproximação da infeliz.
Era
ainda moça, conservava na miséria um resto de emurchecida beleza.
Os
olhos negros ardiam febris como dois carvões em que faiscassem fagulhas; as
rosas das faces haviam amarelecido, os lábios, ressecados e lívidos, estalavam
em fendas como golpes.
Trazia
nos braços, envolta em grosseiras faixas, uma criança que vagia.
Diante
da Virgem deteve-se. Arrasaram-se-lhe os olhos d’água e, parada, tremendo,
estendeu a mão magra a pedir.
Maria
encarou-a compadecida e, como não possuísse moeda, não respondeu à infeliz,
alanceada de pena. E a mulher soluçou:
- Não é
por mim que peço, é por ele. Tenho-o, desde ontem, ao seio, bebendo sangue –
não é o peito que lhe dou, mas uma ferida. A boca do pobrezinho está da cor da
anêmona.
Não
lamentaria a dor com que a sua fome me apunhala se o visse saciado, mas o
sangue não farta e, ainda que eu não lhe recuse o que me resta de vida, sinto-o
enfraquecer a mais e mais.
Já não
chora, nem abre os olhos, começa a agonizar, como a planta que o sol mirra na
terra adusta.
Dai-me
o bastante para que ele viva um dia, só enquanto eu viva. Que ele morra depois
de mim para que eu o receba na morte.
Maria
fez lugar junto à figueira para a enferma e, entregando-lhe Jesus, tomou o
pequenino moribundo. Pôs-lhe na boca o peito túrgido e logo o sentiu sugar
avidamente.
A
mísera mulher embalava o divino infante, apertava-o ao colo com medo de que
chorasse e interrompesse a esmola que seu filho recebia.
Tão
enlevada estava vendo o seu penhor mamar que nem sentiu que os seus peitos,
junto aos quais Jesus agasalhava-se, enchiam-se, apojavam-se. E toda ela
refazia-se: a carne renovava-se-lhe robusta, voltava-lhe a cor ao rosto.
Satisfeita,
a criança adormeceu ao colo de Maria e da boquinha entreaberta escorreu, rolou
na grama uma gota de leite, caindo, como uma pérola, na raiz da figueira.
As duas
mães olharam-se caladas porque as crianças dormiam. Trocaram-nas tomando, cada
qual, a que lhe pertencia e a miserável, agradecendo a esmola, foi-se por entre
as margaridas do caminho.
Perdeu-se
no meio das árvores, reapareceu no lançante do cerro.
De
repente, já no cimo, envolta em luz, estacou derreando a cabeça como para olhar
o céu e súbito, lançando os braços, tombou sobre os joelhos.
Dera,
sem dúvida, pelos peitos cheios.
Maria,
para segui-la com o olhar, levantou-se e, como se apoiasse à figueira, uma
folha caiu. Sentindo os dedos úmidos mirou-os – estavam molhados de leite.
De onde
proviria? da fina haste da figueira de onde se destacara a folha.
A
árvore sorvera a gota de leite que rolara da boca do pobrezinho e sempre a
verte mostrando-a aos incrédulos, mal se lhe arranca uma folha ou se lhe
golpeia um galho, como uma prova da misericórdia suave.
CAPÍTULO XXV: A ESTRELA
Ao
declinar do sol, quando cessava a alegria rural e, quietos, em mangotes
brancos, os rebanhos desciam das pasturas e o canto das aves morria em
estribilhos tristes, José, à entrada da caverna, as mãos cruzadas sobre o
cajado, contemplava o céu macio, barrado de ouro no ocidente, onde os outeiros
pareciam arder como altas piras sobre as quais flamejasse um lume votivo.
Um
mole, lânguido quebranto prostrava a natureza.
As
árvores espreguiçavam-se em movimentos morosos; raros pássaros aligeiravam o
vôo atravessando a luz vesperal.
Nas
alquebradas sombrias crescia a voz das águas borbulhantes, saltando,
escachoando de pedra em pedra até fluírem massas sob as pendidas ramas que
pareciam tremer de frio.
Longe,
na cidade, ressoava o tumulto humano. Grossos rolos de fumo negro subiam nos
ares, fundiam-se, dissipavam-se e, à medida que a noite conquistava a paisagem,
apontavam pequeninas estrelas esmaltando o céu.
A voz
de Maria no fundo da caverna entoava suavemente. Era o encantamento maternal, a
mimosa cantilena com que Jesus adormecia.
O
patriarca, recolhido em pensamento, olhava, e, como se voltasse para o lado do
oriente obscuro, viu um como fúlgido alfanje chamejando na treva.
Tremeu
e, fitando o olhar na estranha aparição, notou que avançava no céu
vagarosamente.Era uma estrela enorme, de brilho coruscante, que parecia haver
atravessado a teia da Via Láctea, tendo dela trazido um rútilo farrapo que a
seguia através do espaço.
O astro
subia em marcha grave e as demais estrelas esmoreciam à sua passagem como se se
retraíssem tímidas.
Pelos
caminhos, pelos outeiros homens, mulheres paravam atônitos olhando o
prodígio.Alguns, atemorizados, invocavam deuses, rojando-se por terra; crianças
choravam espavoridas.
E quando
a noite negrejou fechada, o astro, com a flamejante cauda aberta, pairou no
céu, sobre a caverna, como uma palma de luz que assinalasse o berço do Messias.
CAPÍTULO XXVI: EPIFANIA
Pastores,
que faziam a vigília no campo, contemplavam embevecidamente a estrela
maravilhosa, quando ouviram cantares e rumorosa estropeada como se festiva e
densa turba viesse pela encosta do cerro mais alto.
Ergueram-se
estranhando a caravana e viram romper, à luz de archotes, cujo clarão tingia
sanguineamente a noite, um cortejo brilhante e desusado.
Os
animais pareciam ajaezados de ouro, com recamos de pedrarias, tamanho era o
fulgor que irradiavam nos cabelos árdegos em que vinham.
Onagros,
tangidos por negros, trotavam sacolejando fardos e três dromedários
enxairelados caminhavam entre lanças garbosamente empunhadas por cavaleiros
robustos.
***
Tamborinos
e anafis soavam em concerto, regulando o ritmo da marcha. Vozes bradavam e a
turba descia assustando as ovelhas e os grandes bois que tresmalhavam
metendo-se pelos matos.
Os cães
de guarda, atentos, d’orelhas fitas, conservavam-se silenciosas como se
reconhecessem os chegadiços.
Por
vezes as lanças chocavam-se, tinindo, e cerrada, na claridade fulva dos
archotes, a caravana aproximava-se.
Na
planície, ao rouco estrugir de uma buzina, estacou em ordem.
Ligeiramente,
destros e açodados negros desfizeram grandes rolos, fincaram cepos e, em pouco,
tendas retesaram-se.
Os
animais, aliviados da carga, deixaram-se na erva fresca, espojavam-se contentes
e, em volta das tendas, como uma sebe de guerra, os cavaleiros cravaram as
lanças pelos cantos ficando os ferros luzindo como estrelas.
Os
pastores, esgueirando-se na sombra, procuravam chegar ao acampamento para ver
de perto os chefes da hoste que com tanta grandeza se movia.
Um
deles, mais ousado, foi descoberto por um grande negro que trazia às costas,
suspenso duma corrente, um dardo de ferro.
Sem
tempo de fugir caiu em poder do vigia que logo o conduziu à tenda mais suntuosa,
toda alfaiada de seda e púrpura e nublada de aromatas .
Lampadários
de ouro iluminavam-na. A erva desaparecia sob tapetes altos, escudos lampejavam
e, como o, negro o impelisse, viu-se o pastor na presença de três homens,
ricamente paramentados com fotas na cabeça rutilantes de gemas.
Eram
magos das terras remotas.
Um
alvo, a barba negra e farta espalhada no peito cintilante de pedrarias; outro
da cor amarelada dos filhos das extremas da Ásia; o terceiro, negro, com
imensas camândulas de ouro em volta do pescoço, braceletes nos punhos, argolas
nas orelhas e na fronte alta, preso por um mastro, um diamante que coruscava.
O
pastor ajoelhou-se e, medroso, espera ouvir palavras severas, quando um dos
homens tranqüilizadoramente perguntou:
- Se
sabia em que paço, por ali perto, nascera o rei dos judeus. O rústico, sem
entender a pergunta, ficou arvoado, imaginando-se vítima de uma zombaria.
Lembrou-se, porém, dos anjos e de todos os prodígios da noite messiânica,
respondeu vagamente:
- Perto
daqui nasceu – e os céus festejaram o seu natal – um menino, filho de pobres,
vindos de terras longínquas. Ainda lá está no mesmo tugúrio, ao colo da mãe,
que é uma linda moça, sob a guarda de um ancião venerável. É bem perto daqui,
na caverna do outeiro sobre a qual paira e brilha a estrela alada que apareceu
no céu.
Levantaram-se
os três homens – o pastor saiu da tenda e, estendendo o braço na direção do
outeiro, disse:
- É
ali, sob a estrela.
- Deve
ser, disse o negro. E os dois outros concordaram. E, despedindo o pastor com
uma bolsa de moedas de ouro, ficaram de pé, em silêncio, contemplando
adorativamente a estrela que resplandecia.
CAPÍTULO XXVII: ADORAÇÃO DOS MAGOS
Ao
dealbar tronaram as buzinas e a caravana moveu-se em direção à caverna.
A
grande estrela ainda luzia no céu.
Os
magos seguiram à frente nos dromedários e, em torno deles, nitiam , caracolavam
os ginetes dos cavaleiros com que os seus telizes dourados, os seus caparações
de púrpura.
Quando
a turba defrontou com a caverna todos os homens apearam e, respeitosamente, com
humildade de servos, deixando no limiar os papuzes marchetados, os magos
penetraram zumbridos , como se fossem os rastos, levando nas mãos, devotamente,
as páreas significativas.
Recebeu-os
o patriarca e, como a Virgem se levantasse, com Jesus ao colo, os três homens
prostraram-se de joelhos, descobrindo-se, depondo os turbantes e, inclinando a
cabeça, ficaram um momento em veneração silenciosa.
O
primeiro falou oferecendo a mirra.
-
Homem, filho de Deus, a árvore do deserto deu do seu trono a resina que te
ofereço; o seu perfuma é uma força que se opões à destruição da carne: eterniza
o corpo como a virtude eterniza o espírito.
O
segundo inclinou-se com um escrínio cheio de ouro:
- Rei,
das minas, onde fervilham os veios rutilantes, deram a poeira que te ofereço:
ouro, símbolo do poder, chama fria da terra. Tudo ele vence: a miséria e a
própria virtude. Desoprime e escraviza, redime e perverte, é o bem e é o mal.
Nas mãos mumificas é luz que aclara e salva; nas mãos cruéis é chama que
consome.
O negro
falou por último com uma patena de incenso:
- A
árvore instila a lágrima que recende, lágrima que, ao lume, se converte em fumo
e evola, demandando o céu, como homenagem de terra.
Como
lágrima, é uma concentração; como aroma, é uma oblata. É o incenso com que se
glorificam os deuses. É a oferenda das terras negras ao Deus que redime.
Gente,
que afluíra à caverna, pastores e seareiros, mesteirais, velhos, mulheres e
crianças das arribanas próximas entraram e, diante da palha humilde, toda a
grandeza e toda a humildade confraternizaram e também o sol, como enviado do
céu, adorando o infante da misericórdia que baixara para cumprir as profecias
trazendo aos homens a religião do amor.
E
Maria, deslumbrada, sem ouvir as vozes glorificadoras, olhava, contemplava,
adorava o pequenino filho.
O sol
cercou-se de esplendor e a Virgem, de pé no meio da turba, com Jesus ao colo,
era o puríssimo altar sobre o qual se mostrava às gentes o divino perdão.