TERCEIRA PARTE: OS AIMORÉS
CAPÍTULO I:
PARTIDA
Na segunda-feira, eram
seis horas da manhã, quando D. Antônio de Mariz chamou seu filho.
O velho fidalgo velara
uma boa parte da noite; ou escrevendo ou refletindo sobre os perigos que
ameaçavam sua família.
Peri lhe havia contado
todas as particularidades de seu encontro com os Aimorés; e o cavalheiro, que
conhecia a ferocidade e o espírito vingativo dessa raça selvagem, esperava a
cada momento ser atacado.
Por isso, de acordo com
Álvaro, D. Diogo e seu escudeiro Aires Gomes, tinha tomado todas as medidas de
precaução que as circunstâncias e sua longa experiência lhe aconselhavam.
Quando seu filho entrou,
o velho fidalgo acabava de selar duas cartas que escrevera na véspera.
— Meu filho, disse ele
com uma ligeira emoção, refleti esta noite sobre o que nos pode acontecer, e
assentei que deveis partir hoje mesmo para São Sebastião.
— Não é possível,
senhor!... Afastais-me de vós justamente quando correis um perigo?
— Sim! É justamente
quando um grande perigo nos ameaça, que eu, chefe da casa, entendo ser do meu
dever salvar o representante do meu nome e meu herdeiro legitimo, o protetor de
minha família órfã.
— Confio em Deus, meu
pai, que vossos receios serão infundados; mas se ele nos quiser submeter a tal
provança, o único lagar que compete a vosso filho e herdeiro de vosso nome é
nesta casa ameaçada, ao vosso lado, para defender-vos e partilhar a vossa
sorte, qualquer que ela seja.
D. Antônio apertou seu
filho ao peito.
— Eu te reconheço; tu és
meu filho; é o meu sangue juvenil que gira em tuas veias, e o meu coração de
moço que fala pelos teus lábios. Deixa porém que os cinqüenta anos de
experiência que desde então passaram sobre minha cabeça encanecida te ensinem o
que vai da mocidade à velhice, o que vai do ardente cavalheiro ao pai de uma
família.
— Eu vos escuto, senhor;
mas pelo amor que vos consagro poupai-me a dor e a vergonha de deixar-vos no
momento em que mais precisais de um servidor fiel e dedicado.
O fidalgo prosseguiu já
calmo:
— Não é uma espada, D.
Diogo, que nos dará a vitória, fosse ela valente e forte como a vossa: entre
quarenta combatentes que vão se medir talvez contra centenas e centenas de
inimigos, um de mais ou de menos não importa ao resultado.
— Que assim seja,
respondeu o cavalheiro com energia; reclamo o meu posto de honra e a minha
parte do perigo; não vos ajudarei a vencer, porém morrerei junto dos meus.
— E é por esse nobre mas
estéril orgulho que quereis sacrificar o único meio de salvação que talvez nos
reste, se, como temo, as minhas previsões se realizarem?
— Que dizeis, senhor?
— Qualquer que seja a
força e o número dos inimigos, conto que o valor português e a posição desta
casa me ajudarão a resistir-lhe por algum tempo, por vinte dias, mesmo por um
mês; mas por fim teremos de sucumbir.
— Então?... exclamou D.
Diogo pálido.
— Então se meu filho D.
Diogo, em vez de ficar nesta casa por uma obstinação imprudente, tiver ido ao
Rio de Janeiro, e pedido o auxilio que fidalgos portugueses não lhe recusarão
decerto, poderá voar em socorro de seu pai, e chegar com tempo para defender
sua família. Então verá que esta glória de ser o salvador de sua casa vale bem
a honra de um perigo inútil.
D. Diogo deitou o joelho
em terra, e beijou com ternura a mão do fidalgo:
— Perdão, meu pai, por
não vos ter compreendido. Eu devia adivinhar que D. Antônio de Mariz não pode
querer para o filho senão o que é digno do pai.
— Vamos, D. Diogo, não há
tempo a perder. Lembrai-vos que uma hora, um minuto de tardança talvez tenha de
ser contado ansiosamente por aqueles que vão esperar-vos.
— Parto neste instante,
disse o cavalheiro dirigindo-se à porta.
— Tomai; esta carta é
para Martim de Sá, governador desta capitania; esta outra é para meu cunhado e
vosso tio Crispim Tenreiro, valente fidalgo que vos poupará o trabalho de
procurardes defensores para vossa família. Ide despedir-vos de vossa mãe, e
vossas irmãs; eu farei tudo preparar para a partida.
O fidalgo, reprimindo a
sua emoção, saiu do gabinete onde se passava esta cena, e foi ter com Álvaro
que o procurava.
— Álvaro, escolhei quatro
homens que acompanhem D. Diogo ao Rio de Janeiro.
— D. Diogo parte?...
perguntou o moço admirado.
— Sim, depois vos direi
as razões. Por agora dai-vos pressa em que tudo esteja pronto dentro de uma
hora.
Álvaro dirigiu-se
imediatamente ao fundo da casa onde habitavam os aventureiros.
Havia ai grande agitação;
uns falavam em tom de queixa, outros murmuravam apenas palavras entrecortadas;
e alguns finalmente riam e motejavam do descontentamento de seus companheiros.
Aires Gomes com todo o
seu arreganho militar passeava no meio do terreiro, a mão no punho da espada, a
cabeça alta e o bigode retorcido. Quando o escudeiro passava, a voz dos
aventureiros descia dois tons; mas à medida que ele se afastava, cada um dava
livre desabafo ao seu mau humor.
Entre os mais inquietos e
turbulentos distinguiam-se três grupos presididos por personagens de nosso
conhecimento: Loredano, Rui Soeiro e Bento Simões.
A causa desse
descontentamento quase geral era a seguinte:
Por volta de seis horas
da manhã, Rui, em virtude do emprazamento da véspera, dirigiu-se o primeiro à
escada para ganhar o mato.
Chegando ao fim da
esplanada admirou-se de ver aí Vasco Afonso e Martim Vaz de vigia, o que era
extraordinário, pois só à noite se usava de uma tal precaução, e esta cessava
apenas amanhecia.
Ainda mais admirado porém
ficou quando os dois aventureiros cruzando as espadas, proferiram quase ao
mesmo tempo estas palavras:
— Não se passa.
— E por que razão?
— É a ordem, respondeu
Martim Vaz.
Rui empalideceu, e voltou
apressadamente; a primeira idéia que lhe acudiu foi que os tinham denunciado, e
cuidou em prevenir a Loredano.
Aires Gomes porém
embargou-lhe o passo, e dirigiuse com ele para o terreiro: ai o digno escudeiro
desempenando o corpo, e levando a mão à boca em forma de buzina, gritou.
— Olá! À frente toda a
banda!
Os aventureiros chegaram-se
formando um círculo ao redor de Aires Gomes; Rui já tinha tido ocasião de
lançar uma palavra ao ouvido do italiano; e ambos, um pouco pálidos mas
resolutos, esperavam o desfecho daquela cena.
— O Sr. D. Antônio de
Mariz, disse o escudeiro, por meu intermédio vos faz saber a sua vontade: e
manda que ninguém se afaste um passo da casa sem sua ordem. Quem o contrário
fizer, pereça morte natural.
Um silêncio morno acolheu
a enunciação desta ordem. Loredano trocou uma vista rápida com os seus dois
cúmplices.
— Estais entendidos?
disse Aires Gomes.
— O que nem eu, nem meus
companheiros entendemos e a razão disto, retrucou o italiano avançando um
passo.
— Sim; a razão? exclamou
em coro a maioria dos aventureiros.
— As ordens cumprem-se, e
não se discutem, respondeu o escudeiro com uma certa solenidade.
— Contudo nós... ia
dizendo Loredano.
— Toca a debandar! gritou
Aires Gomes. Aquele que não estiver contente, que o diga ao Sr. D. Antônio de
Mariz.
E o escudeiro com uma
fleuma imperturbável rompeu o circulo e começou a passear pelo terreiro olhando
de traves os aventureiros e rindo à sorrelfa do seu desapontamento.
Quase todos estavam
contrariados; sem falar dos conspiradores que se haviam emprazado para
concertarem seu plano de campanha, os outros, cujo divertimento era caçar e
bater os matos, não recebiam a ordem com prazer. Apenas alguns de gênio mais
bonachão e jovial tinham tomado a coisa à boa parte, e zombavam da
contrariedade que sofriam seus companheiros.
Quando Álvaro se
aproximou todos os olhos se voltaram para ele, esperando a explicação do que se
passava.
— Sr. cavalheiro, disse
Aires Gomes, acabo de transmitir a ordem para que ninguém arrede pé da casa.
— Bem, respondeu o moço,
e continuou dirigindo-se aos aventureiros: assim é preciso, meus amigos,
estamos ameaçados de um ataque dos selvagens, e toda a prudência é pouca nestas
ocasiões. Não é só a nossa vida que temos a defender, e essa pouco vale para
cada um de nós; é sim a pessoa daquele que confia em nosso zelo e coragem, e
mais ainda o sossego de uma família honrada que todos prezamos.
As nobres palavras do
cavalheiro, e a afabilidade do gesto que suavizava a firmeza de sua voz,
serenaram completamente os ânimos; todos os descontentes mostraram-se
satisfeitos.
Apenas Loredano estava
desesperado por ser obrigado a retardar a combinação do seu plano; pois era
arriscado tentá-lo em casa, onde o menor gesto o podia trair.
Álvaro trocou poucas
palavras com Aires Gomes, e voltou-se para os aventureiros:
— D. Antônio de Mariz
precisa de quatro homens dedicados para acompanharem seu filho D. Diogo à
cidade de São Sebastião. É uma missão perigosa; quatro homens nestes desertos
marcham de perigo em perigo. Quem de vós se oferece para desempenhá-la?
Vinte homens se
adiantaram; o cavalheiro escolheu três entre eles.
— Vós sereis o quarto,
Loredano.
O italiano que se tinha
escondido entre os seus companheiros, ficou como fulminado por estas palavras;
sair naquela ocasião da casa era perder para sempre a sua mais ardente
esperança; durante a ausência tudo podia se descobrir.
— Pesa-me ser obrigado a
negar-me ao serviço que exigis de mim; mas sinto-me doente, e sem forças para
uma viagem.
O cavalheiro sorriu.
— Não há enfermidade que
prive um homem de cumprir o seu dever; sobretudo quando é um homem valente e
leal como vós, Loredano.
Depois abaixou a voz para
não ser ouvido pelos outros aventureiros:
— Se não partis, sereis
arcabuzado em uma hora. Esqueceis que tenho a vossa vida em minha mão e vos
faço esmola mandando-vos sair desta casa?
O italiano compreendeu que
não tinha remédio senão partir; bastava que o moço o acusasse de ter atirado
sobre ele, bastava a palavra de Álvaro para fazê-lo condenar pelo chefe e pelos
seus próprios companheiros.
— Aviai-vos, disse o
cavalheiro aos quatro aventureiros escolhidos por ele; partis em meia hora.
Álvaro retirou-se.
Loredano ficou um momento
abatido pela fatalidade que pesava sobre ele; mas a pouco e pouco foi
recobrando a calma, animando-se; por fim sorriu. Para que sorrisse era
necessário que alguma inspiração infernal tivesse subido do centro da terra a
essa inteligência votada ao crime. Fez um aceno a Rui Soeiro, e os dois
encaminharam-se para um cubículo que o italiano ocupava no fim da esplanada. Aí
conversaram algum tempo, rapidamente e em voz baixa.
Foram interrompidos por
Aires Gomes, que bateu com a espada na porta:
— Eh! lá! Loredano. A
cavalo, homem; e boa viagem.
O italiano abriu a porta,
e ia sair; mas voltou-se para dizer a Rui Soeiro:
— Olhai os homens da
guarda; é o principal.
— Ide tranqüilo.
Alguns minutos depois, D.
Diogo com o coração cerrado e as lágrimas nos olhos, apertava nos braços sua
mãe querida, Cecília que ele adorava, e Isabel que já amava também como irmã.
Depois desprendendo-se
com um esforço, encaminhou-se apressadamente para a escada e desceu ao vale; ai
recebeu a bênção de seu pai e abraçando a Álvaro saltou na sela do cavalo, que
Aires Gomes tinha pela rédea.
A pequena cavalgata
partiu; com pouco sumia-se na volta do caminho.
CAPÍTULO II:
PREPARATIVOS
Ao tempo que D. Antônio
de Mariz e seu filho conversaram no gabinete, Peri examinava as suas armas,
carregava as pistolas que sua senhora lhe havia dado na véspera, e saia da
cabana.
A fisionomia do selvagem
tinha uma expressão de energia e ardimento, que revelava resolução violenta,
talvez desesperada.
O que ia fazer, nem ele
mesmo sabia. Certo de que o italiano e seus companheiros se reuniriam naquela
manhã, contava, antes que a reunião se efetuasse, ter mudado inteiramente a
face das coisas.
Só tinha uma vida, como
dissera; mas essa com a sua agilidade e a sua força e coragem valia por muitas;
tranqüilo sobre o futuro pela promessa de Álvaro, não lhe importava o número
dos inimigos: podia morrer, mas esperava deixar pouco ou talvez nada que fazer
ao cavalheiro.
Saindo de sua cabana,
Peri entrou no jardim: Cecília estava sentada num tapete de peles sobre a
relva, e amimava ao seio a sua rolinha predileta, oferecendo os lábios de
carmim às carícias que a ave lhe fazia com o bico delicado.
A menina estava
pensativa; doce melancolia desvanecia a vivacidade natural de seu semblante.
— Tu estás agastada com
Peri, senhora?
— Não, respondeu a menina
fitando nele os grandes olhos azuis. Não quiseste fazer o que eu pedi; tua
senhora ficou triste.
Ela dizia a verdade com a
ingênua franqueza da inocência. Na véspera, quando se tinha recolhido enfadada
pela recusa de Peri, ficara contrariada.
Educada no fervor
religioso de sua mãe, embora sem os prejuízos que a razão de D. Antônio
corrigira no espírito de sua filha, Cecília tinha a fé cristã em toda a pureza
e santidade. Por isso se afligia com a idéia de que Peri, a quem votava uma
amizade profunda, não salvasse a sua alma, e não conhecesse o Deus bom e
compassivo a quem ela dirigia suas preces.
Conhecia que a razão, por
que sua mãe e os outros desprezavam o índio, era o seu gentilismo; e a menina
no seu reconhecimento queria elevar o amigo e torná-lo digno da estima de
todos.
Eis a razão por que
ficara triste; era a gratidão por Peri, que defendera sua vida de tantos
perigos, e a quem ela queria retribuir salvando a sua alma.
Nesta disposição de
espírito, seus olhos caíram sobre a guitarra espanhola que estava em cima da
cômoda e veio-lhe vontade de cantar. É coisa singular como a melancolia
inspira! Seja por uma necessidade de expansão, seja porque a música e a poesia
suavizem a dor, toda a criatura triste acha no canto um supremo consolo.
A menina tirou ligeiros
prelúdios do instrumento enquanto repassava na memória as letras de alguns
solaus e cantigas que sua mãe lhe havia ensinado. A que lhe acudiu mais
naturalmente foi a xácara que ouvimos: havia nessa composição uns longes, um
quer que seja que ela não sabia explicar, mas ia com seus pensamentos.
Quando acabou de cantar
levantou-se, apanhou a flor de Peri que tinha atirado ao chão, deitou-a nos
cabelos, e fazendo a sua oração da noite, adormeceu tranqüilamente. O último
pensamento que rogou a sua fronte alva foi um voto de gratidão pelo amigo que
lhe salvara a vida naquela manhã. Depois um sorriso adejou sobre seu rosto
gracioso, como se a alma durante o sono dos olhos viesse brincar nos lábios
entreabertos.
O índio, ouvindo as
palavras que acabava de proferir Cecília, sentiu que pela primeira vez tinha
causado uma mágoa real a sua senhora.
— Tu não entendeste Peri,
senhora; Peri te pediu que o deixasses na vida em que nasceu, porque precisa
desta vida para servir-te.
— Como?... Não te
entendo!
— Peri, selvagem, é o
primeiro dos seus; só tem uma lei, uma religião, é sua senhora; Peri, cristão,
será o último dos teus; será um escravo, e não poderá defender-te.
— Um escravo!... Não!
Serás um amigo. Eu te juro! exclamou a menina com vivacidade.
O índio sorriu:
— Se Peri fosse cristão,
e um homem quisesse te ofender, ele não poderia matá-lo, porque o teu Deus
manda que um homem não mate outro. Peri selvagem não respeita ninguém; quem
ofende sua senhora é seu inimigo, e, morre!
Cecília, pálida de
emoção, olhou o índio, admirada não tanto da sublime dedicação, como do
raciocínio; ela ignorava a conversa que o índio tivera na véspera com o
cavalheiro.
— Peri te desobedeceu por
ti somente; quando já não correres perigo, ele virá ajoelhar a teus pés, e
beijar a cruz que tu lhe deste. Não fica zangada!
— Meu Deus!... murmurou
Cecília pondo os olhos no céu. É possível que uma dedicação tamanha não seja
inspirada por vossa santa religião!...
A alegria serena e doce
de sua alma irradiava na fisionomia encantadora:
— Eu sabia que tu não me
negarias o que te pedi; assim não exijo mais; espero. Lembra-te somente que no
dia em que tu fores cristão, tua senhora te estimará ainda mais.
— Não ficas triste?
— Não; agora estou
satisfeita, contente, muito contente! — Peri quer pedir-te uma coisa.
— Dize, o que é?
— Peri quer que tu
risques um papel para ele.
— Riscar um papel?...
— Como este que teu pai
deu hoje a Peri.
— Ah! queres que eu
escreva?
— Sim.
— O quê?
— Peri vai dizer.
— Espera.
Ligeira e graciosa, a
menina correu à banquinha, e tomando uma folha de papel e uma pena fez sinal a
Peri que se aproximasse.
Não devia ela satisfazer
os desejos do índio, como este satisfazia às suas menores fantasias?
— Vamos: fala que eu
escrevo.
— Peri a Álvaro, disse o
índio.
— É uma carta ao Sr.
Álvaro? perguntou a menina corando.
— Sim; é para ele.
— Que vais tu dizer-lhe?
— Escreve.
A menina traçou a
primeira linha, e depois por pedido de Peri, o nome de Loredano e dos seus dois
cúmplices.
— Agora, disse o índio,
fecha.
Cecília selou a carta.
— Entrega à tarde; antes
não.
— Mas que quer isto
dizer? perguntou Cecília sem compreender.
— Ele te dirá.
— Não, que eu...
A menina balbuciou, corando,
estas palavras; ia dizer que não falaria ao cavalheiro e arrependeu-se; não
queria revelar a Peri o que se tinha passado. Sabia que se o índio suspeitasse
a cena da véspera, odiaria Isabel e Álvaro, só por lhe terem causado um pesar
involuntário.
Enquanto Cecília confusa
procurava disfarçar o enleio, Peri fitava nela o seu olhar brilhante; mal
pensava a menina que aquele olhar era o adeus extremo que o índio lhe dizia.
Mas para isto fora
preciso que adivinhasse o plano desesperado que ele havia concebido de
exterminar naquele dia todos os inimigos da casa.
D. Diogo entrou nesse
momento no quarto de sua irmã: vinha despedir-se dela.
Quanto a Peri, deixando
Cecília, dirigiu-se à escada e achou os mesmos vigias, que depois embargaram a
passagem de Rui Soeiro.
— Não se passa, disseram
os aventureiros cruzando as espadas.
O índio levantou os
ombros desdenhosamente; e antes que as sentinelas voltassem a si da surpresa,
tinha mergulhado sob as espadas e descido a escada. Então ganhou a mata,
examinou de novo as suas armas e esperou; já estava cansado quando viu passar a
pequena cavalgata.
Peri não compreendeu o
que sucedia; mas conheceu que o seu plano tinha abortado.
Foi ter com Álvaro.
O cavalheiro explicou-lhe
como se aproveitara da ida de D. Diogo ao Rio de Janeiro para expulsar o
italiano sem rumor e sem escândalo. Então o índio por sua vez contou ao moço o
que tinha ouvido na touça de cardos; o projeto que formara de matar os três
aventureiros naquela manhã; e finalmente a carta que lhe escrevera por intermédio
de Cecília, para, no caso de sucumbir ele, saber o cavalheiro quem eram os
inimigos.
Álvaro duvidava ainda
acreditar em tanta perfídia do italiano.
— Agora, concluiu Peri, é
preciso que os dois também saiam; se ficarem, o outro pode voltar.
— Não se animará! disse o
cavalheiro.
— Peri não se engana!
Manda sair os dois.
— Fica descansado.
Falarei com D. Antônio de Mariz.
O resto do dia passou
tranqüilamente; mas a tristeza tinha entrado nessa casa ainda na véspera tão
alegre e feliz; a partida de D. Diogo, o temor vago que produz o perigo quando
se aproxima, e o receio de um ataque dos selvagens, preocupavam os moradores do
Paquequer.
Os aventureiros dirigidos
por D. Antônio, executavam trabalhos de defesa tornando ainda mais inacessível
o rochedo em que estava situada a casa.
Uns construíam paliçadas
em roda da esplanada: outros arrastavam para a frente da casa uma colubrina que
o fidalgo por excesso de cautela mandara vir de São Sebastião havia dois anos.
Toda a casa enfim apresentava um aspecto marcial, que indicava as vésperas de
um combate; D. Antônio preparava-se para receber dignamente o inimigo.
Apenas em toda esta casa
uma pessoa se conservava alheia ao que passava: era Isabel, que só pensava no
seu amor.
Depois de sua confissão,
arrancada violentamente ao seu coração por uma força irresistível, por um
impulso que ela não sabia explicar, a pobre menina quando se vira só, no seu
quarto, à noite, quase morreu de vergonha.
Lembrava-se de suas
palavras, e perguntava a si mesma como tivera a coragem de dizer aquilo, que
antes nem mesmo os seus olhos se animavam a exprimir silenciosamente.
Parecia-lhe que era impossível tornar a ver Álvaro sem que cada um dos olhares
do moço queimasse as suas faces e a obrigasse a esconder o rosto de pejo.
Entretanto nem por isso
seu amor era menos ardente; ao contrário agora é que a paixão, por muito tempo
reprimida, se exacerbava com as lutas e contrariedades.
As poucas palavras doces
que o moço lhe dirigia, a pressão das mãos, e o aperto rápido sobre o coração
de Álvaro num momento de alucinação, passavam e repassavam na sua memória a
todo o momento.
Seu espírito, como uma
borboleta em torno da flor, esvoaçava constantemente em torno das
reminiscências ainda vivas, como para libar todo o mel que encerravam aquelas
sensações, as primeiras de seu infeliz amor.
Nesse mesmo dia de
segunda-feira, à tarde, Álvaro encontrou-se um momento com Isabel na esplanada.
Ambos ficaram mudos, e coraram. Álvaro ia retirar-se.
— Sr. Álvaro... balbuciou
a moça trêmula.
— Que quereis de mim, D.
Isabel? perguntou o moço perturbado.
— Esqueci-me o
restituir-vos ontem o que não me pertence.
— E ainda esse malfadado
bracelete?
— Sim, respondeu a moça
docemente, é este malfadado bracelete: Cecília teima que
é ele vosso.
— Se meu é, vos peço que
o aceiteis.
— Não, Sr. Álvaro, não
tenho direito.
— Uma irmã não tem
direito de aceitar a prenda que lhe oferece seu irmão?
— Tendes razão, respondeu
a moça suspirando, eu o guardarei como lembrança vossa; não será adorno para
mim, senão relíquia.
O moço não respondeu;
retirou-se para cortar a conversa.
Desde a véspera Álvaro
não podia eximir-se à impressão poderosa que causara nele a paixão de Isabel;
era preciso que não fosse homem para não se sentir profundamente comovido pelo
amor ardente de uma mulher bela, e pelas palavras de fogo que corriam dos
lábios de Isabel impregnadas de perfume e sentimento.
Mas a razão direita do
cavalheiro recalcava essa impressão no fundo do coração; ele não se pertencia;
tinha aceitado o legado de D. Antônio de Mariz e jurado dar a sua mão a
Cecília.
Embora não esperasse mais
realizar o seu sonho dourado, entendia que estava vigorosamente obrigado a
sujeitar-se a vontade do fidalgo, a proteger sua filha, a dedicar-lhe sua
existência. Quando Cecília o repelisse abertamente, e D. Antônio o desobrigasse
de sua promessa, então seu coração seria livre, se não estivesse morto pelo
desengano.
O único fato notável que
se deu nesse dia foi a chegada de seis aventureiros das vizinhanças, que
prevenidos por D. Diogo vinham oferecer seus serviços a D. Antônio.
Chegaram ao lusco-fusco;
à frente deles vinha o nosso conhecido mestre Nunes, que um ano antes dera
hospitalidade no seu pouso a Frei Ângelo di Luca.
CAPÍTULO III:
VERME E FLOR
Eram onze horas da noite.
O silêncio reinava na
habitação e seus arredores; tudo estava tranqüilo e sereno. Algumas estrelas
brilhavam no céu; os sopros escassos da viração sussurravam na folhagem.
Os dois homens de vigia,
apoiados ao arcabuz e reclinados sobre o alcantil, sondavam a sombra espessa
que se estendia pela aba do rochedo.
O vulto majestoso de D.
Antônio de Mariz passou lentamente pela esplanada, e desapareceu no canto da casa.
O fidalgo fazia sua ronda noturna, como um general na véspera de uma batalha.
Passados alguns momentos
ouviu-se cantar uma coruja no vale, junto da escada de pedra; um dos vigias
abaixou-se, e tomando dois pequenos seixos deixou-os cair um depois do outro.
O som fraco que produziu
a queda das pedras sobre o arvoredo da várzea foi quase imperceptível; seria
difícil distingui-lo do rumor do vento nas folhas.
Um instante depois um
vulto subiu ligeiramente a escada, e reuniu-se aos dois homens que faziam a
guarda noturna::
— Tudo está pronto?
— Só esperamos por vós.
— Vamos! Não há tempo a
perder.
Trocadas estas palavras
rapidamente entre o que chegava e um dos vigias, os três encaminharam-se com
todas as precauções para a alpendrada em que habitava a banda dos aventureiros.
Aí, como no resto da
casa, tudo estava calmo e tranqüilo; apenas via-se luzir na soleira da porta do
aposento de Aires Gomes a claridade de uma luz.
Um dos três chegou-se à
entrada do alpendre, e esgueirando-se pela parede perdeu-se na escuridão que
havia no interior.
Os outros dois se
dirigiam ao fim da casa, e ai ocultos pela sombra e pelo ângulo que formava um
largo pilar do edifício, começaram um diálogo breve e rápido.
— Quantos são? perguntou
o homem que chegara.
— Vinte ao todo.
— Restam-nos?
— Dezenove.
— Bem. A senha?.
— Prata.
— E o fogo?
— Pronto.
— Aonde?
— Nos quatro cantos.
— Quantos sobram?
— Dois apenas.
— Seremos nós.
— Precisais de mim?
— Sim.
Houve uma pequena pausa,
em que um dos aventureiros parecia refletir profundamente enquanto o outro
esperava; por fim o primeiro ergueu a cabeça:
— Rui, vós me sois
dedicado?
— Dei-vos a prova.
— Preciso de um amigo
fiel.
— Contai comigo.
— Obrigado.
O desconhecido apertou a
mão de seu companheiro.
— Sabeis que amo uma
mulher?
— Vós mo dissestes.
— Sabeis que é mais por
essa mulher do que por este tesouro fabuloso que concebi esse plano horrível?
— Não; não o sabia.
— Pois é a verdade; pouco
me importa a riqueza; sede meu amigo; servi-me lealmente, e tereis a maior
parte do meu tesouro.
— Falei; que quereis que
eu faça?
— Um juramento; mas um
juramento sagrado, terrível.
— Qual? Dizei!
— Hoje essa mulher me
pertencerá; entretanto se por qualquer acaso eu vier a morrer, quero que...
O desconhecido hesitou.
— Quero que nenhum homem
possa amá-la, que nenhum homem possa gozar a felicidade suprema que ela pode
dar.
— Mas como?
— Matando-a!
Rui sentiu um calafrio.
— Matando-a, para que a
mesma cova receba nossos dois corpos; não sei por quê, mas parece-me que ainda
cadáver, o contato dessa mulher deve ser para mim um gozo imenso.
— Loredano!... exclamou
seu companheiro horrorizado.
— Sois meu amigo e sereis
meu herdeiro! disse o italiano agarrando-lhe convulsivamente no braço. É a
minha condição; se recusais, outro aceitará o tesouro que rejeitais!
O aventureiro estava em
lata com dois sentimentos opostos; mas a ambição violenta, cega, esvairada,
abafou o grito fraco da consciência.
— Jurais? perguntou
Loredano.
— Juro!... respondeu Rui
com a voz estrangulada.
— Avante então!
Loredano abriu a porta do
seu cubículo, e voltou algum tempo depois trazendo uma tábua longa e estreita
que colocou sobre o despenhadeiro como uma espécie de ponte suspensa.
— Ides segurar esta
tábua, Rui. Entrego em vossas mãos a minha vida, e nisto dou-vos a maior prova
de confiança. Basta que deixeis esta prancha mover-se para que eu me precipite
sobre os rochedos.
O italiano achava-se
então no mesmo lugar que na noite da chegada, algumas braças distante da janela
de Cecília, onde não podia chegar por causa do ângulo que formavam o rochedo e
o edifício.
A tábua foi colocada na
direção da janela; a primeira vez tinha-lhe bastado o seu punhal; agora também
necessitava de um apoio seguro, e do livre movimento de seus braços. Rui
colocou-se sobre a ponta da tábua, e segurando-se a um frechal do alpendre
manteve imóvel sobre o precipício essa ponte pênsil em que o italiano ia
arriscar-se.
Quanto a este, sem
hesitar, tirou as suas armas para ficar mais leve, descalçou-se, segurou a
longa faca entre os dentes, e pôs o pé sobre a prancha.
— Esperar-me-eis do outro
lado, disse o italiano.
— Sim, respondeu Rui com
voz trêmula.
A razão por que a voz de
Rui tremia, era um pensamento diabólico que começava a fermentar no seu
espírito. Lembrou-lhe que tinha na mão Loredano e o seu segredo; que para
ver-se livre de um e senhor do outro, bastava afastar o pé e deixar a tábua
inclinar sobre o abismo.
Entretanto hesitava; não
que o remorso antecipado lhe exprobrasse o crime que ia cometer; já tinha-se
afundado muito no vício e na depravação para recuar. Mas o italiano exercia
sobre os seus cúmplices tal prestigio e influência tão poderosa, que Rui não
podia mesmo nesse momento esquivar-se a ela.
Loredano estava suspenso
sobre o abismo pela sua mão; podia salvá-lo ou precipitá-lo no despenhadeiro; e
contudo dessa posição ainda ele impunha respeito ao aventureiro.
Rui tinha medo: não
compreendia o motivo desse terror irresistível; mas o sentia como uma obsessão
e um pesadelo.
No entanto a imagem da
riqueza esplêndida, brilhante, radiando galas e luzimentos, passava diante de
seus olhos e o deslumbrada; um pouco de coragem, e seria o único senhor do
tesouro fabuloso, cujo era o italiano depositário do segredo.
Mas coragem é o que lhe
faltava; por duas ou três vezes o aventureiro teve um ímpeto de suspender-se ao
frechal, e deixar a tábua rolar no abismo; não passou de um desejo.
Venceu afinal a tentação.
Teve um momento de
desvario: os joelhos acurvaram-se; a tábua sofreu uma oscilação tão forte, que
Rui admirou-se de como o italiano se tinha podia suster.
Então o medo desapareceu;
foi substituído por uma espécie de raiva e frenesi que se apoderou do
aventureiro; o primeiro esforço lhe dera a ousadia, como a vista do sangue
excita a fera.
Um segundo abalo mais
forte agitou a tábua, que oscilou à borda do rochedo; porém não se ouviu o
baque de um corpo; não se ouviu mais que o choque da madeira sobre a pedra.
Rui, desesperado, ia soltar a prancha, quando chegou-lhe ao ouvido, abafada e
sumida, a voz do italiano, que apenas se percebia no silêncio profundo da
noite.
— Estais cansado, Rui?...
Podeis tirar a tábua; não preciso mais dela.
O aventureiro ficou
espavorido; decididamente esse homem era um espírito infernal que planava sobre
o abismo, e escarnecia do perigo; um ente superior a quem a morte não podia
tocar.
Ele ignorava que
Loredano, com a sua previdência ordinária, quando entrara no seu cubículo para
tirar a prancha, tivera o cuidado de passar por um caibro do alpendre, que era
de telha-vã, a ponta de uma longa corda, que caiu sobre a parte de fora da
parede uma braça distante da janela de Cecília.
Assim, apenas deu o
primeiro passo sobre a ponte improvisada, o italiano não se descuidou de
estender o braço e agarrar a ponta da corda, que logo atou à cintura; então se
o apoio lhe faltasse, ficaria suspenso no ar, e, embora com mais dificuldade,
realizaria o seu intento.
Foi por isso que os dois
abalos produzidos pelo seu cúmplice não tiveram o resultado que ele esperava;
logo do primeiro, Loredano adivinhou o que se passava na alma de Rui; mas não
querendo dar-lhe a perceber que conhecia a sua traição, serviu-se de um meio
indireto para dizer-lhe que estava em segurança, e que era inútil a tentativa
de precipitá-lo.
A tábua não fez mais um
só movimento; conservou-se imóvel como se estivera solidamente pregada ao
rochedo.
Loredano adiantou-se,
tocou a janela da moça, e com a ponta da faca conseguiu levantar a aldraba; as
gelosias abrindo-se afastaram as cortinas de cassa que vendavam o asilo do
pudor e da inocência.
Cecília dormia envolta
nas alvas roupas do seu leito; sua cabecinha loura aparecia entre as rendas
finíssimas sobre as quais se desenrolavam os lindos anéis dourados de seus
cabelos. O doce amortecimento de um sono calmo e sereno vendava seu rosto
gracioso, como a sombra esvaecida que desmaia o semblante das virgens de
Murilo; seu sorriso era apenas enlevo.
O talho de sua anágua
abrindo-se deixava entrever um colo de linhas puras, mais alvo do que a
cambraia; e com a ondulação que a respiração branda imprimia ao seu peito,
desenhavam-se sob a lençaria diáfana os seios mimosos.
Tudo isto ressaltava como
um quadro dentre as ondas de uma colcha de damasco azul que nas suas largas
dobras moldava sobre a alvura transparente do linho os contornos harmoniosos e
puros.
Havia porém nessa beleza
adormecida uma expressão indefinível, um quer que seja de tão casto e inocente,
que envolvia essa menina no seu sono tranqüilo e parecia afugentar dela um
pensamento profano.
Chegando-se à beira
daquele leito, um homem ajoelharia antes como ao pé de uma santa, do que se
animaria a tocar na ponta dessas roupagens brancas que protegiam a inocência.
Loredano aproximou-se,
tremendo, pálido e ofegante; toda a força de sua vigorosa organização, toda a
sua vontade poderosa e irresistível, estava ai vencida, subjugada, diante de
uma menina adormecida. O que sentiu quando seu olhar ardente caiu sobre o
leito, é difícil dizer, é talvez mesmo difícil de compreender. Foi a um tempo
suprema ventura e horrível suplício.
A paixão brutal o
devorava escaldando-lhe o sangue nas veias e fazendo saltar-lhe o coração;
entretanto o aspecto dessa menina que não tinha para sua defesa senão a sua
castidade, o encadeava.
Sentia que o fogo
queimava-lhe o seio; sentia que seus lábios tinham sede de prazer; e a mão
gelada e inerte, não se podia erguer, e o corpo estava paralisado; apenas o
olhar cintilava e as narinas dilatadas aspiravam as emanações voluptuosas de
que estava impregnada a sua atmosfera.
E a menina sorria no seu
plácido sono enleando-se talvez nalgum sonho gracioso, nalgum dos sonhos azuis
que Deus esparge como folhas de rosas sobre o leito das virgens.
Era o anjo em face do
demônio; era a mulher em face da serpente; a virtude em face do vício.
O italiano fez um esforço
supremo, e passando a mão pelos olhos como para arrancar uma visão importuna,
encaminhou-se a um bufete e acendeu uma vela de cera cor-de-rosa.
O aposento, até então
esclarecido apenas por uma lamparina colocada sobre uma cantoneira,
iluminou-se; e a imagem graciosa de Cecília apareceu cercada de uma auréola.
Sentindo a impressão da
luz sobre os olhos, a menina fez um movimento, e voltando um pouco o rosto para
o lado oposto continuou o sono, que nem fora interrompido.
Loredano passou entre o
leito e a parede, e pôde então admirá-la em toda a sua beleza; não se lembrava
de nada mais, esquecera o mundo e seu tesouro: nem pensava no rapto que ia
praticar.
A rolinha que dormia
sobre a cômoda no seu ninho de algodão ergueu-se e agitou as asas; o italiano,
despertado por este rumor, conheceu que já era tarde e que não tinha tempo a
perder.