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Wednesday, 27 November 2019

Good Readings: "Trezentas Onças" by João Simões Lopes Neto (in Portuguese)


TREZENTAS ONÇAS

Eu tropeava nesse tempo. Duma feita que viajava de escoteiro, com a guaiaca empanzinada de onças de ouro, vim varar aqui neste mesmo passo, por me ficar mais perto da estância da Coronilha, onde devia pousar.
Parece que foi ontem!... era por fevereiro, eu vinha abombado da troteada.
-Olhe, ali, na restinga, à  sombra daquela mesma reboleira de mato, que está vendo, na beira do passo,desencilhei, e estendido nos pelegos, a cabeça no lombilho, com o chapéu sobre os olhos, fiz uma sesteada morruda.
Despertando, ouvindo o ruído manso da água tão limpa e tão fresca rolando sobre o pedregulho, tive ganas de me banhar, até para quebrar a lombeira... e fui-me à água que nem capincho!
Debaixo da barranca havia um fundão onde mergulhei  umas quantas vezes, e sempre puxei umas braçadas, poucas, porque não tinha cancha para um bom nado.
e solito e no silêncio, tornei a vestir-me, encilhei o zaino e montei.
Daquela vereda andei como três léguas, chegando à estância cedo ainda, obra de braça e meia de sol.
-ah!... esqueci de dizer-lhe que andava comigo um cachorrinho brasino, um cusco mui esperto e boa vigia.
Era das crianças, mas, às vezes dava-lhe para acompanhar-me e, depois de sair à porteira , nem por nada fazia caravolta, a não ser comigo. e, nas viagens dormia na cabeceira dos arreios.
Por sinal que uma noite...
              Mas isso é outra cousa, vamos ao caso.
Durante a troteada bem reparei que volta e meia o cusco parava-se na estrada e latia e corria para trás, e olhava-me e latia de novo e troteava um pouco sobre o rastro:-parecia que o bichinho estava me chamando!... Mas como eu ia, ele tornava a alcançar-me, para daí a pouco recomeçar.
-Pois amigo! Não lhe conto nada!quando botei o pé em terra na ramada da estãncia, ao tempo que dava as boas tardes!ao dono da casa, aguentei um tirão seco no coração... não senti na cintura o peso da guaiaca!
Tinha perdido trezentas onças de ouro que levava, para pagamento de gados que ia levantar.
E logo passou-me pelos olhos um clarão de cegar , depois uns coriscos tirante a roxo... depois tudo ficou cinzento, para escuro...
Eu era mui pobre-e ainda hoje, é como vancê sabe... estava começando a vida, e o dinheiro era do meu patrão, um charqueador, sujeito de contas mui limpas e brabo como uma manga de pedras...
assim, de meio assombrado me fui repondo.quando vi que indagavam:
-Então patrício? está doente?
-Obrigado! Não senhor, respondi, não é doença, é que sucedeu-me uma desgraça: perdi uma dinheirama do meu patrão...
-A la fresca!...
-É verdade ... antes morresse, que isto!que vai ele pensar agora de mim!...
-É uma dos diabos, é... ; mas não acoquie, homem!
Nisto o cusco brasino deu uns pulos ao focinho do cavalo, como querendo lambê-lo, e logo correu para a estrada , aos latidos. e olhava-me, e vinha e ia, e tornava a latir...
Ah!... E num repente lembrei-me bem de tudo. Parecia que estava vendo o lugar da sesteada, o banho, a arrumação das roupas nuns galhos de sarandi, e, em cima de uma pedra, a guaiaca e por cima dela o cinto das armas, e até uma ponta de cigarro de que tirei uma última tragada, antes de entrar na água, e que deixei espetada num espinho, ainda fumegando, soltando um fitinha de fumaça azul, que subia, fininha e direita, no ar e sem vento... tuto, vi tudo.
Estava lá. na beirada do passo, a guaiaca. e o remédio era um só: tocar a meia rédea, antes que outros andantes passassem.
Num vu estava a cavalo, e mal isto, o cachorrito pegou a retouçar, numa alegria , ganindo-Deus me perdoe!-que até parece fala!
             e dei de rédea, dobrando o cotovelo do cercado.
Ali logo freteei com uma comitiva de tropeiros, com grande cavalhada por diante, e, que por certo vinha tomar pouso na estância. Na cruzada nós todos  nos tocamos  na aba do sombreiro: uns vinham de balandrau enfiado. Sempre me deu uma coraçonada para fazer umas perguntas... mas engoli a língua.
Amaguei o corpo e penicando de esporas toquei a galope largo.
O  cachorrinho ia ganuçando, ao lado, na sombra do cavalo, já mui comprida.
A estrada estendia-se deserta,à esquerda os campos desdobravam-se a perder de vista, serenos, verdes, clareados pela luz macia do sol morrente, manchados de pontas de gado que iam se arrolhando nos paradouros da noite; á direita, o sol. muito baixo , vermelho-dourado, entrando em massa de nuvens de beiradas luminosas.
Nos atoleiros secos, nem um quero-quero, uma que outra perfiz, sorrateira, piava de manso por entre os pastos maduros, e longe, entre o resto da luz que fugia de um lado e a noite que vinha, peneirada, do outro, alvejava a brancura de um joão-grande , voando, sereno quase sem mover as asas, como uma despedida triste, em que a gente também não sacode os braços...
Foi caindo uma aragem fresca e um silêncio grande, em tudo.
O Zaino era pingaço de lei, e o cachorrinho, agora sossegado, meio de banda, de língua de fora e de rabo em pé, troteava miúdo e ligeiro dentro da polvadeira rasteira que as patas do flete levantavam.
             e entrou o sol, ficou nas alturas um clarão afogueado, como de incêndio num pajonal , depois o lusco-fusco; depois cerrou a noite escura, depois, no céu, só estrelas... só estrelas...
O Zaino atirava freio e gemia no compasso do galope,comendo caminho. Bem por cima da minha cabeça as TRES MARIAS tão bonitas, tão vivas, tão alinhadas, pareciam me acompanhar. lembrei-me dos meus filhinhos, que as estavam  vendo, talvez, lembrei-me da minnha mãe, de meu pai, que também as viram , quando eram crianças e que já as conheceram pelo seu nome de Marias, as Tres Marias- Amigo!Vancê é moço, passa sua vida rindo... Deus o conserve!... sem saber nunca como é pesada a tristeza dos campos quando o coração pena!
-Há que tempos eu não chorava!... Pois me vieram, lágrimas... devagarinho, como gateando, subiram... tremiam sobre as pestanas, luziam um tempinho... e ainda quentes, no arranco do galope, lá caiam elas na polvadeira da estrada, como um pingo d"agua perdido, que nem mosca nem formiga daria com ele!...
por entre minhas lágrimas, como um sol cortando um chuvisqueiro, passou-me na lembrança a toada dum verso lá dos meus pagos:

 QUEM CANTA REFRESCA A ALMA
CANTAR ADOÇA O SOFRER
QUEM CANTA ZOMBA DA MORTE
CANTAR AJUDA A VIVER!...

Mas que cantar, podia eu!...
O zaino respirou forte e sentou, trocando a orelha, farejando no escuro: o bagual tinha reconhecido o lugar, estava no passo.
Senti o cachorrinho respirando, como assoleado.
Apeei-me.
Não bulia uma folha , o silêncio, nas sombras do arvoredo metia respeito... que medo, não, que não entra em peito de gaúcho.
Embaixo, o rumor da água pipocando sobre o pedregulho, vaga-lumes retouçando no escuro. Desci, dei com o lugar onde havia estado: tenteei os galhos do sarandi, achei a pedra onde tinha posto a guaiaca e as armas;corri por todos os lados, mais prá lá, prá cá... ;nada!nada!
Então senti frio dentro da alma... o meu patrão ia dizer que eu o havia roubado!roubado! Pois então eu ia lá perder as onças!... Qual Ladrão,ladrão, é que era!...
E logo uma tenção ruim entrou-me nos miolos, eu devia matar-me, para não sofrer a vergonha daquela suposição.
É, era o que devia fazer: matar-me... e já, aqui mesmo!...
Tirei a pistola do cinto, amartilhei o gatilho... benzi-me, e encostei no ouvido o cano, grosso e frio, carregado de bala...
-Ah! patrício!Deus existe!...
No refilão daquele tormento, olhei pra diante e vi... as TRES MARIAS luzindo na água... o cusco encarapitado na pedra, ao meu lado, estava me lambendo a mão... e logo, logo, o zaino relinchou lá em cima , na barranca do riacho ao mesmíssimo tempo que a cantoria alegre de um grilo retinia ali perto, num oco de pau!... - Patrício!não me avexo duma heresia, mas era Deus que mandava aqueles bichos brutos arredarem de mim a má tenção...
O cachorrinho tão fiel  lembrou-me a amizade da minha gente; o meu cavalo lembrou-me a liberdade, o trabalho, e aquele grilo cantador trouxe a esperança...
Eh-pucha! patrício, eu sou mui rude ... a gente vê caras, não vê corações... ;pois o meu dentro do peito, naquela hora, estava como um espinilho ao sol, num descampado, no pino do meio-dia :era luz de Deus por todos os lados!...
e já todo no meu sossego de homem, meti a pistola no cinto.Fechei um baio, bati o isqueiro e comecei a pitar.
E fui pensando: Tinha por minha culpa, exclusivamente por minha culpa, tinha perdido trezentas onças: uma fortuna para mim.Não sabia como explicar o sucedido, comigo, acostumado a bem cuidar de gado manso-tirando umas leiteiras para as crianças, e a junta dos jaguanés lavradores-vender a tropilha dos colorados... e pronto!Isso havia de chegar, folgado, e caso mermasse a conta... enfim havia se ver o jeito de dar... Porém matar-se um homem, assim no mais... e chefe de familia... isso não!
E d'espacito vim subindo a barranca, assim que me sentiu o zaino escarceou, mastigando o freio.
Desmaneei-o, apresilhei o cabresto, o pingo agarrou a volta e eu montei aliviado.
O cusco escaramuçou, contente; a trote e galope voltei para a estância.
Ao dobrar a esquina do cercado enxerguei luz na casa, a cachorrada saiu logo, acuando. O zaino relinchou alegremente, sentindo os companheiros, do potreiro outros relinchos vieram.
Apeei-me no galpão, arrumei as garras e soltei o pingo que se rebolcou, com ganas.
Então fui para dentro:na porta dei o _Louvado seja JesuCristo, patrício!Boa noite!-e entrei , e comigo, rente, o cusco. Na sala do estancieiro havia uns quantos paisanos;era a comitiva que chegava quando eu saía; corria o amargo.
em cima da mesa a chaleira, e, ao lado dela, enroscada, como uma jararaca na ressolana, estava a minha guaiaca, barriguda, por certo com as trezantas onças dentro.
-Louvado seja Jesu-Cristo, patrício.Boa noite! entonces que tal le foi de susto?...
E houve uma risada grande degente boa.
eu tambem fiquei-me rindo, olhando para guaiaca e para o guaipeva arrolhadito aos meus pés!...