translated by Ricardo da Costa
1.
Diletíssimo filho Roberto, esperei até o limite do possível, confiando que
talvez a piedade de Deus se dignasse a visitar tua alma por si e a minha por
ti, isto é, que Ele infundisse em ti a saudável compunção e em mim a grande
alegria de tua salvação. Mas já que até agora me senti frustrado em minha
expectativa, não posso encobrir mais a minha dor, nem reprimir a minha
ansiedade, nem dissimular a minha tristeza. Por isso, mesmo contra toda a
ordenação jurídica, minha ferida me induz a chamar àquele que me feriu e a
desprezadamente requerer àquele que me desprezou, humilhando-me para satisfazer
a injúria de meu injuriante, e rogando a quem devia me rogar.
Claro
que a dor excessiva não delibera nem se ruboriza, não consulta a razão, não
teme o dano da própria dignidade, não se atém à lei, não aquiesce com o juízo;
ignora o modo e a ordem, pois, antes de tudo, busca uma solução para o
sofrimento ou o gozo do que falta. Tu poderás replicar-me: “Eu não feri
ninguém, e a ninguém desprezei. Pelo contrário: eu fui o ferido e desprezado de
mil maneiras; limitei-me a fugir de meu malfeitor. A quem eu injuriei fugindo
das injúrias? Não é melhor distanciar-se do perseguidor que viver agüentando-o?
Não é preferível fugir daquele que te fere que feri-lo?”
Estou
de acordo. Não pretendo discutir, mas dirimir a discussão. Fugir da perseguição
não é culpa do fugitivo, mas do perseguidor. Não o contradigo. Omito os fatos,
não discuto as culpas, não retrato as causas, não recordo as injúrias. Isso só
serve para instigar as discórdias, não para mitigá-las. Somente quero falar o
que mais me afeta. Sofro muito porque não te tenho ao meu lado, não te vejo,
pois vivo sem ti e, para mim, morrer por ti é viver, e viver sem ti é morrer.
Não me pergunto por que fostes; o que me dói é que não voltes. Não denuncio as
causas de tua partida, mas a dilação de teu regresso. Vem e façamos as pazes;
volta e satisfaça meus desejos. Vem, insisto, volta que eu cantarei com gozo:
“Fora morto e reviveu; fora perdido e encontrado”.
2.
É certo que a culpa de sua partida foi minha. Fui muito austero com um delicado
adolescente, tratei com dureza desumana a um jovem. De fato, essa era a causa
de teus murmúrios contra mim, que eu recordo, quando ainda vivia conosco. E por
essa mesma razão, segundo soube, não cessas de desprestigiar-me. Não te culpo.
Eu poderia desculpar-me e explicar-te que era necessário coagir as paixões de
tua adolescência lasciva, e conduzir a difícil idade desde seu começo com uma
disciplina dura e áspera, como diz a Escritura: “Dá a vara a teu filho que o
livrará da morte”, e em outro lugar, “O Senhor castiga aos que ama e açoita os
filhos que reconhece como seus”, e este outro, “São preferíveis os golpes do
amigo que os beijos do inimigo”.
Mas,
como disse, vamos reconhecer que a culpa de tua partida seja minha; não nos
detenhamos em discutir quem perpetrou o delito, porque assim atrasaríamos a
emenda. Apesar disso, se não perdoas o arrependido, se não és indulgente com o
confesso, a culpa começaria a recair sobre ti. Posso ter ultrapassado os
limites contigo em algumas coisas, mas certamente não por má vontade. E se
suspeitas que no futuro eu me portaria contigo da mesma maneira, deves saber
que eu não sou o que era, porque tu tampouco serás o que fostes. Tu mudaste, e
também me encontrarás transformado. Podes estar seguro que aquele mestre que
temias será para ti um companheiro que te abraça.
Seja
por que fostes embora por minha culpa, como tu acreditas e eu o reconheço, ou
por tua fragilidade, como muitos pensam, embora eu não tenha dito pessoalmente,
enfim, seja por minha causa ou tua, como creio, se agora resistes a voltar, tu
serás o único indesculpável. Queres libertar-te de toda a culpa? Volta. Se tu a
reconheces como tua, te perdôo; perdoa-me tu também, porque reconheço a minha.
Do contrário, ou és demasiado indulgente contigo, porque reconheces a culpa e a
encobres, ou demasiado cruel comigo, porque me negas o perdão quando te
apresento minhas desculpas.
3.
Mas se recusas a voltar, busca outra desculpa com a qual possas lisonjear
falsamente tua consciência, pois daqui em diante não tens mais porque temer
minhas rigorosas exigências. Tampouco te aterrorizarás pensando que em teu
regresso serei terrível contigo, porque tu ainda estás ausente e eu tenho meu
coração totalmente abatido, e minhas entranhas traspassadas de dor. Mostro-te
minha humildade, te prometo meu amor e ainda me temes? Vem intrépido para onde
te chama a humildade e te arrasta a caridade. Aproxima-te seguro, tranqüilizado
com estas garantias; se fugiste do intransigente, retorna ao manso; que te
arraste a ternura daquele cuja severidade te desterrou. Veja, filho, como
desejo dirigir-te, não com um espírito que te escravize e te leve outra vez ao
temor, mas para fazer-te filho e então poderás clamar seguro: Abba, Pater. A
causa dessa minha dor tão intensa não me induz a ameaçar-te, mas a
acariciar-te; a suplicar-te, não a espantar-te.
Talvez
outro tentasse de outra maneira. Não é verdade que te teria jogado na cara tua
culpa para te aterrorizar? Não teria te acusado pelo descumprimento de teus
votos para abrir-te um juízo? Não te acusaria de desobediência, não te tacharia
de apostasia porque trocaste a túnica pela peliça, os legumes por outras
comidas mais suculentas e a pobreza pelas riquezas? Mas eu conheço teu modo de
ser, mais propenso a se curvar diante do amor que a deixar levar-se pela coação
do temor. Além disso, que necessidade há de incitar por duas vezes ao
condescendente, atemorizar o vacilante, envergonhar com rancor o confuso, cuja
mestra é sua razão, cuja própria consciência é seu castigo, cuja vergonha
instintiva é a lei de sua disciplina?
Alguém
poderia estranhar que um jovem envergonhado, simples e indeciso tenha se
atrevido a enfrentar o amor de seus irmãos, a autoridade de seu mestre, as
disposições de sua regra, até romper com seus votos e desertar de seu mosteiro.
Mas também deveria estranhar o fato de Davi trair sua santidade, a sabedoria de
Salomão se deixar enganar e a força de Sansão ser vencida. E aquele que pôde
expulsar da pátria da felicidade a nosso primeiro pai, seduzido pelo engano,
não será capaz de conduzir furtivamente a um adolescente para um lugar horrível
e uma solitária vastidão? Tenhamos em conta também que a ele não seduziu a
beleza como aos velhos da Babilônia, nem o amor ao dinheiro como a Giezi, nem a
ambição da honra como a Juliano, o Apóstata. Não, quem o enganou foi a
santidade, quem o seduziu foi a religião, quem fez que se perdesse foi a
autoridade dos maiores. E de que modo?
4.
O primeiro superior o enviou a um prior relevante, com uma aparente vestimenta
de ovelha, mas em realidade um lobo rapace. Enganados foram os pastores,
acreditando que era uma ovelha. Que dor! Deixaram a sós o lobo e o cordeiro. E
este não fugiu, porque também acreditou que era uma ovelha. E o que mais? Ele o
atrai para si, o acaricia, o lisonjeia e, pregando-lhe um novo evangelho, o
recomenda à embriaguez e condena sua sobriedade, fazendo-o ver que a pobreza
voluntária é uma vida miserável, e que são loucuras o jejum, as vigílias, o
silêncio e o trabalho manual. Por sua vez, qualifica como contemplação a
ociosidade e considera uma discrição a voracidade, o charlatanismo, a
curiosidade e todas as demais destemperanças. E lhe sugere: desde quando Deus
se deleita com nossos sofrimentos? Onde a Escritura prescreve que alguém mate a
si mesmo? Que tipo de religião é essa que ordena cavar a terra, cortar os
bosques e carregar esterco? Por acaso a Verdade não diz “Quero misericórdia,
não sacrifícios”?, “Não quero a morte do pecador, mas que ele se converta e
viva?”,“Beatos são os misericordiosos, porque eles alcançarão a misericórdia”?
Para que Deus criou os alimentos se não é lícito comê-los? Para que nos deu o
corpo se não podemos alimentá-lo? E o que é mau para si mesmo, com quem será
bom? Além disso, aquele que é tacanho consigo, com quem será generoso? Ninguém,
em são juízo, odiou seu próprio corpo.
5.
Semelhantes alegações seduzem este jovem desgraçadamente crédulo. Ele segue seu
sedutor e assim o levam a Cluny. Tonsura-se, barbeia-se e se lava. Trocam seu
hábito rústico, velho e sórdido e lhe dão outro precioso, novo e limpo; assim
ele entra no convento. Com quanta honra, com quanto triunfo e com quanta
reverência ele é recebido! Designam-lhe um lugar superior ao de todos os seus
coetâneos e, como um soldado vitorioso que volta da batalha, o malvado se
glorifica de sua ambição. Elevam-no ao cume, em um lugar privilegiado: é um
adolescente, mas antecede a muitos anciãos. Toda a comunidade o acolhe, o
elogia e o felicita. Todos, vitoriosos, se alegram ao dividirem o espólio. Oh,
bom Jesus! Quantos disparates para fazer perder uma pobre alma! Qual coração,
por mais robusto que fosse, não amoleceria? Quem não se desorientaria, por mais
espiritual que fosse seu interior? Quem seria capaz de recorrer à sua
consciência diante de semelhantes turbações? Quem teria valor para reconhecer a
verdade e se manter na humildade entre tanta pompa?
6.
Além disso, intercedem por ele em Roma. Urgem à autoridade apostólica e, para
que o papa concorde, alegam que foi oferecido ao mosteiro ainda criança. Não
houve quem desmentisse, porque não se esperou a impugnação, e assim o juízo foi
parcial, com manifesto atropelo dos ausentes. A injustiça tornou-se justa, as
vítimas perderam a causa e o réu foi absolvido sem qualquer satisfação. A
sentença, exclusivamente absoluta, foi firmada por um privilégio cruel que, uma
vez obtido, confirmou aquele que flutuava em seu mal, aconselhado a uma mudança
de estabilidade, dissipando toda vacilação. O conteúdo dos documentos, a
sentença do juízo, a determinação de toda a causa decide que aqueles que o
levaram podem retê-lo, os que ficaram sem ele devem se calar e, em
conseqüência, se perderá uma alma pela qual Cristo morreu simplesmente porque
essa é a vontade dos cluniacenses. Troca-se uma profissão por outra, promete-se
o que não se vai cumprir, contrai-se um compromisso que não será observado e,
rompendo o primeiro pacto, comete-se uma prevaricação com o segundo, porque o
pecado germina mais pecados.
7.
Virá sim, virá o dia em que se julgarão novamente os juízos injustos e se
anularão os juramentos ilícitos por aquele que faz justiça aos pacientes, Ele,
que sentenciará de acordo com o direito em favor dos pobres, e acusará com
retidão em defesa dos mansos da terra. Certamente virá o que o Salmo ameaça por
meio do Profeta, dizendo: “Quando chegar o tempo, julgarei retamente”. Que fará
com os juízos injustos Aquele que julgará até o mais justo? Virá, insisto, virá
o dia do Juízo, em que pesarão mais os corações puros que as palavras sagazes,
mais as consciências retas que as bolsas cheias, porque então as palavras não
enganarão o Juiz, nem Lhe dobrarão os subornos.
Senhor Jesus, apelo ao Teu tribunal,
reservo-me ao Teu juízo, a Ti encomendo minha causa, Senhor Deus dos exércitos,
Tu, que julgas retamente, que sonda as entranhas e o coração. Tu não podes
enganar-Te, nem permites que Te enganem. Tu sabes quem busca o Teu e quem afana
o que é Teu. Tu conheces minha contínua e entranhável solicitude com ele em
todas as suas constantes provas, quantas vezes chamei a Tua bondade gemendo por
ele, como me abrasava, me atormentava e me afligia diante de cada um de seus
tropeços, inquietudes e sofrimentos. Agora eu temo que tudo tenha sido inútil,
pois sei que, por experiência, tratando-se de um adolescente apaixonado e
insolente por si mesmo, seus sentidos e seu espírito são prejudicados por essas
concessões da comodidade e essas seduções da glória. Por isso, meu Juiz, Senhor
Jesus, que emane de Ti a sentença, e que Teus olhos mirem a retidão.
8.
Olhem e julguem o que deve prevalecer: a vontade do pai sobre o filho ou o
capricho do filho, sobretudo uma vez que o filho está comprometido com algo
superior. Veja também teu servo e legislador, nosso Bento, que está mais
concorde com sua Regra: o que fizeram com o filho sem ele saber, ou o que
depois ele fez com consciência e em seu são juízo, quando teve idade suficiente
para decidir por si próprio, embora, obviamente, aquilo tenha sido uma
promessa, não uma oblação. Porque nem seus pais formaram a petição prescrita
pela Regra, nem envolveram suas mãos com os mantéis do altar, com a mesma
petição, para oferecê-lo dessa maneira diante das testemunhas.
Também
se referem às terras que, segundo eles, entregaram com ele em seu favor. Mas se
receberam as terras, porque não o retiveram com elas? Ou será que estimaram
mais as terras que a sua alma? Se ele estava oferecido ao mosteiro, o que
buscava no século? Por que deixavam à exposição do diabo o educado por Deus? Por
que apareceu a ovelha de Cristo exposta à dentada do lobo? Porque tu és
testemunha, Roberto, que chegaste a Cister não procedente de Cluny, mas do
século. Buscaste, pediste, chamaste, mas, por tua tenra idade e, apesar de tuas
resistências, tua entrada foi indeferida por dois anos. Tiveste paciência para
esperar esse tempo e, sem qualquer calúnia, rogando muito e com muitas
lágrimas, se se recordas, no fim pedistes a misericórdia tão esperada, e
conseguiste o ingresso que havia tanto sonhado. Depois, tu foste colocado à
prova da paciência durante um ano, conforme a Regra, e passaste com
perseverança e submissão. Terminado o ano, professaste livremente e, deixando
tua roupa secular, vestiste pela primeira vez o hábito religioso.
9.
Ah, criança insensata! Quem te fascinou para que descumprisse os votos que teus
lábios pronunciaram? Por acaso não será a tua boca que te salvará ou te
condenará? Por que te preocupas com o voto de teus pais e te esquece do teu?
Serás julgado pelo compromisso deles ou pelo teu? Pedirão contas dos votos de
teus lábios, não do deles. Por que podes te agradar em vão com o indulto
apostólico se tua consciência está atada pela sentença divina? Aquele que deixa
o arado e segue olhando para trás não serve para o reino de Deus. Ou será o que
te dizem “bem, bem, te mostrarão que isso não é olhar para trás”?
Filhinho
meu, se os pervertidos tentam te enganar, não concordes. Não creias em qualquer
espírito. Que sejam muitos os que te saúdam, mas mestre, um entre mil. Evite as
ocasiões, despreze a lisonja, feche os ouvidos à adulação, interroga a ti
mesmo, porque tu te conheces melhor que qualquer outro. Vigia teu coração,
interrogue tua intenção, consulte a verdade. Que tua consciência responda por
que fugistes, por que abandonastes tua ordem, os irmãos, o lugar e a mim, que
sou teu chegado na carne e muito mais no espírito. Se o fizestes para viver
mais austeramente, com maior integridade e perfeição, podes estar seguro que
não olhastes para trás; glorifica-te melhor com o apóstolo, dizendo:
“Esquecendo o que fica para trás e lançando-me ao que está na frente, corro ao
prêmio da glória”. Mas se é o contrário, não sejas soberbo e anda com cuidado,
porque, me permita dizer, todo o supérfluo que te concedas em comer e em vestir,
na conversa desnecessária ou, se comportando como um folgazão licencioso e
curioso, equivale a olhar para trás, prevaricar e apostatar da promessa que
cumpristes vivendo conosco.
10.
E digo isso, filho meu, não para te confundir, mas para te chamar a atenção,
como a um filho amadíssimo, pois mesmo que tenhas muitos pedagogos em Cristo,
não tens muitos pais. E se tu me permites, eu te engendrei para a religião com
a minha palavra e com o meu exemplo. Alimentei-te depois com leite, eras ainda
uma criança e não podias tomar outra coisa. E se houvesses esperado para
crescer, eu também teria te dado pão. Ah, quão prematura e intempestivamente
desmamaste! Temo que tudo o que fomentei com as blandícias, reanimei com as
exortações, consolidei com as orações, esteja a ponto de esvaecer, de se
extinguir, de desaparecer, e que talvez eu deva deplorar tanta desgraça, não
pelo acaso de um esforço inútil, mas pelo desastre infeliz de um filho que se
condenou.
Ou
será que te agrada que agora se orgulhe de ti alguém que não fez absolutamente
nada por ti? A mim me ocorre o mesmo que àquela meretriz, cujo filho sua
companheira tomou às escondidas, quando esta asfixiou o seu, nos tempos de
Salomão. A ti também me arrancaram de meu seio e de minhas entranhas. Gemo
porque te arrebataram de mim, e furiosamente exijo o que me arrancaram. Não
posso adormecer minhas entranhas: quando separam uma parte não pequena das
mesmas, é impossível que a outra não se contorça.
11.
Mas que vantagem ou necessidade tua o moveu até nossos amigos para urdir isso
contra nós? Suas mãos estão cheias de sangue, sua espada me traspassa o coração,
seus dentes são lanças e flechas, sua língua é uma espada afiada. Contra mim é
que deveriam ter arremetido, se alguma vez eu lhes ofendi e não sou consciente.
Mas curiosamente, aplicaram comigo a Lei de Talião, pois nunca fui capaz de
ofendê-los tanto como agora me fizeram sofrer. Se eu digo a verdade, não é que
me tenham arrancado um osso de meus ossos ou uma carne de minha carne, é que me
roubaram o gozo de meu coração, o fruto de meu espírito, a coroa de minha
esperança e, segundo creio, a metade de minha alma. E para que? Talvez
compadecidos de ti, eles tenham se indignado que um cego conduzisse outro cego,
e te colocaram sob sua direção para que não perecesses depois de mim.
Que
caridade funesta! Que amizade cruel! Amaram tanto a tua salvação que
dificultaram a minha! Não podiam salvar a ti a não ser que eu o perdesse?
Melhor seria se eu morresse para que tu vivesses. Mas não. E o que assegura
mais a salvação, a bela veste e uma comida opulenta ou a alimentação sóbria e a
veste moderada? Santificam-se as peliças finas e de qualidade, os tecidos sutis
e preciosos, as luvas grandes e os capuzes largos, as capas de pele e as
estamenhas suaves, e o que faço eu que não te sigo?
Não.
Tudo isso serve de alívio para os efeminados, mas não são armas de combatentes.
Os que vestem trajes delicados estão nas cortes dos reis. O vinho e seus
derivados, o mosto e a vida fácil servem ao corpo, não ao espírito. Os
condimentos não engordam a alma, mas o corpo. Pois muitos irmãos nossos
serviram muito tempo a Deus no Egito sem comer peixe. A pimenta, o gengibre, o
cominho, a sálvia e muitas outras especiarias para salsas agradam ao paladar,
mas excitam a libido. Tu me garantes com isso a segurança? Podes passar assim a
adolescência com tranqüilidade? Basta àquele que vive com prudência e
sobriedade o sal, pois seu único condimento é a fome. Quando se buscam outras
satisfações, se necessitam muitas outras combinações de não sei que tipos de
sucos estranhos para satisfazer o paladar, provocar a gula e excitar o apetite.
12.
Mas tu dirás: que pode fazer aquele que não resiste mais? Certo. Bem sei que tu
és delicado e que, uma vez acostumado com essas coisas, não és capaz de
suportar outras mais duras. Mas e se pudesses conseguir suportá-las?
Pergunta-me como? Decida-te, levanta-te, evita o ócio, esforça-te, move-te,
ocupa tuas mãos, faz algo, e logo sentirás que o único que te apetece é matar a
fome, não adular o paladar. Isso porque o exercício devolve o sabor a muitas
coisas perdidas pela inércia. Depois de trabalhar, tu tomarás com vontade
muitos alimentos que rechaças em tua ociosidade. Porque a desocupação engendra
o desgosto, o trabalho a fome, e a fome, misteriosamente, torna doce o que o
aborrecimento faz insípido. Os legumes, os feijões, as pastas de farinha, o pão
de cevada com água enfadam o indolente, mas são as delícias do trabalhador.
Talvez
já tenhas desacostumado a vestir-te a túnica e te aborreças tanto com o frio do
inverno quanto o calor do verão. Mas não lestes “A neve cairá para aquele que
teme o orvalho”? Te espantam as vigílias, os jejuns e o trabalho manual, mas
para aquele que medita nas chamas eternas, isso é muito leve. Além disso, a
lembrança das trevas exteriores faz com que a solidão não nos horrorize. Se
pensas no juízo futuro das palavras ociosas, o silêncio não te desagradará em
demasia. Se levas diante dos olhos do coração o pranto eterno e aquele ranger
de dentes, dará no mesmo dormir sobre uma esteira ou num colchão. Se, em plena
noite, como prescreve a Regra, salmodias com toda a vigilância, o leito terá
que ser muito duro para que não durmas impassível. Se trabalhas manualmente
durante o dia quando tua profissão te exige, muito acre será a comida para não
comê-la com gosto.
13.
Portanto, levanta-te, soldado de Cristo, levanta-te, sacode a poeira, volta à
batalha da qual fugistes, para lutar com maior brio depois de tua fuga, e teu
triunfo será mais glorioso, porque Cristo tem muitos soldados que começaram a
lutar com intrepidez, perseveraram e venceram, mas poucos desertores
arrependidos se arrojaram de novo ao perigo que se esquivaram. Poucos foram os
que puseram em fuga aos inimigos de quem fugiram. E como todo o extraordinário
é precioso, me alegra que tu possas ser um desses que, quanto mais
excepcionais, mais são gloriosos. Se, por outro lado, és muito tímido, porque
temes quando não deves e não temes quando mais precisa fazê-lo? Por acaso
pensas que te livrastes do poder dos inimigos porque fugistes da batalha? Pois
saibas que o adversário te persegue mais alegremente se foges que se lhe fazes
frente, ataca com mais audácia pelas costas, mas oferece menos resistência
quando é enfrentado. Tu lanças as armas e dormes tranqüilo pela manhã
precisamente na hora em que Cristo ressuscitou, e ignoras que desarmado perdes
valor e és menos temível para os inimigos?
Uma
multidão armada ronda tua casa e tu dormes? Já escalam os muros, derrubam a
cerca, irrompem pelo postigo. Se te surpreendem só, tu crês que estás mais
seguro só que acompanhado, desnudo no leito que armado no campo? Deixa a
preguiça de lado, empunha as armas e retorna a teus companheiros a quem
abandonastes em tua fuga. Assim, o mesmo temor que te separou deles voltará a
te unir. Por que recusas o peso e o incômodo das armas, afetado combatente?
Quando ameaças o adversário e voam as flechas, não te pesa o escudo, nem sentes
a loriga e o elmo. Tudo é difícil àquele que passa subitamente da sombra para o
Sol, da ociosidade ao trabalho, mas quando começa a se soltar e lentamente se
acomoda ao novo, o hábito elimina a dificuldade, e se torna fácil o que antes
parecia impossível. Os mais fortes soldados, ao escutarem as trombetas, também
costumam tremer diante do combate. Mas quando se inicia a batalha, aumenta seu
valor com a esperança de vencer e o temor de serem derrotados.
Por
que temes tu, protegido que estás pela unanimidade de teus irmãos armados, se
os anjos caminham junto a ti, e se Cristo vai à frente como um duque guerreiro,
dizendo aos seus para se animarem a vencer “Ânimo, que Eu venci o mundo”?, e
“Se Cristo está em nosso lado, quem poderá estar contra?” Tu podes lutar seguro
quando estás certo da vitória. Que segurança lutar por Cristo e com Cristo! Nem
ferido, nem derrubado, nem pisoteado, nem morto mil vezes, se fosse possível,
tu deixarias de vencer: basta não fugir. A única coisa que pode fazer perder a
vitória é a fuga. Fugindo, podes perdê-la, morrendo, não. Beato serás se
morreres lutando, porque os mortos te coroarão. Mas, ai de ti, se, declinando a
batalha, perderes a vitória e a coroa. Filho, diletíssimo, que tu evites aquele
que no juízo fará recair sobre ti uma condenação mais grave, devido a esta
carta minha, se, ao final, tu veres que não aproveitastes nada.
“Senhor
Jesus Cristo, Filho do Pai, envia agora o teu Espírito sobre a Terra. Faze
habitar o Espírito Santo nos corações de todos os povos, a fim de que sejam
preservados da corrupção, da calamidade e da guerra. Que a Senhora de todos os
povos, que uma vez era MARIA, seja a nossa advogada. Amém”