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Thursday, 7 March 2024

Thursday's Serial: "Aurora" by José Thiesen (in Portuguese) - the end.

 

18º dia do mês da Vitória

 

Pio XIII

            Mathias foi ordenado padre ao meio-dia e bispo ao meio da tarde.

A transição de militar para sacerdote e bispo não foi fácil para ele.

            Pio XIII guiou-o por toda a sua primeira missa ad Orientem, mas havia exigido dele um sermão completo e Mathias sofreu até o íntimo dos ossos falando de improviso mas o resultado foi satisfatório, segundo seu pequeno rebanho.

Ouvir confissões foi outra experiência difícil. Jochum apresentou de si aspectos que Mathias jamais poderia supor, do pecado ao arrependimento. Mas o mais difícil foi o que Mathias experimentava em sua alma: a opressão física de demônios dirigindo a ele um ódio mortal por seu ministério. Jamais sentira tanto medo em sua vida.

Mathias suava ao ler a fórmula de absolvição escrita num pedacinho de papel e sua mão tremia ao dar a benção a Jochum.

Sorte sua que Pio XIII dava-lhe sempre assistência.

- Não tente ser mais forte do que és, Eminência. Nós estamos em guerra; o príncipe deste mundo está quase a derrotar seu Rei, neste mundo. Se pudesse, Satã em pessoa nos estraçalharia. Sorte nossa que Deus o não permite.

- Eu nunca senti um medo tão palpável, Santidade!

- Sim, mas lembre-se: um demônio não pode mais que o teu Anjo da Guarda e teu anjo é ainda mais poderoso que qualquer demônio porque vê a Deus face à face. Também Satã já foi vencido pela Ressurreição de Jesus, de maneira que este seu poder, esta sua aparente vitória sobre nós, no final, é nada.

E foi no final da manhã seguinte que Jochum retornou espavorido e correu para Mathias.

- Oberst... quer dizer, Eminência!

- Fale, Jochum! (Mathias estava quase feliz por voltar a um território mais conhecido: Oberst).

- Eu estava a fazer patrulha quando percebi abutres no céu e resolvi investigar para onde iam. Achei o corpo de padre Luigi. Estava morto!

- Sim, e que mais?

- Ele foi morto, Eminência! Havia lacerações de pedras e outros cortes que pareciam ser de... flexas ou lanças! Achei isso perto do corpo! E apresentou-lhe um triângulo mal feito, entalhado em pedra.

Mathias compreendeu logo que não podiam estar muito longe de algum acampamento de sobreviventes da Grande Tragédia de doze anos atrás.

Mathias levou Jochum a Pio XIII e apresentou-lhe os fatos.

O Papa refletiu por alguns instantes e falou:

- Vós dois, enterrai Luigi e depois retornai. Entretanto, estarei levando o povo para aquele monte que está na direção do sol nascente.

            Mas Mathias e Jochum não retornaram: o grupo de sobreviventes, que culpavam a Igreja pela destruição da Itália, cercou-os e os mataram a frexadas e lançaços.

            Depois sairam à procura de mais padres e foram encontrá-los já noite no alto duma colina.

            Pio XIII esperou por eles à frente de seu grupo e tentou dialogar com seus perseguidores, mas foi inutil, pois estavam cegados por desespero e ódio.

            Pio XIII foi seguro por dois de seus perseguidores e viu um a um dos seus seguidores serem mortos. No fim, um de seus perseguidores correu para ele de lança em riste, feliz de estar matando a causa de sua tragédia e varou-lhe o coração.

             ...e então toda a glória deste mundo passou.

 

* * * *

 

VI – Flamínea

            A sala do Conselho era como um túmulo silencioso. Pilates conhecia cada uma daquelas faces, algumas desde a infância e quase todos eram parentes seus, por causa dos casamentos contínuos entre os membros das Famílias.

            Doze eram os membros do Conselho, cada um representando uma das doze famílias originais.

            - No informatório aprendi que Ex-Paris em seus dias foi uma estupenda aliada de nossos pais. Assim, esperava encontrar informações daquele tempo que nos conduzissem ao nosso presente. Quem sabe, um dado que nos faltasse.

            - E nosso querido irmão Pilates encontrou o linque perdido?

            Pilates suava, sem saber se era por causa das fortes luzes sobre si, o se era por causa da ansiedade que estava a sentir, mas sem a mostrar.

            - De certa forma, Senhor Conselheiro, e foi em antigas igrejas dedicadas aos deuses daqueles tempos. Em várias havia uma escultura de um homem crucificado de cabeça para baixo. Às vezes, essa estátua pendia sobre o altar, às vezes era um dos deuses a pisar ou quebrar o homem crucificado. Os robots guias explicaram-me que aquele era o Pérfido Profeta, finalmente sobrepujado pelos deuses da Terra, que tomavam seu lugar de direito.

            - Os idiotumanos tinham crenças estranhas, não lhe parece? Por isso merecem tal nome.

            - Estranhas, sem dúvida, Senhor Conselheiro, mas sempre testemunhas da vitória de nossos pais. Entretanto, senhores, o que vou dizer pode soar como um escândalo, mas é verdadeiro. Tendo visto imagens do Pérfido Profeta, movido por um impulso, quiz conhecer a Pérfida Doutrina!

            Vozes elevaram-se no ar.

            - A Pérfida Congregação foi nosso maior adversário!

            - Passar a sua sede a ferro e fogo foi a maior glória de nossos pais!

            - Por sorte ela está quase extinta! O último grupo remanescente foi detectado onde ficava Ex-Florença pelos robots vigilantes que estão indo para lá agora, para exterminarem a todos!

            - Irmãos! Irmãos! – era o pai de Flamínea. Nosso irmão mais novo tem dúvidas e no fundo, como vimos, suas motivações consideram somente o nosso bem. Ouçamo-lo com amor e atenção!

            Pilates sabia que estava em águas perigosas. Havia algo escondido na melifluosidade da voz de seu sogro que o inquietou, mas era necessário seguir adiante.

            - Senhores do Conselho, sim, eu procurei conhecer a Pérfida Doutrina. Não foi fácil encontrar qualquer informação. Tudo o que encontrei estava em antiquíssimos objetos-livro e a custo encontrei um robot com acesso à língua que se falava na Ex-Paris de seus dias.

            - E o irmão Pilates terá encontrado algo de útil para nós?

            - Acho que sim, Senhor Conselheiro!

            Novo alarido.

            - Irmãos do Conselho, por favor! (novamente o pai de Flamínea). Ouçamo-lo!

            - Senhores do Conselho, eu devo confessar pesquisei em inúmeros livros publicados por membros ilustres da Pérfida Congregação e devo dizer que, lamentavelmente, não entendi todos os seus pontos. Inúmeros pontos carecem de qualquer lógica ou mencionam coisas que não tenho idéia do que sejam.

            - Então o querido irmão convoca o conselho para dizer que foi à Ex-Paris vasculhar no lixo da Pérfida Congregação para não entender do que eles falavam?

            - Eu não disse que não entendi nada!

            - Mas não entendeu tudo! Vem então com meias-verdades?

            - Eu acho que tenho uma pista para nos salvar...

            - Salvar-nos do que, exatamente, irmão? disse alguém com uma voz que arranhava.

            - Precisamos ser salvos da tua loucura! gritou outro.

            Pilates buscou o pai de Flamínea com os olhos e viu um homem que parecia deliciado com a situação, mas isso foi um instante: o homem ergueu-se e impôs-se ao grupo.

            - Irmãos do Conselho! Nossos pais lutaram até a morte para criarem Edem para nós! Não perturbemos sua glória com ódios e discussões inúteis. Irmão Pilates tem um ponto forte a seu favor. Ele alega que estamos em decadência e apresenta fatos para sustentar sua posição. Ora, somos fortes e sábios o suficiente para aceitar que contra factum argumentum non est. Sejamos dignos de nossos pais! Em sua busca por iluminação ele foi ao passado - o que é sábio – e procurou pistas na Pérfida Doutrina. Chocante? Sim, mas quem diz que não se aprende com o inimigo? O mínimo que se aprende com o adversário é o que não queremos ser e quem de nós pode afirmar que não existem verdades naquilo que o oponente diz? Heia! Sejamos grandes, irmãos! Vamos, Pilates, conta-nos o que encontraste que nos pode ajudar?

            E Pilates falou. Longa, pensada, meticulosamente, a fim de que nenhuma palavra se perdesse por falta de compreenção, sobre os valores esquecidos de ha muito, sobre um Pai comum e todos servirem-se mutuamente como irmãos, o oposto do que se conhecia em Edem, e o mais importante: como tal doutrina salvou Ex-Europa quando o Império Romano Ocidental esfacelara-se sob as invasões bárbaras.

Mas seus ouvintes jamais ouviram falar de romanos ou bárbaros e respondiam às suas palavras com sorrisos de condescendência ou desprezo.

Pilates compreendeu que estava acabado.

            A reunião acabou no final da tarde e Flamínea estava tomada de fúria!

            Não por causa da insólita pesquisa de Pilates, mas por ele se ter ousado opor ao Reino. Ele estava a banhar-se, como se nada houvesse acontecido, mas ela sabia, todos sabiam que Pilates estava acabado e que sua ação lhe traria consequências, consequências graves. O Reino precisa ser uno e não dividido em partidos e diferentes posições.

            Ela precisava falar com seu pai. Conseguir dele, talvez, fazer de Pilates uma estátua viva para engalanar seu quarto e assim mante-lo por perto.

Por um momento deliciou-se a imaginar...

                     ...deixa-lo pendurado naquela parede...

                                    ...ou suspenso num tripé naquele canto?

O pequeno comunicante de Flamínia soou, fazendo-a estremecer e voltar de seus sonhos.

Correu para ele, tocou-o e viu no pequeno ecrã a face de seu pai a sorrir-lhe.

- Meu pai sorri?

- Sempre que vejo minha filha!

- Pois estou furiosa! Não entendo Pilates! O que foram aquelas tolices que disse?

- Tu o dizes: tolices.

- Mas ele...!

- Sempre imagei que estarias perturbada, pois conheces as regras de nossa sociedade. Por isso resolvi falar-te. Daqui a pouco chamarei Pilates para uma conversa e estou certo de que todos os problemas serão resolvidos.

- Vais matá-lo?

- Somente em último caso; mas, se necessário, farei de modos a dar-te o seu corpo para que aproveites dele no que te aprouver.

- Vais mesmo tentar salva-lo?

- Farei tudo para te ver feliz! Estou em minha sala de controle vendo-o no banho.

- Ele parece bem?

- Sim. Pensativo, dentro da banheira. Sem dúvida, considerando sua posição.

- Papai, o que aconteceu com ele? O que está por detrás de suas experiências?

- Eu sei, talvez melhor do que o próprio Pilates, mas não vou te dizer. É uma informação que cabe somente aos membros do Conselho. Nada que uma boa, honesta conversa não resolva. Afasta de ti todo o temor e desfrutes bem o teu noivo! Tenho certeza de que, amanhã de manhã, já tudo estará esquecido e superado! Agora um beijo e boa noite! disse ele num sorriso confiante e sereno.

Ela tentou retribuir-lhe o mesmo sorriso, mas falhou completamente.

Com a ligação encerrada, os demais membros do Conselho, escondidos atrás da câmera comunicadora, sairam das sombras.

- É impressionante o amor que tens por sua filha, Deimos!

Ele sorriu e disse: quem de nós não ama seus filhos? Nossos sangue e carne! Ossos de nossos ossos! Por isso, preocupa-me tanto o que se passa com o Conselheiro Ário. Seu coração deve estar cheio de tristeza.

- Tristeza, Deimos? Frustração, mas não tristeza. Todos os senhores sabem que dei a Pilates a melhor educação e tudo fiz para mante-lo longe de... de sua...

- É uma palavra que nos machuca a boca, não é mesmo? disse Deimos, cheio de compaixão. Entretanto, sabemos que não podemos permitir que Pilates amadureça as suas idéias. Eden não pode ser dividido! Mas, antes que te adiantes, Ário, fiz uma promessa a minha filha e serei eu a cuidar de Pilates.

            - Amén, disse Ário.

            Ao receber pelo comunicante o convite de Deimos para o ver em seu escritório, Pilates estava inseguro. Sabia que suas idéias e descobertas o haviam desgraçado. Ainda assim, estava convicto de ter descoberto algo, de saber que sua sociedade estava viciada numa auto-indulgência que a reduzia a nada do que deveria ser. Seus sentimentos o faziam ver, ainda que indistintamente, um Pilates que devia ser, mas que Edem sufocava.

                        ...e assim, Edem voltava e a lembrança de sua desgraça. Conhecia as leis de Edem e sabia que Edem era indivisível e ele tornou-se a divisão, um pária.

            Era noite quando Pilates entrou no escritório luxuoso e monumental de Deimos. Um terror intenso e sem foco o invadiu secando-lhe a boca.

            O Chefe do Conselho o recebeu com um largo sorriso e braços abertos.

            - Pilates! O maior assunto de Eden!

            - Lamento terrivelmente que minhas idéias tenham causado essa terrível impressão. Meu desejo era elevar-nos.

            - Ninguém em Edem deseja ser elevado, Pilates, disse Deimos dirigindo-se para o bar. Queres beber algo? Vinho, gim?

            - Não, senhor.

            Enquanto abria uma garrafa de uísque e servia dois copos, Deimos perguntou: por acaso mudaste de idéia?

            - Para ser honesto, creio que não, senhor.

            - Ah! disse Deimos pasando-lhe um dos copos.

            O medo que Pilates sentia era u’a mão fria segurando seu coração, impedindo-o de bater.

            - Senhor Chefe do Conselho, eu não sei bem o que se passa comigo; o que em mim vibrou e me fez buscar o que não conhecia, que me faz querer ser... mais, ser melhor... Não sei como definir isso. Mas também sei que não lhe posso voltar as costas.

            - Ah, o pássaro doirado da juventude! Lembro quando teu pai mandou-te a mim para que eu começasse tua educação. Um menininho de sete anos! Gritaste tanto, por tantas noites! Ah, e isso te faz enrubescer? Que delicioso! Não! Podes fechar tua roupa, não quero desfrutar-te. Mas sabes que tua pronta resposta também deixa-me feliz? Ela mostra que teus pais e todos os demais membros do conselho fizeram em ti um bom trabalho. Mas o momento agora, pede verdade. Gosto de tua franqueza e honradez.

Pilates notou um ligeriríssimo sinal de desprezo quando Deimos disse as últimas palavras.

-Sabes, meu jovem, que nossos pais buscaram, sim, construir um mundo melhor.Foram séculos a tentar, até que nosso senhor mostrou-lhes quão simples era tornar o sonho realidade! Os menosumanos eram idiotas que, perdendo a pérfida doutrina, ganharam o medo de morrer. Então fizemos doenças e fizemos a cura dessas doenças. Mas eram eles a doença, não eram?, superpopulando o planeta, consumindo os seus recursos. No tratamento e profilaxia das doenças que criamos estavam a alteração genética que fez os menosumanos machos ficarem estéreis e efeminados. Mas como eles já não se importavam mais em criar famílias, mas em desfrute mútuo e carreira profissional, isso passou despercebido.

“Criamos instituições mundiais para cuidarem dos que ficavam, dando-lhes os cuidados básicos, sabendo que, cedo ou tarde, eles seriam mandados à morte digna. Fomos reduzindo a idade mínima para a morte digna através de leis, até chegarmos ao que temos hoje.

“Diga-me lá, Pilates, para que um menosumano precisa viver mais que trinta anos?

“Desenvolvemos o processo de clonagem. E em cem anos não mais haviam mais japoneses, espanhóis, italianos e outros povos.

            “Botamos robots a preservarem as ex-cidades que nossos pais acharam interessantes manter como resorts e museus, construímos Edem e cá estamos a viver felizes e em paz, desfrute mútuo, sem outra lei que nossos desejos.

            “Os menosumanos vivem em prisões que lhes descrevemos como cidades, comem do nosso lixo e também vivem, numa escala menor, entregues a seus desejos.

            “O planeta vive em paz, harmonia, sem poluição! Criamos o paraíso!

            Deimos estava triunfante, quase sem fôlego. Havia um profundo deleite malévolo em sua expressão e sua voz subitamente soou como que arranhada.

            -Beba teu uísque, Pilates!

O comando era irrecusável e Pilates bebeu quase o copo todo num grande gole.

-Mas, sim, algo se foi perdendo em nós. Teus estudos fizeram-te conhecer a pérfida doutrina? Lestes seus textos, não foi?

- Precisei da ajuda de robots, senhor, e mesmo eles tinham dificuldade com certas palavras que não podiam pronunciar.

-Sim. Nós programamos os robots para reconhecerem certas palavras mas não as pronunciarem. A pérfida doutrina precisa ficar enterrada, entendes? Precisa! Se ela voltar, o mundo sairá de controle, novamente!

Pilates sentia frio no corpo. Bebeu o resto do uísque e viu quando Deimos poz seu copo sobre a grande mesa de mogno – o copo estava ainda cheio.

Também notou que o arranhado na voz de Deimos estava intenso e permanente, parecendo que eram mais de uma voz a sairem de sua boca.

- Eu consegui, Pilates! Mostrei ao Carpinteiro que a sua criação o rejeita! Venci o meu inimigo!

- Quem venceste, Deimos? Que inimigo?

Pilates teve por resposta uma larga, desbragada gargalhada que fez seu sangue gelar nas veias.

            ...o ar na sala subitamente estava gelado!

- Não sou Deimos, Pilates! Sou teu deus, senhor e mestre! Aquele a quem tu serves! Eu possuo Deimos, como possuo a todos em Edem!

Pilates tinha os olhos turvos ou via mesmo as sombras do escritório moverem-se e tomarem formas obscenas, como era obscena o voz que lhe falava?

- Um dia, fui príncipe deste mundo, mas hoje, reino absoluto! Os últimos seguidores do Carpinteiro estão sendo mortos neste momento e tu também, estás morrendo. Corpo gelado, visão turva e agora... a dor!

Pilates rolou da poltrona para o chão sentindo excruciante dor no estômago.

- eucus... poem...ti...!

- O que, verme?

-...teu inimig... o... é meu amigo! EU CUSPO EM TI! gritou Pilates com o último fôlego de vida que tinha e morreu.

             ...e então toda a glória deste mundo passou.

Thursday, 29 February 2024

Thursday's Serial: "Aurora" by José Thiesen (in Portuguese) - V

 

17º dia do mês da Vitória

 

Lúcia

            Outro dia e novamente Lúcia foi informada pelo relógio que não havia trabalho para ela naquele dia e que ela poderia ficar em casa - mas ela, subitamente atingida pelo pensamento de que o governo lhe poderia dar a Morte Digna por falta de ocupação para ela, decidiu que iria para a rua.

            - Nada para fazer em rua, disse o relógio.

            - Eu caminhar, disse ela evitando falar de mais.

            - Senhora ter esteira ali.

            - Eu quer sair de casa..

            - Governo dar casa boa; sem trabalho não precisa rua.

            - Humanos muito complicados. Quero rua.

            O relógio olhou-a em silêncio.

            Lúcia percebeu que vivia numa ratoeira: o Governo dava a todos tudo o que precisassem para somente saírem de casa se absolutamente necessário.

            Porque alguém haveria de sair de casa, senão para trabalhar ou dar prazer a um concidadão?

            O relógio olhava para ela, paciente.

            - Tu certo, disse ela. Eu ficar.

            Deixou-se cair no sofá e, mirando o relógio nos olhos, disse-lhe: Qual condição para ser fora da lei?

            - Ser contra o Governo, contra o reino de deus.

            - Porque ser contra o reino de deus?

            - Algumas pessoas corrompidas pelo demônio. Tu querer falar com Jesus?

            - Ñ. Eu querer falar contigo. Onde estar os fora da lei?

            - Em todo o lugar.

            - Inclusive aqui-cidade?

            - Em todo o lugar.

- Onde ir os fora da lei que recupero?

- Ser encaminhados a postos de trabalho.

- Porque nunca eu ver Governo?

- Os membro do Governo viver ocupados demais para ser visto.

- Eu quer falar com Governo. Como fazer isso?

O relógio faz uma pausa.

- Informação restrita.

- Mas ela existir?

- Informação restrita.

- Porque tu ñ dar informação q existe?

- Informação restrita.

Com a terceira resposta, o relógio enviou um alerta vermelho aos Supervisores mais próximos, para que viessem à casa de Lúcia: ela era um perigo.

 

* * * *

Pio XIII

            Na manhã seguinte, não havia mais morangos. Dois do grupo haviam salvo alguns, mas os morangos salvos amanheceram mofados.

            O Papa sorriu e disse aos previdentes: maná! Lembrem do maná!

            Mathias olhou à volta e não viu Luigi.

            - Padre Luigi! gritou ele e todos ficaram alertas, procurando por ele.

            Procuraram por ele por longo tempo, mas em vão. Mathias apresentou-se diante do Papa e anunciou-lhe formalmente o insucesso das buscas.

            O rosto do velho revelava paciente resignação.

            - A Igreja, disse ele, tem tido vários judas ao longo de sua história. Do seu comecinho até o último momento. Gostaria de confessar-se, Oberst? Não temos muito tempo mais.

            - Confessar, Santidade? Eu não tenho tido...

            - Sou o Papa falando ao seu Oberst, mas também o papai falando ao seu Mathias. Há um pecado nunca confessado em tua alma. Talvez Luigi morra com ele e por causa dele vá ao Inferno. Não seja assim contigo.

            - Vossa Santidade o sabe!?

            - Soube ontem. Venha. É tempo de o filho pródigo voltar à casa de seu pai.

            - Eu realmente corro o risco de ir ao Inferno?...

            - Também há algo de meu interesse. Padre Luigi desertou e eu preciso de um padre, agora. Gosto muito de Jochum, de sua juventude ebuliente e sincera, mas meu Oberst é mais maduro; sábio, talvez. Preciso de um padre, e ainda mais de um bispo. Aceitas?

            - Santidade eu nunca... Eu sou um soldado, eu...

            - Não posso te dar uma semana para pensares. Olhe para eles! Se morro agora, serão ovelhas sem pastor. Há coisas que somente um bispo pode fazer.

            - Mas e os outros padres?

            - Sim, mas como disse, não há outro bispo aqui além de mim. Sabes, por séculos a Igreja vem tendo bispos diplomatas. Agora é tempo de um bispo guerreiro.

           

* * * *

Flamínea

O pai de Flamínia tinha um corpo obeso ams ainda guardava a agilidade e fluidez de movimentos próprio aos bons dançarinos. O final do desfrute era dos seus moemntos favoritos na vida. Ele deixava seu corpo grande esparramar-se na cama, para melhor aproveitar o momento, quase com pena de jovens c omo Pilates que já se levantara e dirigia-se ao duche.

- Tua audiência foi marcada para amanhã.

Pilates não sentiu-se feliz, mas respondeu: Obrigado, Senhor.

- Deves ter mesmo algo importante para dizer-nos.

- Confesso ao Senhor que tenho medo dessa audiência mas, sim, penso que é importante relatar o que descobri. É algo que se relaciona com nosso futuro.

- Oh! Isso parece grave. (A voz dele era quase brincalhona, como uma criança com seu brinquedo.) Flamínia também está preocupada contigo. Sempre foste brilhante, disciplinado, obediente e... aberto ao novo. Tudo isso estava aqui em minha cama. Mas nunca imaginei que tais coisas te levassem para alem do desfrute sem amarras morais. Foste a Ex-Paris, aprendestes coisas novas e hoje, agora, foste brilhante, disciplinado, obediente, aberto ao novo, mas... como direi...Contido?

- Nosso horizonte é o gozo pessoal, Senhor. Sem limites. Mas tudo tem um limite, não é?

- A ciência de nossos pais acabou com quase todos.

- Perdoe-me, Senhor, mas a ciência de nossos pais tornou-se o nosso limite. E se para além dele ainda existir mais? Para o que não estamos olhando? A ciência de nossos pais nos controla e não saímos de Edem.

Enrolado numa toalha, Pilates deixou a casa de banho e acercou-se da parede de vidro e apontou para a imensa floresta que crescia intocada por gerações e que cercava Edem como um oceano sem fim: a ciência de nossos pais não controla a vida lá fora. Lá, estamos à mercê da selva. Mas quem organiza a selva, uma vez que sabemos que ela não é caótica?

- Meu belo menino, disse o outro num sorriso todo amigável, “lá”, não existe. Só Edem conta, só Edem importa, só Edem existe. Teus olhos mostram um mundo que não existe mais, que foi superado. Esqueça o que vês e ponhas isso na reta inteligência. Se dás atenção à selva, vais perder-te nela e chegarás a uma triste conclusão.

- Sobre quem impõe o limite. Há alguém que o faz, não?

- Vou aguardar ansioso o teu discurso de amanhã no Conselho. Tenho certeza de que será uma experiência soberba para todos nós...

E com um gesto comandou que Pilates saísse de seu quarto.

Pilates obedeceu silêncioso, sentido como algo gelado aninhado em seu estômago e no corredor de soberba beleza que ele conhecia tão bem, a caminho de seus aposentos, Pilates sentiu pela primeira vez uma desconfortável vergonha por sua nudez.

 

* * * *

 

Lúcia

            - Onde ficar Governo?

            - Informação restrita.

            - Existir Governo?

            - Se ñ existisse ele ñ dar o que tens. Tu nascer porque Governo decretar entidade mulher dever nascer com nome de Lúcia.

            - Governo ser feito de entes mulher ou homem?

            - Informação restrita.

            - Quem ser deus?

            - Deus ser supremo q criar tudo e q destinar mulher e homem para vida eterna em seu reino.

            - Porque mulher e homem morrer?

            - Morte ser passagem para o reino de deus.

            - Que significar “perdoar”?

            - Palavra não ser.

            - Q coisa tu esconder?

            - Informação restrita.

            Então a porta do apartamento se abriu e quatro Supervisores informaram a Lúcia que a detinham para falar-lhe de deus.

            Lúcia sabia da inutilidade de reagir e não queria reagir. Deliberadamente ela falara e falara para tentar descobrir o que a sufocava. Finalmente ela descobrira que a não existência de palavras não implicava a inexistência do não nomeado.

            Lúcia controlou seu medo e os acompanhou.

            O mundo não mais a veria, mas a morte dela seria escondida de todos.

            Todas os que conheceram Lúcia 15355 foram informadas de sua transfência para a cidade de Alfa-Iorque, no quadrante Norte Americano do reino de deus.

            Sophie 25486 foi promovida ao cargo que era de Lúcia 15355 e Jorge 548622 ao cargo de Sofie 25486.

            A entidade mulher Lúcia 15356 havia sido gerada com sucesso no Posto Renovador e em nove meses sairia do nutriciador uterino, uma fora da lei reducada por Lúcia chamada Astrid R-211. Astrid já estava com esquizofrenia-paranóide bem desenvolvida e por isso era mantida amarrada numa cama para evitar danos a si e aos 8 bebés que já tinham sido gerados nela desde a manifestação da doença.

            A Morte Digna de Astrid já estava marcada para em seguida ao nascimento de Lúcia 15356.

            Raymond estava em seu apartamento já a 26 dias, pois não havia trabalho para ele. Ficava a jogar “A Última Morte”, jogo que o fascinava. A edição deste ano era incrivelmente superior à do ano passado e a do próximo ano, segundo o que o Governo anunciava, iria ser ainda mais perfeita!

            Ele jogava maquinalmente a sufocar no fundo da mente a idéia de que lhe poderia ser determinada a Morte Digna por causa de sua longa inatividade.

            “A Última Morte” fazia com que ele se sentisse homem – o homem que jamais fora ou seria. Quando ele vestia os óculos multidimensionais e começava a ação, ele se liberava. Isso era melhor que seu trabalho, que satisfazer-se com alguém...

                                    Lúcia 15355

Concentra-te no jogo, antes que chores.