No tempo dos reis cristãos, nas terras onde se fundaria Almaceda, viviam num castelo Dom Rodrigo e sua irmã, Dona Madalena. Embora tivessem temperamentos contrários, viviam os dois manos em harmonia.
Explico: Dom Rodrigo era jovem ardente, aventureiro, dado à irreverência e já Dona Madalena era recolhida e pia, sempre atenta às inspirações de seu anjo guardião; como a piedade dela impressionasse a ele, seus temperamentos e personalidades se harmonizavam.
Quando não estavam na corte, mas em suas terras ricas e férteis, os manos gostavam de passeios a cavalo, onde conversavam e, cada um a seu modo, reconheciam e agradeciam suas vidas felizes e sem dificuldades.
Pois foi numa manhã de primavera, durante um desses passeios por seus campos atapetados de flores que Dom Rodrigo avistou algo branco, a refletir a luz do sol. Curiosos, os dois irmãos acercaram-se daquele objeto e descobriram uma caveira.
Diante de tal visão, Dona Madalena volveu a face para longe e Dom Rodrigo, vendo a reação da irmã, viu logo uma oportunidade de deboxe e, curvando-se para o crânio, disse num sorriso:
- Salve, amiga caveira!
- Devias ter mais respeito para com os mortos, Rodrigo!
- Mais respeito?! Se parei para sauda-la! e voltando-se novamente para a caveira disse, do alto do cavalo: A amiga estava cansada do cemitério e saiu para tomar um sol?
- Deixes de tolices e vamo-nos embora daqui! disse Dona Madalena já volvendo o cavalo para outro lado.
- Não sem antes acenar um adeus para minha amiga, pois o respeito se impõe! Adeus, amiga e apareça lá em casa para um jantar, que serás bem vinda!
- Rodrigo! Que despeito é esse?
- Não há ofensa, madame, disse uma voz máscula vinda não se sabia de onde. Fui convidado e esta noite estarei à vossa mesa!
Mesmo Dom Rodrigo perdeu o sorriso brejeiro e, tomado de vero pavor, tomou o rumo em disparada para um convento conhecido, acompanhado da irmã, igualmente apavorada.
- Que fizeste, Rodrigo, gritava-lhe ela.
Os monges abriram-lhes a porta do convento e Dom Rodrigo contou aos religiosos tudo quanto acontecera, mas eles não lhe deram muito crédito. Ainda assim, dada sua nobreza, ofr’ceram-lhe um crucifixo bento para proteger-se de qualquer assalto do maligno.
Voltando à casa, os irmãos olhavam-se com temor nos olhos e Dona Madalena disse: que faremos, Rodrigo?
E o irmão, segurando com ardor o crucifixo dado, disse: prepararemos a ceia para nosso convidado!
Por ordem de Dom Rodrigo preparou-se um grande banquete e uma bela mesa para receber o estranho convidado.
Quando toda a cena ficou pronta, sentaram-se à mesa, sem alegria em suas faces jovens e belas. Oravam, entregando-se Àquele que tudo pode. Estavam tão entregues às suas aflições que deram um pulo na cadeira quando a porta do castelo atroou com pancadas fortes.
A voz viril e cava ecoou pelos corredores até chegar aos irmãos: diz a teu amo que seu convidado chegou!
Minutos depois, um criado apresentou um homem alto, coberto com um manto negro e sujo de terra, usando um grande e pesado bordão de ferro preto.
Os irmãos sentiam-se cair num abismo.
Tentando esconder seu medo, Dom Rogrigo levantou-se e apresentou ao espectro seu lugar à mesa.
- O meu amigo bem entende se declinar de comer, que minha comida agora é outra! retrucou o triste convidado. Mas bem vês, atendi ao teu convite. Agora é minha vez de convidar-te a vir comigo. Por certo me não farás desfeita.
- Rodrigo, fica! Isso não é coisa santa!
- O valente Dom Rodrigo terá medo duma caveira morta?
Sem largar o crucifixo dado pelos monges, Dom Rodrigo, sem palavras, vestiu sua capa verde, beijou a irmã e esperou que o espectro tomasse a dianteira.
Dona Madalena caiu de rodilhas, a chorar e implorar o favor divino para seu irmão.
Entretanto, pelos campos iam em silêncio o vivo e o morto.
Dom Rodrigo, agarrado ao crucifixo, fingia ter a coragem que lhe faltava.
Finalmente chegaram ao campo santo duma capelinha quase em ruínas e o morto chegou a um mausoléu cujas portas se abriram sozinhas.
- Entra! disse o espectro. Este é o meu castelo e aqui me farás companhia!
- Não! disse Dom Rodrigo quase num grito de pavor.
- Será que agora o bravateiro audaz tem medo duma caveira?
- Medo, sim, mas não duma caveira. Tremo pelo futuro de minha irmã, sozinha, sem saber de mim! Ademais, se estás enterrado em campo santo é porque morreste como cristão!
- Pois morri foi como todo o homem. Não vivi nem morri como cristão, apesar de ter enganado a todos sobre minha vida dissoluta. Só não enganei ao Justo Juiz, que conhecia todos os meus pecados e condenou-me.
- Pois fica em teu inferno que volto e já para minha irmã! Se errei contigo, peço-te perdão, mas não te vou seguir!
- Perdão! Um condenado não sabe o que é isso! Mas o que te vale é esta cruz benta que tens contigo, é o teu próprio arrependimento, são as preces de tua irmã! Sem isso já serias meu no Inferno. Some-te daqui e que tua alma ceda ao Bem!
Dom Rodrigo não esperou mais palavra e correu à toda brida para a casa, repetindo consigo:
- Que minh’alma ceda! Que minh’alma ceda!
Chegou em casa esbaforido, sujo e com as roupas rasgadas por causa duns tantos tombos que teve.
Reuniram-se os irmãos com muitas lágrimas d’alegria e Dom Rodrigo se não cansava de pedir perdão à mana, prometendo-lhe mudar de vida de ali por adiante.
De fato, Dom Rodrigo voltou-se para Deus, instruiu-se na fé e dedicou-se com afinco às obras de misericórdia principalmente para com os pobres que viviam próximos de seu castelo.
Frequentemente era visto a murmurar para consigo mesmo: que minh’alma ceda! que minh’alma ceda! de maneira que o povo começou a chamá-lo de Almaceda e bem como ao seu castelo e terras e assim se continua a fazer em memória ao nobre que tanto bem fez ao seu povo.