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Wednesday, 24 December 2014

“A Leoa” by Raimundo Correia (in Portuguese)



Não há quem a emoção não dobre e vença
lendo o episódio da leoa brava,
que, sedenta e famélica, bramava,
vagando pelas ruas de Florença.

Foge a população espavorida,
e na cidade deplorável e erma
topa a leoa só, quase sem vida,
uma infeliz mulher débil e enferma.

Em frente à fera no estupor do assombro
não já por si tremia ela, a mesquinha
porém porque, era mãe, e o peso tinha
sempre caro pras mães, de um filho ao ombro.

Cegava-a o pranto, enrouqueci-a o choro,
desvairava-a o pavor!... e entanto, o lindo
e tenro infante, pequenino e loiro
plácido estava nos seus braços rindo.

E o olhar desfeito em pérolas celestes
crava a mãe no animal, que para e hesita
àquele olhar de súplica infinita,
que é só próprio das mães em transes destes.

Mas a leoa, como se entendesse
o amor da mãe, incólume deixou-a...
É que esse amor até nas feras vê-se...
que era mãe talvez essa leoa!

Saturday, 16 August 2014

“Último Porto” by Raimundo Correia (in Portuguese)



Este o país ideal que em sonhos douro;
Aqui o estro das aves me arrebata,
E em flores, cachos e festões, desata
A Natureza o virginal tesouro;

Aqui, perpétuo dia ardente e louro
Fulgura; e, na torrente e na cascata,
A água alardeia toda a sua prata,
E os laranjais e o sol todo o seu ouro...

Aqui, de rosas e de luz tecida,
Leve mortalha envolva estes destroços
Do extinto amor, que inda me pesam tanto;

E a terra, a mãe comum, no fim da vida,
Para a nudeza me cobrir dos ossos,
Rasgue alguns palmos do seu verde manto.

Thursday, 24 July 2014

“Saudade” by Raimundo Correa (in Portuguese)



Aqui outrora retumbaram hinos;
Muito côche real nestas calçadas
E nestas praças, hoje abandonadas,
Rodou por entre os européis mais finos...

Arcos de flores, fachos purpurinos,
Trons festivais, badeiras desfraldadas,
Girândolas, clarins, atropeladas
Legiões de povo, bimbalar de sinos...

Tudo passou! Mas dessas arcarias
Negras, e desses torreões medonhos,
Alguém se assenta sobre as lájeas frias;

E, em torno os olhos úmidos, tristonhos,
Espraia e chora, como Jeremias,
Sobra a Jerusalém de tantos sonhos!...

Saturday, 28 June 2014

“Rimas” by Raimundo Correia (in Portuguese)



Rondo pela noite
Imaginando mil coisas
Meditando sozinho
Até a madrugada

Isto tudo é tão contrário
Medo e coragem
Amor e ódio
Revolta e compreensão

Mas nada rima nesse mundo
Apenas eu e você restávamos
Resto do que o mundo já foi
Intensamente, imensamente, eternamente

Até mesmo nós sucumbimos
Reavaliamos nossa condição
Indiferentes, deixamos de rimar
Menos um casal no mundo

Agora ando sozinho
Meditando noite adentro
Imaginando e esquecendo mil e uma coisas
Rondando até a madrugada

Wednesday, 4 June 2014

"Na Penumbra" by Raimundo Correia (in Portuguese)



Raiava, ao longe, em fogo a lua nova,
Lembras-te?... apenas reluzia a medo,
Na escuridão crepuscular da alcova
O diamante que ardia-te no dedo...

Nesse ambiente tépido, enervante,
Os meus desejos quentes, irritados,
Circulavam-te a carne palpitante,
Como um bando de lobos esfaimados...

Como que estava sobre nós suspensa
A pomba da volúpia; a treva densa
Do teu olhar tinha tamanho brilho!

E os teus seios que as roupas comprimiam,
Tanto sob elas, túmidos, batiam,
Que estalavam-te o flácido espartilho!

Wednesday, 7 May 2014

"O Misantropo" by Raimundo Correia (in Portuguese)



A boca, às vezes, o louvor escapa
E o pranto aos olhos; mas louvor e pranto
Mentem: tapa o louvor a inveja, enquanto
O pranto a vesga hipocrisia tapa.

Do louvor, com que espanto, sob a capa
Vejo tanta dobrez, ludíbrio tanto!
E o pranto em olhos vejo, com que espanto,
Que escarnecem dos mais, rindo à socapa!

Porque, desde que esse ódio atroz me veio,
Só traições vejo em cada olhar venusto?
Perfídias só em cada humano seio?

Acaso as almas poderei sem custo
Ver, perspícuo e melhor, só quando odeio?
E é preciso odiar para ser justo?!

Wednesday, 23 April 2014

"Job" by Raimundo Correia (in English)



Quem vai passando, sinta
Nojo embora, ali pára. Ao princípio era um só;
Depois dez, vinte, trinta
Mulheres e homens... tudo a contemplar o Job.

Qual fixa boquiaberto;
Qual à distância vê; qual se aproxima altivo,
Para olhar mais de perto
Esse pântano humano, esse monturo vivo.

Grossa turba o rodeia...
E o que mais horroriza é vê-lo a mendigar,
E ninguém ter a idéia
De um só vintém às mãos roídas lhe atirar!

Não! Nem ver que a indigência
Em pasto o muda já de vermes; e lhe impera,
Na imunda florescência
Do corpo, a podridão em plena primavera;

Nem ver sobre ele, em bando,
Os moscardos cruéis de ríspidos ferrões,
Incômodos, cantando
A música feral das decomposições;

Nem ver que, entre os destroços
De seus membros, a Morte, em blasfêmias e pragas,
Descarnando-lhe os ossos,
Os dentes mostra a rir, pelas bocas das chagas;

Nem ver que só o escasso
Roto andrajo, onde a lepra horrível que lhe prui
Mal se encobre, e o pedaço
De telha, com que a raspa, o mísero possui;

Nem do vento às rajadas
Ver-lhe os farrapos vis da roupa flutuante,
Voando—desfraldadas
Bandeiras da miséria imensa e triunfante!

Nem ver... Job agoniza!
Embora; isso não é o que horroriza mais.
—O que mais horroriza
São a falsa piedade, os fementidos ais;

São os consolos fúteis
Da turba que o rodeia, e as palavras fingidas,
Mais baixas, mais inúteis
Do que a língua dos cães, lambendo-lhe as feridas;

Da turba que se, odienta,
Com a pata brutal do seu orgulho vão
Não nos magoa, inventa,
Para nos magoar, a sua compaixão!

Se há, entre a luz e a treva,
Um termo médio, e em tudo há um ponto mediano,
É triste que não deva
Haver isso também no coração humano!

Porque n'alma não há de
Um meio termo haver dessa gente também,
Entre a inveja e a piedade?
Pois tem piedade só, quando inveja não tem!

Thursday, 10 April 2014

"Fetichismo" by Raimundo Correia (in Portguese)




Homem, da vida as sombras inclementes
Interrogas em vão: - Que céus habita Deus?
Onde essa região de luz bendita,
Paraíso dos justos e dos crentes?

Em vão tateiam tuas mãos trementes
As entranhas da noite erma, infinita,
Onde a dúvida atroz blasfema e grita,
E onde há só queixas e ranger de dentes...

A essa abóbada escura, em vão elevas
Os braços para o Deus sonhado, e lutas
Por abarcá-lo; é tudo em torno trevas...

Somente o vácuo estreitas em teus braços;
E apenas, pávido, um ruído escutas
Que é o ruído dos teus próprios passos!...

Friday, 28 March 2014

"O Monge" by Raimundo Correia (in Portuguese)



—"O coração da infância", eu lhe dizia,
"É manso." E ele me disse:—"Essas estradas,
Quando, novo Eliseu, as percorria,
As crianças lançavam-me pedradas..."

Falei-lhe então na glória e na alegria;
E ele—alvas barbas longas derramadas
No burel negro—o olhar somente erguia
Às cérulas regiões ilimitadas...

Quando eu, porém, falei no amor, um riso
Súbito as faces do impassível monge
Iluminou... Era o vislumbre incerto,

Era a luz de um crepúsculo indeciso
Entre os clarões de um sol que já vai longe
E as sombras de uma noite que vem perto!...

Sunday, 16 March 2014

"Desdéns" by Raimundo Correia (in English)



Realçam no marfim da ventarola
As tuas unhas de coral felinas
Garras com que, a sorrir, tu me assassinas,
Bela e feroz... O sândalo se evolua;

O ar cheiroso em redor se desenrola;
Pulsam os seios, arfam as narinas...
Sobre o espaldar de seda o torso inclinas
Numa indolência mórbida, espanhola...

Como eu sou infeliz! Como é sangrenta
Essa mão impiedosa que me arranca
A vida aos poucos, nesta morte lenta!

Essa mão de fidalga, fina e branca;
Essa mão, que me atrai e me afugenta,
Que eu afago, que eu beijo, e que me espanca!

Sunday, 23 February 2014

"A Cavalgada" by Raimundo Correia (in Portuguese)



A lua banha a solitária estrada...
Silêncio!... Mas além, confuso e brando,
O som longínquo vem-se aproximando
Do galopar de estranha cavalgada.

São fidalgos que voltam da caçada;
Vêm alegres, vêm rindo, vêm cantando.
E as trompas a soar vão agitando
O remanso da noite embalsamada...

E o bosque estala, move-se, estremece...
Da cavalgada o estrépito que aumenta
Perde-se após no centro da montanha...

E o silêncio outra vez soturno desce...
E límpida, sem mácula, alvacenta
A lua a estrada solitária banha...

Tuesday, 11 February 2014

"Tristeza de Momo" by Raimundo Correia (in Portuguese)



Pela primeira vez, ímpias risadas
Susta em pranto o deus da zombaria;
Chora; e vingam-se dele, nesse dia,
Os silvanos e as ninfas ultrajadas;

Trovejam bocas mil escancaradas,
Rindo; arrombam-se os diques da alegria;
E estoira descomposta vozeria
Por toda a selva, e apupos e pedradas...

Fauno, indigita; a Náiade o caçoa;
Sátiros vis, da mais indigna laia,
Zombam. Não há quem dele se condoa!

E Eco propaga a formidável vaia,
Que além por fundos boqueirões reboa
E, como um largo mar, rola e se espraia...

Saturday, 8 February 2014

"O Vinho de Hebe" by Raimundo Correia (in Portuguese)



Quando do Olimpo nos festins surgia
Hebe risonha, os deuses majestosos
Os copos estendiam-lhe, ruidosos,
E ela, passando, os copos lhes enchia...

A Mocidade, assim, na rubra orgia
Da vida, alegre e pródiga de gozos,
Passa por nós, e nós também, sequiosos,
Nossa taça estendemos-lhe, vazia...

E o vinho do prazer em nossa taça
Verte-nos ela, verte-nos e passa...
Passa, e não torna atrás o seu caminho.

Nós chamamo-la em vão; em nossos lábios
Restam apenas tímidos ressábios,
Como recordações daquele vinho.

Friday, 31 January 2014

"Anoitecer" by Raimundo Correia (in Portuguese)



Esbraseia o Ocidente na agonia
O sol... Aves em bandos destacados,
Por céus de ouro e púrpura raiados,
Fogem... Fecha-se a pálpebra do dia...

Delineiam-se além da serranja
Os vértices de chamas aureolados,
E em tudo, em torno, esbatem derramados
Uns tons suaves de melancolia.

Um mudo de vapores no ar flutua...
Como uma informe nódoa avulta e cresce
A sombra à proporção que a luz recua.

A natureza apática esmaece...
Pouco a pouco, entre as árvores, a lua
Surge trêmula, trêmula.... Anoitece.

Sunday, 19 January 2014

"Plenilúnio" by Raimundo Correia (in Portuguese)



Além nos ares, tremulamente,
Que visão branca das nuvens sai!
Luz entre as franças, fria e silente;
Assim nos ares, tremulamente,
Balão aceso subindo vai...

Há tantos olhos nela arroubados,
No magnetismo do seu fulgor!
Lua dos tristes e enamorados,
Golfão de cismas fascinador!

Astros dos loucos, sol da demência,
Vaga, noctâmbula aparição!
Quantos, bebendo-te a refulgência,
Quantos por isso, sol da demência,
Lua dos loucos, loucos estão!

Quantos à noite, de alva sereia
O falaz canto na febre a ouvir,
No argênteo fluxo da lua cheia.
Alucinados se deixam ir...

Também outrora, num mar de lua,
Voguei na esteira de um louco ideal;
Exposta aos éolos a fronte nua,
Dei-me ao relento, num mar de lua,
Banhos de lua que fazem mal.

Ah! quantas vezes, absorto nela,
Por horas mortas postar-me vim
Cogitabundo, triste, à janela,
Tardas vigílias passando assim!

E assim, fitando-a noites inteiras,
Seu disco argênteo na alma imprimi;
Olhos pisados, fundas olheiras,
Passei fitando-a noites inteiras,
Fitei-a tanto, que enlouqueci!

Tantos serenos tão doentios,
Friagens tantas padeci eu;
Chuva de raios de prata frios
A fronte em brasa me arrefeceu!

Lunárias flores, ao feral lume, —
Caçoilas de ópio, de embriaguez —
Evaporaram letal perfume...
E os lençóis d'água, do feral lume
Se amortalhavam na lividez...

Fúlgida névoa vem-me ofuscante
De um pesadelo de luz encher,
E a tudo em roda, desde esse instante,
Da cor da lua começo a ver.

E erguem por vias enluaradas
Minhas sandálias chispas a flux...
Há pó de estrelas pelas estradas...
E por estradas enluaradas
Eu sigo às tontas, cego de luz...

Um luar amplo me inunda, e eu ando
Em visionária luz a nadar,
Por toda a parte, louco, arrastando
O largo manto do meu luar...

Sunday, 5 January 2014

"Amor e Vida" by Raimundo Correia (in Portuguese)



Esconde-me a alma, no íntimo, oprimida,
Este amor infeliz, como se fora
Um crime aos olhos dessa, que ela adora,
Dessa, que crendo-o, crera-se ofendida.

A crua e rija lâmina homicida
Do seu desdém vara-me o peito; embora,
Que o amor que cresce nele, e nele mora,
Só findará quando findar-me a vida!

Ó meu amor! como num mar profundo,
Achaste em mim teu álgido, teu fundo,
Teu derradeiro, teu feral abrigo!

E qual do rei de Tule a taça de ouro,
Ó meu sacro, ó meu único tesouro!
Ó meu amor! tu morrerás comigo!

Thursday, 26 December 2013

"Banzo" by Raimundo Correia (in Portuguese)




Visões que na alma o céu do exílio incuba,
Mortais visões! Fuzila o azul infando...
Coleia, basilisco de ouro, ondeando
O Níger... Bramem leões de fulva juba...

Uivam chacais... Ressoa a fera tuba
Dos cafres, pelas grotas retumbando,
E a estrelada das árvores, que um bando
De paquidermes colossais derruba...

Como o guaraz nas rubras penhas dorme,
Dorme em nimbos de sangue o sol oculto...
Fuma o saibro africano incandescente...

Vai com a sombra crescendo o vulto enorme
Do baobá... E cresce na alma o vulto
De uma tristeza, imensa, imensamente...

Friday, 6 December 2013

"Ser Moça e Bela Ser" by Raimundo Correia (in Portuguese)



Ser moça e bela ser, porque é que não lhe basta?
Por que tudo o que tem de fresco e virgem gasta
E destrói? Porque atrás de uma vaga esperança
Fátua, aérea e fugaz, frenética se lança
A voar, a voar?...
Também a borboleta,
Mal rompe a ninfa, o estojo abrindo, ávida e inquieta,
As antenas agita, ensaia o vôo, adeja;
O finíssimo pó das asas espaneja;
Pouco habituada à luz, a luz logo a embriaga;
Bóia do sol na morna e rutilante vaga;
Em grandes doses bebe o azul; tonta, espairece
No éter; voa em redor; vai e vem; sobe e desce,
Torna a subir e torna a descer; e ora gira
Contra as correntes do ar; ora, incauta, se atira
Contra o tojo e os sarçais; nas puas lancinantes
Em pedaços faz logo as asas cintilantes;
Da tênue escama de ouro os resquícios mesquinhos
Presos lhe vão ficando à ponta dos espinhos;
Uma porção de si deixa por onde passa,
E, enquanto há vida ainda, esvoaça, esvoaça,
Como um leve papel solto à mercê do vento;
Pousa aqui, voa além, até vir o momento
Em que de todo, enfim, se rasga e dilacera...

Wednesday, 20 November 2013

"Mal Secreto" by Raimundo Correia (in Portuguese)



Se a cólera que espuma, a dor que mora
N’alma, e destrói cada ilusão que nasce,
Tudo o que punge, tudo o que devora
O coração, no rosto se estampasse;

Se se pudesse o espírito que chora
Ver através da máscara da face,
Quanta gente, talvez, que inveja agora
Nos causa, então piedade nos causasse!

Quanta gente que ri, talvez, consigo
Guarda um atroz, recôndito inimigo,
Como invisível chaga cancerosa!

Quanta gente que ri, talvez existe,
Cuja a ventura única consiste
Em parecer aos outros venturosa!

Wednesday, 23 October 2013

"As Pombas" by Raimundo Correia (in Portuguese)



Vai-se a primeira pomba despertada...
Vai-se outra mais... mais outra... enfim dezenas
De pombas vão-se dos pombais, apenas
Raia sanguínea e fresca a madrugada...

E à tarde, quando a rígida nortada
Sopra, aos pombais de novo elas, serenas,
Ruflando as asas, sacudindo as penas,
Voltam todas em bando e em revoada...

Também dos corações onde abotoam,
Os sonhos, um por um, céleres voam,
Como voam as pombas dos pombais;

No azul da adolescência as asas soltam,
Fogem... Mas aos pombais as pombas voltam,
E eles aos corações não voltam mais...