V - O VIDIGAL
O som
daquela voz que dissera "abra a porta" lançara entre eles, como
dissemos, o espanto e o medo. E não foi sem razão; era ela o anúncio de um
grande aperto, de que por certo não poderiam escapar. Nesse tempo ainda não
estava organizada a polícia da cidade, ou antes estava-o de um modo em harmonia
com as tendências e idéias da época. O major Vidigal era o rei absoluto, o
árbitro supremo de tudo que dizia respeito a esse ramo de administração; era o
juiz que julgava e distribuía a pena, e ao mesmo tempo o guarda que dava caça
aos criminosos; nas causas da sua imensa alçada não haviam testemunhas, nem
provas, nem razões, nem processo; ele resumia tudo em si; a sua justiça era
infalível; não havia apelação das sentenças que dava, fazia o que queria, e
ninguém lhe tomava contas. Exercia enfim uma espécie de inquirição policial.
Entretanto, façamos-lhe justiça, dados os descontos necessários às idéias do
tempo, em verdade não abusava ele muito de seu poder, e o empregava em certos
casos muito bem empregado.
Era o
Vidigal um homem alto, não muito gordo, com ares de moleirão; tinha o olhar
sempre baixo, os movimentos lentos, e voz descansada e adocicada. Apesar deste
aspecto de mansidão, não se encontraria por certo homem mais apto para o seu
cargo, exercido pelo modo que acabamos de indicar.
Uma
companhia ordinariamente de granadeiros, às vezes de outros soldados que ele
escolhia nos corpos que haviam na cidade, armados todos de grossas chibatas,
comandada pelo major Vidigal, fazia toda a ronda da cidade de noite, e toda a
mais polícia de dia. Não havia beco nem travessa, rua nem praça, onde não se
tivesse passado uma façanha do Sr. major para pilhar um maroto ou dar caça a um
vagabundo. A sua sagacidade era proverbial, e por isso só o seu nome incutia
grande terror em todos os que não tinham a consciência muito pura a respeito de
falcatruas.
Se no
meio da algazarra de um fado rigoroso, em que a decência e os ouvidos dos vizinhos
não eram muito respeitados, ouvia-se dizer "está aí o Vidigal",
mudavam-se repentinamente as cenas; serenava tudo em um momento, e a festa
tomava logo um aspecto sério. Quando algum dos patuscos daquele tempo (que não
gozava de grande reputação de ativo e trabalhador) era surpreendido de noite de
capote sobre os ombros e viola a tiracolo, caminhando em busca de súcia, por
uma voz branda que lhe dizia simplesmente "venha cá; onde vai?" o
único remédio que tinha era fugir, se pudesse, porque com certeza não escapava
por outro meio de alguns dias de cadeia, ou pelo menos da casa da guarda na Sé;
quando não vinha o côvado e meio às costas, como conseqüência necessária.
Foi por
isso que os nossos mágicos e a sua infeliz vítima puseram-se em debandada mal
conheceram pela voz quem se achava com eles. Quiseram escapar-se pelos fundos
da casa, porém ela estava toda cercada de granadeiros, em cujas mãos se viam a
arma de que acima falamos. A porta abriu-se sem muita resistência, e o major
Vidigal (porque era com efeito ele) com os seus granadeiros achou-os em
flagrante delito de nigromancia: estava ainda acesa a fogueira, e os mais
objetos que serviam ao sacrifício.
— Oh!
disse ele, por aqui dá-se fortuna...
— Sr.
major, pelo amor de Deus...
— Eu
tinha desejos de ver como era isso; continuem... sem cerimônia, vamos.
Os
infelizes hesitaram um pouco, porém vendo que resistir seria inútil, começaram
de novo as cerimônias, de que os soldados se riam, antevendo talvez qual seria
o resultado. O Leonardo estava corrido de vergonha, tanto mais porque o Vidigal
o conhecia; e procurava cobrir-se do melhor modo com a sua imunda capa.
Ajoelhou-se quase arrastado outra vez no mesmo lugar; e recomeçou a dança, a
que o major assistia de braços cruzados e com ar pachorrento. Quando os
sacrificadores, julgando que já tinham dançado suficientemente, tentaram parar,
o major disse brandamente:
—
Continuem.
Depois
de muito tempo quiseram parar de novo.
—
Continuem, disse outra vez o major.
Continuaram
por mais meia hora; passado esse tempo, já muito cansados, tentaram dar fim.
— Ainda
não; continuem.
Continuaram
por tempos esquecidos, já estavam que não podiam de estafados; o nosso
Leonardo, ajoelhado ao pé da fogueira, quase que se desfazia em suor. Afinal o
major deu-se por satisfeito, mandou que parassem, e sem se alterar disse para
os soldados, com a sua voz doce e pausada:
— Toca,
granadeiros.
A esta
voz todas as chibatas ergueram-se, e caíram de rijo sobre as costas daquela
honesta gente, fizeram-na dançar, e sem querer, ainda por algum tempo.
— Pára,
disse o major depois de um bom quarto de hora.
Começou
então a fazer a cada um um sermão, em que se mostrava muito sentido por ter
sido obrigado a chegar àquele excesso, e que terminava sempre por esta
pergunta:
— Então
você em que se ocupa?
Nenhum
deles respondia. O major sorria-se e acrescentava com riso sardônico:
— Está
bom!
Chegou
a vez do Leonardo.
— Pois
homem, você, um oficial de justiça, que devia dar o exemplo...-Sr. major,
respondeu ele acabrunhado, é o diabo daquela rapariga que me obriga a tudo
isto; já não sei de que meios use...
— Você
há de ficar curado! Vamos para a casa da guarda.
Com
esta última decisão o Leonardo desesperou. Perdoaria de bom grado as chibatadas
que levara, contanto que elas ficassem em segredo; mas ir para a casa da
guarda, e dela talvez para a cadeia... isso é que ele não podia tolerar. Rogou
ao major que o poupasse; o major foi inflexível. Desfez então a vergonha em
pragas à maldita cigana que tanto o fazia sofrer.
A casa
da guarda era no largo da Sé; era uma espécie de depósito onde se guardavam os
presos que se faziam de noite, para se lhes dar depois conveniente destino. Já
se sabe que os amigos de novidades iam por ali de manhã e sabiam com facilidade
tudo que se tinha passado na noite antecedente.
Aí
esteve o Leonardo o resto da noite e grande parte da manhã, exposto à vistoria
dos curiosos. Por infelicidade sua passou por acaso um colega, e vendo-o entrou
para falar-lhe, isto quer dizer que daí a pouco toda a ilustre corporação dos
meirinhos da cidade sabia do ocorrido com o Leonardo, e já se preparava para
dar-lhe uma solene pateada quando o negócio mudou de aspecto e o Leonardo foi
mandado para a cadeia.
Aparentemente
os companheiros mostraram-se sentidos, porém secretamente não deixaram de
estimar o contratempo porque o Leonardo era muito afreguesado, e enquanto
estava ele preso as partes os procuravam.
VI - O VIDIGAL
O som
daquela voz que dissera "abra a porta" lançara entre eles, como
dissemos, o espanto e o medo. E não foi sem razão; era ela o anúncio de um
grande aperto, de que por certo não poderiam escapar. Nesse tempo ainda não
estava organizada a polícia da cidade, ou antes estava-o de um modo em harmonia
com as tendências e idéias da época. O major Vidigal era o rei absoluto, o
árbitro supremo de tudo que dizia respeito a esse ramo de administração; era o
juiz que julgava e distribuía a pena, e ao mesmo tempo o guarda que dava caça
aos criminosos; nas causas da sua imensa alçada não haviam testemunhas, nem provas,
nem razões, nem processo; ele resumia tudo em si; a sua justiça era infalível;
não havia apelação das sentenças que dava, fazia o que queria, e ninguém lhe
tomava contas. Exercia enfim uma espécie de inquirição policial. Entretanto,
façamos-lhe justiça, dados os descontos necessários às idéias do tempo, em
verdade não abusava ele muito de seu poder, e o empregava em certos casos muito
bem empregado.
Era o
Vidigal um homem alto, não muito gordo, com ares de moleirão; tinha o olhar
sempre baixo, os movimentos lentos, e voz descansada e adocicada. Apesar deste
aspecto de mansidão, não se encontraria por certo homem mais apto para o seu
cargo, exercido pelo modo que acabamos de indicar.
Uma
companhia ordinariamente de granadeiros, às vezes de outros soldados que ele
escolhia nos corpos que haviam na cidade, armados todos de grossas chibatas,
comandada pelo major Vidigal, fazia toda a ronda da cidade de noite, e toda a
mais polícia de dia. Não havia beco nem travessa, rua nem praça, onde não se
tivesse passado uma façanha do Sr. major para pilhar um maroto ou dar caça a um
vagabundo. A sua sagacidade era proverbial, e por isso só o seu nome incutia
grande terror em todos os que não tinham a consciência muito pura a respeito de
falcatruas.
Se no
meio da algazarra de um fado rigoroso, em que a decência e os ouvidos dos
vizinhos não eram muito respeitados, ouvia-se dizer "está aí o
Vidigal", mudavam-se repentinamente as cenas; serenava tudo em um momento,
e a festa tomava logo um aspecto sério. Quando algum dos patuscos daquele tempo
(que não gozava de grande reputação de ativo e trabalhador) era surpreendido de
noite de capote sobre os ombros e viola a tiracolo, caminhando em busca de
súcia, por uma voz branda que lhe dizia simplesmente "venha cá; onde
vai?" o único remédio que tinha era fugir, se pudesse, porque com certeza
não escapava por outro meio de alguns dias de cadeia, ou pelo menos da casa da
guarda na Sé; quando não vinha o côvado e meio às costas, como conseqüência
necessária.
Foi por
isso que os nossos mágicos e a sua infeliz vítima puseram-se em debandada mal
conheceram pela voz quem se achava com eles. Quiseram escapar-se pelos fundos
da casa, porém ela estava toda cercada de granadeiros, em cujas mãos se viam a
arma de que acima falamos. A porta abriu-se sem muita resistência, e o major
Vidigal (porque era com efeito ele) com os seus granadeiros achou-os em
flagrante delito de nigromancia: estava ainda acesa a fogueira, e os mais
objetos que serviam ao sacrifício.
— Oh!
disse ele, por aqui dá-se fortuna...
— Sr.
major, pelo amor de Deus...
— Eu
tinha desejos de ver como era isso; continuem... sem cerimônia, vamos.
Os
infelizes hesitaram um pouco, porém vendo que resistir seria inútil, começaram
de novo as cerimônias, de que os soldados se riam, antevendo talvez qual seria
o resultado. O Leonardo estava corrido de vergonha, tanto mais porque o Vidigal
o conhecia; e procurava cobrir-se do melhor modo com a sua imunda capa.
Ajoelhou-se quase arrastado outra vez no mesmo lugar; e recomeçou a dança, a
que o major assistia de braços cruzados e com ar pachorrento. Quando os
sacrificadores, julgando que já tinham dançado suficientemente, tentaram parar,
o major disse brandamente:
—
Continuem.
Depois
de muito tempo quiseram parar de novo.
—
Continuem, disse outra vez o major.
Continuaram
por mais meia hora; passado esse tempo, já muito cansados, tentaram dar fim.
— Ainda
não; continuem.
Continuaram
por tempos esquecidos, já estavam que não podiam de estafados; o nosso
Leonardo, ajoelhado ao pé da fogueira, quase que se desfazia em suor. Afinal o
major deu-se por satisfeito, mandou que parassem, e sem se alterar disse para
os soldados, com a sua voz doce e pausada:
— Toca,
granadeiros.
A esta
voz todas as chibatas ergueram-se, e caíram de rijo sobre as costas daquela
honesta gente, fizeram-na dançar, e sem querer, ainda por algum tempo.
— Pára,
disse o major depois de um bom quarto de hora.
Começou
então a fazer a cada um um sermão, em que se mostrava muito sentido por ter
sido obrigado a chegar àquele excesso, e que terminava sempre por esta
pergunta:
— Então
você em que se ocupa?
Nenhum
deles respondia. O major sorria-se e acrescentava com riso sardônico:
— Está
bom!
Chegou
a vez do Leonardo.
— Pois
homem, você, um oficial de justiça, que devia dar o exemplo...-Sr. major,
respondeu ele acabrunhado, é o diabo daquela rapariga que me obriga a tudo
isto; já não sei de que meios use...
— Você
há de ficar curado! Vamos para a casa da guarda.
Com
esta última decisão o Leonardo desesperou. Perdoaria de bom grado as chibatadas
que levara, contanto que elas ficassem em segredo; mas ir para a casa da
guarda, e dela talvez para a cadeia... isso é que ele não podia tolerar. Rogou
ao major que o poupasse; o major foi inflexível. Desfez então a vergonha em
pragas à maldita cigana que tanto o fazia sofrer.
A casa
da guarda era no largo da Sé; era uma espécie de depósito onde se guardavam os
presos que se faziam de noite, para se lhes dar depois conveniente destino. Já
se sabe que os amigos de novidades iam por ali de manhã e sabiam com facilidade
tudo que se tinha passado na noite antecedente.
Aí
esteve o Leonardo o resto da noite e grande parte da manhã, exposto à vistoria
dos curiosos. Por infelicidade sua passou por acaso um colega, e vendo-o entrou
para falar-lhe, isto quer dizer que daí a pouco toda a ilustre corporação dos
meirinhos da cidade sabia do ocorrido com o Leonardo, e já se preparava para
dar-lhe uma solene pateada quando o negócio mudou de aspecto e o Leonardo foi
mandado para a cadeia.
Aparentemente
os companheiros mostraram-se sentidos, porém secretamente não deixaram de
estimar o contratempo porque o Leonardo era muito afreguesado, e enquanto
estava ele preso as partes os procuravam.
VII– A COMADRE
Cumpre-nos
agora dizer alguma coisa a respeito de uma personagem que representará no
correr desta história um importante papel, e que o leitor apenas conhece,
porque nela tocamos de passagem no primeiro capitulo: é a comadre, a parteira
que, como dissemos, servira de madrinha ao nosso memorando.
Era a
comadre uma mulher baixa, excessivamente gorda, bonachona, ingênua ou tola até
um certo ponto, e finória até outro; vivia do oficio de parteira, que adotara
por curiosidade, e benzia de quebranto; todos a conheciam por muito beata e
pela mais desabrida papa-missas da cidade. Era a folhinha mais exata de todas
as festas religiosas que aqui se faziam; sabia de cor os dias em que se dizia
missa em tal ou tal igreja, como a hora e até o nome do padre; era pontual à
ladainha, ao terço, à novena, ao setenário; não lhe escapava via-sacra,
procissão, nem sermão; trazia o tempo habilmente distribuído e as horas
combinadas, de maneira que nunca lhe aconteceu chegar à igreja e achar já a
missa no altar. De madrugada começava pela missa da Lapa; apenas acabava ia à
das 8 na Sé, e daí saindo pilhava ainda a das 9 em Santo Antônio. O seu traje
habitual era, como o de todas as mulheres da sua condição e esfera, uma saia de
lila preta, que se vestia sobre um vestido qualquer, um lenço branco muito teso
e engomado ao pescoço, outro na cabeça, um rosário pendurado no cós da saia, um
raminho de arruda atrás da orelha, tudo isto coberto por uma clássica mantilha,
junto à renda da qual se pregava uma pequena figa de ouro ou de osso. Nos dias
dúplices, em vez de lenço à cabeça, o cabelo era penteado, e seguro por um
enorme pente cravejado de crisólitas.
Este
uso da mantilha era um arremedo do uso espanhol; porém a mantilha espanhola,
temos ouvido dizer, é uma coisa poética que reveste as mulheres de um certo
mistério, e que lhes realça a beleza; a mantilha das nossas mulheres, não; era
a coisa mais prosaica que se pode imaginar, especialmente quando as que as
traziam eram baixas e gordas como a comadre. A mais brilhante festa religiosa
(que eram as mais freqüentadas então) tomava um aspecto lúgubre logo que a
igreja se enchia daqueles vultos negros, que se uniam uns aos outros, que se
inclinavam cochichando a cada momento.
Mas a
mantilha era o traje mais conveniente aos costumes da época; sendo as ações dos
outros o principal cuidado de quase todos, era muito necessário ver sem ser
visto. A mantilha para as mulheres estava na razão das rótulas para as casas;
eram o observatório da vida alheia. Muito agitada e cheia de acidentes era a
vida que levava a comadre, de parteira, beata e curandeira de quebranto; não
tinha por isso muito tempo de fazer visitas e procurar os conhecidos e amigos.
Assim não procurava o Leonardo muitas vezes; havia muito tempo que não sabia
notícia dele, nem da Maria, nem do afilhado, quando um dia na Sé ouviu entre
duas beatas de mantilha a seguinte conversa:
— É o
que lhe digo: a saloiazinha era da pele do tinhoso!
— E
parecia uma santinha... e o Leonardo o que lhe fez?
— Ora,
desancou-a de murros, e foi o que fez com que ela abalasse mais depressa com o
capitão... pois olhe, não teve razão; o Leonardo é um rapagão; ganhava boas
patacas, e tratava dela como de uma senhora!...
— E o
filho... que assim mesmo pequeno era um malcriadão...
— O
padrinho tomou conta dele; quer-lhe um bem extraordinário... está maluco o
coitado do homem, diz que o menino há de por força ser padre... mas qual padre,
se ele é um endiabrado!...
Nesta
ocasião levantava-se a Deus, e as duas beatas interromperam a conversa para
bater nos peitos.
Era uma
delas a vizinha do compadre, que prognosticava mau fim ao menino, e com quem
ele prometera fazer uma estralada; a outra era uma das que tinham estado na
função do batizado.
A
comadre, apenas ouviu isso, foi procurar o compadre; não se pense porém que a
levara a isso outro interesse que não fosse a curiosidade, queria saber o caso
com todos os menores detalhes; isso lhe dava longa matéria para a conversa na
igreja, e para entreter as parturientes que se confiavam aos seus cuidados.
Entrou pela loja do barbeiro; e apenas o avistou foi-lhe dizendo:
—
Então, com que a tal comadre pregou-nos o mono? Veja o que são doidices; fazer
aquilo ao Leonardo, um homem que não é mal-arranjado... filho do Reino...
—
Apertaram-lhe as saudades da terra, disse o compadre com sorriso maligno.
—
Apertada se veja ela entre as unhas do tinhoso! Olhem que joiazinha... E você,
mestre, ficou com a carga às costas...
—
Carga, não... eu quero-lhe bem, ele é sossegadinho...
Começou
então um interrogatório minucioso acerca do que tinha sucedido em casa do
Leonardo; e os dois, compadre e comadre, desabafaram a seu gosto. Depois o
compadre narrou, mesmo sem ser interrogado, todas as gentilezas do afilhado, e
contou suas intenções a respeito dele. A comadre não concordou com elas (o que
nada agradou ao compadre), não via o menino com jeito para padre; achava melhor
metê-lo na Conceição a aprender um ofício. O compadre porém persistiu em seus
intentos, que tinha muita esperança de ver realizados. Afinal a comadre
retirou-se.
Pelo
caminho foi repetindo o que acabara de saber a quanto conhecido encontrou, sem
escrupulizar muito em acrescentar mais uma ou outra circunstância com que
carregava as cores do quadro.
Entretanto
o compadre aplicava-se a trabalhar na realização de seus intentos, e começou
por ensinar o ABC ao menino; porém, por primeira contrariedade, este empacou no
F, e nada o fazia passar adiante.
A
comadre continuou a aparecer daí em diante por um motivo que mais tarde se
saberá.
Por
agora vamos continuar a contar o que era feito do Leonardo.
VII - O PÁTIO DOS BICHOS
Ainda
hoje existe no saguão do paço imperial, que no tempo em que se passou esta
nossa história se chamava palácio del-rei, uma saleta ou quarto que os gaiatos
e o povo com eles denominavam o Pátio dos Bichos. Este apelido lhe fora dado em
conseqüência do fim para que ele então servia: passavam ali todos os dias do
ano três ou quatro oficiais superiores, velhos, incapazes para a guerra e
inúteis na paz, que o rei tinha a seu serviço não sabemos se com mais alguma
vantagem de soldo, ou se só com mais a honra de serem empregados no real
serviço. Bem poucas vezes havia ocasião de serem eles chamados por ordem real
para qualquer coisa, e todo o tempo passavam em santo ócio, ora mudos e
silenciosos, ora conversando sobre coisas do seu tempo, e censurando as do que
com razão já não supunham seu, porque nenhum deles era menor de 60 anos. Às
vezes acontecia adormecerem todos ao mesmo tempo, e então com a ressonância de
suas respirações passando pelos narizes atabacados, entoavam um quarteto,
pedaço impagável, que os oficiais e soldados que estavam de guarda, criados e
mais pessoas que passavam, vinham apreciar à porta. Eram os pobres homens
muitas vezes vítimas de caçoadas que naquele tempo de poucas preocupações eram
o objeto de estudo de muita gente.
Às
vezes qualquer que os pilhava dormindo chegava à porta e gritava:
— Sr.
tenente-coronel, el-rei procura por V.S.
Qualquer
deles acordava espantado, tomava o chapéu armado, punha o talim, acontecendo às
vezes com a pressa ficar o chapéu torto ou a espada do lado direito, e lá
corria a ter com el-rei.
— Às
vossas ordens, real senhor, dizia ainda bocejando.
O rei,
que percebia o negócio, desatava a rir e o mandava embora.
Quando
chegava o pobre homem abaixo, ia cada um dos que por ali se achavam indagar, o
mais seriamente que era possível, qual tinha sido o objeto do chamado del-rei.
Faziam-lhes
destas e doutras, mas daí a pouco deixavam-se eles enganar de novo.
Vamos
fazer o leitor tomar conhecimento com um desses ativos militares, que entra
também na nossa história.
Era
velho como seus companheiros, porém decerto por ele não é que tinha vindo ao
quarto o apelido que lhe davam: suas feições quebradas pela idade tinham ainda
certa regularidade de contorno que bem devotava que seu tempo de rapaz não fora
a respeito de beleza mal favorecido; de seus cabelos que o tempo levara
restavam apenas orlando-lhe as têmporas e a nuca alguns anéis crespos e
prateados; sua calva era nobre e imponente. Fora valente; ganhara por seus
feitos as dragonas de tenente-coronel; era filho de Portugal, e acompanhara
el-rei na sua vinda ao Brasil.
Estas
qualidades porém não lhe serviam de salvaguarda, e sofria como os outros as
caçoadas dos gaiatos.
Assim
um dia que uma mulher de mantilha o foi procurar, e se pôs com ele a conversar
por algum tempo em particular, passavam uns e outros e escarravam junto da
porta, ou deixavam escapar uma ou outra chalaça análoga.
—
Amores velhos nunca se esquecem, dizia um.
—
Bravo! gosto do bom gosto, dizia outro.
A
mulher de mantilha é nossa conhecida, porque nem mais nem menos é a comadre; e
o negócio que aí a levou também nos interessa, pois que se trata da soltura do
pobre Leonardo. Ouça portanto o leitor a conversa dos dois.
— Sr.
Tenente-coronel, disse a comadre ao chegar, venho me valer de V.S.: meu
compadre Leonardo está na cadeia.
— O
Leonardo?! mas então por quê?
— Ora!
maluquices!
E
chegando-se ao ouvido do velho, contou-lhe a comadre baixinho a causa da prisão
do Leonardo.
O velho
desatou a rir.
— Bem
pregado!... disse.
— Agora
eu queria que V.S. fizesse o favor de falar por ele ao Sr. major Vidigal, que
foi quem o prendeu... coitado do homem: é uma vergonha; mas também ele não se
emenda!
E
prosseguindo, a comadre contou muito em segredo, como já o tinha feito a todos
os seus conhecidos, toda a história dos infelizes amores do Leonardo com a
Maria, todas as diabruras do menino que ela deixara e de que o padrinho tomara
conta: passou depois a relatar todo o ocorrido com a cigana, e voltou de novo à
história da prisão, que contou e recontou vinte vezes, sem lhe escapar a mais
pequenina circunstância. No fim tornou a fazer o seu pedido, a que o velho
prometeu satisfazer, e então saiu ela recebendo no saguão muitos cumprimentos e
sorrisos maliciosos. Na porta por onde saiu estava encostado um cadete que lhe
disse:
—
Estimo que fosse feliz; no dia do batizado neo se esqueça da gente.
—
Arrenego! foi a única resposta que ela deu, e passou.
Como o
velho tenente-coronel conhecia a comadre e o Leonardo, e por que se interessava
por ele, o leitor saberá mais para diante.
Esse
conhecimento era antigo, e o Leonardo apenas se achou na cadeia lembrou-se da
proteção que o velho lhe podia prestar em semelhante aperto; mandou por um
colega chamar a comadre, e a encarregou da missão de ir ter com ele, missão que
ela aceitou de bom grado, e que desempenhou, segundo vimos, satisfatoriamente.
O
velho, apenas a comadre saiu, tomou o chapéu armado, pôs a espada à cinta e
saiu, depois de ter contado aos companheiros o que sucede a quem vai tomar
fortuna. Um deles, que era crédulo até ao entusiasmo a respeito de feitiçarias,
ficou muito indignado com o caso, e prometeu também empenhar-se pelo Leonardo.
Já vê
pois o leitor que o negócio não estava mal parado, e em breve saberá o
resultado de tudoisto.
IX – O “ARRANJEI-ME” DO COMPADRE
Os
leitores estarão lembrados do que o compadre dissera quando estava a fazer
castelos no ar a respeito do afilhado, e pensando em dar-lhe o mesmo oficio que
exercia, isto é, daquele arranjei-me, cuja explicação prometemos dar. Vamos
agora cumprir a promessa.
Se
alguém perguntasse ao compadre por seus pais, por seus parentes, por seu
nascimento, nada saberia responder, porque nada sabia a respeito. Tudo de que
se recordava de sua história reduzia-se a bem pouco. Quando chegara à idade de
dar acordo da vida achou-se em casa de um barbeiro que dele cuidava, porém que
nunca lhe disse se era ou não seu pai ou seu parente, nem tampouco o motivo por
que tratava da sua pessoa. Também nunca isso lhe dera cuidado, nem lhe veio à
curiosidade indagá-lo.
Esse
homem ensinara-lhe o oficio, e por inaudito milagre também a ler e a escrever.
Enquanto foi aprendiz passou em casa do seu... mestre, em falta de outro nome,
uma vida que por um lado se parecia com a do fâmulo, por outro com a do filho,
por outro com a do agregado, e que afinal não era senão vida de enjeitado, que
o leitor sem dúvida já adivinhou que ele o era. A troco disso dava-lhe o mestre
sustento e morada, e pagava-se do que por ele tinha já feito.
Quando
passou de menino a rapaz, e chegou a saber barbear e sangrar sofrivelmente, foi
obrigado a manter-se à sua custa e a pagar a morada com os ganchos que fazia,
porque o produto do mais trabalho pertencia ainda ao mestre. Sujeitou-se a
isso. Porém queriam ainda mais: exigiam que continuasse a empregar-se no
serviço doméstico. Lavrou-lhe então n’alma um arrepio de dignidade: já era
oficial, e não queria rebaixar o seu oficio. Virou mareta; fez-se duro, e
safou-se de casa sem escrúpulos nem remorsos, pois bem sabia que estavam saldas
as contas de parte a parte. Tinham-no criado; ele tinha servido. Também não
encontrou grande resistência à sua deliberação.
Apenas
passou o primeiro ímpeto e teve tempo de reflexionar, quase que começou a
arrepender-se por não saber qual o meio de achar arranjo. Viu-se na rua, sem
saber para onde ir, tendo por única fortuna uma bacia de barbear embaixo do
braço, um par de navalhas e outro de lancetas na algibeira. Verdade é que quem
tinha consigo estes trastes estava com as armas e uniforme do oficio; porém
isso não bastava; o pobre rapaz estava em apertos.
Passou
a primeira noite em casa de um colega, e no dia seguinte ao amanhecer, tomando
os seus apetrechos, saiu em busca de que fazer para aquele dia, e de destino
para os mais que se iam seguir.
Achou
ambas as coisas: uma trouxe a outra.
No
largo do Paço um marujo que estava sentado em uma pedra junto ao mar chamou-o
para que lhe fizesse a barba: mãos à obra, que já naquele dia não morria de
fome.
Todo
barbeiro é tagarela, e principalmente quando tem pouco que fazer; começou
portanto a puxar conversa com o freguês. Foi a sua salvação e fortuna.
O navio
a que o marujo pertencia viajava para a Costa e ocupava-se no comércio de
negros; era um dos comboios que traziam fornecimento para o Valongo, e estava
pronto a largar.
— Ó
mestre! disse o marujo no meio da conversa, você também não é sangrador?
— Sim,
eu também sangro...
— Pois
olhe, você estava bem bom, se quisesse ir conosco... para curar a gente a
bordo; morre-se ali que é uma praga.
—
Homem, eu da cirurgia não entendo muito...
— Pois
já não disse que sabe também sangrar?
—
Sim...
— Então
já sabe até demais.
No dia
seguinte saiu o nosso homem pela barra fora: a fortuna tinha-lhe dado o meio,
cumpria sabê-lo aproveitar; de oficial de barbeiro dava um salto mortal a
médico de navio negreiro; restava unicamente saber fazer render a nova posição.
Isso ficou por sua conta.
Por um
feliz acaso logo nos primeiros dias de viagem adoeceram dois marinheiros;
chamou-se o médico; ele fez tudo o que sabia... sangrou os doentes, e em pouco
tempo estavam bons, perfeitos. Com isto ganhou imensa reputação, e começou a
ser estimado.
Chegaram
com feliz viagem ao seu destino; tomaram o seu carregamento de gente, e
voltaram para o Rio. Graças à lanceta do nosso homem, nem um só negro morreu, o
que muito contribuiu para aumentar-lhe a sólida reputação de entendedor do
riscado.
Poucos
dias antes de chegar ao Rio o capitão do navio adoeceu; a princípio nem ele nem
alguém teve a menor dúvida de que ficaria bom logo depois da primeira sangria;
porém repentinamente o negócio complicou-se, e nem com a terceira e quarta se
pôde conseguir coisa alguma. No fim do quarto dia convenceram-se todos e o
próprio doente capitão de que estava chegada a sua hora. Nem por isso porém
inculparam o nosso homem.
— Ali
não há sangria que o salve, diziam; chegou a sua vez de dar à costa... há de
ir.
O capitão
teve de fazer suas últimas disposições, e, como dissemos, tendo o médico
granjeado grande amizade e confiança, foi escolhido para desempenhá-las.
O
capitão chamou-o à parte, e em segredo lhe fez entrega de uma cinta de couro e
uma caixa de pau pejadas de um bom par de doblas em ouro e prata, pedindo que
fielmente as fosse entregar, apenas chegasse à terra, a uma filha sua, cuja
morada lhe indicou. Além deste dinheiro encarregou-o também de receber a
soldada daquela viagem e lhe dar o mesmo destino. Eram estas as suas únicas e
últimas vontades que o encarregava de cumprir, declarando-lhe que lá do outro
mundo o espiaria para ver como cuidava disso.
Poucas
horas depois expirou.
Desse
dia em diante nenhum só doente escapou mais, porque o médico já não sangrava
tanto; andava preocupado, distraído, e assim levou até chegar à terra.
Apenas
saltou, declarou que não se tinha dado bem, e que não embarcaria mais.
Quanto
às ordens do capitão... histórias; quem é que lhe havia de vir tomar contas
disso? Ninguém viu o que se passou; de nada se sabia.
Os
únicos que podiam ter desconfiado e fazer alguma coisa eram os marinheiros;
porém estes partiram em breve de novo para a Costa.
O
compadre decidiu-se a instituir-se herdeiro do capitão, e assim o fez.
Eis
aqui como se explica o arranjei-me, e como se explicam muitos outros que vão aí
pelo mundo.
X - EXPLICAÇÕES
O velho
tenente-coronel, apesar de virtuoso e bom, não deixava de ter na consciência um
sofrível par de pecados, desses que se chamam da carne, e que não hão de ser
levados em conta, não de hoje, que a idade o tornara inofensivo, porém do tempo
da sua mocidade: o resultado de um deles fora um filho que deixara em Lisboa,
fruto de um derradeiro amor que tivera aos 36 anos. Por castigo em nada havia
ele saído ao pai, e nem os conselhos, nem os cuidados e nem o exemplo deste
puderam encaminhá-lo por boa vereda, Aos 20 anos, tendo sentado praça, era um
cadete desordeiro, jogador e o mais insubordinado do seu regimento. Bastantes
vergonhas custara ao pobre pai, que cuidadoso procurava sempre por todos os
meios encobrir-lhe os defeitos e remediar as gentilezas que fazia, já pagando
por ele dívidas de jogo, já atabafando-lhe as desordens e curando com ouro as
brechas que ele fazia na cabeça de seus adversários. Houve porém uma que as
circunstâncias e mesmo a natureza do caso não permitiram que tivesse remédio.
Poucos dias antes de embarcar para o Brasil em companhia del-rei, estando o
infeliz pai em preparativos de viagem, viu entrar-lhe pela porta adentro uma
mulher velha, baixa, gorda, vermelha, vestida, segundo o costume das mulheres
da baixa classe do país, com uma saia de ganga azul por cima de um vestido de
chita, um lenço branco dobrado triangularmente posto sobre a cabeça e preso
embaixo do queixo, e uns grossos sapatões nos pés. Parecia presa de grande
agitação e de raiva: seus olhos pequenos e azuis faiscavam de dentro das
órbitas afundadas pela idade, suas faces estavam rubras e reluzentes, seus
lábios franzinos e franzidos apertavam-se violentamente um contra o outro como
prendendo uma torrente de injúrias, e tornando mais sensível ainda seu queixo
pontudo e um pouco revirado.
Apenas
se achou ela em frente do capitão (era este o posto que tinha nesse tempo o
velho) foi-se chegando para ele com ar resoluto e enfurecido, O capitão recuou
instintivamente um passo.
— Ah!
Sr. capitão, disse ela por fim pondo as mãos nas cadeiras, chegando a boca
muito perto do rosto dele e abanando raivosa a cabeça: olhe que isto assim não
vai direito; fazer-me andar a cabeça à roda... põe-me os miolos a ferver... e
eu estouro... já viu!...
— Mas o
que há então, mulher?... Eu não lhe conheço...
— Não
quero cá saber de nada... Já lhe disse que isto não vai bem... e eu estouro...
— Mas
por quê?... o que é que tem?... É preciso que você diga...
— Não
tenho nada que dizer... Estouro, já lhe disse, Sr. capitão!...
— Pois
estoure com trezentos diabos! mas ao menos diga pelo que é que estoura.
— Não
tenho nada que dizer... já lhe disse... isto põe a cabeça da gente como uma
cebola podre, não tem lugar nenhum... Ir-me por lá com ares de santarrão
comprar frutas...
— Quem,
mulher de Deus? Você não se explicará?
— Qual
explicar, nem meio explicar! Pois então por ser cá a gente uma mulher velha,
que já perdeu os achegos ao mundo, e ela uma pobre rapariga tola e
bisbilhoteira, com vontade de saber de tudo, vir-me cá a mim pregar o mono na
bochecha, e a ela em lugar ainda mais melindroso...
— Mas
quem é que pregou monos a você mais a ela? e quem é ela?...
—
Faz-se de novo! continuou a mulher exasperando-se; pois o Sr. capitão já não
tinha consentido no casamento?...
— Que
casamento? com quem?
— Ai,
ai, ai, que cá me anda a cabeça como uma nora solta... Pois o Sr. capitão não
sabe que tem um filho?...
— Sim,
sei, respondeu este começando a descobrir o mistério.
— E não
sabe que ele é um pedaço de um mariola!... A isto o capitão podia, porém não se
animou a responder afirmativamente, e perguntou somente:
— E que
mais?...
— E não
sabe também que eu tenho uma filha que trouxe do Lumiar, a Mariazinha?
— Como,
se eu nem a conheço?...
— Pois
é uma rapariga muito capaz... e o diabo do tal cadete do seu filho andou por lá
a entender com ela muito tempo: namoro para cá, namoro para lá, presentes
daqui, promessas dacolá... e afinal de contas... brás!... E então que lhe
parece?
O
capitão foi às nuvens.
— Até
lhe prometeu casamento, dizendo que o Sr. Capitão consentia... Ora eu bem sei
que ela também teve a sua culpa... mas eu desculpo isso, porque também já fui
rapariga... e sei que quando começa cá o diabo no corpo, adeus! Mas isto põe a
gente tonta, porque... enfim a rapariga podia vir a fazer fortuna.
O
capitão tinha compreendido tudo, e por mais algumas explicações que se seguiram
viu-se reduzido ao maior aperto. Desta vez a diabrura do rapaz era
irremediável. A mulher tinha toda a razão; porém casar seu filho com a filha de
uma colareja... isso não poderia ser; além de que nada tinha que deixar ao
filho, e só com o soldo de cadete não poderia sustentar mulher e casa, restando
além disso a dúvida se ele estaria ou não pelos autos...
Despediu
a velha, não sem lhe prometer que providenciaria sobre o caso.
— Olhe,
veja lá, disse ela ao sair; se o negócio não se arranja, eu estouro! ...
O pobre
homem ficou nos apuros; foi ter com a ofendida, e procurou, oferecendo-lhe
alguma coisa para seu dote, obter que ela se calasse, e que desistisse de suas
pretensões; esta quis a princípio recusar, porém a mãe aconselhou-a que
aceitasse, sem dúvida com medo de estourar. Deste modo ficou o caso um pouco
remediado, posto que a consciência do capitão, que era de homem de honra, não
ficara de modo algum satisfeita. O tempo porém não dava lugar a mais; era
chegado o momento de acompanhar a el-rei, e ele partiu deixando o filho
recomendado a quantos amigos tinha. Decorreram os anos, e quando menos esperava
soube ele que se achava no Rio de Janeiro em companhia do Leonardo a tal
Mariazinha, que então já era a Maria que os leitores bem conhecem. Procurou
fazer o que pudesse por ela para satisfazer todos os seus escrúpulos de pai
honrado, porém quis fazê-lo ocultamente. Foi ter com a comadre, a quem já
conhecia, e a encarregou de o avisar apenas sentisse que a Maria sofria
qualquer necessidade. Nunca porém teve ocasião de exercer a sua boa vontade
diretamente para com ela. Apenas tinha feito ao Leonardo um pequeno favor em
ocasião em que este se achava embaraçado por causa de umas irregularidades em
uns autos que se lhe atribuía, e que a comadre o aconselhou de procurá-lo mesmo
sem o conhecer, a titulo de que era muito bom homem e amigo de servir a todos.
Eis
aqui por que o Leonardo se dirigiu no seu segundo apuro ao velho
tenente-coronel por intermédio da comadre, e por que este prometeu empenhar-se
por ele, o que com efeito tratou de cumprir.
Como
dissemos, apenas a comadre saiu, saiu ele também, e foi tratar de pôr o
Leonardo na rua. Dirigiu-se primeiro à cadeia para colher do próprio Leonardo
todas as informações, e então pôde ver que as que lhe tinha dado a comadre eram
exatíssimas, e que ela não deixara escapar a menor circunstância. O Leonardo
repetiu e confessou tudo o que ele já sabia, corrido de embaraço e de vergonha;
e ao despedir-se o velho:
— Sr.
tenente-coronel, disse-lhe ele, V.S. já me livrou de uma que não era culpa
minha; livre-me desta também... olhe que está comprometida a minha honra...
O
Leonardo esquecia-se da teoria da Maria.
— A
honra não, respondeu o velho, o que está comprometido é o seu juízo: hão de
dizer (e eu sou o primeiro) que você está doido.
— Fugi
de uma saloia e fui cair numa cigana... tem razão!...
O velho
saiu sorrindo-se. Daí dirigiu-se à casa de um seu amigo, fidalgo de valimento,
para dele obter a soltura do Leonardo. Morava ele em uma das ruas mais
estreitas da cidade, em um sobrado de sacada de rótulas de pau com pequenos
postigos que se abriam às furtadelas, sem que ninguém de fora pudesse ver quem
a eles chegava.
A
poeira amontoada nos cordões da rótula e as paredes encardidas pelo tempo davam
à casa um aspecto triste no exterior; quando ao interior, andava pelo mesmo
conseguinte. A sala era pequena e baixa; a mobília que a guarnecia era toda de
jacarandá e feita no gosto antigo; todas as peças eram enormes e pesadas; as
cadeiras e o canapé, de pés arcados e espaldares altíssimos, tinham os assentos
de couro, que era a moda da transição entre o estofo e a palhinha. Quem quiser
ter idéia exata destes móveis procure no consistório de alguma irmandade
antiga, onde temos visto alguns deles.
As
paredes eram ornadas por uma dúzia de quadros, ou antes de caixas de vidro que
deixavam ver em seu interior paisagens e flores feitas de conchinhas de todas
as cores, que não eram totalmente feios, porém que não tinham decerto o subido
valor que se lhes dava naquele tempo. À direita da sala havia sobre uma mesa um
enorme oratório no mesmo gosto da mobília.
Havia
finalmente em um canto uma palma benta, destas que se distribuem no domingo de
ramos; e se o leitor agora supuser tudo isto coberto por uma densa camada de
poeira, terá idéia perfeita do lugar em que foi recebido o velho
tenente-coronel, que era pouco mais ou menos semelhante em todas as casas ricas
de então, e por isso nos demoramos em descrevê-lo.
Sem se
fazer esperar muito, apareceu o dono da casa: era um homem já velho e de cara
um pouco ingrata; vinha de tamancos, sem meias, em mangas de camisa, com um
capote de lã xadrez sobre os ombros, caixa de rapé e lenço encarnado na mão.
Em
poucas palavras o velho expôs-lhe o caso e lhe pediu que fosse falar a el-rei
em favor de Leonardo.
A
princípio opôs ele algumas dúvidas, dizendo:
—
Homem, pois eu hei de ir a palácio por causa de um meirinho? El-rei há de
rir-se do meu afilhado.
Afinal,
porém, teve de ceder a instâncias da amizade, e prometeu tudo. O velho saiu
satisfeito e foi levar a nova ao Leonardo, que pulou de contente. Poucos dias
depois chegou a ordem de soltura, e ele foi posto na rua. Acreditara que tinha
acabado de passar pelo pior dos suplícios, porém insuportáveis torturas
começaram para ele no dia em que saiu da cadeia: a mofa, o escárnio, o riso dos
companheiros seguiu-o por muitos dias, incessante e martirizador.