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Wednesday, 12 November 2025

Wednesday's Good Reading: “Rex Pacificus” by Plinio Corrêa de Oliveira (in Portuguese)

 

Revista Legionário, 12-3-1939.

 

No dia em que se desenrolam em Roma as cerimônias faustosas da coroação do novo Pontífice, deve ser grato aos corações católicos meditar atentamente as circunstâncias dentro das quais essa solenidade se realiza.

No século passado, em que o liberalismo político grassava pela Europa inteira, agravado por uma monomania democrática vizinha do delírio, as grandes solenidades pontifícias se desenrolavam não raramente sob o olhar hostil e a censura surda de grandes setores da opinião pública. Evidentemente, durante toda a vida da Igreja, nunca faltou a esta o amor de filhos dedicados e entusiastas.

Entretanto, é incontestável que, no século passado, os fulgores dessas belas provas de amor alternavam sombriamente com o rancor igualitário daqueles que, na faina de destruir toda a ordem religiosa, política e social, não suportavam o espetáculo grandioso das cerimônias do Vaticano.

Os argumentos não faltavam para servir de pretexto a tanto rancor. O primeiro deles, já antigo, era da autoria de Judas Iscariotes: por que gastar tanto dinheiro, em lugar de dar aos pobres? O outro, de sabor mais acentuadamente luterano: não haverá idolatria em se prestar a um homem tantas provas de sumo respeito? Finalmente, a blasfêmia anarquista não deixava de se fazer ouvir neste triste concerto: quando chegará o dia feliz em que enforcaremos o último Papa nas tripas do último rei?

A Santa Sé nunca deu atenção a tais rancores. Com uma sublime e desassombrada energia, ela continuou a manter intacto seu magnífico e suntuoso cerimonial, que outra coisa não é senão a afirmação, através de cerimônias perceptíveis pelos sentidos, do princípio da autoridade, de que o Papa é o mais alto e mais sagrado representante na Terra.

Nas fileiras católicas, não faltou infelizmente quem tivesse a audácia de propor à Santa Sé que, para conciliar melhor as simpatias das massas, e vencer mais facilmente a revolução social que se fazia prenunciar de modo sinistro, o Papado se "democratizasse" e o Pontífice Romano renunciasse às manifestações exteriores e solenes de seu supremo poder.

A Igreja, entretanto, nunca deu ouvidos a essa falaciosa proposta. Não é de seu feitio transigir com o erro, ou procurar entabular com ele um duelo de subtilezas e astúcias.

Quando o princípio de autoridade periclitava no mundo inteiro, pondo em risco a autoridade de todos os monarcas e chefes de Estado, não era o Vigário de Cristo, do qual provém toda a autoridade, que tomaria ares de pactuar com a revolução. A missão da Igreja não consiste em se adaptar aos séculos, mas de adaptá-los a si própria. Ela nunca baixará até os erros dos homens, mas elevará a humanidade até si.

Por isso, enquanto as monarquias ruíam fragorosamente, as repúblicas se dissolviam na anarquia das crises sociais, e as mais antigas dentre as cortes sobreviventes se democratizavam a olhos vistos, o Vaticano conservou intacto seu grandioso cerimonial.

Vem, agora, o outro aspecto da questão.

Um verdadeiro vendaval político-social foi a consequência da pregação das doutrinas liberais. Esse vendaval suscitou a tendência geral para uma consolidação de autoridade. Todos os povos, outrora minados pela febre da liberdade, se sentem hoje trabalhados por uma intensa propaganda a favor da consolidação do Poder público, com preterição ou até supressão dos mais sagrados direitos da pessoa humana.

Os novos césares, como o exige a natureza das doutrinas que pregam, sentem a necessidade de confirmar sua autoridade com os sinais exteriores do poder, desenvolvidos através de imponentes cerimônias cívicas. E, com isso, todo um cerimonial político renasce em nossos dias, que bem poderia ser chamado a liturgia faustosa dos novos ídolos que as massas levantam acima de si mesmas para lhes prestar adoração.

Interessante é notar, a esse propósito, o ambiente que cerca essa nova e estranha liturgia política. Duas notas a caracterizam: força e domínio. Atente-se para uma cerimônia nazista. Em algum imenso estádio da Alemanha, comprime-se uma multidão incontável, que se torna cada vez mais densa porque os ônibus e os trens despejam ondas humanas sempre mais numerosas. Para encher o tempo, inúmeros alto-falantes transmitem a voz de um locutor.

Do que fala ele? Da luta do partido nazista, de suas vitórias passadas, dos inimigos que esmagou, esmaga e esmagará. Quando, ao cabo de uma longa série de injúrias e de ameaças, o locutor se cala para tomar fôlego, a multidão entoa cânticos guerreiros. Refletores deslumbrantes erguem para o céu colunas verticais. Uma tribuna imensa, composta de blocos graníticos pesados e brutais, se ergue no centro de tudo isso. De repente, estrugem gritos e urros de entusiasmo. É o “Führer” que chega.

As canções guerreiras redobram. Os canhões estrugem. A multidão ulula como um mar enfurecido. O “Führer” começa a falar: do outro lado das fronteiras, Chamberlain treme de medo, apoiado em seu guarda-chuva; Daladier prefere fingir que não ouve, para não ter de brigar (como os meninos bem educados, quando passam perto dos moleques na rua e ouve seus insultos, fingindo não notar nada). Mussolini presta atenção: é tão bonito; quem sabe se ele conseguirá fazer igual! Roosevelt não entende bem como é que, tendo ele tantos milhões de dólares, Hitler não é amigo dos Estados Unidos. E os povos fracos da Terra tremem.

Para completar o quadro, seria suficiente que uma legião de demônios aparecesse no céu, vociferando em gritos agrestes: glória ao novo messias, a opressão, na terra, para os povos que não têm canhões! E o mundo inteiro aplaude ou treme; mas, quer aplaudindo, quer tremendo, secretamente admira!

É sob o signo dessa dura liturgia do ódio e da guerra, do sangue e da luta, que o mundo curva a cabeça em atitude respeitosa e admirativa. Nessas grandes festas públicas, não há outro gáudio senão o do orgulho exacerbado e do ódio satisfeito.

Não são propriamente festas, esses tremendos “sabbats” cívicos. São bacanais em que as multidões não se embriagam mais, como no tempo dos césares, com o vinho capitoso e subtil das plantações itálicas, mas com o licor espiritual grosseiro, de um patriotismo levado até à loucura.

Enquanto isso, morre para o mundo e nasce placidamente para o Céu o Papa Pio XI. Sua morte não anunciada pelo troar dos canhões, mas pelo som paternal e suave dos sinos de São Pedro, que repercutem de campanário em campanário, até os extremos da China ou da Groenlândia.

Nenhum Departamento de Propaganda engaiola as multidões para levá-las à força para Roma. Mas Roma se enche de uma multidão que faria babar de inveja o Ministério da Propaganda da Alemanha [do período nazista], e muitas repartições congêneres de outros países. Não há desfiles marciais de soldados, nem desenrolar de tropas agressivas. Apenas a gendarmerie pontifícia, que contém e policia paternalmente a multidão pacífica e enlutada.

Anuncia-se, depois, o novo Papa. Uma multidão aguarda seu nome. Outras multidões afluem de todas as ruas e de todos os becos de Roma, para saber quem foi o eleito. Todo o mundo aplaude. Mas, ainda aí, não há outro eco senão o das sonoras e musicais trombetas de prata dos arautos, as harmonias graves dos sinos da Cidade Eterna, e os vivas da multidão.

Não, o Vaticano não é a caserna em que o gado humano é arregimentado para a carnificina, mas a casa suntuosa, porém acolhedora, do Pai comum, que é o lar espiritual de todos os povos da Terra, que ali ombreiam uns com os outros, numa alegria despreocupada e pacífica, de que só o Vaticano, hoje em dia, é teatro.

Finalmente, anuncia-se a coroação do Papa. Nenhuma cerimônia, no mundo inteiro, é mais majestosa. Nenhuma, porém, é ao mesmo tempo mais pacífica, mais serena, mais familiar. O povo não treme diante de um ídolo, mas delira de contentamento diante de um Pai. O povo não se ajoelha diante de um algoz, mas beija reverente os pés daquele que é uma branca e suave figura. E na majestade de seu porte, a Santidade e a Majestade suprema do Criador.

E, no menor Estado do mundo, que é o Vaticano, uma das maiores multidões que a Itália — mesmo a fascista — tenha jamais contemplado, celebra, à sombra do Vigário de Cristo, ao mesmo tempo a mais pacífica e a mais jubilosa das cerimônias deste sinistro século de lutas e de guerras.

Saturday, 1 November 2025

Saturday's Good Reading; “Abaixo a Verdade” by Olavo de Carvalho (in Portuguese)

 

Todos aqueles supostos liberais e conservadores que se calaram a respeito do Foro de São Paulo quando ainda era possível deter o crescimento do monstro – ou que até mesmo me acusaram de alarmismo e obsessão por insistir em falar do assunto – posam, agora, como especialistas tarimbados na matéria, verdadeiros profetas retroativos, que repetem, sem citar-lhes a fonte, e com um atraso que as torna perfeitamente inúteis, as advertências que fiz em tempo. Advertências, aliás, cujo mérito não era meu no mais mínimo que fosse, porém inteiramente do advogado paulista dr. José Carlos Graça Wagner, cujos arquivos constituíram a minha única fonte de informações sobre o Foro até 2001.

Se o esquerdismo trouxe tanto dano ao Brasil, foi apenas como modalidade especialmente sedutora de uma vigarice intelectual endêmica que se observa em todos os quadrantes do espectro ideológico e que constitui, ela sim, a causa mais profunda e permanente dos males nacionais.

Quando a “direita” brasileira recusou ouvidos ao Dr. José Carlos Graça Wagner e a mim, perdeu não só a oportunidade de sobreviver politicamente – hoje até o sr. presidente da República sabe e declara que ela já não tem a mínima perspectiva de acesso ao poder –, mas também a de dar um exemplo honroso de sensibilidade intelectual superior, capaz de prestar atenção à verdade mesmo quando não venha de fontes oficiais ou bem comportadinhas. Esse exemplo bastaria para lhe conferir imediatamente aquela autoridade moral, tão decisiva nas disputas políticas, que não raro sobrepõe a minoria sábia à maioria tagarela e, pelo menos a longo prazo, pode lhe assegurar as mais belas vitórias.

Com sua omissão, ela provou que sua subserviência aos bem-pensantes é ainda mais forte do que seu instinto de sobrevivência, já que cede às injunções deles ainda mesmo quando calculadas para funcionar como estupefacientes, para amortecer suas reações de autodefesa e até sua capacidade de perceber a presença do perigo. De 1990 até o ano passado, a direita nacional não fez senão tentar por todos os meios aplacar o inimigo, oferecendo-lhe uma resistência débil e risível que só criticava seus pequenos erros econômico-administrativos para melhor ajudá-lo a ocultar seus crimes maiores. Todo mundo sabe o que ela ganhou com esse colaboracionismo mal disfarçado: ganhou sua completa exclusão do processo político, só compensada – se cabe a palavra – por uma humilhante sobrevivência como força auxiliar da esquerda soft.

Concedendo agora a macaqueadores e oportunistas retardatários a atenção que recusou aos primeiros descobridores de uma verdade temível, ela mostra que não aprendeu nada com a experiência, que continua preferindo, ao conhecimento genuíno, o simulacro mais pífio que possa encontrar no mercado. Talvez porque nele enxergue o seu semelhante.

Não é preciso dizer que, se aquela primeira recusa da verdade determinou o fim dessa direita como facção politicamente relevante, esta de agora anuncia a perda de suas últimas reservas de vitalidade, o sacrifício integral de seu futuro às exigências de um presente miserável.

In Diário do Comércio, 9 de novembro de 2009

 

Saturday, 18 October 2025

Saturday's Good Reading: “A maior trama criminosa de todos os tempos” by Olavo de Carvalho (in Portuguese).

 

In Digesto Econômico, setembro/outubro/nov/dez de 2007

 

O pioneiro inconteste na investigação do fenômeno “Foro de São Paulo” foi o advogado paulista José Carlos Graça Wagner, homem de inteligência privilegiada, que muito me honrou com a sua amizade. Ele já falava do assunto, com aguda compreensão da sua importância histórica e estratégica, por volta de 1995, quando o conheci. Em 1999, a documentação que ele vinha coletando sobre a origem e as ações da entidade lotava um cômodo inteiro da sua casa, e uma prova da criteriosidade intelectual do pesquisador foi que só a partir de então ele se sentiu em condições de começar a escrever um livro a respeito. Na ocasião, ele me chamou para ajudá-lo no empreendimento, mas eu estava de partida para a Romênia e, com muita tristeza, declinei do convite.

Maior ainda foi a tristeza que experimentei anos depois, quando, ao retomar o contato com o Dr. Wagner, soube que o projeto tinha sido interrompido por uma onda súbita e irrefreável de revezes financeiros e batalhas judiciais, que terminaram por arruinar a saúde do meu amigo e de sua esposa, ambos já idosos. Não sai da minha cabeça a suspeita de que a perigosa investigação em que ele se metera teve algo a ver com a repentina liquidação de uma carreira profissional até então marcada pelo sucesso e pela prosperidade.

Ele tinha negócios nos EUA e era também lá, nas bibliotecas e arquivos de Miami e de Washington D.C., que ele coligia a maior parte do material sobre o Foro. Nos últimos anos, a pesquisa havia tomado um rumo peculiar. O Dr. Wagner esperava encontrar provas de uma ligação íntima entre o Foro de São Paulo e uma prestigiosa entidade da esquerda chique americana, o “Diálogo Interamericano”. Não sei se essa prova específica existe ou não, nem se ela é realmente necessária para demonstrar algo que metade da América já conhece por outros e abundantes sinais, isto é, que os líderes mais barulhentos do Partido Democrata são notórios protetores de movimentos revolucionários e terroristas (de modo que o Foro, se acrescentado à lista, não modificaria em grande coisa as biografias desses personagens vampirescos).

O que sei é que o começo da ruína pessoal do meu amigo data aproximadamente de uma entrevista que ele deu ao Diário Las Américas, importante publicação de língua espanhola em Miami, na qual falava do Foro de São Paulo e de suas relações perigosas com o “Diálogo”. Mas isto já seria matéria para outra investigação, e longe de mim a intenção de explicar obscurum per obscurius. Mesmo sem poder prometer a solução para esse aspecto particularmente enigmático do problema, uma coisa posso garantir: os arquivos do Dr. Wagner, recentemente postos à disposição da equipe de pesquisadores do Mídia Sem Máscara e da Associação Comercial de São Paulo, pela generosidade de José Roberto Valente Wagner, permitem retomar a investigação com a esperança de que antes de um ano teremos pelo menos a história interna do Foro de São Paulo reconstituída praticamente mês a mês. Então será possível colocar em bases mais sólidas a questão do “Diálogo”, mas antes disso será preciso resolver outro enigma, bem mais urgente e bem mais próximo de nós.

Vou formular esse enigma mediante o contraste entre duas ordens de fatos:

Primeira: O Foro de São Paulo é a mais vasta organização política que já existiu na América Latina e, sem dúvida, uma das maiores do mundo. Dele participam todos os governantes esquerdistas do continente. Mas não é uma organização de esquerda como outra qualquer. Ele reúne mais de uma centena de partidos legais e várias organizações criminosas ligadas ao narcotráfico e à indústria dos seqüestros, como as FARC e o MIR chileno, todas empenhadas numa articulação estratégica comum e na busca de vantagens mútuas. Nunca se viu, no mundo, em escala tão gigantesca, uma convivência tão íntima, tão persistente, tão organizada e tão duradoura entre a política e o crime.

Segunda: Durante dezesseis anos, todos os jornais, canais de TV e estações de rádio deste País – todos, sem exceção, inclusive aqueles que mais se gabavam de primar pelo jornalismo investigativo e pelas denúncias corajosas – se recusaram obstinadamente a noticiar a existência e as atividades dessa organização, malgrado as sucessivas advertências que lhes lancei a respeito, em todos os tons possíveis e imagináveis. Do aviso solícito à provocação insultuosa, das súplicas humildes às argumentações lógicas mais persuasivas, tudo foi inútil. Quando não me respondiam com o silêncio desdenhoso, faziam-no com desconversas levianas, com objeções céticas inteiramente apriorísticas, que dispensavam qualquer exame do assunto, com observações sapientíssimas sobre o meu estado de saúde mental ou com a zombaria mais estúpida e pueril que se pode imaginar. Reagindo a essa pertinaz negação dos fatos, fiz publicar no jornal eletrônico Mídia Sem Máscara as atas quase completas das assembléias e grupos de trabalho do Foro de São Paulo. A volumosa prova documental mostrou-se incapaz de demover os negacionistas. Eles pareciam hipnotizados, estupidificados, mentalmente paralisados diante de uma hipótese mais temível do que seus cérebros poderiam suportar na ocasião.

O Foro de São Paulo reúne mais de uma centena de partidos legais e várias organizações criminosas ligadas ao narcotráfico e à indústria dos seqüestros, como as FARC e o MIR chileno.

A publicação das atas teve porém duas conseqüências importantes. De um lado, o site oficial do Foro, www.forosaopaulo.org, foi retirado do ar às pressas, para só voltar meses depois, em versão bastante expurgada. De outro lado, entre os jornalistas e analistas políticos, a afetação de desprezo pelo asunto cedeu lugar à negação ostensiva, pública, da existência mesma do Foro de São Paulo. Dois personagens destacaram-se especialmente nesse servicinho sujo: o inglês Kenneth Maxwell e o brasileiro Luiz Felipe de Alencastro. Para anunciar ao mundo a completa inexistência da entidade que eu denunciava, ambos – por ironia, historiadores de profissão – usaram como tribuna ou megafone o pódio do CFR, Council on Foreign Relations, o mais poderoso think tank americano, dando assim à ignorância dolosa (ou à mentira grotesca) o aval de uma autoridade considerável. Quem ainda tenha ilusões quanto à confiabilidade intelectual da profissão acadêmica, mesmo exercida nos chamados “grandes centros” (Alencastro é professor na Universidade de Paris, e Maxwell é o consultor supremo do próprio CFR em assuntos brasileiros), pode se curar dessa doença mediante a simples notificação desses fatos.

Mas aí a hipótese da mera ignorância organizada começa a ceder lugar à suspeita de uma trama consciente bem maior do que a nossa paranóia poderia imaginar. Membros importantes do CFR tiveram contatos próximos com as organizações criminosas participantes do Foro de São Paulo, cuja existência, portanto, não poderiam ignorar (leia-se a respeito o meu artigo “Por trás da subversão”, Diário do Comércio, dia 05 de junho de 2006, http://www.olavodecarvalho.org/semana/060605dc.html). Em suma, o Brasil parecia estar preso entre as malhas de uma articulação criminosa, que envolvia, ao mesmo tempo, a totalidade dos partidos de esquerda latino-americanos, o grosso da classe jornalística nacional, as principais gangues de narcotraficantes do continente e, por fim, uma parcela nada desprezível da elite política e financeira norte americana.

A gravidade desses fatos mede-se pela amplitude e persistência da sua ocultação. Crescendo em segredo, o Foro de São Paulo tornou-se o motor principal das transformações históricas no continente, ao mesmo tempo que a ignorância geral a respeito fazia com que os debates públicos – e portanto a totalidade da vida cultural – se afastasse cada vez mais da realidade e se transformasse numa engenharia da alienação, favorecendo ainda mais o crescimento de um esquema de poder que se alimentava gostosamente da sua própria invisibilidade. A queda vertiginosa do nível de consciência pública nessas condições, era não só previsível como inevitável. As opiniões circulantes tornaram-se uma dança grotesca de irrelevâncias, desconversas e erros maciços, ao mesmo tempo em que a violência e a corrupção cresciam ante os olhos atônicos do público e dos formadores de opinião, cada um apegando-se às explicações mais desencontradas, extemporâneas e impotentes. Muitas décadas hão de passar antes que a devastação psicológica resultante desse quadro possa ser revertida. O fabuloso concurso de crimes que a determinou não tem paralelo na história universal.

Um dos aspectos mais grotescos da situação é a facilidade com que os culpados se desvencilham de qualquer tentativa de denúncia, qualificando-a de “teoria da conspiração”. Mas quem falou em conspiração? O que vemos é uma gigantesca movimentação de recursos, de poderes, de organizações, de correntes históricas, que para permanecer imune à curiosidade popular não precisa se esconder em porões, mas apenas apostar na incapacidade pública de apreender a sua complexidade inabarcável e de acreditar na existência de tanta malícia organizada.

O Foro é uma entidade sui generis, sem correspondência em qualquer época ou país. Longo tempo depois de extinto, como espero venha a sê-lo um dia, ele ainda constituirá um enigma e um desafio ao tirocínio dos historiadores. Para nós, ele é mais do que isso. É o inimigo “onipresente e invisível” sonhado por Antonio Gramsci.

Wednesday, 8 October 2025

Wednesday's Good Reading: “Sagrado Coração de Jesus” by Plinio Corrêa de Oliveira (in Portuguese)

 

    Legionário, N.º 458, 22 de junho de 1941

    Insistentemente, tem os Santos Padres recomendado que a humanidade intensifique o culto que presta ao Sagrado Coração de Jesus a fim de que, regenerado o homem pela graça de Deus e compreendendo que deve ser Deus o centro de seus afetos, possa reinar novamente no mundo aquela tranquilidade da ordem, da qual mais distante estamos, quanto mais o mundo descamba pela anarquia.

    Assim, não poderia um jornal católico deixar despercebida a festa que há dias transcorreu do Sagrado Coração. Não se trata apenas de um dever de piedade imposto pela própria ordem das coisas, mas de um dever que a tragédia contemporânea torna mais tragicamente premente.

* * *

    Não há quem não se alarme com os extremos de crueldade a que pode chegar o homem contemporâneo. Essa crueldade não se atesta apenas nos campos de batalha. Ela transparece a cada passo, nos grandes e nos pequenos incidentes da vida de todo o dia, através da extraordinária dureza e frieza de coração com que a generalidade das pessoas trata seus semelhantes. As mães em cujas entranhas decresce de intensidade o amor pelos filhos; os maridos que atiram à desgraça um lar inteiro, com o único intuito de satisfazer seus próprios instintos e paixões; os filhos que, indiferentes à miséria ou ao abandono moral em que deixam seus pais, voltam todas as suas vistas para a fruição dos prazeres desta vida; os profissionais que se enriquecem às custas do próximo, mostram muitas vezes uma crueldade fria e calculada, que causa muito mais horror do que os extremos de furor a que a guerra pode arrastar os combatentes.

    Realmente, se bem que na guerra os atos de crueldade se possam mais facilmente aquilatar, os que os praticam tem, se não a desculpa, ao menos a atenuante de que são impelidos pela violência do combate. Mas aquilo que se trama e se realiza na tranquilidade da vida quotidiana não pode muitas vezes beneficiar-se de igual atenuante. E isto sobretudo quando não se trata de ações isoladas, mas de hábitos inveterados que multiplicam indefinidamente as más ações.

    A guerra, tal qual ela é hoje feita, é um índice de crueldade, mas está longe de ser a única manifestação da dureza moral contemporânea.

* * *

    Quem diz crueldade diz egoísmo. O homem só prejudica seu próximo por egoísmo, por desejar beneficiar-se de vantagens a que não tem direito. Assim, pois, o único meio de extirpar a crueldade consiste em extirpar o egoísmo.

    Ora, a teologia nos ensina que o homem só pode ser capaz de verdadeira e completa abnegação de si mesmo quando seu amor ao próximo é baseado no amor de Deus. Fora de Deus não há, para os afetos humanos, estabilidade nem plenitude. Ou o homem ama a Deus a ponto de se esquecer de si mesmo, e neste caso ele saberá realmente amar o próximo; ou o homem se ama a ponto de se esquecer de Deus, e, neste caso, o egoísmo tende a dominá-lo completamente.

    Assim, é só aumentando nos homens o amor de Deus, que se poderá conseguir deles uma profunda compreensão de seus deveres para com o próximo. Combater o egoísmo é tarefa que implica necessariamente em “dilatar os espaços do amor de Deus”, segundo a belíssima frase de Santo Agostinho.

    Ora, a festa do Sagrado Coração de Jesus é, por excelência, a festa do amor de Deus. Nela, a Igreja nos propõe como tema de meditações e como alvo de nossas preces o amor terníssimo e invariável de Deus que, feito homem, morreu por nós. Mostrando-nos o Coração de Jesus a arder de amor a despeito dos espinhos com que O circundamos por nossas ofensas, a Igreja abre para nós a perspectiva de um perdão misericordioso e largo, de um amor infinito e perfeito, de uma alegria completa e imaculada, que devem constituir o encanto perene da vida espiritual de todos os verdadeiros católicos.

    Amemos o Sagrado Coração de Jesus. Esforcemo-nos por que essa devoção triunfe autenticamente (e não apenas através de alguns simbolismos da realidade) em todos os lares, em todos os ambientes e, sobretudo, em todos os corações. Só assim conseguiremos reformar o homem contemporâneo.

* * *

    “Ad Jesum per Mariam”. Por Maria é que se vai a Jesus. Escrevendo sobre a festa do Sagrado Coração, como não dizer uma palavra de comoção filial ante esse Coração Imaculado que, melhor do que qualquer outro, compreendeu e amou o Divino Redentor? Que Nossa Senhora nos obtenha algumas faíscas daquela imensa devoção que tinha ao Sagrado Coração de Jesus. Que Ela consiga atear em nós um pouco daquele incêndio de amor com que Ela ardeu tão intensamente, são nossos votos dentro desta oitava suave e confortadora.

Wednesday, 1 October 2025

Wednesday's Good Reading: “Afonso Arino” by Olavo Bilac (in Portuguese).

 

Há poucos meses, em Belo Horizonte, falando a homens de letras de Minas, procurei evocar, em poucas linhas, numa reminiscência, a figura de Afonso Arinos, homem e artista:

Conheci-o, a princípio, em Ouro Preto, na austera Vila Rica; ali vivi com ele, no silêncio e na poeira dos arquivos; e ali comecei a admirar o profundo brasileirismo orgânico, que forrava o seu espírito. Conheci-o depois, e melhor na Europa, no tumulto de Paris, e em longas viagens, romarias a catedrais e a castelos, passeios por cidades e campos. Na Europa, Afonso Arinos era ainda mais brasileiro do que no Brasil. Alto, robusto, elegante, de uma estatura e um ar de gigante amável, em que se aluavam a energia e a graça, conservando no olhar e na alma o nosso céu e o nosso sol, ele era como uma das árvores das nossas matas, exilada nas frias terras do velho continente. Nos boulevards, nos salões, nos teatros, e ainda nas geladas galerias de Rambouillet e de Versalhes, onde erravam os espectros de Francisco I e Luís XIV, — Afonso Arinos mantinha, sob a polidez das suas maneiras de fidalgo, o andar firme, um pouco pesado, e o jeito reservado, um pouco tímido, e o falar comedido, um pouco hesitante, de um sertanejo forte, andeiro e cavaleiro, caçador e escoteiro, simples e ousado... Ainda hoje o vejo, e me vejo, claramente, num dia de fevereiro de 1909, quando visitamos juntos a Catedral de Chartres. Era duro o inverno. Quando chegamos à velhíssima cidade episcopal, caía neve. De pé, insensíveis às lufadas cortantes dos flocos brancos, quedamos na praça, admirando a maravilhosa fábrica do templo, a sua caprichosa ossatura de contrafortes e botaréus, diante da fachada, a um tempo leve e severa, com a graciosa majestade da primeira fase da arquitetura ogival: as três portas baixas sobrecarregadas de estátuas, a grande rosaça fulgurando em cores múltiplas, e as duas torres, uma lisa, a outra rendada, esguias e longas, preces de pedra num surto para o céu... Dentro, na misteriosa cripta, na ressoante nave, nas capelas cheias de sombra, passamos duas horas, esmagados pela grandeza da catedral anciã de sete séculos, em que vivem, numa vida muda, mais de dez mil pinturas e esculturas, entes de sonho e terror, santos, apóstolos, bispos, anjos, demônios, animais e monstros fabulosos, grifos, dragões e quimeras. Ao cabo da longa conversação, em que nos haviam preocupado tantos aspectos da história e da arte do Cristianismo, houve um momento, em que, por não sei que vaga associação de ideias, Afonso entrou a dizer-me episódios de uma das suas recentes caçadas no Distrito Diamantino, nas cercanias do Serro. Estávamos no centro do cruzeiro, entre o coro e as naves colaterais. Do ponto em que estávamos, o nosso olhar abrangia um trecho fantástico da sombria floresta de pedra: as colunas, em duas filas, rodeavam-nos, como esbeltos estipes de palmeiras, misturando em cima, na abobada, as suas palmas em leques, entre lianas, entre folhas e flores, lódão e vinha, hera e nenúfar. E milagre da palavra... A voz de Afonso animava-se, exaltava-se e sacudia a catedral. Dizia os atalhos, as escarpas, os voltados, a mata, e os relinchos dos cavalos, e os estampidos dos tiros, e a alegria dos caçadores, e as cantigas dos camaradas, — e o sol mineiro... E a floresta gótica transformava-se em floresta natural: a pedra negra verdecia, a abóbada frondejava e sussurrava, a treva alagava-se de luz ofuscante, e um verão brasileiro incendiava o inverno europeu. Já não estávamos em Chartres: estávamos no Brasil...

Fica bem esta evocação no limiar do volume, em que se enfeixam as conferências de Afonso Arinos sobre histórias e lendas do Brasil. Estas conferências, e a lição, que ele professou, em Belo Horizonte, em 1915, sobre “A Unidade da Pátria”, são digno remate de uma obra literária, que foi perfeita pela consciência e pela beleza com que foi concebida e executada.

Quando, enfeitiçado pela palavra ardente do meu companheiro, vi o teto da catedral de Chartres mudar-se em cúpula de brenha tropical, era porque ele, nas suas peregrinações pelo velho mundo, levava consigo, num ambiente próprio, como a sua verdadeira atmosfera moral, a paisagem da terra que amava. E ninguém mais do que ele sentiu e definiu o influxo da visão natal: a alma da paisagem, para onde quer que andemos longe, nos segue de perto e acompanha, e chama-se a saudade; ela nos soa aos ouvidos em misteriosas melodias, onde flutuam, com o refrão de velhas canções, ladridos de vento no coqueiral, gorjeios de pássaros familiares; ela se debruça, à calada da noite, sobre os nossos leitos, para murmurar-nos as suas confidências em forma de recordações do passado, e acender no nosso ânimo as esperanças do porvir...

E com estas lembranças e esperanças o espírito da pátria dava ao espírito do pensador sobressaltos e, às vezes, desesperações. Na “Unidade da Pátria”, que foi de fato o primeiro grito de alarme e o primeiro gesto fecundo da campanha de regeneração em que estamos empenhados, Afonso Arinos resumiu, com precisão cruel, os males que nos adoecem e envergonham: a dispersão dos bons esforços; o desamparo do povo do interior, dócil e resignado, roído de epidemias e de impostos; a falta do ensino; a desorganização administrativa; a incompetência econômica; a insuficiência, e muitas vezes os criminosos desvios da justiça; a ignorância petulante e egoísta dos que governam este imenso território, em que ainda não existe nação.

Mas o amor e a força do artista achavam remédio para o desânimo e salvação para a descrença: a sua alma ancorava-se na alma popular, e banhava-se na verdadeira fonte da energia dos povos, — as tradições, as lendas, a boa poesia, em que se espelham as virtudes da gente simples, seiva, sangue, fluido nervoso, que conservam a sua pureza e o seu vigor, enquanto a doença assola o organismo social, e bastam para sarar, no momento dado, todas as devastações.

Este livro é o efeito desta crença. Afonso Arinos nunca descreu da grandeza moral do Brasil. Conhecendo o seu povo, ele sabia que ele é o verdadeiro operário da sua nação. O valor e a bondade do povo hão de anular a fraqueza e a maldade dos que o exploram; e um dia os fracos e os maus desaparecerão, e os fortes e os bons, saídos da massa anônima, já livre e Instruída, serão os definitivos governadores.

Edouard Schurè, no prefácio da sua “Histoire du Lied”, escreveu estas linhas admiráveis: “O povo, muito tempo desprezado, sonha e canta, e tem a sua poesia e o seu ideal; opera-se nele um grande e surdo trabalho. Muitas vezes, este trabalho instintivo passa-se para a literatura, e os verdadeiros autores da obra ficam desconhecidos. Os homens da imprensa e das classes cultas não percebem isto; mas a imaginação popular continua a agitar se, subterrânea, múltipla, criadora, incessante, como a vegetação do coral, que lentamente se levanta do fundo do mar em ramificações infinitas, acabando por abrolhar em ilhas encantadoras que deslumbram os navegadores.”

Palavras que sempre devem ser meditadas por nós, homens de pensamento e de palavra. Os poetas, quando jovens pensam, no inocente orgulho da sua mocidade, e no natural engano do seu talento, que são eles que dão ao povo ideias e sentimentos; e ignoram que são apenas instrumentos de uma força estranha, que os inspira e exalta, emanações insensíveis da sua terra, eflúvios invisíveis da sua gente. O tempo e a reflexão, que dão modéstia, esfriam esse entusiasmo. Depois de certa idade, sabemos que os melhores poemas são os que nascem sem artifício, independentes do uso das métricas e dos léxicos, — os que saem do seio da natureza, frescos e límpidos, como a água salta das rochas. São os poemas melhores, e os mais duradouros. Os nossos livros, concebidos e dados à luz na ansiedade e na tortura, viverão menos do que esses contos singelos, essas lendas infantis, essas trovas ingênuas, que o povo ideou e criou, sem esforço, em sorrisos, entre o amanho da terra e a contemplação do céu.

Afonso Arinos conheceu bem, de perto, esse claro e eterno manancial da nossa poesia. Viajadorda nossa terra, familiar do sertão e dos sertanejos, ele teve o dom de tratar os homens de alma simples, sabendo falar-lhes e sabendo ouvi-los, e enternecendo-se com o seu sonho rústico.

Este enternecimento perfumou a sua vida, e adoçou a sua morte.

Olavo Bilac, 1917.