Por Dom
† Carlo Maria Viganò
Li com
muito interesse o ensaio de S.E. Athanasius Schneider, publicado no
LifeSiteNews a 1º de junho, e posteriormente traduzido por Chiesa e post
Concilio, intitulado "Não há vontade divina positiva nem direito natural
para a diversidade de religiões". O estudo de Sua Excelência compendia,
com a clareza que distingue as palavras daqueles que falam segundo Cristo, as
objecções à suposta legitimidade ao exercício da liberdade religiosa que o
Concílio Vaticano II teorizou contradizendo o testemunho da Sagrada Escritura,
a voz da Tradição e o Magistério Católico, que de ambos é guardião.
O
mérito desse ensaio reside, antes de tudo, em ter sido capaz de alcançar a
relação causal entre os princípios enunciados ou implicados pelo Vaticano II e
o seu consequente e lógico efeito nos desvios doutrinários, morais, litúrgicos
e disciplinares que surgiram e se desenvolveram progressivamente até hoje. O
monstrum gerado nos círculos dos modernistas poderia, a princípio, ser
enganoso, mas, crescendo e fortalecendo-se, hoje mostra-se como realmente é na
sua natureza subversiva e rebelde. A criatura, então concebida, é sempre a
mesma e seria ingênuo pensar que a sua natureza perversa poderia mudar. As
tentativas de corrigir os excessos conciliares – invocando a hermenêutica da
continuidade – revelaram-se falhadas: Naturam espellas furca, tamen usque
recurret ['Ainda que a expulses com um forcado, a natureza voltará a aparecer']
(Horácio Epist. I, 10:24). A Declaração de Abu Dhabi e, como Mons. Schneider
justamente observa, os seu prenúncios do pantheon de Assis, «foi concebida 'no
espírito do Concílio Vaticano II'», como confirma orgulhosamente Bergoglio.
Este
“espírito do Concílio” é a licença de legitimidade que os modernistas opõem aos
críticos, sem perceberem que é precisamente confessando aquele legado que se
confirma não apenas a erroneidade das declarações atuais, mas também a matriz
herética que deveria justificá-las. A bem dizer, nunca na vida da Igreja houve
um Concílio que representasse um tal evento histórico a ponto de torná-lo
diferente dos outros: nunca foi dado um “espírito do Concílio de Niceia”, nem o
“espírito do Concílio de Ferrara-Florença” e muito menos o “espírito do
Concílio de Trento”, assim como nunca tivemos um “pós-concílio” depois do IV de
Latrão ou do Vaticano I.
O
motivo é evidente: aqueles Concílios eram todos, indistintamente, a expressão
da voz uníssona da Santa Madre Igreja e, por essa mesma razão, de Nosso Senhor
Jesus Cristo. Significativamente, aqueles que apoiam a novidade do Vaticano II
também aderem à doutrina herética que vê contraposto o Deus do Antigo
Testamento ao Deus do Novo, como se se pudesse dar uma contradição entre as
Divinas Pessoas da Santíssima Trindade. Evidentemente, essa contraposição,
quase gnóstica ou cabalística, é funcional para a legitimação de um novo
sujeito deliberadamente diferente e oposto em relação à Igreja Católica. Os
erros doutrinários quase sempre traem também uma heresia trinitária e é,
portanto, retornando à proclamação do dogma trinitário que se poderão dispersar
as doutrinas que a ele se opõem: ut in confessione veræ sempiternæque deitatis,
et in Personis proprietas, et in essentia unitas, et em majestate adoretur
æqualitas. Ao professar a verdadeira e eterna divindade, adoramos a propriedade
das divinas Pessoas, a unidade na sua essência, a igualdade na sua majestade.
Mons.
Schneider cita alguns cânones dos Concílios Ecumênicos que propõem, no seu
dizer, doutrinas dificilmente aceitáveis hoje, como a obrigação de reconhecer
os Judeus através do vestuário ou a proibição de os cristãos serem empregados
de patrões maometanos ou hebreus. Entre estes exemplos, há também a necessidade
da traditio instrumentorum, declarada pelo Concílio de Florença, posteriormente
corrigida pela Constituição Apostólica Sacramentum Ordinis de Pio XII. O Bispo
Athanasius comenta: «Pode-se legitimamente esperar e acreditar que um futuro
papa ou concílio ecumênico corrigirá as afirmações errôneas pronunciadas» pelo
Vaticano II. Parece-me um argumento que, mesmo com a melhor das intenções, mina
as fundações do edifício católico. Se, de facto, admitirmos que possam haver
atos magisteriais que, por uma alterada sensibilidade, sejam, com o passar do
tempo, susceptíveis de revogação, de modificação ou de diferente interpretação,
caímos inexoravelmente sob a condenação do Decreto Lamentabili e acabamos por
dar razão a quem, recentemente, precisamente com base naquela tese errônea,
declarou “não conforme ao Evangelho” a pena capital, chegando a alterar o
Catecismo da Igreja Católica. E, de certa maneira, poderíamos, pelo mesmo
princípio, acreditar que as palavras do Beato Pio IX, na Quanta cura, foram, de
alguma forma, corrigidas precisamente no Vaticano II, tal como Sua Excelência
espera que possa acontecer com a Dignitatis humanæ. Dos exemplos que usou,
nenhum é, por si só, gravemente errôneo ou herético: ter declarado necessária a
traditio instrumentorum para a validade da Ordem não comprometeu, de forma
algum, o ministério sacerdotal na Igreja, levando-a a conferir invalidamente as
Ordens. Também não me parece que se possa afirmar que este aspecto, por mais
importante que seja, tenha insinuado doutrinas errôneas nos fiéis, algo que
apenas aconteceu com o último Concílio. E quando, no curso da História, as
heresias se espalharam, a Igreja sempre interveio prontamente para condená-las,
como aconteceu no tempo do Sínodo de Pistoia, de 1786, que foi, de alguma
forma, precursor do Vaticano II, especialmente onde aboliu a Comunhão fora da
Missa, introduziu a língua vernácula e aboliu as orações em voz baixa do
Cânone; mas ainda mais quando teorizou as bases da colegialidade episcopal,
limitando o primado do Papa a mera função ministerial. Reler os actos desse
Sínodo deixa-nos estupefactos com a formulação servil dos erros que,
posteriormente, encontraremos, ainda maiores, no Concílio presidido por João
XXIII e Paulo VI. Por outro lado, como a Verdade bebe de Deus, o erro nutre-se
e alimenta-se no Adversário, que odeia a Igreja de Cristo e o seu coração, a
Santa Missa e a Santíssima Eucaristia.
Chega
um momento na nossa vida em que, por disposição da Providência, somos
confrontados com uma escolha decisiva para o futuro da Igreja e para a nossa
salvação eterna. Falo da escolha entre compreender o erro em que praticamente
todos nós caímos, e quase sempre sem más intenções, e o querer continuar a
procurar noutro lugar ou justificar-nos a nós mesmos.
Entre
outros erros, também cometemos aquele de considerar os nossos interlocutores
pessoas que, apesar da diversidade das ideias e da fé, animadas por boas
intenções e que, quando se abrissem à nossa fé, estariam dispostas a corrigir
os seus erros. Juntamente com numerosos Padres conciliares, pensámos no
ecumenismo como um processo, um convite que chama os dissidentes à única Igreja
de Cristo; os idólatras e os pagãos ao único Deus verdadeiro; o povo judeu ao
Messias prometido. Mas, a partir do momento em que foi teorizado nas Comissões
conciliares, passou a estar em oposição directa à doutrina até então expressa
no Magistério.
Pensávamos
que certos excessos fossem apenas um exagero daqueles que se deixaram levar
pelo entusiasmo da novidade; acreditamos sinceramente que ver João Paulo II
rodeado por homens santarrões, bonzinhos, imãs, rabinos, pastores protestantes
e outros hereges fosse prova da capacidade da Igreja de convocar as pessoas
para invocar a paz de Deus, enquanto que o exemplo autorizado daquele gesto deu
início a uma sequência desviante de pantheon mais ou menos oficiais,
chegando-se até a ver ser transportado aos ombros de alguns Bispos o ídolo
imundo da Pachamama, sacrilegamente dissimulado sob a presumida aparência de
uma sagrada maternidade. Mas se o simulacro de uma divindade infernal foi capaz
de entrar em São Pedro, tal faz parte de um crescendo previsto desde o início.
Numerosos Católicos praticantes, e talvez até grande parte dos próprios
clérigos, estão hoje convencidos de que a Fé Católica já não é necessária para
a salvação eterna; acredita-se que o Deus Uno e Trino, revelado aos nossos
pais, seja o mesmo deus de Maomé. Ouvia-se repeti-lo dos púlpitos e das
cátedras episcopais já há vinte anos, mas recentemente ouve-se afirmar com
ênfase até do mais alto Trono.
Sabemos
bem que, suportados pelo dito evangélico Littera enim occidit, spiritus autem
vivificat [A letra mata, o Espírito vivifica] (2Cor 3,6), os progressistas e os
modernistas souberam ocultar astuciosamente, nos textos conciliares, aquelas
expressões ambíguas que, à época, pareciam inofensivas para a maioria, mas que
hoje se manifestam na sua valência subversiva. É o método do subsistit in:
dizer uma meia verdade não tanto para não ofender o interlocutor (assumindo que
seja lícito silenciar a verdade de Deus por respeito a uma Sua criatura), mas
com o objectivo de poder usar o meio erro que a verdade inteira dissiparia
instantaneamente. Assim, “Ecclesia Christi subsistit na Ecclesia Catholica” não
especifica a identidade das duas, mas a existência de uma na outra e, por
consistência, também noutras igrejas: eis a passagem aberta às celebrações
interconfessionais, às orações ecumênicas, ao fim implacável da necessidade da
Igreja em ordem à salvação, da sua singularidade, da sua missionariedade.
Alguns
talvez se recordarão que os primeiros encontros ecumênicos eram realizados com
os cismáticos do Oriente e, muito prudentemente, com algumas seitas
protestantes. Com excepção da Alemanha, da Holanda e da Suíça, os países de
tradição católica não acolheram, desde o princípio, as celebrações mistas, com
pastores e párocos juntos. Lembro-me que, na época, se falava em remover a
penúltima doxologia do Veni Creator para não ferir os Ortodoxos, que não aceitam
o Filioque. Hoje, ouvimos recitar as suras do Alcorão dos púlpitos das nossas
igrejas, vemos um ídolo de madeira ser adorado por freiras e frades, ouvimos
Bispos desdizer o que, até ontem, nos pareciam as desculpas mais plausíveis de
tantos extremismos. O que o mundo quer, por instigação da Maçonaria e dos seus
tentáculos infernais, é criar uma religião universal, humanitária e ecumênica
em que seja banido aquele Deus ciumento que nós adoramos. E se é isto que o
mundo quer, qualquer passo na mesma direção por parte da Igreja é uma escolha
infeliz que se voltará contra aqueles que acreditam que podem brincar com Deus.
As esperanças da Torre de Babel não podem ser trazidas de volta à vida por um
plano globalista que tem como objectivo a eliminação da Igreja Católica para
substituí-la por uma confederação de idólatras e hereges unidos pelo
ambientalismo e pela fraternidade humana. Não pode haver nenhuma fraternidade
senão em Cristo, e só em Cristo: qui non est mecum, contra me est [Quem não é
comigo é contra Mim] (Mt 12,30).
É
desconcertante que, desta corrida rumo ao abismo, estejam cientes tão poucos e
que poucos tenham consciência de qual é a responsabilidade dos líderes da
Igreja em apoiar estas ideologias anticristãs, como se quisessem garantir um
espaço e um papel na carruagem do pensamento único. E surpreende que ainda
persistam em não querer investigar as causas primeiras da crise presente,
limitando-se a deplorar os excessos de hoje como se não fossem a consequência
lógica e inevitável de um plano orquestrado há décadas atrás. Se a Pachamama
pôde ter sido adorada numa igreja, devemo-lo à Dignitatis humanae. Se temos uma
liturgia protestante e, às vezes, até paganizada, devemo-lo às ações
revolucionárias de Mons. Annibale Bugnini e às reformas pós-conciliares. Se se
assinou o Documento de Abu Dhabi, deve-se à Nostra Aetate. Se chegamos a
delegar as decisões nas Conferências Episcopais – mesmo em gravíssima violação
da Concordata, como aconteceu em Itália –, devemo-lo à colegialidade e à sua
versão atualizada da sinodalidade. Graças à qual nos encontramos, com a Amoris
Laetitia, a dever procurar uma maneira de impedir que aparecesse o que era
evidente a todos, ou seja, que aquele documento, preparado por uma
impressionante máquina organizacional, deveria legitimar a Comunhão aos
divorciados e concubinários, assim como a Querida Amazônia será usada como
legitimação de mulheres sacerdotes (o caso de uma “vigária episcopal”, em
Friburgo, é muito recente) e a abolição do Sagrado Celibato. Os Prelados que
enviaram os Dubia a Francisco, na minha opinião, demonstraram a mesma piedosa
ingenuidade: pensar que, quando confrontado com a contestação argumentada do
erro, Bergoglio teria compreendido, corrigido os pontos heterodoxos e pedido
perdão.
O
Concílio foi usado para legitimar, no silêncio da Autoridade, os desvios
doutrinais mais aberrantes, as inovações litúrgicas mais ousadas e os abusos
mais inescrupulosos. Este Concílio foi tão exaltado a ponto de ser indicado
como a única referência legítima para os Católicos, clérigos e bispos,
obscurecendo e conotando com um senso de desprezo a doutrina que a Igreja
sempre ensinara com autoridade e proibindo a perene liturgia que, por milênios,
havia alimentado a fé de uma ininterrupta geração de fiéis, mártires e santos.
Entre outras coisas, este Concílio provou ser o único que põe tantos problemas
interpretativos e tantas contradições em relação ao Magistério precedente,
enquanto não há um – do Concílio de Jerusalém ao Vaticano – que se não
harmonize perfeitamente com todo o Magistério e que precise de alguma
interpretação.
Confesso-o
com serenidade e sem controvérsia: fui um dos muitos que, apesar de muitas
perplexidades e medos, que hoje se mostram absolutamente legítimos, confiaram
na autoridade da Hierarquia com uma obediência incondicional. Na realidade,
penso que muitos, e eu entre eles, não consideramos inicialmente a
possibilidade de um conflito entre a obediência a uma ordem da Hierarquia e a
fidelidade à própria Igreja. Para tornar tangível a separação inatural, ou
melhor, diria perversa, entre Hierarquia e Igreja, entre obediência e
fidelidade, foi certamente este último Pontificado.
Na sala
das lágrimas, adjacente à Capela Sistina, enquanto Mons. Guido Marini preparava
o roquete, a mozeta e a estola para a primeira aparição do “neo-eleito” Papa,
Bergoglio exclamou: “O carnaval acabou!”, recusando, com desdém, as insígnias
que todos os Papas até então humildemente aceitaram como distintivas do Vigário
de Cristo. Mas naquelas palavras havia algo de verdadeiro, mesmo que dito
involuntariamente: a 13 de Março de 2013 caía a máscara dos conspiradores,
finalmente livres da desconfortável presença de Bento XVI e descaradamente
orgulhosos de terem finalmente conseguido promover um Cardeal que encarnava os
seus ideais, o seu modo de revolucionar a Igreja, de tornar preterível a
doutrina, adaptável a moral, adulterável a liturgia, revogável a disciplina. E
tudo isto foi considerado, pelos próprios protagonistas da conspiração, a
consequência lógica e a aplicação óbvia do Vaticano II, segundo eles
enfraquecido precisamente pelas críticas expressas pelo próprio Bento XVI. A
maior afronta daquele Pontificado foi a liberalização da veneranda Liturgia
Tridentina, à qual era finalmente reconhecida legitimidade, interrompendo cinquenta
anos de ilegítimo ostracismo. Não é por acaso que os apoiantes de Bergoglio são
os mesmos que vêem no Concílio o primeiro evento de uma nova igreja, antes da
qual havia uma velha religião com uma velha liturgia. Não é precisamente por
acaso: aquilo que afirmam impunemente, provocando o escândalo dos moderados, é
o que crêem também os Católicos, a saber: que, apesar de todas as tentativas de
hermenêutica da continuidade miseravelmente naufragadas no primeiro confronto
com a realidade da crise presente, é inegável que, do Vaticano II em diante,
foi constituída uma igreja paralela, sobreposta e contraposta à verdadeira
Igreja de Cristo. Essa obscureceu progressivamente a divina instituição fundada
por Nosso Senhor para substituí-la por uma entidade bastarda, correspondente à
desejada religião universal que foi inicialmente teorizada pela Maçonaria.
Expressões como novo humanismo, fraternidade universal, dignidade do homem são
palavras de ordem do humanitarismo filantrópico que nega o verdadeiro Deus, da
solidariedade horizontal de errante inspiração espiritualista e do irenismo
ecuménico que a Igreja condena sem apelo. «Nam et loquela tua manifestum te
facit» [tu és um deles, pois a tua fala te denuncia] (Mt 26,73): este recurso
frequente, quase obsessivo, ao mesmo vocabulário do inimigo revela a adesão à
ideologia em que esse se inspira; por outro lado, a renúncia sistemática à
linguagem clara, inequívoca e cristalina própria da Igreja confirma a vontade
de se destacar não apenas da forma católica, mas também da sua substância.
Aquilo
que, desde há anos, ouvimos enunciado, vagamente e sem claras conotações, do
mais alto Trono, encontramo-lo elaborado num verdadeiro e próprio manifesto dos
apoiantes do atual Pontificado: a democratização da Igreja não mais pela
colegialidade inventada pelo Vaticano II, mas o synodal path inaugurado no
Sínodo sobre a Família; a demolição do sacerdócio ministerial através do seu
enfraquecimento, com as derrogações do Celibato eclesiástico e a introdução de
figuras femininas com funções quase sacerdotais; a passagem silenciosa do
ecumenismo dirigido aos irmãos separados a uma forma de pan-ecumenismo que
abaixa a Verdade do único Deus Uno e Trino ao nível das idolatrias e das
superstições mais infernais; a aceitação de um diálogo inter-religioso que
pressupõe o relativismo religioso e exclui o anúncio missionário; a
desmistificação do Papado, perseguida pelo próprio Bergoglio como cifra do
Pontificado; a progressiva legitimação do politically correct: ideologia de
gênero, sodomia, casamentos homossexuais, doutrinas malthusianas, ecologismo,
imigracionismo… Não reconhecer as raízes destes desvios nos princípios
estabelecidos pelo Concílio impossibilita qualquer cura: se o diagnóstico
persistir contra as evidências para excluir a patologia inicial, não pode
formular uma terapia adequada.
Esta
operação de honestidade intelectual requer uma grande humildade, antes de tudo
no reconhecer ter sido enganados durante décadas, em boa fé, por pessoas que,
constituídas em autoridade, não foram capazes de vigiar e guardar o rebanho de
Cristo: aqueles que vivem em silêncio, alguns por muitos compromissos, outros
por conveniência, outros por má-fé ou até mesmo por dolo. Estes últimos, que
traíram a Igreja, devem ser identificados, censurados, convidados a emendar-se
e, se não se arrependerem, expulsos do recinto sagrado. Assim age um verdadeiro
Pastor, que se preocupa com a saúde das ovelhas e que dá a vida por elas;
tivemos e ainda temos muitos mercenários para quem a anuência dos inimigos de
Cristo é mais importante que a fidelidade à Sua Esposa.
Eis
como, com honestidade e serenidade, obedeci, há sessenta anos, a ordens
questionáveis, acreditando que representassem a voz amorosa da Igreja, e hoje,
com igual serenidade e honestidade, reconheço que me deixei enganar. Ser
coerente hoje em dia, perseverando no erro, representaria uma escolha infeliz e
tornar-me-ia cúmplice desta fraude. Reivindicar uma lucidez de julgamento desde
o início não seria honesto: sabíamos todos que o Concílio representaria, mais
ou menos, uma revolução, mas não podíamos imaginar que tal se revelaria tão
devastadora, mesmo para o trabalho daqueles que deveriam tê-lo evitado. E se
até Bento XVI ainda poderíamos imaginar que o golpe de estado do Vaticano II
(que o cardeal Suenens definiu o 1789 da Igreja) conheceria uma desaceleração,
nos últimos anos, mesmo os mais ingênuos dentre nós compreenderam que o
silêncio, por medo de suscitar um cisma, a tentativa de ajustar os documentos
papais no sentido católico para remediar a ambiguidade pretendida, os apelos e
os Dubia a Francisco, deixados eloquentemente sem resposta, são uma confirmação
da situação de gravíssima apostasia à qual estão expostos os líderes da
Hierarquia, enquanto o povo cristão e o clero se sentem irremediavelmente afastados
e considerados quase com aborrecimento por parte do Episcopado.
A
Declaração de Abu Dhabi é o manifesto ideológico de uma ideia de paz e de
cooperação entre as religiões que pode ter alguma possibilidade de tolerância
se vier de pagãos, privados da luz da Fé e do fogo da Caridade. Mas quem tem a
graça de ser filho de Deus, em virtude do Santo Batismo, deveria ficar
horrorizado só com a ideia de poder construir uma blasfema Torre de Babel numa
versão moderna, tentando reunir a única verdadeira Igreja de Cristo, herdeira
das promessas do Povo eleito, com aqueles que negam o Messias e com aqueles que
consideram blasfema só a ideia de um Deus Trino. O amor de Deus não conhece
medidas e não tolera compromissos, caso contrário simplesmente não é Caridade,
sem a qual não é possível permanecer n’Ele: Qui manet in caritate, in Deo
manet, et Deus in eo [Aquele que permanece na caridade permanece em Deus, e
Deus nele]. Pouco importa se é uma declaração ou um documento magisterial:
sabemos muito bem que a mens subversiva dos modernistas aposta precisamente
nestes cavalos para difundir o erro. E sabemos muito bem que o objectivo destas
iniciativas ecumênicas e inter-religiosas não é converter a Cristo quantos
estão distantes da única Igreja, mas desviar e corromper aqueles que ainda
conservam a Fé católica, levando-os a acreditar ser desejável uma grande
religião universal que une “numa única casa” as três grandes religiões
abraâmicas: este é o triunfo do plano maçônico em preparação para o reino do
Anticristo! Que isto se concretize com uma Bula dogmática, com uma declaração
ou com uma entrevista de Scalfari no "Repubblica", pouco importa,
porque as palavras de Bergoglio são esperadas pelos seus apoiantes como um
sinal, ao qual responder com uma série de iniciativas já preparadas e
organizadas anteriormente. E se Bergoglio não segue as indicações recebidas,
multidões de teólogos e clérigos já estão prontos a lamentar-se da “solidão do
Papa Francisco”, qual premissa para a sua demissão (por exemplo, penso em Massimo
Faggioli num dos seus recentes escritos). Por outro lado, não seria a primeira
vez que estes usam o Papa quando favorece os seus planos e se livram dele ou
atacam-no assim que se afasta.
A
Igreja celebrou, no passado domingo, a Santíssima Trindade e propõe-nos, no
Breviário, a recitação do Symbolum Athanasianum, agora proscrito pela liturgia
conciliar e já confinado a apenas duas ocasiões na reforma de 1962. Daquele
Símbolo, agora desaparecido, permanecem gravadas em letras de ouro as primeiras
palavras: «Quicumque vult salvus esse, ante omnia opus est ut teneat Catholicam
fidem; quam nisi quisque integram invioletamque servaverit, absque dubio in
aeternum peribit» [Quem quiser se salvar, deve antes de tudo professar a fé
católica. Porque aquele que não a professar, integral e inviolavelmente,
perecerá sem dúvida por toda a eternidade].
† Carlo Maria Viganò