Saturday, 11 January 2020

Good Readings: "The Haunted Palace" by Edgar Allan Poe (in English)

In the greenest of our valleys
⁠   By good angels tenanted,
Once a fair and stately palace—
   ⁠Radiant palace—reared its head.
In the monarch Thought's dominion—
   ⁠It stood there!
Never seraph spread a pinion
   ⁠Over fabric half so fair!

Banners yellow, glorious, golden,
   ⁠On its roof did float and flow,
(This—all this—was in the olden
   ⁠Time long ago,)
And every gentle air that dallied,
   ⁠In that sweet day,
Along the ramparts plumed and pallid,
   ⁠A wingéd odour went away.

Wanderers in that happy valley,
Through two luminous windows, saw
Spirits moving musically,
To a lute's well-tunéd law,
Round about a throne where, sitting
(Porphyrogene!)
In state his glory well befitting,
The ruler of the realm was seen.

And all with pearl and ruby glowing
   ⁠Was the fair palace door,
Through which came flowing, flowing, flowing,
   ⁠And sparkling evermore,
A troop of Echoes, whose sweet duty
   ⁠Was but to sing,
In voices of surpassing beauty,
   ⁠The wit and wisdom of their king.

But evil things, in robes of sorrow,
   ⁠Assailed the monarch's high estate.
(Ah, let us mourn!—for never morrow
   ⁠Shall dawn upon him desolate!)
And round about his home the glory
   ⁠That blushed and bloomed,
Is but a dim-remembered story
   ⁠Of the old time entombed.

And travellers, now, within that valley,
⁠   Through the red-litten windows see
Vast forms, that move fantastically
   ⁠To a discordant melody,
While, like a ghastly rapid river,
   ⁠Through the pale door
A hideous throng rush out forever
   ⁠And laugh—but smile no more.

Friday, 10 January 2020

Friday's Sung Word: "Raios de Um Olhar" by Lamartine Babo and Lírio Panicalli (in Portuguese)

Raios de um olhar sublime, encantador
Encontrei nas telas do meu sofrimento
Raios de um olhar banhados em esplendor
A voz que brilhava no meu pensamento

Era o luar com meu penar
E clareava o meu destino
Luzes afim era o porvir,
A estrada sob o ser tão pequenino

Quem vive a gostar e o raio a me olhar
Encontrava bem a calma sofrer hoje o prazer
Comovida em sonho encarei
Vi choro a cair e rir que chorar
Venha sorrir vivia feliz no raio de olhar
Tão jovem ao Deus do céu pra ser feliz



You can hear "Raios de Um Olhar" sung by Vicente Celestino here.

Thursday, 9 January 2020

Thursday's Serial: "Memórias de um Sargento de Milícias" by Manuel Antônio de Almeida (in Portuguese) - VII


VII - Remédio aos males
O pobre rapaz saíra, como dissemos, pela porta fora, e caminhando apressadamente olhava de vez em quando para trás, pois julgava ver ainda enristado contra si o espadim com que o pai o ameaçara, que parecia com ele querer acabar a obra que com um pontapé começara. Andou a bom andar por largo tempo, e foi dar consigo lá para as bandas dos Cajueiros: cansado, ofegante, sentou-se sobre umas pedras, e quem o visse com ar tristonho e pensativo julgaria talvez que ele cismava na sua posição e no caminho que havia tomar. Pois enganava-se redondamente quem tal julgasse: pensava em coisa muito mais agradável; pensava em Luisinha. Pensando nela não podia, é verdade, abster-se de ver surgir diante dos olhos o terrível José Manuel; e isto explicava certos movimentos de impaciência que de vez em quando se lhe podiam observar. Tinha gasto largo tempo nesta meditação, quando foi repentinamente acordado por umas poucas de gargalhadas partidas detrás de umas moitas vizinhas. Estremeceu da cabeça aos pés; pareceu-lhe que lhe tinham lido os pensamentos que lhe passavam pela mente e que se riam dele. Voltou-se, nada viu; guiado por um rumor que ouvia, começou a procurar, e sem grande trabalho viu, atrás de umas moitas um pouco altas, uns poucos de rapazes e raparigas, que, assentados em uma esteira entre os restos de um jantar, debruçavam-se curiosos sobre dois parceiros que, com um baralho de cartas amarrotado e sujo, desencabeçavam uma intrincada partida de bisca! As gargalhadas que ouvira há pouco tinham sido a conseqüência de um capote que um deles acabava de levar. À vista daqueles restos de um jantar, que, se não parecia ter sido abundante, fez-lhe lembrar que saíra de casa na ocasião de pôr-se a mesa, deu-lhe então o estômago umas formidáveis badaladas. Tentou entretanto voltar, porque não se queria meter em festa alheia, quando, levantando um dos jogadores a cabeça, conheceu nele um seu antigo camarada, o menino que fora sacristão da Sé. Ainda que apesar disso se quisesse retirar, já era tarde, porque com o movimento que fizera, o jogador, dando com ele, o havia também conhecido.
— Olá Leonardo! por que carga d’água vieste parar a estas alturas? Pensei que te tinha já o diabo lambido os ossos, pois depois daquele maldito dia em que nos vimos em pancas por causa do mestre-de-cerimônias, nunca mais te pus a vista em cima.
Leonardo chegou-se ao rancho, e trocados os cumprimentos com o seu antigo camarada foi convidado a servir-se de alguma coisa do que ainda havia. Quis fazer cerimônia, mas não estava em circunstâncias disso: uma das moças serviu-o, e enquanto continuava a bisca, comeu ele a barrete fora.
— Escorropicha essa garrafa que ai resta, disse-lhe o amigo, e vê se o vinho tem o mesmo gosto daquele que em outro tempo escorropichávamos juntos das galhetas da Sé, com desespero de meu pai e furor do mestre-de-cerimônias .
Quando Leonardo acabou de comer, acabaram também os dois parceiros de jogar; chamou então o amigo à parte, e perguntou-lhe:
— Então que gente é esta com que te achas aqui de súcia?
— É minha gente.
— Tua gente?
— Sim, pois não vês aquela moça morena que ali está?
— Sim, e então?
— Ora!...
— Pois tu casaste?
— Não... mas que tem isso?
— Ah!... estás de moça!
— E tu?
— Eu... ora nem te digo... morreu meu padrinho.
— Sim, ouvi dizer.
— Fui para casa de meu pai... e de repente, hoje mesmo, brigo lá com a cuja dele; ele corre de espada atrás de mim, e eu safo-me. Parei ali adiante, e as gargalhadas que vocês aqui davam...
— Sei do resto... E agora tu não tens para onde ir?
— Homem, eu ia ver...
— Ver o quê?
— Ver por aí...
— Por aí, por onde?
— Nem mesmo eu Sei...
E desataram os dois a rir. Quando temos apenas 18 a 20 anos sobre os ombros, o que é um peso ainda muito leve, desprezamos o passado, rimo-nos do presente, entregamo-nos descuidados a essa confiança cega no dia de amanhã, que é o melhor apanágio da mocidade.
— Sabes que mais? continuou o amigo do Leonardo, vem conosco, e não te hás de arrepender.
— Mas com vocês, para onde?
— Para onde? Sem dúvida algum partido melhor tens a escolher? queres fazer cerimônias?
Começava a cair a noite.
— Vamos levantar a súcia, minha gente, disse um dos convivas.
— Sim, vamos.
— Nada, inda não: Vidinha vai cantar uma modinha.
— Sim, sim, uma modinha primeiro; aquela: Se os meus suspiros pudessem.
— Não, essa não, cante antes aquela: Quando as glórias que eu gozei.
— Vamos lá, decidam, respondeu uma voz de moça aflautada e lânguida.
Vidinha era uma mulatinha de 18 a 20 anos, de altura regular, ombros largos, peito alteado, cintura fina e pés pequeninos; tinha os olhos muito pretos e muito vivos, os lábios grossos e úmidos, os dentes alvíssimos, a fala era um pouco descansada, doce e afinada.
Cada frase que proferia era interrompida com uma risada prolongada e sonora, e com um certo caído de cabeça para trás, talvez gracioso se não tivesse muito de afetado.
Assentou-se finalmente que ela cantaria a modinha: Se os meus suspiros pudessem.
Tomou Vidinha uma viola, e cantou acompanhando-se em uma toada insípida hoje, porém de grande aceitação naquele tempo, o seguinte:

    Se os meus suspiros pudessem
    Aos teus ouvidos chegar,
    Verias que uma paixão
    Tem poder de assassinar.
    Não são de zelos
    Os meus queixumes,
    Nem de ciúme
    Abrasador;
    São das saudades
    Que me atormentam
    Na dura ausência
    De meu amor.

O Leonardo, que talvez hereditariamente tinha queda para aquelas coisas, ouviu boquiaberto a modinha, e tal impressão lhe causou, que depois disso nunca mais tirou os olhos de cima da cantora. A modinha foi aplaudida como cumpria. Levantaram-se então, arrumaram tudo o que tinham levado em cestos, e puseram-se a caminho, acompanhando o Leonardo o farrancho.

VIII - Novos amores     
Chegaram todos depois de longo caminhar, e quando já brilhava nos céus um desses luares magníficos que só fazem no Rio de Janeiro, a uma casa da rua da Vala. Naqueles tempos uma noite de luar era muito aproveitada, ninguém ficava em casa; os que não saíam a passeio sentavam-se em esteiras às portas, e ali passavam longas horas em descantes, em ceias, em conversas, muitos dormiam a noite inteira ao relento.
Como os nossos conhecidos já tinham dado um grande passeio, adotaram o expediente das esteiras à porta, e continuaram assim pela noite em diante a súcia em que haviam gasto o dia, pois aquilo que Leonardo vira nos Cajueiros, e em que também tomara parte, era o final de uma patuscada que havia começado ao amanhecer, de uma dessas romarias consagradas ao prazer, que eram então tão comuns e tão estimadas.
Agora devemos dar ao leitor conhecimento da nova gente, no meio da qual se acha o nosso Leonardo. Se nos pudéssemos socorrer aqui do amigo José Manuel, sem dúvida nos desfolharia ele toda a árvore genealógica dessa família a quem o amigo do Leonardo chamava a sua gente: porém contentem-se os leitores com o presente sem indagar o passado. Saibam pois que a família era composta de duas irmãs, ambas viúvas, ou que pelo menos diziam sê-lo, uma com três filhos e outra com três filhas; passando qualquer das duas dos seus quarenta e tantos; ambas gordas e excessivamente parecidas. Os três filhos da primeira eram três formidáveis rapagões de 20 anos para cima, empregados todos no Trem; as três filhas da segunda eram três raparigas desempenadas, orçando pela mesma idade dos primos, e bonitas cada uma no seu gênero. Uma delas já os leitores conhecem; é Vidinha, a cantora de modinhas; era solteira como uma de suas irmãs; a última era também solteira, porém não como estas duas. O amigo do Leonardo que explique o que isso quer dizer, e explicando dará também a conhecer o que era ele próprio na família. Os mais que se achavam presentes eram pela maior parte vizinhos que se reuniam para aquelas súcias, que eram tradicionais na família.
Quando chegaram à casa, o amigo do Leonardo tomou as duas velhas de parte, e começou a conversar com elas, sem dúvida a respeito do Leonardo, pois que o olhavam todos três durante a conversa; e mesmo quem tivesse o ouvido atilado teria escutado às velhas estas palavras:
— Coitado do moço!...
— Ora vejam que pai de más entranhas!...
Outro qualquer que tivesse mais idade, ou antes, falando claro, mais juízo e outra educação, envergonhar-se-ia talvez muito de achar-se na posição em que se achava o Leonardo, porém ele nem nisso pensava, e o que é mais, nem mais pensava naquilo que até então lhe não saía da cabeça, isto é, em Luisinha de um lado e José Manuel do outro: agora não via senão os olhos negros e brilhantes, e os alvos dentes de Vidinha; não ouvia senão o eco da modinha que ela cantara. Estava pois embebido num êxtase contemplativo.
No mais pensaria quando lhe restasse tempo.
Mal se haviam todos sentado em uma larga esteira junto à soleira da porta sobre a calçada, o Leonardo propôs logo que se cantasse uma nova modinha.
— Qual... respondeu Vidinha acompanhando este qual da sua costumada risada; estou já tão cansada... que nem posso!
— Ora... ora... disseram umas poucas de vozes. Além do costume das risadas tinha Vidinha um outro, e era o de começar sempre tudo que tinha a dizer por um qual muito acentuado; respondeu ainda portanto:
— Qual... pois se eu também já cantei tudo que sabia. Qual, meu Deus! nem eu posso mais!
— Ainda não cantou a minha favorita, disse um dos presentes.
— Nem a minha, disse outro.
— Eu também, acrescentou outro, ainda não lhe pedi aquela cá do peito.
— Qual, meu Deus! onde é que isto vai parar!
— Ora, mana, não se faça de boa.
— Ai, criatura, disse uma das velhas, quereis que vos reze um responso para cantardes uma modinha?
Leonardo, vendo sua causa advogada por tantas vozes, conservou-se calado. Tentados mais alguns meios, e feitas mais algumas negaças, Vidinha decidiu-se, e tomando a viola cantou, segundo a indicação de uma das velhas, o seguinte:

    Duros ferros me prenderam
    No momento de te ver;
    Agora quero quebrá-los,
    É tarde não pode ser.

Este último passo acabou de desorientar completamente o Leonardo: ainda bem não tinham expirado as últimas notas do canto, e já, passando-lhe rápido pela mente um turbilhão de idéias, admirava-se ele de como é que havia podido inclinar-se por um só instante a Luisinha, menina sensaborona e esquisita, quando haviam no mundo mulheres como Vidinha.
Decididamente estava apaixonado por esta última.
O leitor não se deve admirar disto, pois não temos cessado de repetir-lhe que o Leonardo herdara de seu pai aquela grande cópia de fluido amoroso que era a sua principal característica. Com esta herança parece porém que tinha ele tido também uma outra, e era a de lhe sobrevir sempre uma contrariedade em casos semelhantes. José Manuel fora a primeira; vejamos agora qual era, ou antes quem era a segunda.
Se o leitor pensou no que há pouco dissemos, isto é, que naquela família haviam três primos e três primas, e se agora acrescentarmos que moravam todos juntos, deve ter cismado alguma coisa a respeito. Três primos e três primas, morando na mesma casa, todos moços... não há nada mais natural; um primo para cada prima, e está tudo arranjado. Cumpre porém ainda observar que o amigo do Leonardo tomara conta de uma das primas, e que deste modo vinha a haver três primos para duas primas, isto é, o excesso de um primo. À vista disto o negócio já se torna mais complicado. Pois para encurtar razão, saiba-se que haviam dois primos pretendentes a uma só prima, e essa era Vidinha, a mais bonita de todas; saiba-se mais que um era atendido e outro desprezado: logo, o amigo Leonardo terá desta vez de lutar com duas contrariedades em vez de uma.
Mas por ora de nada sabia ele, e entregava-se tranqüilo às suas emoções sem se lembrar do que qualquer se lembraria, que entre primos e primas há Assim um certo direito mútuo em negócio de amor, que muito prejudica a qualquer pretendente externo.
Gastaram grande parte da noite ali sentados, e trataram de recolher-se já muito tarde.
O amigo do Leonardo, a quem daqui em diante trataremos pelo seu próprio nome de Tomás com o apelido-da Sé-ambos herdados de seu pai, declarou que o seu amigo ficava ali por aquela noite, por já ser muito tarde; quis assim poupar-lhe um vexame, e mostrou nisto ser bom amigo.
Agora que o nosso Leonardo está instalado em quartel seguro, vamos ocupar-nos de alguma coisa de importante que havíamos deixado suspensa.

IX - José Manuel triunfa        
A comadre correra toda a cidade, e em parte alguma encontrara o Leonardo; enquanto cansava-se assim a procurá-lo, estava ele tranqüilo e descansado mirando-se nos olhos de Vidinha, regalando-se a ouvir modinhas, como sabem os leitores, sem se lembrar do que ia pelo mundo.
A pobre mulher, depois de muito cansada, foi ter à casa de D. Maria. Era já noite fechada.
Quando ela entrava saía o mestre-de-reza que acabava de dar a sua lição às crias de casa. A comadre há algum tempo que andava desconfiada do mestre-de-reza; combinando o que por aí se dizia do seu crédito com certas coisas que tivera ocasião de presenciar, estava quase a concluir que era ele emissário de José Manuel junto à corte de D. Maria. Não gostou portanto do encontro, e doeu-lhe o cabelo vê-lo sair àquela hora, pois que de ordinário as lições não se demoravam até tão tarde; e para metê-lo à bulha disse-lhe:
— A lição hoje foi comprida, devoto... as raparigas parece que gostam mais? da lambetice do que da reza.
— Não, respondeu o velho com sua voz fanhosa, elas não vão mal, empacam em alguns lugares, mas sempre vão indo; bem sabe também que sempre trago comigo o santo remédio.
E afagou o cabo da palmatória com que sempre andava armado.
— Ah! então esteve o devoto de conversa; gosta também de dar à língua...
— Não desgosto; mas também não digo senão aquilo que sei, isto é, aquilo que ouço; os outros gastam o seu tempo a ver e a ouvir; eu, como não posso senão ouvir, emprego a falar o que os mais empregam a ver; falo, e falo muito; mas que quer se me sobra tempo para isso; e demais, bem sabe que não é trabalho que canse. Meus pais eram Algarves, e eu não quero desmentir a minha paternidade.
— Então já sei que hoje desenterraram-se mortos e enterraram-se vivos; pois eu não posso fazer outro tanto, porque vou aqui muito e muito zangada de minha vida. Se o devoto, como é homem que muito gira por toda esta cidade, souber por aí notícias de meu afilhado Leonardo, queira vir dar-me parte, pois saiu-nos ele hoje de casa lá por causa de umas histórias, e não sei por onde andará dando com os ossos.
— Ora, isto fica por minha conta; não há nada mais fácil do que dar com ele.
E aqui terminou esta conversa que tinha lugar na porta da rua, e com a qual não ficara a comadre muito contente. D. Maria, que ouvira tudo, veio ao encontro da comadre, e foi-lhe logo dizendo antes de lhe dar tempo de tirar a mantilha:
— Então já o rapaz não está em casa? Senhora, aquilo é gênio, nasceu com ele, e com ele há de ir à sepultura. Bem me diziam o que ele era, e apesar do seu ar sonso nunca lhe fiz fé.
— Adeus que me está a senhora a pôr culpas em quem não as tem; o rapaz desta vez tem toda a razão...
— Ora, histórias da vida; isso diz você porque o estima como se fosse sua mãe; mas vá com esta que eu lhe digo: os rapazes de agora andam de cabeça levantada... Mas o defunto padrinho-Deus lhe fale n’alma,-foi o próprio que teve culpa de tudo isso com aquelas fumaças de Coimbra que lhe meteu na cabeça...
— Mas, senhora de Deus, se o bruto do pai até chegou a corrê-lo de espada na mão...
— Que tal não faria ele! mas que tinha isso? o pai não o havia esquartejar... por certo, que eu bem lhe conheço o gênio; aquilo era raiva, e havia de passar; devia ele sujeitar-se... sempre é seu pai.
— Com a Virgem Santa! pois se tudo isso foi por uma coisa de nada, por causa de uma almofada de renda... Isto é coisa em que se creia?!... E agora para onde é que há de ir aquele coitado?...
— Há de estar por aí metido em algum fado de ciganos; não se lembra do que ele fez quando o padrinho era vivo?
— Ora, criançadas... para que falar nisso?
Este diálogo ia continuando interminável sobre o mesmo assunto, quando D. Maria, mudando repentinamente de conversa, disse à comadre:
— Ora é verdade, sente-se para cá que temos contas que ajustar...
— Contas!...
— E muito compridas, começo por dizer, acrescentou D. Maria, que não parecia estar nesta ocasião de muito bom humor; começo por dizer-lhe mesmo na bochecha que quando for à confissão este ano trate de desobrigar-se de um grande pecado que cometeu.
— E eu que já não tenho poucos: mas então o que é?
— É um aleive, senhora, um aleive muito grande que levantou a pessoa que tal não merecia.
A comadre não precisou de mais nada para conhecer onde é que tudo aquilo ia parar; o aleive mais moderno de que a acusava a sua consciência bem sabia ela qual era. Começou a ver tudo claro como o dia; viu José Manuel justificado completamente aos olhos de D. Maria a respeito da história do roubo da moça no Oratório de Pedra, e viu também como medianeiro dessa justificação o cego mestre-de-reza. Ficou pois visivelmente incomodada; volvia-se de um para outro lado, como se estivesse cheia de espinhos a banquinha em que estava sentada, e teve um forte acesso de tosse quando D. Maria acabou de pronunciar aquelas últimas palavras.
— Tudo quanto me disse a respeito de José Manuel naquela história do roubo da moça, continuou D. Maria fazendo-se vermelha, o que era nela mau sinal, é falso, e muito falso. Sei isto de parte muito certa...
Novo acesso de tosse acometeu a comadre.
— Pois olhe, prosseguiu D. Maria, tinha eu dado todo o crédito, tanto que havia rompido por um excesso com o pobre do homem, mas não caio noutra; esta me serviu de emenda.
A comadre viu que o vento se lhe ia tornando absolutamente contrário; compreendeu que D. Maria estava muito bem informada, e que inútil seria qualquer sustentação que pretendesse fazer de tudo quanto havia avançado; isso só serviria para agravar-lhe a posição.
Forjou pois repentinamente um novo plano e disse:
— Não me dá nada de novo, senhora; sei muito bem de tudo; o homem está nesse negócio como Pilatos no Credo.
— Mas lembre-se que me havia dito que tinha visto com seus próprios olhos.
— Ah! senhora, era o diabo por ele; nunca vi coisa assim tão parecida. Outro dia porém soube de tudo, e agora estou arrependida.
— Mandei por isso chamar o pobre homem, continuou D. Maria, que de ofendido que estava com o modo por que eu o tratava custou muito a vir, e abri-me aqui com ele. E uma coisa lhe digo, é que a comadre não está bem no negócio; ele expôs-me certas coisas... a que eu enfim não quis dar crédito.
— Pois então a senhora disse-lhe que eu é que...
— Não fui eu quem lhe disse; ele já o sabia, e não era possível negar-lho. Foi então que ele me quis abrir os olhos sobre outros pontos...
A comadre, que via todo o caldo entornado naqueles outros pontos, tratava de desviar a conversação, fazendo que não dera atenção a essas últimas palavras.
— Mas então, perguntou, por quem foi que soube como tinha sido o negócio? quero ver se combina cá com o que sei.
— Ainda há pouco acabou de sair daqui quem me pôs o negócio todo em pratos limpos.
— Ah! disse a comadre.
E mordeu os beiços, fazendo um gesto que queria dizer: "nunca me enganei!"
D. Maria prosseguiu contando à comadre que tendo falado em semelhante negócio ao mestre-de-reza, ele lhe havia negado tudo quanto esta lhe dissera a respeito de José Manuel; que muito tempo lutara com o velho para que lhe dissesse o que sabia a respeito e em que fundava a denegação que fazia; que finalmente, depois de grande resistência, tinha-lhe ele trazido à casa, mesmo no dia antecedente, o pai da moça, que tudo confessara, declarando até o nome da pessoa com quem se achava sua filha, que ele já conhecia, e com quem tinha feito as pazes.
— É exatamente o que eu sabia, disse a comadre no fim da narração; foi tudo assim mesmo. Veja, senhora, a que está sujeita a gente nesta vida: a levantar falsos aos mais.
Agora informemos ao leitor que tudo que se acabava de passar tinha sido com efeito obra do mestre-de-reza. Pouco a pouco se tinha instruído do que se passava em casa de D. Maria a respeito do seu cliente José Manuel; tinha conseguido saber quem havia armado a intriga; indagou também o que se passava em casa de Leonardo-Pataca; e como lá se falava um pouco alto a respeito das pretensões de Leonardo, combinando umas coisas com outras, chegaram à conclusão certíssima daquilo que com efeito se passara.
D. Maria pareceu dar crédito ao arrependimento da comadre, e começou-lhe a aplacar o humor um pouco desabrido em que se achava.
Voltaram à questão da saída do Leonardo de casa, e desta vez já D. Maria não se mostrou tão inflexível para com o rapaz. Entretanto à comadre não lhe saíram da cabeça aquelas palavras de D. Maria: "abriu-me os olhos sobre outros pontos"; e depois que viu D. Maria mais apaziguada, tentou chamar de novo a conversa para esse ponto, e como que pedir explicações. Ela previa a significação daquelas palavras, sem dúvida nenhuma que se referiam às suas pretensões ou às de seu afilhado sobre Luisinha, porém queria saber as cores com que esse negócio tinha sido pintado a D. Maria por José Manuel.
Isso foi-lhe porém fatal, porque soube (o que lhe não foi nada agradável) que o negócio estava muito mal parado a respeito do seu afilhado, e pelo contrário muito adiantado a favor do seu adversário. D. Maria, depois de declarar que José Manuel se tinha queixado da comadre, atribuindo-lhe tudo que se havia passado, que não era mais do que uma intriga urdida com o fim de o apartar de sua casa, porque tinham sobre ele caído suspeitas, que confessava justas, acrescentou finalmente que José Manuel, completamente justificado, graças à intervenção do mestre-de-reza, acabara por lhe dar a entender alguma coisa a respeito de Luisinha, o que D. Maria confessou não lhe ter sido totalmente desagradável, porque enfim, segundo alegava, José Manuel era um homem sisudo e de juízo, tinha corrido mundo, e não era nenhuma criançola (esta palavra doeu à comadre) que não fosse capaz de tratar bem de uma moça. A comadre descoroçoou completamente com estas últimas declarações; porém o que fazer na ocasião? Ela mesma tinha há pouco confessado o risco em que se está a cada momento de ser injusto com o próximo, e não podia sem risco aventurar, pelo menos naquela ocasião, alguma coisa contra José Manuel, tanto mais que tão mal se havia saído da primeira intriga que armara. Contentou-se pois com repetir uma observação que D. Maria mesma lhe havia feito há pouco tempo, e disse, referindo-se a Luisinha:
— Gente, pois aquela criança já está para essas!...
— Sim, respondeu D. Maria, está ainda verdezinha, mas também isso não é sangria desatada.
A comadre respirou, pois viu que ainda havia tempo a ganhar.

X - O Agregado       
Passaram-se assim algumas semanas: Leonardo, depois de acabadas todas as cerimônias, foi declarado agregado à casa de Tomás da Sé, e aí continuou convenientemente arranjado. Ninguém se admire da facilidade com que se faziam semelhantes coisas; no tempo em que se passavam os fatos que vamos narrando nada havia mais comum do que ter cada casa um, dois e às vezes mais agregados.
Em certas casas os agregados eram muito úteis, porque a família tirava grande proveito de seus serviços, e já tivemos ocasião de dar exemplo disso quando contamos a história do finado padrinho de Leonardo; outras vezes porém, e estas eram em maior número, o agregado, refinado vadio, era uma verdadeira parasita que se prendia à árvore familiar, que lhe participava da seiva sem ajudá-la a dar os frutos, e o que é mais ainda, chegava mesmo a dar cabo dela. E o caso é que, apesar de tudo, se na primeira hipótese o esmagavam com o peso de mil exigências, se lhe batiam a cada passo com os favores na cara, se o filho mais velho da casa, por exemplo, o tomava por seu divertimento, e à menor e mais justa queixa saltavam-lhe os pais em cima tomando o partido de seu filho, no segundo aturavam quanto desconcerto havia com paciência de mártir, o agregado tornava-se quase rei em casa, punha, dispunha, castigava os escravos, ralhava com os filhos, intervinha enfim nos mais particulares negócios.
Em qual dos dois casos estava ou viria estar em breve o nosso amigo Leonardo? O leitor que o decida pelo que se vai passar.
Principiemos por declarar que as duas velhas irmãs tinham concedido desde o primeiro momento uma decidida simpatia por ele, e era esse o único ponto por onde o podemos julgar um pouco feliz: se a cada passo encontrava contrariedades e antipatias, também lhe não faltavam por contrabalanço simpatias e favores. Isto já era meio caminho andado para qualquer projeto que ele formasse, qualquer intenção que tivesse ou desejo que se lhe despertasse. Mas note-se que para não falhar a lei das compensações, que pesava constantemente sobre ele, logo o projeto, a intenção e desejo que teve sucedeu ser a respeito de uma coisa que já tinha despertado igual projeto, intenção e desejo em duas outras pessoas, o que equivale a dizer-se, como já o fizemos, que tinha ele de lutar com duas dificuldades.
Vidinha era uma rapariga que tinha tanto de bonita como de movediça e leve: um soprozinho, por brando que fosse, a fazia voar, outro de igual natureza a fazia revoar, e voava e revoava na direção de quantos sopros por ela passassem; isto quer dizer, em linguagem chã e despida dos trejeitos da retórica, que ela era uma formidável namoradeira, como hoje se diz, para não dizer lambeta, como se dizia naquele tempo. Portanto não foram de modo algum mal recebidas as primeiras finezas do Leonardo, que desta vez se tornou muito mais desembaraçado, quer porque já o negócio com Luisinha o tivesse desasnado, quer porque agora fosse a paixão mais forte, embora esta última hipótese vá de encontro à opinião dos ultra-românticos, que põem todos os bofes pela boca, pelo tal-primeiro amor:-no exemplo que nos dá o Leonardo aprendam o quanto ele tem de duradouro. Se um dos primos de Vidinha, que dissemos ser o atendido naquela ocasião, teve motivo para levantar-se contra o Leonardo como seu rival, o outro primo, que dissemos ser o desatendido, teve dobrada razão para isso, porque além do irmão apresentava-se o Leonardo como segundo concorrente, e o furor de quem se defende contra dois é, ou deve ser sem dúvida, muito maior do que o de quem se defende contra um. Declarou-se portanto, desde que começaram a aparecer os sintomas do quer que fosse entre Vidinha e o nosso hóspede, guerra de dois contra um, ou de um contra dois. A princípio, foi ela surda e muda; era guerra de olhares, de gestos, de desfeitas, de más caras, de maus modos de uns para com os outros; depois, seguindo o adiantamento do Leonardo, passou a ditérios, a chasques, a remoques. Um dia finalmente desandou em descompostura cerrada, em ameaças do tamanho da torre de Babel, e foi causa disto ter um dos primos pilhado o feliz Leonardo em flagrante gozo de uma primícia amorosa, um abraço que no quintal trocava ele com Vidinha.
— Aí está, minha tia, dissera enfurecido o rapaz dirigindo-se à mãe de Vidinha; ai está o lucro que se tira de meter-se para dentro de casa um par de pernas que não pertence à família...
— Onde é, onde é que está pegando fogo? disse a velha em tom de escárnio, supondo ser alguma asneira do rapaz, que era em tudo muito exagerado.
— Fogo, replicou este; se ali pegar fogo não haverá água que o apague... e olhe o que lhe digo, se não está pegando fogo... está-se ajuntando lenha para isso.
Vidinha, que vinha chegando nessa ocasião, tomou a palavra e falou durante meia hora sem interrupção, soltando contra os dois primos (pois que o outro já tinha também intervindo) uma tremenda catilinária em que a palavra-qual-foi repetida enorme número de vezes. Leonardo teve também de defender-se, e falou pelos cotovelos. As duas velhas acompanharam aos quatro seguidas das outras duas moças, que metiam também de vez em quando a sua colherada.
Seria inútil a tentativa de querermos repetir as palavras textuais de cada um dos faladores; isso seria coisa pouco mais ou menos semelhante a querer contar-se numa tempestade os pingos de chuva que caem. Só quem já teve ocasião de assistir pode bem avaliar o que era e talvez ainda é uma dessas brigas no interior de uma família. Todos falam a um tempo, esforçando-se cada um por falar mais alto do que todos os outros; ninguém parece atender às desculpas que se apresentam, nem às recriminações que se fazem, e entretanto de minuto em minuto cada qual tomando mais calor, se julga dobradamente ofendido; as juras se cruzam, as ameaças se chocam; não fica no dicionário termozinho de escolha que não saia à frente; umas questões trazem outras, estas ainda outras; recorre-se às ofensas passadas, presentes e futuras para fazer-se carga aos adversários. Tudo enfim se diz, e nada se consegue; a briga dura muitas horas, ao termo das quais os contendores, fatigatis sed non saciatis, abandonam o campo, ficando mais encarniçados uns contra os outros do que o estavam a princípio. E se por acaso, tocando já em retirada, algum ousa ainda soltar uma derradeira imprecação, pega de novo a coisa, e dura ainda bom pedaço. As mais das vezes fica tudo em palavras.
Desta vez porém não sucedeu assim: um dos primos, que era esquentadete, avançou para o Leonardo depois de lhe ter mandado, como batedor, uma grande injúria, e deu-lhe dois safanões, agarrando-o pela gola da camisa. Leonardo, que neste mundo só tinha medo do pai, reagiu contra o agressor; as duas velhas e Vidinha, tentando apartá-los, não faziam mais do que romper-lhes a roupa e aumentar-lhes a raiva; as demais pessoas ocupavam-se em bater nas paredes e chamar os vizinhos. Lutaram os dois por algum tempo sem que disso resultasse acidente grave para nenhum deles, e afinal apartaram-se. Leonardo, apenas se viu livre do seu adversário, foi querendo pôr-se no andar da rua: pesava sobre o infeliz desde criança uma espécie de sina de Judeu Errante. As velhas, que em todo o barulho tinham tomado o partido dele, não consentiram porém nisso; alegaram que estavam em sua casa, e podiam mandar como quisessem. Leonardo insistiu apesar disso e apesar dos rogos de Vidinha; porém no momento em que tentava abrir a porta da rua, entrou por ela a comadre.
— Ora graças que o encontro, senhor doido de pedras...
O Leonardo recuou dois passos: naquele momento, assim como lhe aconteceu desde que saiu de casa de seu pai, nem lhe passava pela idéia que tivesse no mundo uma madrinha, um pai, ou qualquer parente que fosse. Houve em todos um movimento de admiração e curiosidade, pois ninguém na casa conhecia a comadre.
Tantas coisas havia feito a boa mulher, que afinal soubera do ninho a que se acolhera o afilhado, e imediatamente para lá se dirigira. Tendo entrado e dito aquelas primeiras palavras, queria logo depois seguir com uma grande exortação ao sobrinho, quando, tendo visto as duas velhas, assentou que era melhor dirigir-se a elas em primeiro lugar. Com efeito dirigiu-se, e entraram as três em conferência.

Wednesday, 8 January 2020

General Audience by Pope Benedict XVI (translated into Portuguese by unknown translator)


Em minha audiência anterior apresentei a figura luminosa de Francisco de Assis, e hoje gostaria de vos falar de outro santo que, na mesma época, ofereceu uma contribuição fundamental para a renovação da Igreja do seu tempo. Trata-se de São Domingos, fundador da Ordem dos Pregadores, também conhecidos como Padres Pregadores.
O seu sucessor na orientação da Ordem, Beato Jordão da Saxônia, oferece um retrato completo de São Domingos no texto de uma oração famosa: “Inflamado de zelo por Deus e de ardor sobrenatural, pela tua caridade sem confins e o fervor do espírito veemente, consagraste-te inteiramente com o voto da pobreza perpétua à observância apostólica e à pregação evangélica”. É ressaltada precisamente esta característica fundamental do testemunho de Domingos: ele falava sempre com Deus e de Deus. Na vida dos santos, o amor pelo Senhor e pelo próximo, a busca da glória de Deus e da salvação das almas caminham sempre juntos.
Domingos nasceu em Caleruega, na Espanha, por volta de 1170. Pertencia a uma nobre família da Velha Castela e, ajudado por um tio sacerdote, formou-se numa célebre escola de Palência. Distinguiu-se imediatamente pelo interesse no estudo da Sagrada Escritura e pelo amor aos pobres, a tal ponto que chegou a vender os livros, que na sua época constituíam um bem de grande valor, para socorrer com o lucro as vítimas de uma carestia.
Tendo sido ordenado sacerdote, foi eleito cônego do cabido da Catedral na sua Diocese de origem, Osma. Embora essa nomeação pudesse representar para ele algum motivo de prestígio na Igreja e na sociedade, ele não a interpretou como um privilégio pessoal nem como o início de uma carreira eclesiástica brilhante, mas como um serviço a prestar com dedicação e humildade.
Não é porventura uma tentação –, a da carreira, do poder –, uma tentação da qual não estão imunes nem sequer aqueles que desempenham um papel de animação e de governo na Igreja? Recordei-o há alguns meses, durante a consagração de alguns Bispos: “Não procuremos o poder, o prestígio e a estima para nós mesmos... Sabemos como as coisas na sociedade civil e, com frequência, também na Igreja, sofrem pelo fato de que muitos deles, aos quais foi conferida uma responsabilidade, trabalham para si mesmos e não para a comunidade” (Homilia durante a Capela Papal para a Ordenação episcopal de cinco Excelentíssimos Prelados, 12 de setembro de 2009).
O Bispo de Osma, que se chamava Diogo, um pastor verdadeiro e zeloso, observou depressa as qualidades espirituais de Domingos, e quis valer-se da sua colaboração. Juntos, partiram para o Norte da Europa a fim de realizar missões diplomáticas que lhes eram confiadas pelo rei de Castela. Viajando, Domingos descobriu dois desafios enormes para a Igreja do seu tempo: a existência de povos ainda não evangelizados, nas extremidades setentrionais do continente europeu, e a laceração religiosa que debilitava a vida cristã no Sul da França, onde a ação de alguns grupos heréticos criava confusão e o afastamento da verdade da fé.
A ação missionária a favor daqueles que não conheciam a luz do Evangelho e a obra de reevangelização das comunidades cristãs tornaram-se, assim, as metas apostólicas que Domingos se propôs alcançar. O Papa, a quem o Bispo Diogo e Domingos visitaram para pedir conselho, pediu a este último que se dedicasse à pregação aos Albigenses, um grupo herético que defendia uma concepção dualista da realidade, ou seja, com dois princípios criadores igualmente poderosos, o Bem e o Mal. Por conseguinte, esse grupo desprezava a matéria como proveniente do princípio do mal, rejeitando até o matrimônio, chegando mesmo a negar a Encarnação de Cristo, os Sacramentos em que o Senhor nos “toca” através da matéria e a Ressurreição dos corpos. Os Albigenses apreciavam a vida pobre e austera – nesse sentido, eram exemplares – e criticavam a riqueza do Clero daquela época.
Domingos aceitou com entusiasmo essa missão, que realizou precisamente com o exemplo da sua existência pobre e austera, com a pregação do Evangelho e com debates públicos. A esta missão de pregar a Boa Nova ele dedicou o resto de sua vida. Os seus filhos teriam realizado inclusive os outros sonhos de São Domingos: a missão ad gentes, ou seja, àqueles que ainda não conheciam Jesus, e a missão àqueles que viviam nas cidades, sobretudo nas universitárias, onde as novas tendências intelectuais eram um desafio para a fé dos cultos.
Este grande santo recorda-nos que no coração da Igreja deve sempre arder um fogo missionário, que impele incessantemente a fazer o primeiro anúncio do Evangelho e, onde for necessário, a uma nova evangelização: com efeito, Cristo é o bem mais precioso que os homens e mulheres de todos os tempos e lugares têm o direito de conhecer e de amar! E é consolador ver que até na Igreja de hoje são muitos – pastores e fiéis leigos, membros de antigas ordens religiosas e de novos movimentos eclesiais – que com alegria despendem a sua vida por este ideal supremo: anunciar e testemunhar o Evangelho!
Depois, a Domingos de Gusmão uniram-se outros homens atraídos pela mesma aspiração. Deste modo, progressivamente, da primeira fundação de Toulouse teve origem a Ordem dos Pregadores. Com efeito, Domingos, em plena sintonia com as diretrizes dos Papas do seu tempo, Inocêncio III e Honório III, adotou a antiga Regra de Santo Agostinho, adaptando-a às exigências de vida apostólica que o levaram, bem como aos seus companheiros, a pregar, passando de um lugar para outro, mas depois voltando aos próprios conventos, lugares de estudo, oração e vida comunitária. De modo particular, Domingos quis dar relevo a dois valores considerados indispensáveis para o bom êxito da missão evangelizadora: a vida comunitária na pobreza e o estudo.
Antes de tudo, Domingos e os Padres Pregadores apresentavam-se como mendicantes, isto é, sem vastas propriedades de terrenos para administrar. Esse elemento tornava-os mais disponíveis ao estudo e à pregação itinerante, e constituía um testemunho concreto para as pessoas. O governo interno dos conventos e das províncias dominicanas estruturou-se segundo o sistema de cabidos, que elegiam os seus próprios Superiores, sucessivamente confirmados pelos Superiores maiores; portanto, uma organização que estimulava a vida fraterna e a responsabilidade de todos os membros da comunidade, exigindo fortes convicções pessoais.
A escolha desse sistema nascia precisamente do fato que os Dominicanos, como pregadores da verdade de Deus, tinham que ser coerentes com tudo quanto anunciavam. A verdade estudada e compartilhada na caridade com os irmãos constitui o fundamento mais profundo da alegria. O Beato Jordão da Saxônia diz de São Domingos:

    Ele acolhia cada homem no grande seio da caridade e, dado que amava a todos, todos o amavam. Fez para si uma lei pessoal de se alegrar com as pessoas felizes e de chorar com aqueles que choravam”. (Libellus de principiis Ordinis Praedicatorum autore Iordano de Saxonia, ed. H. C. Scheeben [Monumenta Historica Sancti Patris Nostri Dominici, Romae, 1935])

Em segundo lugar, com um gesto intrépido, Domingos quis que seus seguidores adquirissem uma formação teológica sólida e não hesitou em enviá-los às Universidades dessa época, embora não poucos eclesiásticos vissem com desconfiança tais instituições culturais. As Constituições da Ordem dos Pregadores atribuem muita importância ao estudo como preparação para o apostolado. Domingos queria que os seus Padres se dedicassem a isto sem poupar esforços, com diligência e piedade; um estudo fundado na alma de todo o saber teológico, ou seja, na Sagrada Escritura, e respeitador das interrogações formuladas pela razão.
O desenvolvimento da cultura impõe àqueles que desempenham o ministério da Palavra, em vários níveis, que sejam bem preparados. Portanto, exorto a todos, pastores e leigos, a cultivar essa “dimensão cultural” da fé, a fim de que a beleza da verdade cristã possa ser melhor compreendida e a fé seja verdadeiramente alimentada, fortalecida e também defendida. Neste Ano sacerdotal, convido os seminaristas e os sacerdotes a estimar o valor espiritual do estudo. A qualidade do ministério sacerdotal depende também da generosidade com que [o sacerdote] se aplica ao estudo das verdades reveladas.
Domingos, que quis fundar uma Ordem religiosa de pregadores-teólogos, lembra-nos que a Teologia tem uma dimensão espiritual e pastoral, que enriquece a alma e a vida. Os presbíteros, os consagrados e também todos os fiéis podem encontrar uma profunda “alegria interior” na contemplação da beleza da verdade que vem de Deus, verdade sempre atual e viva. O lema dos Padres Pregadores – contemplata aliis tradere – ajuda-nos a descobrir, além disso, um anseio pastoral no estudo contemplativo de tal verdade, pela exigência de comunicar aos outros o fruto da própria contemplação.
Quando Domingos faleceu, em 1221 em Bolonha, cidade que o declarou padroeiro, a sua obra já tinha alcançado grande sucesso. A Ordem dos Pregadores, com o apoio da Santa Sé, difundiu-se em muitos países da Europa, em benefício da Igreja inteira. Domingos foi canonizado em 1234, e é ele mesmo que, com a sua santidade, nos indica dois meios indispensáveis a fim de que ação apostólica seja incisiva.
Em primeiro lugar, a devoção mariana, que ele cultivou com ternura e deixou como herança preciosa aos seus filhos espirituais, que na história da Igreja tiveram o grande mérito de difundir a recitação do santo Rosário, tão querida ao povo cristão e tão rica de valores evangélicos, uma autêntica escola de fé e de piedade.
Em segundo lugar, Domingos, que assumiu o cuidado de alguns mosteiros femininos na França e em Roma, acreditou até ao fundo no valor da oração de intercessão pelo bom êxito do afã apostólico. Só no Paraíso compreenderemos quão eficazmente a oração das irmãs claustrais acompanham a obra apostólica! A cada uma delas dirijo o meu pensamento grato e carinhoso.
Estimados irmãos e irmãs, a vida de Domingos de Gusmão estimule todos nós a sermos fervorosos na oração, corajosos na vivência da fé e profundamente apaixonados por Jesus Cristo! Por sua intercessão, peçamos a Deus que enriqueça sempre a Igreja com autênticos pregadores do Evangelho.

Vaticano, quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010.