Dona
Baratinha foi varrer a casa e achou um tostão. Na mesma hora, desatou o
avental, lavou o rosto, passou pó-de-arroz nas faces, e foi fazer compras. Com
o tostão achado comprou móveis, para mobiliar a casa inteira, uma geladeira, um
aparelho de televisão, tapetes e cortinas, vestidos e mais vestidos, sapatos
caros e enfeites. Comprou joias e espelhos de cristal. Comprou petiscos muito
gostosos e fez um sortimento de doces que é coisa de que barata gosta muito. O
troco pôs numa caixinha forrada de cetim vermelho, chaveou-a, amarrou um laço
de fita nos cabelos e foi muito lampeira para a janela apreciar o movimento e
arranjar um casório, uma vez que tinha dote.
"Quem
quer casar com dona Baratinha,
Tão
bonitinha
Que tem
dinheiro na caixinha?"
Perguntou
ela com a voz mais docinha do mundo.
Passou
o boi.
- Eu
quero – mugiu.
E ela:
- E
como é que você muge de noite?
E o
boi:
-
Assim: buuuuuuuu! – abriu o focinho num berro de doer os ouvidos.
Dona
Baratinha correu assustada para dentro. Lá cheirou o frasquinho de sais, e
depois bem calma, voltou para a janela. O boi estava esperando a resposta.
- Ah! –
Dona Baratinha se abanava toda afobadinha. – Não quero me casar com você, não.
Você me assusta.
O boi
foi embora, e ela fincou os cotovelos na janela outra vez, esperando que
passasse outro moço bonito.
Passou
o burro.
"Quem
quer casar com dona Baratinha,
Tão
bonitinha
Que tem
dinheiro na caixinha?"
Ciciou
a mocinha casadoura, esfregando de leve uma asa na outra.
O burro
deu um zurro de abalar a casa:
- Eu
quero.
Mas é
assim que você zurra de noite? – perguntou a dona Baratinha, ainda toda trêmula
do susto.
- Ah! –
o burro deu um risadão. – De noite eu canto com voz muito mais forte. – E deu
outro zurro, de arrebentar os tímpanos.
- Deus
me livre de casar com você, burro. Você não me deixaria dormir.
O burro
foi embora e a dona Baratinha se encostou outra vez romanticamente no peitoril
da janela. Ora ajeitava a fita no cabelo, ora suspirava.
Passou
o cavalo.
"Quem
quer casar com dona Baratinha,
Tão
bonitinha
Que tem
dinheiro na caixinha?"
- Eu
quero – relinchou o cavalo, mostrando todos os dentes, de satisfação.
- Como
é que você faz, de noite?
Eu, minha flor, cantarei de amor tão
fortemente...
- Mas
como?
-
Assim: inoch! inoch! inoch! inoch! inoch!
- Ai!
Chega! – gritou dona Baratinha tampando as mimosas orelhinhas. – Chega! Eu não
me caso com cavalo de jeito nenhum. Você não me deixaria dormir direito.
O
cavalo foi embora, dona Baratinha ajeitou os cotovelos em cima de uma almofada,
prevendo que a espera seria longa.
Passou
o cachorro.
"Quem
quer casar com dona Baratinha,
Tão
bonitinha
Que tem
dinheiro na caixinha?"
Falou a
moça, muito assanhadinha, vendo-o bonitão, de pelo lustroso, orelhas em pé,
passo ligeiro.
- Eu
quero. – O cachorro latiu um consentimento rápido.
- Como
é que você faz de noite, cachorrinho?
-
Depende.
- De
quê?
- Se
estou alegre é assim: au! au! au!. Se estou triste ou doente, é assim:
Uaaaauauuuu! – E o cachorro uivou, de focinho para cima, caprichando nos bemóis.
- Ui!
Ai! Aiaiaiai! Não me faça chorar! Você não me serve. Tanto a sua alegria como a
sua tristeza me incomodam.
Dona
Baratinha suspirou um pouco, pois fazia tanto tempo que estava na janela e
ainda não tinha encontrado noivo que servisse.
Passou
o gato.
Que
belo bichano, de pelagem de seda, cinzento, macio, cara redonda, boquinha
cor-de-rosa, bigodes eriçados, orelhas recortadas em triângulo isósceles.
O
coração de dona Baratinha palpitava mais apressado quando ela cantou em voz
emocionada, desta vez:
"Quem
quer casar com dona Baratinha,
Tão
bonitinha
Que tem
dinheiro na caixinha?"
- Eu
quero – ronronou o gato, no fundo da garganta, numa doçura de voz.
- Você
ronrona assim, de noite, gatinho?
- De
noite? – O gato fez um floreio com a cauda. – Não. De noite, subo ao telhado.
Sou namorado da lua. E deliro miando assim: miaaau! miau! miiiiaaaau!
Dona
Baratinha suspirou.
- Que
pena! Você não me serve não. Não me deixaria dormir. Que pena!
Passou
o bode.
"Quem
quer casar com dona Baratinha,
Tão
bonitinha
Que tem
dinheiro na caixinha?"
O bode
berrou, muito azuretado:
- Eu
quero.
- Quer,
coisa nenhuma! – respondeu logo dona Baratinha. – Você é muito sem modos,
malcheiroso, barulhento. Com esse berro tremido vai me incomodar de noite.
Passou
o galo. De crista e esporão. De barbela vermelha. Asas douradas, rabo
empenachado. Bonito de se ver como um mosqueteiro do rei da França.
- Como
eu gostaria que esse fosse o meu noivo – pensou dona Baratinha. E com voz muito
esperançada:
"Quem
quer casar com dona Baratinha,
Tão
bonitinha
Que tem
dinheiro na caixinha?"
- Eu
quero – cocoricou o galo, riscando o chão com a aguda espora.
- Você
canta de noite?
- Se
canto! – blasonou ele, e a barbela ficou mais vermelha de orgulho. – Se canto!
Começo à meia-noite e vou madrugada afora, cocoricóóóóóóó’!
Dona
Baratinha virou a carinha bonita para o outro lado.
- Não
serve! Vá andando!
E assim
passaram o carneiro, o macaco, a onça, a anta, a capivara, o gambá, muitos e
muitos bichos, de casa e do mato, nenhum servia, porque iria incomodar o
soninho leve de dona Baratinha. Já bem tarde, quando as luzes da cidade se
acenderam, passou um camundongo, quietinho, sorrateiro, dando corridinhas e
paradinhas. Espiando matreiro para todos os lados. Correndo outra vez, os
olhinhos espertos saltando daqui para ali. Dona Baratinha parou a espiar os
seus inquietos manejos, divertida com o bichinho, e quase se esquecia de
perguntar. Lembrou-se em tempo, quando o camundongo já ia longe:
"Quem
quer casar com dona Baratinha,
Tão
bonitinha
Que tem
dinheiro na caixinha?"
- Eu
quero – guinchou o ratinho, tão baixo que quase não se ouvia.
- O que
é, ratinho? Você quer?
-
Quero.
- Como
é que você faz de noite?
O
ratinho guinchou:
- Coin,
coin, coin.
- Assim
baixinho? – perguntou dona Baratinha, encantada. – Então serve. Você não me
acorda com esse barulhinho. Como é o seu nome?
O
ratinho empolou bem o peito e falou:
- Dom
Ratão.
Deu
outra corridinha, para longe, para perto.
Ficaram
noivos.
No dia
do casamento preparava-se uma festa de arromba. O troco do tostão dava para
tudo. Mataram frangos, não sei quantos, leitões, bois, e fizeram doces e mais
doces.
- Sabe
do que eu mais gosto, Baratinha? – perguntou o noivo, no seu guincho macio.
- Do
quê?
- De
toucinho cozido no feijão.
E então
dona Baratinha deu ordem para que se fizesse uma caldeirada de feijão com
torresmo, bem temperado. O perfume da panela, logo pela manhã, recendia pela
casa toda. Dom Ratão chegou, eram umas dez horas, muito elegante, de casaca e
cartola, luvas brancas, bengala de castão dourado, calças listradas. Parecia um
presidente em dia de recepção no palácio. Mas qualquer coisa o inquietava.
Farejava, erguendo o focinho fino, dava corridinhas mais do que de costume.
- Está
nervoso, querido?
-
Estou.
Na hora
da saída, desceu na frente dona Baratinha, arrastando a cauda do vestido de
cetim, e o comprido véu de tule pela escadaria. O noivo veio a passo, atrás. A
noiva já tinha entrado no automóvel, quando dom Ratão fez cara de
contrariedade:
- Que
maçada!
- Que
foi?
-
Esqueci o relógio lá em cima.
- Vou
mandar alguém buscar.
- Não.
Só eu sei onde o deixei. Espere um minuto.
Deu uma
corridinha até o meio da escada, voltou, avisou:
- Um
minutinho. Eu já venho.
Outra
corridinha para cima. E a noiva ficou esperando.
Passou
meia hora, dom Ratão não voltou. No relógio da sala soaram as onze. Dom Ratão
não voltava. Chegou o meio-dia. Não voltara dom Ratão.
- Fugiu
– gemia dona Baratinha inconsolável. – Não gosta mais de mim. Fingiu que ia
buscar o relógio e fugiu para não casar. – Subiu novamente a escadaria
arrastando o vestido de cauda e o véu. Por muito que fosse o desconsolo, não
era caso para se fazer jejum por isso.
-
Afinal, não se perdeu grande coisa – comentou uma empregada. É melhor pôr o
almoço.
E lá se
foram todos para a mesa.
Mas
então é que foi uma dor. Ao mexerem o caldeirão de feijão encontraram o coitado
do noivo, morto, cozido, misturado com os torresmos. Que horror! Dona
Baratinha, depois de clamar que "Dom Ratão, coitado, era tão bom, eu sabia
que ele gostava de mim, aconteceu, coitado!, de ir provar um torresmo e cair no
caldeirão, podia ter pedido, a gente fazia um pratinho para ele, não quis me
desgostar, coitado! tão delicado" – teve um chilique e foi um alvoroço
monstro em casa de dona Baratinha, tão bonitinha. pois dom Ratão tinha morrido
no caldeirão de feijão cozido, por causa de um pedaço apetitoso de toucinho.
Dona
Baratinha pôs o luto, trancou todas as portas, e chorou tanto que lavou a casa
com lágrimas. A cozinheira de dona Baratinha pegou o pote e foi buscar água no
rio. Encheu a vasilha, mas em vez de ir para casa, começou a se lastimar:
- Como
é triste esta vida. Dom Ratão morreu. Dona Baratinha, tão bonitinha, está de
luto. E eu, por isso, quebro o pote.
Pam!
Bateu o
pote numa pedra e foi-se embora. O rio ouviu tudo aquilo, encolheu-se e
resolveu:
- Eu
também seco.
Os bois
vieram à tarde, nem sombra viram de água.
- Que é
isso, rio? Que aconteceu?
- Dom
Ratão morreu, cozido na panela de feijão com toucinho. Dona Baratinha pôs luto,
a cozinheira quebrou o pote, e eu também sequei.
- Que
horror!
Os dois
abanaram a cabeçorra, melancólicos e declararam:
- Então
nós derrubamos os chifres.
Foram
pastar. O campo, quando viu os bois mochos, muito sem graça, pastando, se
espantou:
- Que
foi isso? Que fizeram vocês dos chifres?
- Você
então não soube da grande desgraça?
- Não.
- Pois
dom Ratão morreu cozido, dona Baratinha pôs luto, a cozinheira quebrou o pote,
o rio secou e nós derrubamos os chifres.
- Que
tristeza! Eu também vou secar.
De
verdinho que estava, o campo ficou todo amarelado. Bem no meio dele estava um
laranjeira e quando ela viu aquilo perguntou:
- Que é
isso, campo? O que lhe deu? Está se sentindo mal?
- Não,
dona Laranjeira. Eu estava muito bem até. Amarelei foi de desgosto. Não vê que
dom Ratão morreu cozido na panela de feijão com toucinho, dona Baratinha pôs
luto, a cozinheira quebrou o pote, o rio secou, os bois derrubaram os chifres e
eu também sequei?
A
laranjeira derramou uma lágrima e disse:
-
Então, eu derrubo as folhas.
Choveram
folhas no chão.
Os passarinhos
que moravam nela, quando voltaram do trabalho à tarde, encontraram os ninhos
expostos ao vento, ao sol e à chuva, na árvore nua.
- Que
foi isso, dona Árvore, o que aconteceu que esta pensão está sem telhado?
- Vocês
que andam voando por aí não souberam da desgraça?
- Não,
senhora.
- Pois
dom Ratão morreu, dona Baratinha pôs luto, a cozinheira quebrou o pote, o rio
secou, os boi derrubaram os chifres, amarelou o campo e eu também derrubei as
folhas.
Os
passarinhos choraram, choraram.
- Que
tristeza! Pois, de dó, nós também derrubaremos as penas.
E lá se
foram eles, peladinhos, tremendo de frio, pelo campo, e andando em vez de voar,
pois não tinham penas nem as asas.
O céu
espiou aquele disparate, lá de cima, e estranhou:
- Ave
Maria! Que mundo louco! O que será que deu naqueles passarinhos que perderam
até a roupa?
Os
passarinhos contaram:
- O
senhor não sabe da grande desgraça?
- Não
sei.
- Dom
Ratão morreu cozido, dona Baratinha pôs luto, a cozinheira quebrou o pote, o
rio secou, os bois derrubaram os chifres, o campo amarelou, a laranjeira ficou
sem folhas, nós também nos depenamos.
- Que
calamidade!
O céu
se franziu numa carranca medonha. Começou a trovejar e a ventar. E depois
urrou, com um vozeirão arrepiante:
- Pois
então eu também vou despencar daqui de cima.
E
desabou em cima da terra, no meio da tempestade mais horrorosa que já houve.
E foi
assim que o mundo, certa vez, se acabou, só porque dom Ratão, que ia se casar
com dona Baratinha, tão bonitinha, morreu cozido no feijão.
Ruth Guimarães. Lendas e Fábulas do
Brasil. 1964.
Postado
por GP. Feldman às 8:22 AM Nenhum comentário: Enviar por e-mailPostar no
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quarta-feira,
1 de abril de 2020