Os papéis, recém - redigidos, são 'envelhecidos' na fumaça do fogão ou
segundo um método bem mais perfeito: são postos em gavetas junto com centenas
de grilos vivos; com o tempo, os grilos morrem, apodrecem e liberam toxinas,
que provocam manchas no papel, “envelhecendo-o”- vem daí o termo “grileiro”.
*
Insistente nas palestras como certas moscas em dia de calor, é, nas regiões
do Noroeste, a palavra "grilo". "Grilo" e seus derivados, "grileiro",
"engrilar", em acepção muito diversa da que devem ter entre os
nipônicos, onde grileiros engrilam grilos de verdade em gaiolinhas, como
fazemos aqui com o sabiá, o canário, o pintassilgo e mais passarinhos tolos que
morrem pela garganta.
Em certas zonas chega a ser obsessão. Todo mundo fala em terras griladas
e comenta feitos de grileiros famosos.
E agora que o grilo penetrou na arte, e vai perpetuar-se em mármore e
bronze no monumento da Independência, (1) vem a talho de foice um apanhado
geral sobre a conspícua instituição - viveiro onde se fermenta a aristocracia
dinheirosa de amanhã. As velhas fidalguias da Europa entroncam no banditismo
dos cruzados. Ter na linhagem um facínora encoscorado de ferro, que saqueou,
queimou, violou, matou à larga no Oriente, é o maior padrão de glória de um
marquês de França. Ter entre os avós um grileiro de hoje vai ser o orgulho
supremo dos nossos milionários futuros. Matarás, roubarás, são os mandamentos
de alto bordo do decálogo humano, eternos e irredutíveis, que a ingênua lei de
Moisés tentou inverter, antepondo-lhes um inócuo "não".
Grilo é uma propriedade territorial legalizada por meio de um título falso;
grileiro é o advogado ou "águia" qualquer manipulador de grilos; terras
"grilentas" ou "engriladas", as que têm maromba de alquimia
forense no título.
Como o grilo proliferou na Noroeste mais do que o permite o coeficiente
tolerável da patota humana, as conversas ressentem-se ali de muita insistência
no assunto.
- Vou comprar terras do grilo do doutor Honestino dos Anjos.
- Não caia nessa! O Honestino é um grileiro sujo. Qualquer dia escangalham-lhe
com a patota. Grilo de primeiríssima, que dá gosto, é o do Pizarro! Esse,
sim... Porque há grilos geniais, obra de verdadeiros Cagliostros encarnados nos
bacharéis do "venerando mosteiro"; e os há ineptos, mancos, fabricados
aí por meros "curiosos" da trampolinagem, sem dedo para a coisa.
Aqueles gozam de toda a consideração social devida aos mestres de vistas
largas, ao passo que estes o povo os cobre de irrisão.
- Ali vai o senador Pizarro, um grileiro macota!
- E que me diz do Dr. Cunha?
- Um sujo. Borrou-se com aquele grilinho indecente da Pedra Azul e anda
agora a tentar outro mais inepto ainda. É um crime deixar a polícia soltos
pelas ruas tipos dessa ordem...
- Não tem a pinta! . . .
- É isso.
O grileiro é um alquimista. Envelhece papéis, ressuscita selos do Império,
inventa guias de impostos, promove genealogias, dá como sabendo escrever velhos
urumbebas que morreram analfabetos, embaça juízes, suborna escrivães - e, novo
Jeová, tira a terra do nada. Seu laboratório lembra as espeluncas dos Faustos
medievais; mais prático, porém, não procura ali a pedra filosofal ou o elixir
da longa vida. Fausto virou rábula: manipula a propriedade. Envelhecer um
título falso, "enverdadeirá-lo", é toda uma ciência. Mas conseguem-no.
Dão-lhe a cor, o tom, o cheiro da velhice, fazem-no muitas vezes mais autêntico
do que os reais. Expõem-no ao fumeiro, a tal distância da fumaça conforme o
grau de ancianidade requerido, e conseguem assim a gama dos amarelidos, segredo
até aqui do Tempo.
Enquanto o papel se defuma, fazem-lhe aspersões sábias, que lhes dêem a
rugosidade peculiar às celuloses d’antanho.
Finalmente, para impregná-lo do cheirinho, do bouquet dos decênios, passeiam-no
a cavalo, metido entre o baixeiro e a carona...
E mais coisas fazem que os leigos não pescam e constituem o segredo do
"ponto de bala".
Mas tudo isso às vezes é pouco. Veste o lobo a pele da velhice e fica com
o rabo da mocidade de fora...
Conta-se de um grilo superiormente engenhado que faliu por artes de um
raio de sol. O documento engrilado era perfeito, sem o mínimo cochilo por onde
o advogado contrário, preposto a destramar a marosca, pudesse levantar a
perdiz. Por mais que virasse e revirasse o papel, e analisasse a letra, e
cotejasse os dizeres, e cheirasse, e apalpasse, não atinava com o calcanhar de
Aquiles. Já com dor de cabeça ia pôr de parte o grilo, quando Apolo intervêm.
Um raio de sol entra pela janela e dá de chapa contra o título. Àquela súbita e
intensa iluminação o perito pôde vislumbrar as letras d’água com que a fábrica marcara
o papel. Lá estava a estrela da República naquele documento do século
dezessete...
Ao trabalhinho de laboratório aliam-se ao ar livre os atos anexos e complementares
- violências, suborno, incêndio de cartórios, sumiço de autos, etc.
Porque o grilo é proteiforme e para completar-se sobe até a ótica, subornando
até os teodolitos dos engenheiros.
Que prodígios não opera neste campo! O primeiro é substituir a corrente,
o podômetro, o teodolito, a trigonometria e o mais por um instrumento só, de
alta engenhosidade: o olhômetro.
Só o olhômetro merece fé aos grileiros, esse aparelho maravilhoso, de criação
nossa, e já muito usado pelos governos em estudos estatísticos.
Por intermédio do olhômetro mudam-se os cursos dos rios, passa-se um
afluente da margem esquerda para a direita, criam-se cachoeiras em sítios onde
o nível é manso, e operam-se quantas mais revoluções geográficas se fazem
mister à patota.
Um grileiro está na posse do nome de um rio que a natureza esqueceu de
criar; se ele consegue localizar esse rio no mapa, o grilo sairá de
primeiríssima. E lá vai ele, com o rio às costas, em procura de colocação...
A outro fazia grande conta uma cachoeira em certo ponto das divisas.
O homem não pestaneja: constrói a cachoeira. Os contrários protestam.
Há intervenção judiciária. Na vistoria chamam para perito o morador mais
antigo das redondezas. O caboclo chega, defronta-se com a cachoeira fantástica
e abre a boca. Há cinqüenta anos que vive ali, conhece a zona como a palma de
sua mão - como é que nunca viu aquele "poder d’água", barulhento e
atravancador? Mas desconfia – e entrando na água desfaz com dois pontapés a
cachoeira de mentira, que lá rola, rio abaixo, transformada em tranqueira de
galhaça e cipós
. . . Era uma cachoeira grilo . . .
O grilo come nas terras apossadas pelos caboclos mal apetrechados contra
os percevejos da lei, tanto quanto nas terras devolutas, as quais, engriladas a
Norte, Sul, Leste e Oeste, estão se derretendo como torrão de açúcar n’ água.
Calcula uma autoridade no assunto em três milhões de alqueires a área
das terras griladas na Noroeste. E esses milhões caminham para quatro, visto
como agora a indústria do grilo passou a interessar os altos paredros da
política, verdadeiras piranhas em matéria de voracidade.
Não há exagero no cálculo de três milhões, sabendo-se que há grilos de
200, 300 e 400 mil alqueires – territórios equivalentes à metade da Bélgica, quase
à Saxônia, e tamanhos como antigos ducados principados alemães!...
Verdade seja que estes grilos são os grilos-mães, os canhões 420 da espécie.
Um existe de 480 mil alqueires - o rei dos grilos - notável não só pelo tamanho
como pela perfeição da sua gênese.
É o grilo recorde, e merece publicidade para lição dos que querem enriquecer
depressa mas andam por aí a malbaratar o engenho com patotinhas vagabundas.
Na posse de um título autêntico que lhe dava domínio sobre três mil alqueires,
um dos nossos águias resolve tomá-lo como base para um grilo. Estuda bem o caso
e um dia requer cópia dos autos onde vinha a partilha da gleba em questão,
delimitada de um lado nestes termos "... e daí em linha reta de duas
léguas, até encontrar o rio tal".
Ao chegar neste ponto, o escrevente do cartório, que tirava a cópia, sofre
uma alucinação ótica e escreve "vinte e duas léguas" onde estavam
"duas". Mesmo fora das bebedeiras é comum esta visão dupla das
coisas, que há de ter em medicina um nome grego.
Concluída a cópia, vai ela ao juiz para os sacramentos. Juiz, promotor e
coletor subscrevem-na, depois de lançados o "conferido e concertado"
do estilo. Mas nenhum deles realmente conferiu nem concertou coisa nenhuma, de
acordo com a mais louvável das praxes, porque é preciso ter confiança no
escrivão, que diabo! E destarte o grileiro entrou na posse duns autos tão
autênticos perante a lei quanto os originais.
Intervalo de quinze minutos.
Um advogado surge no cartório e pede vista dos autos originais.
Obtém-na, passa recibo e leva para casa o calhamaço.
Terceiro quadro: dias depois o grileiro denuncia esse advogado como tendo
perdido o papelório. O juiz se assanha e intima o advogado a entregá-lo sob as
penas da lei: prisão ou reconstrução dos autos perdidos. O advogado, consternadíssimo,
alega que de fato os perdeu, - e segue para o xadrez como um verdadeiro mártir
da urucubaca. E lá, entre grades, antes de meditar Silvio Pelico e Dostoievsky,
sente na cabeça o famoso estalo de Arquimedes:
- Eureka!...
Lembra-se que em mãos de um amigo existe cópia conferida e concertada, e
compromete-se a dá-la em troca do original que o saci (evidentemente o saci! .
. . ) lhe furtara da gaveta.
Quarto ato: deferimento do juiz, soltura do advogado preso e solene entrada
em cartório do grilo triunfante, com as 22 léguas em vez de apenas 2. Cai o
pano. Reacendem-se as luzes e o grileiro de gênio entra na posse de 400 e
tantos mil alqueires de terra em vez dos miseráveis três mil primitivos.
É ou não um rasgo yankee, merecedor dum filme? Não se conhecem os nossos
progressos lá fora. Não imaginam o galope do nosso cavalo.
Galope tão grande que já se reflete na língua. Todos os dias o povo surge
com palavras novas que dêem medida à evolução da esperteza. Para batismo destes
"looping-the-loop" da aviação forense só entre os bichos que voam
encontra o povo analogias competentes: águias, grilo, aguismo.
Mas não basta. Há necessidade de formas novas, combinações estapafúrdias,
conúbios de rapinagem de alta envergadura com ruminantes de pé ultra-ligeiro.
Só estas cabriolas vocabulares têm força expressiva no caso.
Ouvimos uma vez, em roda onde se comentavam estes tremendos malabarismos,
cair em crise de entusiasmo um dos ouvintes; piscou, faiscou os olhos e
improvisou este soberbo jato de impressionismo zoológico, única forma capaz de
dizer toda a imensidade da sua admiração:
- Que cabras águias!
(1) Alusão ao projeto do escultor Ximenes, que venceu no concurso para o
monumento e que Monteiro Lobato muito combateu em "Idéias de Jéca
Tatú."
in "A onda verde". In: Obras completas,Vol. 5, Editora Brasiliense, 1948.