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Wednesday, 23 October 2024

Wednesday's Good Reading: “Tolerância Zero” by Olavo de Carvalho (in Portuguese)

 

Época, 28 de outubro de 2000

Quanto menos são os que falam contra o comunismo, menos têm o direito de falar

Em periódicos regionais, alguns jornalistas denunciam a opressiva hegemonia que os comunistas conquistaram em nossa imprensa e nos meios acadêmicos. Em publicações de alcance nacional, tenho sido o único a tocar no assunto proibido. A extensão e o rigor da proibição podem ser medidos pela virulência insana de certas reações que suscito. Nada de argumentos, é claro. São insultos, intrigas, inculpações projetivas, apelos sumários a minha demissão. Deixam claro que, contra a ascensão esquerdista, nem uma única voz, por fraca e isolada que seja, pode ser tolerada. A concordância deve ser unânime, o silêncio da oposição, total. Precioso silêncio: Gramsci ensina que, na hora H, ele acabará valendo como aprovação popular da tomada do poder pelos comunistas. É preciso, portanto, produzi-lo, antes que a revolução possa tirar a máscara democrática e mostrar sua face hedionda, quando as fronteiras estiverem fechadas e for tarde para fugir. No Rio Grande do Sul, imagem e projeto do futuro Brasil petista, os principais jornalistas de oposição já foram calados por pressão do governo estadual.

Tal é a diferença entre o mero autoritarismo e o totalitarismo. O primeiro contentava-se em calar a maioria, deixando abertas umas válvulas de escape. O segundo exige a plenitude do silêncio, expressa na fórmula sinistra: para a minoria de um, tolerância zero.

O mais extraordinário é que muitos artífices desse estado de coisas proclamam que não são comunistas. Se não são, por que não suportam que alguém fale contra o comunismo?

Se um sujeito diz que não é comunista, mas vê a sociedade com olhos marxistas, prega a luta de classes e admite chegar ao poder pelo uso das armas, o que se pode concluir senão que ele é – ou sonha ser quando crescer – um fac-símile de Fidel Castro? Não obstante, o senhor João Pedro Stedile, por exemplo, entre uma inspeção e outra em seus campos de treinamento de guerrilheiros, assegura, com ar de inocência, que não é sequer esquerdista no sentido mais genérico da palavra.

O mais velho ardil do diabo é dizer que não existe; o do comunismo, jurar que é outra coisa. Em plena revolução chinesa, intelectuais pontificavam que Mao Tsé-tung nada tinha de comunista. Franklin Roosevelt declarou que o próprio Stálin não era comunista. E a imprensa chique de Nova York impôs ao mundo a imagem de um Fidel democrata e anticomunista.

Não há limites para a volúpia comunista de mentir. Comparável a ela, só sua volúpia de matar. Fidel, por exemplo, é um assassino vocacional que começou a carreira matando um político que mal conhecia, contra o qual não tinha nada, só para cortejar um inimigo da vítima, de quem esperava obter favores. E não faltam padres para nos assegurar, com a conveniente unção e o indefectível trémolo sacerdotal na voz, que se trata de um santo homem, que o regime do qual um sexto da população cubana fugiu não é o comunismo, mas o catolicismo. Deve ser mesmo, a julgar pelo rigor dos anátemas que lança sobre os hereges.

Saturday, 12 October 2024

Saturday's Good Reading: “Sobre Kant e o Artigo dos Acadêmicos Franceses” by Olavo de Carvalho (in Portuguese).

 Mídia Sem Máscara, 12 de novembro de 2020.

A cretinice publicada por três academiquinhos contra mim num jornal francês, a propósito de Kant, aparece em DEZENAS de reproduções no Google, enquanto a minha resposta desapareceu quase por completo. Reproduzo-a parcialmente aqui:

 

10 de feveireiro de 2019:

Com relação ao Kant, o texto original tem infinitamente mais autoridade do que quaisquer “especialistas”, mas estes parece que não sabem disso.

Se vocês querem refutar o que eu disse do Kant, citem o texto dele que me desminta em vez de tentar enganar o público com essa pose de “autoridades”.

Esta é a coisa MAIS ESTÚPIDA já escrita sobre Kant: “Para Keinert, Kant se posicionava contra o dogma, mas ‘não necessariamente contra a religião católica’.”

Que caralho é a religião católica sem os seus dogmas?

Querer que a religião católica se desfaça dos seus dogmas é DESTRUI-LA POR COMPLETO. Só um jumento lobotomizado não percebe isso.

Kant era apenas covarde demais para assumir em público o seu ódio do cristianismo, que ele disfarçava numa linguagem complicada para enganar tolos como esse Keinert, que não entende mesmo NADA de cristianismo.

O artigo “kantiano” do Grobo mostra uma vez mais que o nível de inépcia dos professores universitrios brasileiros já ultrapassou a escala do descritível.

Um dos três kantólatras do Grobo escreve:

 

“— Olavo diz estar construindo uma comunidade de amigos em que todos pensam e querem a mesma coisa. Não é à toa que Kant seja um pensador que precisa ser deturpado. Para Kant, desacordo é bom, é assim que a gente cresce — diz Tourinho Peres.”

 

É a mistura tipicamente uspiana de analfabetismo funcional e malícia difamatória. A “comunidade” a que ele se refere vem da definição de amizade segundo Sto. Tomás de Aquino — “idem velle, idem nolle” — que de fato inspira os meus cursos. Mas só uma mente porca pode imaginar que o amar as mesmas coisas equivalha a repetir um discurso uniforme como o fazem, aliás, os três incapazes e toda a militância uspiana. O comum amor à verdade implica o desejo de buscá-la por meio da confrontação de hipóteses ao longo dos tempos (‘veritas filia temporis“), e nada o ilustra melhor que as discussões filosóficas entre homens sinceros, das quais tanto o círculo de amigos de Sto. Tomás quanto os meus alunos têm dado exemplos e que JAMAIS se viram no “centralismo democrático” uspiano-petista.

Se querem dar exemplo de tolerância democrática”, seus palhaços, mostrem-me UMA SÓ TESE CONSERVADORA OU ANTI-ESQUERDISTA QUE HAJAM UM DIA ORIENTADO E APROVADO.

Farsantes, difamadores abjetos.

Wednesday, 11 September 2024

Wednesday's Good Reading: "Guerra e Império" by Olavo de Carvalho (in Portuguese)

 

 O Globo, 22 de março de 2003.

O que poderá vir a ser um Império americano propriamente dito, nascido sobre os escombros do projeto revolucionário e o virtual cadáver da ONU, é algo que só começará a se esclarecer daqui por diante.

Em 1995, expus em “O jardim das aflições” a teoria de que o novo Império mundial que se formava de mistura com a globalização econômica era um fenômeno bem diferente de tudo o que se conhecera até então como “imperialismo”. Malgrado elogios recebidos de críticos nacionais e estrangeiros, o livro continuou marginal, jamais sendo citado nas discussões correntes, quer midiáticas ou acadêmicas.

Cinco anos depois, o sr. Antonio Negri ganhou um dinheirão e aplausos universais vendendo a mesma teoria em seu livro “Império”, escrito em parceria com Michael Hardt. A concordância do sr. Negri comigo ia desde as origens do processo, que fazíamos remontar ao século XVIII, até à localização explícita da sede do governo imperial, que ambos situávamos no edifício da ONU e não na Casa Branca. Entre esses dois extremos, concordávamos também na definição do Império como um novo paradigma civilizacional e não apenas uma mutação dos velhos imperialismos e colonialismos.

Jamais me ocorreu que o sr. Negri, o qual nunca me viu mais gordo, tivesse me plagiado. Ele apenas tinha um cérebro mais lento, o que não era culpa dele, e eu não tinha um lobby publicitário a meu serviço, o que não era culpa minha. Outras diferenças essenciais entre nós eram as seguintes:

1) Eu não podia alegar entre meus méritos intelectuais a participação em nenhum homicídio político, ao passo que o sr. Negri ostentava em seu currículo a gentil colaboração com os assassinos de Aldo Moro, a qual, vamos e venhamos, é de um sex appeal irresistível para a imprensa dita cultural.

2) O sr. Negri descrevia como focos da reação libertária à ascensão imperial precisamente alguns movimentos de massa nos quais eu enxergava a mão inconfundível do próprio Império.

3) O sr. Negri, fiel ao cacoete marxista de explicar tudo pelo econômico, via o Império como superestrutura política do capitalismo globalizado e, assim, não podia senão acabar fazendo da ONU, ao menos implicitamente, uma agência a serviço do capitalismo. Como o grosso do capital está nos EUA, o resultado era que o belo diagnóstico diferencial entre imperialismo e Império acabava por se dissolver a si mesmo e desmascarar-se como nada mais que um novo pretexto para descer o pau nos EUA.

Nada a discutir no concernente ao primeiro ponto, onde a superioridade do sr. Negri é imbatível. Quanto ao segundo, a gigantesca mobilização mundial “pacifista” em prol de Saddam Hussein mostrou com eloqüência global que os movimentos de massa nos quais o sr. Negri via uma “alternativa utópica” ao Império da ONU (e seu parceiro Hardt ainda insiste nisso, com cega teimosia, na “Folha de S. Paulo” do dia 19) são tentáculos da própria ONU, empenhados em estrangular as últimas e únicas soberanias nacionais capazes de lhe criar problemas: a americana, a inglesa e a israelense.

Por fim, os acontecimentos das últimas semanas (na verdade, dos últimos anos, isto é, desde a conferência de Durban) provaram claramente de que lado está a ONU. Mais ainda, mostraram de que lado estão os próprios neoglobalistas americanos, incluindo a grande mídia: todos a serviço da ONU e contra seu próprio país.

Tal como expliquei em “O jardim das aflições”, há dentro dos EUA um conflito de base entre forças imperiais e nacionais, ou entre os adeptos da ONU e os da nação americana, estes alinhados com Israel, aqueles com a revolução mundial que hoje irmana comunistas, neonazistas, radicais islâmicos e variados interesses antiamericanos de ocasião num pacto global de apoio à tirania genocida do Iraque e, de modo geral, a tudo o que não presta no mundo. Enfim, o que sobra de aproveitável no livro do sr. Negri são aquelas partes em que ele coincide com o meu. Tudo o mais é propaganda imperial camuflada em “utopia alternativa”.

Um ponto que não abordei no meu livro e que seria demasiado longo discutir aqui é: como o Islã revolucionário se tornou a boca de funil para onde escoam todas as correntes antiamericanas e antidemocráticas? Resumindo brutalmente, com a promessa de um dia voltar ao assunto, digo que:

1) O radicalismo islâmico, obra de intelectuais muçulmanos de formação européia, e que remonta à década de 30, está para o Islã tradicional como a “teologia da libertação” está para o cristianismo. Ele esvazia a tradição islâmica de seu conteúdo espiritual e o transmuta na fórmula ideológica da revolução mundial. (O presidente Bush, que nossos intelectuais semi-analfabetos fingem desprezar como um caipirão, compreendeu perfeitamente esse ponto e por isso recusou com veemência a proposta indecente de dar à guerra contra o terrorismo a conotação de uma cruzada antiislâmica.)

2) Essa fórmula, por seu caráter universalista e seu invejável requinte dialético (afinal, um de seus criadores é Roger Garaudy, fino estudioso de Hegel), engloba e transcende todas as correntes anticapitalistas e antidemocráticas do século XX, desde o nazismo puro e grosso — passando por suas versões mais refinadas, como o anti-humanismo de Martin Heidegger, o desconstrucionismo de Paul de Man, o niilismo de Foucault — até as diversas versões do comunismo: stalinista, maoísta, trotskista, gramsciana etc. Conforme já profetizava seu pioneiro Said Qutub, o destino da revolução islâmica é absorver e superar — hegelianamente — todas as revoluções. Daí o aparente milagre da solidariedade entre esquerdistas e neonazistas nos protestos anti-Bush e nas intrigas antiisraelenses da ONU.

É claro que, ao embarcar numa luta de vida e morte contra a revolução mundial — e, por tabela, contra o neoglobalismo da ONU —, a própria nação americana se investe de responsabilidades imperiais. O que poderá vir a ser um Império americano propriamente dito, nascido sobre os escombros do projeto revolucionário e o virtual cadáver da ONU, é algo que só começará a se esclarecer daqui por diante. Nem eu nem o sr. Antonio Negri sabemos nada a respeito, e aí surge a quarta e última diferença entre nós: ele acha que sabe.

Wednesday, 21 August 2024

Wednesday's Good Reading: "A Transfiguração do Desastre" by Olavo de Carvalho (in Portuguese)

 

O Globo, 16 de junho de 2001

Sempre que os esquerdistas querem impor um novo item do seu programa, alegam que ele é a única maneira de curar determinados males. Invariavelmente, quando a proposta sai vencedora, os males que ela prometia eliminar são agravados. O normal seria que, em tais circunstâncias, a esquerda fosse responsabilizada pelo desastre. Mas isto jamais acontece, pois instantaneamente o argumento legitimador originário desaparece do repertório e é substituído por um novo sistema de alegações, que celebra o fracasso como um sucesso ou como necessidade histórica incontornável.

Ninguém compreenderá nada da história do século XX — nem deste começo do XXI — se não conhecer esse mecanismo de justificação retroativa pelo qual se leva o povo a trabalhar em prol de metas não declaradas, que o escandalizariam se as conhecesse e que por isto só podem ser atingidas pela via indireta da cenoura-de-burro.

Alguns exemplos tornarão isso bem claro.

1) Quando o Partido Comunista lançou seu programa de destruição das instituições familiares “burguesas”, consubstanciado no que mais tarde viria a ser a “liberação sexual”, sua alegação principal, elaborada pelo dr. Wilhelm Reich, era que homossexualismo, sado-masoquismo, fetichismo etc. eram frutos da educação patriarcal repressiva. Eliminada a causa, essas condutas desviantes tenderiam a desaparecer do cenário social. Bem, os últimos residuos de valores patriarcais foram suprimidos da educação ocidental entre as décadas de 70 e 80, e o que se viu em seguida? A disseminação, em escala apocalíptica, daquelas mesmas condutas que se prometia eliminar. Obtido o resultado, essas condutas começaram a ser celebradas como saudáveis, dignas e meritórias, e toda crítica a elas passou a ser condenada — às vezes sob as penas da lei — como abuso intolerável e atentado contra os direitos humanos.

2) Quando a esquerda mundial começou a lutar pela legalização do aborto, um de seus argumentos principais era que o grande número de abortos era causado pela proibição, que facilitava a ação de charlatães, intrometidos e gente não habilitada em geral. A legalização, prometia-se, obrigaria a realizar o aborto em condições medicamente aceitáveis, portanto diminuindo o número de casos. Qual foi o resultado? No primeiro ano, o número de abortos nos EUA subiu de 100 mil para um milhão e não parou de crescer até hoje. Pelo menos 30 milhões de bebês já foram sacrificados, ao mesmo tempo que os apologistas da legalização, em vez de admitir a falácia do seu argumento inicial, festejam o fato consumado, tratando de marginalizar e criminalizar qualquer crítica ao novo estado de coisas.

3) Quando os esquerdistas norte-americanos inventaram a política de quotas e indenizações conhecida como “affirmative action”, alegavam que ela diminuiria a criminalidade entre a população negra. Oficializada a nova política, o número de crimes cometidos por negros contra brancos aumentou significativamente, segundo estatísticas do FBI. Que fizeram então os apóstolos da “affirmative action”? Reconheceram humildemente que reforçar o sentimento de identidade racial era alimentar preconceitos e conflitos de raça? Nada. Celebraram o aumento da hostilidade racial como um progresso da democracia.

4) Quando, querendo destruir a tradição norte-americana que considerava a educação um dever da comunidade, das igrejas e das famílias antes que do Estado, a esquerda norte-americana reivindicou a burocratização do ensino, um de seus argumentos básicos era que a delinqüência juvenil só poderia ser controlada mediante a ação educacional do Estado. Com Jimmy Carter, em 1980, os EUA passaram a ter pela primeira vez um Ministério da Educação e programas de ensino uniformes. Duas décadas depois, a delinqüência entre crianças e adolescentes não apenas vem crescendo muito mais que antes, mas adotou como seu quartel-general as escolas públicas, hoje transformadas em áreas de risco, ao ponto de que no começo do ano a prefeitura de Nova York estava privatizando as suas por não ter meios de controlar a violência nelas. Em resposta, que faz a esquerda? Admite que errou? Não. Luta pela uniformização estatal do ensino em escala mundial.

5) No Brasil, a única maneira de diminuir a violência nas áreas rurais, proclamavam os esquerdistas, era dar terras e dinheiro ao MST. Pois bem, as terras foram dadas — foi a maior distribuição de terras de toda a história humana, com muito dinheiro atrás. A violência não diminuiu: aumentou muito. A esquerda confessa que errou? Não. Trata de organizar a violência e celebrá-la como a conquista de um novo patamar histórico na luta pelo socialismo.

Os exemplos poderiam multiplicar-se “ad infinitum” — e notem que propositadamente evitei mencionar os casos extremos, sucedidos no próprio âmbito dos países socialistas, como a coletivização da agricultura na URSS, o Grande Salto para a Frente e a Revolução Cultural na China, a revolução cubana, etc. limitando-me a fatos sucedidos no mundo capitalista.

A promessa salvadora transfigurada em desastre e seguida da troca de discurso legitimador foi, em suma, o “modus agendi” essencial e constante da esquerda mundial ao longo de um século, e não se vê o menor sinal de que algum mentor esquerdista tenha problemas de consciência por isso. Ao contrário, todos continuam prometendo a solução dos males, ao mesmo tempo que já têm pronta, na gaveta, a futura legitimação dos males agravados. Prometem diminuir o consumo de drogas mediante a liberalização, controlar a corrupção mediante o “orçamento participativo”, reprimir a delinqüência mediante o desarmamento civil ou mediante o “direito alternativo” leninista que criminaliza antes a posição social do acusado do que o seu ato criminoso. Sabem perfeitamente aonde tudo isso leva — mas sabem também que ninguém os apoiaria se proclamassem em voz alta o que desejam.

No Brasil, acomodar-se a toda imposição dos mandantes é "estratégia".

Saturday, 10 August 2024

Saturday's Good Reading: “Sobre Algo Que Não Existe” by Olavo de Carvalho (in Portuguese)

 

Zero Hora, 30 de dezembro de 2000.

 

A qualidade de um debate depende, no mínimo, de que os participantes tenham a posse em comum do rol de conhecimentos requeridos para a compreensão do assunto e um senso equivalente da força probante dos argumentos de parte a parte. Hoje, no Brasil, essa condição quase nunca se cumpre.

Qualquer palpiteiro, por mais desinformado e incapaz de raciocínio lógico, se crê habilitado a opinar sobre o que quer que seja, seguro de que a absorção superficial do noticiário o capacita a compreender e julgar tão bem quanto quem analisasse o caso por vinte anos.  Thomas Jefferson dizia que a democracia era inviável sem cidadãos cultos e bem informados. No Brasil invertemos a fórmula: democracia, para nós, é nivelar por baixo, é fazer da ignorância o direito primordial do cidadão que opina.

Isto cria uma situação constrangedora para o estudioso, que jamais pode contar com que o ouvinte saberá do que ele está falando. Além de refutar o opositor, ele tem de educá-lo, transmitir-lhe as noções e critérios básicos do assunto. Mas o adversário não permitirá que ele faça isso. Em vez de aprender, multiplicará presunçosamente as objeções descabidas até que a elucidação do ponto em discussão se torne inviável.

A questão do comunismo, por exemplo, é uma para quem só tomou conhecimento dela pelo noticiário, outra para quem tenha a perspectiva histórica do movimento comunista.  O primeiro pode até imaginar, como o sr. Amilcar Campos Bernardes (ZH, 20 out. 2000), que “o comunismo existe somente como ideal, não existe como algo real, palpável, que possa ser ‘combatido’”. Pode acreditar nisso por dois motivos. Em primeiro lugar, porque sua inexperiência confunde uma coincidência de termos com uma identidade de fatos. No vocabulário marxista, com efeito, o “comunismo” nunca existiu historicamente: a URSS, a China ou Cuba chegaram apenas ao “socialismo”, fase preparatória da sociedade comunista. Mas tomar isso como base para contestar a existência histórica do movimento comunista, de revoluções comunistas e de regimes ditatoriais assumidamente empenhados na construção do comunismo, é o mesmo que negar que tenha havido mais de um leão no mundo porque no dicionário a palavra “leão” só consta no singular. A coisa é de uma canhestrice tão deplorável, que incita a gente a concordar para não ter de descer a explicações elementares que arriscariam parecer humilhantes. Em segundo lugar, o sujeito pode acreditar que o comunismo não existe porque na mídia recente ele só ouve falar de economias mistas ou em plena abertura para o capital privado, o que o leva a aceitar, por tabela, a imagem do comunismo e, por tabela, do anticomunismo, como coisas ultrapassadas. Essa imagem, no entanto, é uma ilusão de ótica: ela resulta de uma superposição acidental da propaganda neoliberal triunfalista com o recuo tático do comunismo para reagrupamento de forças. Quem conheça a história do comunismo sabe que esse tipo de recuo é uma constante na conduta desse movimento, e que ele anuncia, não o abrandamento ou dissolução do impulso revolucionário, mas a iminência de reinvestidas em larga escala, numa oscilação pendular que reflete bem a dialética de fazer-se de morto para assaltar o coveiro. Assim, a abertura econômica de Lênin em 1921 preparou o fortalecimento da ditadura em 1929; a liquidação do Comintern em 1943 antecipou a ocupação da Europa Oriental pelas tropas soviéticas em 1945, a revolução chinesa em 1949 e a invasão da Coréia do Sul em 1950; a “desestalinização” de Kruchev em 1956 aplanou o terreno para a revolução cubana de 1959 e o florescimento do terrorismo na década de 60. O desmantelamento da URSS deve ser visto nessa perspectiva. Basta saber que a KGB ainda é o principal esteio do governo Putin para perceber que o desmanche do regime foi feito de modo a preservar a estrutura, as redes de conexão e os meios de ação do movimento comunista internacional.

Ademais, é uma piada negar que o comunismo — ou, se quiserem, o socialismo — exista como regime ainda em vigor, que oprime sob suas patas de ferro nada menos de um bilhão e trezentos milhões de pessoas na China, no Tibete, na Coréia e em Cuba. Se em todos esses lugares o governo faz concessões ao capital privado, isto só pode soar como promissor anúncio de abertura democrática aos ouvidos de quem ignore que concessões idênticas são cíclicas desde 1921, sempre coincidindo com períodos de reagrupamento estratégico e preparação de truculentas reinvestidas. Dez anos atrás, diante da queda do Muro de Berlim, qualquer sr. Bernardes rejeitaria como paranóico o anúncio, para breve, do espetacular ressurgimento das guerrilhas na América Latina, não obstante facilmente previsível para quem houvesse estudado o assunto. Hoje as guerrilhas já estão aí, e os Bernardes do mundo ainda não perceberam nem mesmo que o comunismo existe.

 

***

 

Prometi responder a todos os meus críticos, sem fazer ouvidos moucos a nenhum, pois não há ser humano que seja tão desprezível ao ponto de não merecer ao menos um tabefe. A profusão numérica e a qualificação declinante dos objetores menores que vêm surgindo nos últimos tempos têm-me dificultado manter a palavra. Não vejo como explicar, por exemplo, ao sr. Juremir Machado da Silva (ZH) que ele não deveria opinar sobre minhas idéias quando as desconhece ao ponto de lhes atribuir uma filiação ao “pensamento único”, que tem sido a infalível “bête noire” dos meus escritos. Também fico totalmente desarvorado e sem ação ante um crítico como o sr. Marcelo Xavier, da revista “Nao-Til” o qual, pretendendo dar-me lições de estilo, declara, com toda a seriedade, que “ascensão irresistível” é uma aliteração. Que é que hei de fazer por essas criaturas? Posso ser bom conferencista para uma platéia adulta, mas não tenho a mínima aptidão de professor primário. Ouvi dizer que na Bahia há um famoso educador romeno que tem obtido excelentes resultados com crianças mongolóides. Vou tentar obter o endereço dele.

Wednesday, 24 July 2024

Wednesday's Good Reading: "Pobreza e Grossura" by Olavo de Carvalho (in Portuguese)

 Bravo!, julho de 2000

 Neste país você não pode pedir emprego e muito menos dinheiro emprestado a um conhecido sem que ele instantaneamente assuma ares paternais e comece a lhe dar conselhos, a ralhar com você chamando-o de irresponsável, leviano e miolo-mole. E dê graças a Deus de que ele o faça em tom bonachão e não transforme a humilhação sutil em massacre ostensivo. Finda a cena, ele sai todo satisfeito com a consciência do dever cumprido e considera-se dispensado de lhe arranjar o emprego ou o dinheiro. E você? Bem, você sai duro, desempregado… e culpado.

Esse mesmo sujeito é capaz de, na mesma noite, oferecer um jantar tomando o máximo cuidado para que a arrumação da mesa e a distribuição dos convidados obedeçam estritamente às regras da mais fina etiqueta.

Um indício seguro de barbarismo num povo é a atenção excessiva concedida aos sinais convencionais de boa educação e o desprezo ou ignorância dos princípios básicos da convivência que constituem a essência mesma da boa educação.

O bárbaro, o selvagem, pode decorar as regras e imitá-las na frente de quem ele acha que liga para elas. Mas não capta o espírito delas, não percebe que são apenas uma cartilha de solicitude, de atenção, de bondade, que pode ser abandonada tão logo a gente aprendeu o verdadeiro sentido do que é ser solícito, atencioso e bom.

Meu pai era um sujeito relaxado, que às vezes ia de pijama receber as visitas. Mas ele chamava de “senhor” cada mendigo que o abordava na rua, e sem que ele me dissesse uma palavra aprendi que o homem em dificuldades necessitava de mais demonstrações de respeito do que as pessoas em situação normal. Quanto mais respeitoso, mais cuidadoso, mais escrupuloso cada um não deveria ser então com um amigo que, vencendo a natural resistência de mostrar inferioridade, vem lhe pedir ajuda! Esta regra elementar é sistematicamente ignorada entre as nossas classes médias e altas, principalmente por aquelas pessoas que se imaginam as mais cultas, as mais civilizadas e – valha-me Deus! – as mais amigas dos pobres.

Fico horrorizado quando vejo alguém enxotar um flanelinha como se fosse um cachorro, e nunca vi alguém fazê-lo com a desenvoltura, o aplomb, a consciência tranqüila de um intelectual de esquerda! Nos anos 60, corria o dito de que ajudar os pobres individualmente era “alienação burguesa”, ópio sentimental, sucedâneo da revolução salvadora. Passaram-se quarenta anos, a revolução salvadora não veio (onde veio, os pobres ficaram mais pobres ainda) e duas gerações de necessitados apertaram ainda mais os cintos em homenagem à prioridade da revolução. Mas não conheço um só militante comunista do meu tempo e do meu meio que não esteja com a vida ganha, que não ostente como um sinal de maturidade triunfante a segurança financeira adquirida graças ao apadrinhamento da máfia política que, até hoje, domina o mercado de empregos na imprensa, na publicidade, no ensino superior e no mundo editorial.

Hoje não precisam mais do pretexto revolucionário para enxotar flanelinhas. Seu discurso tornou-se palavra oficial, as prefeituras e governos estaduais nos advertem, em cartazes piedosos, para não dar esmolas. Sim, a caridade individual está em baixa. Os frutos da bondade humana não devem ir direto para o bolso do necessitado: devem ir para as ONGs e os órgãos públicos, sustentando funcionários e diretores, financiando movimentos políticos, pagando despesas de aluguel, administração, publicidade e transporte, para no fim, bem no fim, se sobrar alguma coisa, virar sopa dos pobres, diante das câmeras, para a glória de São Betinho.

Há quem neste país tenha nojo da corrupção oficial. Pois eu tenho é da caridade oficial.

Ainda há quem diga: “Mas se você dá dinheiro o sujeito vai beber na primeira esquina!” Pois que beba! Tão logo ele o embolsou, o dinheiro é dele. Vocês querem educar o pobre “para a cidadania” e começam por lhe negar o direito de gastar o próprio dinheiro como bem entenda? Querem educá-lo sem primeiro respeitá-lo como um cidadão livre que atormentado pela miséria tem o direito de encher a cara tanto quanto o faria, mutatis mutandis, um banqueiro falido? Querem educá-lo impingindo-lhe a mentira humilhante de que sua pobreza é uma espécie de menoridade, de inferioridade biológica que o incapacita para administrar os três ou quatro reais que lhe deram de esmola? Não! Se querem educá-lo, comecem pelo mais óbvio: sejam educados. Digam “senhor”, “senhora”, perguntem onde mora, se o dinheiro que lhes deram basta para chegar lá, se precisa de um sanduíche, de um remédio, de uma amizade. Façam isso todos os dias e em três meses verão esse homem, essa mulher, erguer-se da condição miserável, endireitar a espinha, lutar por um emprego, vencer.

Na verdade, a barreira que impede o acesso de pobres e mendicantes brasileiros a uma vida melhor é menos econômica que social. Façam um teste. Quanto custa um frango? Assado, com farofa. Cinco reais no máximo, em geral menos. Quer dizer que um mendigo, pedindo esmola em qualquer das grandes capitais do Brasil, pode comer pelo menos um frango por dia, se não dois, e ainda lhe sobra o dinheiro da condução. Para você fazer uma idéia de quanto um país onde isso é possível é um país rico e generoso, tente esta comparação. Quando Franklin D. Roosevelt lançou o New Deal, um dos objetivos principais do ambicioso plano econômico foi assim anunciado pelo rádio: “Assegurar que cada família deste país tenha em sua mesa um frango por semana.” Ouviram bem? Um frango por semana para quatro ou cinco pessoas. Na época pareceu um ideal quase utópico. Pois bem: estamos numa terra onde velhas desamparadas que se arrastam pelas ruas comem um frango por dia, onde os meninos de rua pedem esmola em frente ao McDonald’s para completar o preço de um BigMac com fritas de três em três horas, onde os bebês famintos exibidos pelas mães em prantos usam fraldas descartáveis, onde as casas dos bairros miseráveis têm antenas parabólicas e os catadores de lixo se comunicam com seus sócios por telefones celulares.

Em contrapartida, façam outro teste: peguem um sujeito sujo e esfarrapado, encham-no de dinheiro e façam-no entrar numa loja de roupas – não digo uma loja elegante, mas qualquer uma — para comprar um terno. Será enxotado. E, se gritar: “Eu tenho dinheiro!”, vai terminar na polícia, com holofote na cara, tendo de se explicar muito bem explicadinho, isto se não for obrigado a escorregar “algum” para a mão do sargento.

O mesmo pobre que pode comer um frango por dia tem de comê-lo na calçada, com os cães, porque não tem acesso aos lugares reservados aos seres humanos. Está certo que você, gerente do restaurante, fique constrangido de botar um sujeito estropiado e fedido no meio dos seus clientes distintos. Mas não vê que mandá-lo comer na rua é mais falta de educação ainda? Pelo menos dê-lhe de comer num cantinho discreto, converse com ele sobre as dificuldades da vida, ofereça-lhe uma camisa, uma calça. Seja educado, caramba! Pois se você, que está bem empregado e bem vestido, tem o direito de ser grosso, que primores de polidez pode esperar do pobre? Se um dia, cansado de levar chutes, ele o manda tomar naquele lugar, não se pode dizer que esteja privado do senso das proporções. E não me venha com aquela história de “Se eu tratar bem um só mendigo, no dia seguinte haverá uma fila deles na minha porta”. Isso pode ser verdade em casos isolados, mas não no cômputo final: se todos os restaurantes tratarem bem os mendigos, logo haverá mais restaurantes que mendigos. Conte os mendigos e os restaurantes da Avenida Atlântica e diga se não tenho razão. Isto sem que entrem no cálculo os bares e padarias.

O brasileiro de classe média e alta está virando uma gente estúpida que clama contra a miséria no meio da abundância porque cada um não quer usar seus recursos para aliviar a desgraça de quem está ao seu alcance, e todos ficam esperando a solução mágica que, num relance, mudará o quadro geral. Sofrem de platonismo à outrance: crêem na existência de um geral em si, dotado de substância metafísica própria, independente dos casos particulares que o compõem.

Por isso é que quando a propaganda do Collor inventou aquela coisa de “Não votem em Lula porque ele vai obrigar cada família de classe alta a adotar um menino de rua”, eu me disse a mim mesmo: “Raios, se isso fosse verdade eu ficaria satisfeito de votar no Lula.” Só acredito é em gente ajudar gente, uma por uma, não na mágica platônica das “mudanças estruturais”, pretexto de revoluções e matanças que resultam sempre em mais pobreza ainda.

Na verdade, quem acredita nelas erra até ao dar nome ao problema geral. Quando, revoltados ante a desgraça do povo brasileiro, gritamos: “Fome!”, algo está falhando na nossa percepção da realidade social. No mais das vezes, o que falta não é comida, não é dinheiro: é as pessoas compreenderem que a pobreza não é um estigma, não é uma desonra, é uma coisa que pode acontecer a qualquer um e da qual ninguém se liberta só com dinheiro, sem o reforço psicológico de um ambiente que o ajude a sentir-se novamente normal e, em suma, um membro da espécie humana.

Entre as causas culturais da pobreza, a principal não está nos pobres: está na falta de educação dos outros.