Saturday, 25 January 2020

"Quo Primum Tempore" by Pope Pius V (translated into Portuguese)


Pio Bispo
Servo dos Servos de Deus

Para perpétua memória

1 - Desde que fomos elevados ao ápice da Hierarquia Apostólica, de bom grado aplicamos nosso zelo e nossas forças e dirigimos todos os nossos pensamentos no sentido de conservar na sua pureza tudo o que diz respeito ao culto da Igreja; o que nos esforçamos por preparar e, com a ajuda de Deus, realizar com todo o cuidado possível.
2 - Ora, entre outros decretos do Santo Concílio de Trento cabia-nos estabelecer a edição e correção dos livros santos: Catecismo, Missal e Breviário.
3 - Com a graça de Deus, já foi publicado o Catecismo, destinado à instrução do povo, e corrigido o Breviário, para que se tributem a Deus os devidos louvores. Outrossim, para que ao Breviário correspondesse o Missal, como é justo e conveniente (já que é soberanamente oportuno que, na Igreja de Deus, haja uma só maneira de salmodiar e um só rito para celebrar a Missa), parecia-nos necessário providenciar, o mais cedo possível, o restante desta tarefa, ou seja, a edição do Missal.
4 - Para tanto, julgamos dever confiar este trabalho a uma comissão de homens eruditos. Estes começaram por cotejar cuidadosamente todos os textos com os antigos de nossa Biblioteca Vaticana e com outros, quer corrigidos, quer sem alteração, que foram requisitados de toda parte. Depois, tendo consultado os escritos dos antigos e de autores aprovados, que nos deixaram documentos relativos à organização destes mesmos ritos, eles restituíram o Missal propriamente dito à norma e ao rito dos Santos Padres.
5 - Este Missal assim revisto e corrigido, Nós, após madura reflexão, mandamos que seja impresso e publicado em Roma, a fim de que todos possam tirar os frutos desta disposição e do trabalho empreendido, de tal sorte que os padres saibam de que preces devem servir-se e quais os ritos, quais as cerimônias, que devem observar doravante na celebração das Missas.
6 - E a fim de que todos, e em todos os lugares, adotem e observem as tradições da Santa Igreja Romana, Mãe e Mestra de todas as Igrejas, decretamos e ordenamos que a Missa, no futuro e para sempre, não seja cantada nem rezada de modo diferente do que esta, conforme o Missal publicado por Nós, em todas as Igrejas: nas Igrejas Patriarcais, Catedrais, Colegiais, Paroquiais, quer seculares quer regulares, de qualquer Ordem ou Mosteiro que seja, de homens ou de mulheres, inclusive os das Ordens Militares, igualmente nas Igrejas ou Capelas sem encargo de almas nas quais a Missa conventual deve, segundo o direito ou por costume, ser celebrada em voz alta com coro, ou em voz baixa, segundo o rito da Igreja Romana, ainda quando estas mesmas Igrejas, de qualquer modo isentas, estejam munidas de um indulto da Sé Apostólica, de costume, de um privilégio, até de um juramento, de uma confirmação apostólica ou de quaisquer outras espécies de faculdades. A não ser que, ou por uma instituição aprovada desde a origem pela Sé Apostólica, ou então em virtude de um costume, a celebração destas Missas nessas mesmas Igrejas tenha um uso ininterrupto superior a 200 anos.A estas Igrejas Nós, de maneira nenhuma, suprimimos nem a referida instituição, nem seu costume de celebrar a Missa; mas, se este Missal que acabamos de editar lhes agrada mais, com o consentimento do Bispo ou do Prelado, junto com o de todo Capítulo, concedemos-lhes a permissão, não obstante quaisquer disposições em contrário, de poder celebrar a Missa segundo este Missal.
7 - Quanto a todas as outras sobreditas Igrejas, por Nossa presente Constituição, que será valida para sempre, Nós decretamos e ordenamos, sob pena de nossa indignação, que o uso de seus missais próprios seja supresso e sejam eles radical e totalmente rejeitados; e, quanto ao Nosso presente Missal recentemente publicado, nada jamais lhe deverá ser acrescentado, nem supresso, nem modificado. Ordenamos a todos e a cada um dos Patriarcas, Administradores das referidas Igrejas, bem como a todas as outras pessoas revestidas de alguma dignidade eclesiástica, mesmo Cardeais da Santa Igreja Romana, ou dotados de qualquer outro grau ou preeminência, e em nome da santa obediência, rigorosamente prescrevemos que todas as outras práticas, todos os outros ritos, sem exceção, de outros missais, por mais antigos que sejam, observados por costume até o presente, sejam por eles absolutamente abandonados para o futuro e totalmente rejeitados; cantem ou rezem a Missa segundo o rito, o modo e a norma por Nós indicados no presente Missal, e na celebração da Missa, não tenha a audácia de acrescentar outras cerimônias nem de recitar outras orações senão as que estão contidas neste Missal.
8 - Além disso, em virtude de Nossa Autoridade Apostólica, pelo teor da presente Bula, concedemos e damos o indulto seguinte: que, doravante, para cantar ou rezar a Missa em qualquer Igreja, se possa, sem restrição seguir este Missal com permissão e poder de usá-lo livre e licitamente, sem nenhum escrúpulo de consciência e sem que se possa encorrer em nenhuma pena, sentença e censura, e isto para sempre.
9 - Da mesma forma decretamos e declaramos que os Prelados, Administradores, Cônegos, Capelães e todos os outros Padres seculares, designados com qualquer denominação, ou Regulares, de qualquer Ordem, não sejam obrigados a celebrar a Missa de outro modo que o por Nós ordenado; nem sejam coagidos e forçados, por quem quer que seja, a modificar o presente Missal, e a presente Bula não poderá jamais, em tempo algum, ser revogada nem modificada, mas permanecerá sempre firme e válida, em toda a sua força.
10 - Não obstante todas as decisões e costumes contrários anteriores, de qualquer espécie: Constituições e Ordenações Apostólicas, ou Constituições e Ordenações, tanto gerais como especiais, publicadas em Concílios Provinciais e Sinodais; não obstante também o uso das Igrejas acima enumeradas, ainda que autorizado por uma prescrição bastante longa e imemorial, mas que não remonte a mais de 200 anos.
11 -Queremos e, pela mesma autoridade, decretamos que, depois da publicação de Nossa presente Constituição e deste Missal, todos os padres sejam obrigados a cantar ou celebrar a Missa de acordo com ele: os que estão na Cúria Romana, após um mês; os que habitam aquém dos Alpes, dentro de três meses; e os que habitam além das montanhas, após seis meses ou assim que encontrem este Missal à venda.
12 - E para que em todos os lugares da Terra este Missal seja conservado sem corrupção e isento de incorreções e erros, por nossa Autoridade Apostólica e em virtude das presentes, proibimos a todos os impressores domiciliados nos lugares submetidos, direta ou indiretamente, à Nossa autoridade e à Santa Igreja Romana, sob pena de confiscação dos livros e de uma multa de 200 ducados de ouro, pagáveis à Câmara Apostólica, bem como aos outros domiciliados em qualquer outro lugar do mundo, sob pena de excomunhão ipso facto e de outras penas a Nosso alvitre, se arroguem, por temerária audácia, o direito de imprimir, oferecer ou aceitar esta Missa, de qualquer maneira, sem nossa permissão, ou sem uma licença especial de um Comissário Apostólico por Nós estabelecido, para estes casos, nos países interessados, e sem que antes, este Comissário ateste plenamente que confrontou com o Missal impresso em Roma, segundo a impressão típica, um exemplar do Missal destinado ao mesmo impressor, que lhe sirva de modelo para imprimir os outros, e que este concorda com aquele e dele não difere absolutamente em nada.
13 - E como seria difícil transmitir a presente Bula a todos os lugares do mundo cristão e leva-la imediatamente ao conhecimento de todos, ordenamos que, segundo o costume, ela seja publicada e afixada às portas da Basílica do Príncipe dos Apóstolos e da Chancelaria Apostólica, bem como no Campo de Flora. Ordenamos igualmente que aos exemplares mesmo impressos desta Bula, subscritos pela mão de um tabelião público e munidos, outrossim, do Selo de uma pessoa constituída em dignidade eclesiástica, seja dada, no mundo inteiro, a mesma fé inquebrantável que se daria à presente, caso mostrada ou exibida.
14 - Assim, portanto, que a ninguém absolutamente seja permitido infringir ou, por temerária audácia, se opor à presente disposição de nossa permissão, estatuto, ordenação, mandato, preceito, concessão, indulto, declaração, vontade, decreto e proibição.
Se alguém, contudo, tiver a audácia de atentar contra estas disposições, saiba que incorrerá na indignação de Deus Todo-poderoso e de seus bemaventurados Apóstolos Pedro e Paulo.

Dado em Roma perto de São Pedro, no ano da Encarnação do Senhor mil quinhentos e setenta, no dia 14 de Julho, quinto de Nosso Pontificado - Pio Papa V.

Friday, 24 January 2020

Friday's Sung Word: "Rasguei a Minha Fantasia" by Lamartine Babo (in Portuguese)

Rasguei a minha fantasia
O meu palhaço
Cheio de laço e balão
Rasguei a minha fantasia
Guardei os guizos no meu coração

Fiz palhaçada
O ano inteiro sem parar
Dei gargalhada,
Com tristeza no olhar
A vida é assim...
A vida é assim...
O pranto é livre,
Eu vou desabafar

Tentei chorar,
Ninguém no choro acreditou
Tentei amar,
E o amor não chegou
A vida é assim...
A vida é assim...
Comprei uma fantasia de pierrô




You can hear "Rasguei a Minha Fantasia" sung by Mário Reis with the Demônios do Céu band here.

Thursday, 23 January 2020

Thursday's Serial: "Memórias de um Sargento de Milícias" by Manuel Antônio de Almeida (in Portuguese) - IX


XVII - Fogo de palha      
Deixemos o Leonardo seguindo seu destino acompanhado do major Vidigal, e vamos ver o que se passou na ucharia depois de sua prisão. Vidinha indagou aqui, indagou ali, e lá entrou como um raio pela casa do toma-largura. A moça do caldo, achando-se nessa ocasião descuidada, sofreu um grande susto com a chegada de Vidinha, que, conhecendo por instinto ser aquela a causa de seus males, foi largando a mantilha sobre uma cadeira e investindo para ela.
— Venho aqui, disse, para lhe dizer mesmo na cara que vm.cê é uma criatura sem sentimentos...
A moça, não podendo atinar com a significação daquilo, ficou pasma e sem saber o que havia de responder.
Vidinha prosseguiu:
— Não tem sentimentos, digo-lho, e ninguém me há de desdizer.
— Vamos ver que diabo de história é esta, bradou uma voz de estentor.
Era o toma-largura que, achando-se em casa naquela ocasião, e tendo ouvido as duas primeiras apóstrofes de Vidinha, chegava para dar fé do que se passava.
Por mais arrogante que fosse a voz do toma-largura, e por mais ameaçadora que fosse a sua figura quase hercúlea, Vidinha não recuou um passo, não desfez uma ruga da testa, antes pareceu mostrar que a sua presença ali favorecia suas intenções; tanto que dirigindo-se a ele o foi logo apostrofando também pela seguinte maneira:
— É vm.cê um homem que eu não sei para que traz barbas nessa cara...
A surpresa, e mesmo também a figura de Vidinha, descomposta pela raiva, desarmaram-no um pouco; e respondeu mais mansamente:
— Então, menina, veio aqui só para dizer coisas assim tão bonitas? Quem a trouxe cá?
— Ora, quem me havia de trazer? respondeu Vidinha em tom de mofa, lançando para a terceira personagem desta cena um olhar significativo; ora, quem me havia de trazer?... Qual!... eu vim só ver se podia tomar um caldo!...
A moça do toma-largura empalideceu, este regalou os olhos, e abanou com a cabeça como quem dizia-entendo,-e quis ficar imediatamente muito zangado com a recordação daquele fato, que a humildade de sua companheira, e talvez mesmo o seu humor, tinha feito esquecer. Vidinha porém para dizer aquelas últimas palavras tinha serenado um pouco o seu semblante, e ganhara muito em seus encantos desfigurados até então pela raiva; além disso, ao pronunciar o-qual-do costume, descerrara um ligeiro sorriso, deixando ver seus magníficos dentes.
O toma-largura parecia pertencer talvez à família dos Leonardos; enterneceu-se imediatamente, e não teve animo senão de sorrir-se e responder em tom desconcertado:
— Ora!...
— Ora, replicou Vidinha; e então, ele não diz-ora?-Qual! é preciso não ter pinga de vergonha: estas duas criaturas nasceram uma para a outra: Deus os fez e o diabo os ajuntou; uma toma caldo e o outro diz-ora...
E foi tomando a mantilha e tratando de sair.
Dera tudo em fogo de palha. Ela tinha esperado achar respostas enérgicas às suas invectivas, e neste pressuposto concertara mil planos de ataque, de defesa, de gritaria, de pancadas, de prisões, etc. Nada disto porém tinha sucedido, e sem saber por quê, ela mesma se sentia um pouco aliviada, quase até mesmo satisfeita. Deu mais rajadas aos dois; explicou quem era, mas não disse o que queria. Afinal, sem nada ter feito saiu dizendo:
— Ah! pensavam que a coisa havia de ficar assim? Disse-lhe poucas, porém boas...
O coração da mulher é assim; parece feito de palha, incendeia-se com facilidade, produz muita fumaça, mas em cinco minutos é tudo cinza que o mais leve sopro espalha e desvanece.
O toma-largura, apenas a viu sair, em vez de prorromper numa matinada contra sua companheira, como ela o esperava, pálida e trêmula, mostrou-se até tranqüilo, pretextou um afazer, e saiu também imediatamente. Andava-lhe na cabeça um plano cuja realização faria, como se costuma dizer, cair a sopa no mel. Vidinha tinha-o encantado; o Leonardo o havia ofendido; conquistar ainda que fosse uma diminuta parcela do amor da Vidinha, seria ao mesmo tempo vingar-se do Leonardo e alcançar o triunfo de um desejo. Por mais impossível que lhe parecesse o negócio, nem por isso esmoreceu; era tenaz e paciente.
Chegando ao portão da ucharia indagou da sentinela a direção que Vidinha tinha tomado, seguiu por ela, e em breve alcançou-a: acompanhou-a de longe para saber-lhe da morada, e viu-a entrar em casa.

XVIII - Represálias          
Quando Vidinha chegou à casa achou ainda toda a família no maior susto e confusão pelo desatino que ela acabava de praticar: as duas velhas, ao vê-la entrar, lançaram-se-lhe ao pescoço, e cobriram-na de abraços, de beijos e de lágrimas. Ela estava ainda porém sob a influência das emoções violentas por que acabava de passar, e não pôde corresponder àquelas provas de amizade; atirou-se sobre uma banquinha, e levou algum tempo calada, sem dar a menor resposta às mil perguntas que lhe eram dirigidas. Esse silêncio mais aumentava a ansiedade da família: finalmente resolveu-se ela a rompê-lo, exclamando:
— Pensavam que o caso havia de ficar assim? enganaram-se... Qual!... eu quero que fiquem sabendo para quanto presto...
— Então, rapariga, foste fazer alguma asneira...
— Asneira... qual... fiz o que faz qualquer mulher que tem sangue na guelra... E agora venha ele para cá, que temos ainda contas a ajustar...
— É verdade, e ele que ainda não veio... já tinha tempo de chegar, pois partiu logo no vosso alcance...
— É verdade... acrescentou Vidinha com certo susto; na tal cova da ucharia não entrou ele; e quando de lá saí não o vi mais...
— Não lhe vá ter sucedido alguma coisa!... O major o jurou!...
— O major!... repetiram todas com os sinais do mais visível susto.
E levantou-se de novo em casa a confusão, porque, como os leitores terão visto, apesar dos dissabores que o Leonardo causava àquela família, todos ali, exceto os dois primos rivais, queriam-lhe muito e muito bem. Falar a qualquer dos dois primos para que o fossem procurar, era coisa de que ninguém se lembrava, tão certos estavam que eles se haviam recusar. Tiveram pois de esperar que chegasse da rua o antigo sacristão da Sé para darem as providências precisas.
Os leitores terão talvez estranhado que em tudo quanto se tem passado em casa da família, de Vidinha não tenhamos falado nesta última personagem; temo-lo feito de propósito, para dar assim a entender que em nada disso tem ele tomado parte alguma.
Causa remota e primordial de todos estes acontecimentos, pois foi em conseqüência de sua amizade que o Leonardo se juntou à família, por muito feliz se tem dado em que não tenham caído sobre ele inculpações de que com dificuldade se poderia defender; homem de tato, conservara uma posição absolutamente neutral em todas aquelas lutas. Eis aqui pois qual a causa do nosso silêncio sobre ele.
Infelizmente naquela noite recolheu-se mais tarde que de costume, e quando chegou já não era tempo de fazer coisa alguma. Toda a família, passou a noite na maior ansiedade, desvanecidas de certa hora em diante as esperanças de ver chegar o Leonardo a cada momento. Ninguém duvidava mais que alguma coisa tivesse sucedido ao Leonardo, e nos quadros medonhos que cada qual imaginava, a figura do major Vidigal aparecia sempre em primeiro plano; ninguém também duvidava que no quer que fosse que houvesse sucedido ao Leonardo, o major teria por força parte ativa e importante, senão principal.
Assim ao amanhecer do dia seguinte o primeiro lugar onde mandaram saber dele foi na casa da guarda. Mas, com surpresa geral, ele não se achava nela, nem sabiam notícias suas; procurou-se em diversos outros pontos, e nada de novo, nem novas nem mandados. Por lembrança de Vidinha foram procurar a comadre, e informaram-na de todo o ocorrido: a pobre mulher, que tudo ignorava, pôs as mãos na cabeça:
— Aquele rapaz nasceu em mau dia, disse ela, ou então aquilo é coisa que lhe fizeram; do contrário não pode ser...
E pôs-se logo a caminho a procurar o afilhado.
Na comadre estavam fundadas toda as esperanças; ninguém duvidava que apenas ela se pusesse na rua prontamente se saberia o destino do Leonardo. Enganaram-se todos, porque nem a própria comadre foi capaz de dar com ele, por tão bom caminho o tinha levado o major. Passaram muitos dias na mais completa ignorância a respeito do seu fim; e começaram desde então a aparecer suspeitas de que ele próprio teria talvez interesse em ocultar-se, e de que era essa a causa por que ainda o não haviam descoberto. Estas suspeitas tomaram vulto, e uma certa indignação começou a aparecer em toda a família, contra semelhante proceder. A indignação cresceu e tomou repentinamente proporções de ódio intenso, até da parte das próprias duas velhas.
Realmente, a ser verdade o que pensavam, não haveria ingratidão mais negra do que a do Leonardo para com aquela que tão benignamente o acolhera. Nas invectivas a cada momento dirigidas contra ele, Vidinha tomava sempre o primeiro lugar, e tinha razão para isso; além de ter contra ele as razões que tinham todos os outros, tinha ainda o despeito do amor ofendido. Em certos corações o amor é assim, tudo quanto tem de terno, de dedicado, de fiel, desaparece depois de certas provas, e transforma-se num incurável ódio.
Uma coisa singular notara Vidinha desde que fora à ucharia, e é que não se passava depois disto um só dia em que ela não visse pelo menos duas vezes o toma-largura. Tinha-o ela mostrado à família, e já todos o conheciam. A princípio isso incomodou-a, e tanto mais que ele não passava uma só vez que lhe não tirasse o chapéu com ar risonho: parecia-lhe semelhante coisa uma prova de desabrida falta de vergonha. Mais tarde começou a suspeitar que aquela passagem constante e aqueles cumprimentos deviam por força ter alguma explicação.
Aconteceu que uma das velhas, a mãe de Vidinha, confessasse não ter achado o toma-largura mal-apessoado, e esta idéia passou a toda a família. Um dia uma das velhas achando-se na janela com Vidinha, na ocasião em que passava o toma-largura, disse entre os dentes, e como que indiferentemente:
— Se fosse comigo, bem sabia eu cá o que havia de fazer...
Vidinha, se bem que não pedisse explicação daquele dito, não deixou contudo de dar-lhe atenção e de cismar nele por algum tempo.
No dia seguinte a mesma velha chamou-a para a janela à hora do dia antecedente; e o toma-largura passou como sempre, e fez o seu cumprimento. A velha disse nessa ocasião, como completando o seu pensamento da véspera:
— Ora, eu pregava um mono ao tal Leonardo... e então este que era bem pregado, por ser ao mesmo tempo aos dois, a ele e a ela.
Lendo na intimidade do pensamento da velha, com a nossa liberdade de contador de histórias, diremos ao leitor, que o não tiver adivinhado, que aquele-ela-referia-se à moça do caldo.
Dada esta explicação, os menos perspicazes entenderão sem dúvida em que consistia o mono que a velha pregaria ao Leonardo.
Vidinha, que nada tinha de pouco inteligente, compreendeu tudo às mil maravilhas, e com tanto mais facilidade, digamo-lo aos leitores, quanto talvez que o pensamento da velha correspondesse a seus próprios pensamentos. Repetiram-se depois disto mais algumas indiretas da parte da velha, e Vidinha chegou finalmente a explicações.
Pouparemos aos leitores certos detalhes, e diremos que o resultado de tudo aquilo foi ver-se, poucos dias depois, o toma-largura em casa de Vidinha fazendo uma visita à família!!...
As visitas continuaram, e pela vizinhança começou a ouvir-se um rumor que tinha tanto de malévolo como de verdadeiro.
Estavam as coisas neste pé. A paz tinha sido restituída à família. Não sei quem propôs que se solenizasse o restabelecimento do sossego e as novas venturas com uma súcia para fora da cidade. Efetuou-se semelhante pensamento. Por uma singularidade escolheram para lugar da patuscada os-Cajueiros,-onde a família, tinha feito conhecimento com o Leonardo.
O toma-largura fora convidado, nem podia deixar de sê-lo, porque era ele um dos motivos da festa. Infelizmente porem tinha ele um defeito: no estado ordinário costumava beber sofrivelmente; quando tinha algum motivo de alegria costumava dobrar a dose, e quando isto sucedia dava-lhe para valentão e desordeiro. Disto resultou que no meio da súcia, na ocasião de jantar, deu-se por ofendido, não sabemos por quê, e começou por agarrar nas pontas da esteira que servia de mesa, e fazer voar sobre a cabeça dos convivas pratos, garrafas, copos e tudo o mais. Os dois primos quiseram contê-lo, mas não o conseguiram: Vidinha chorava, as velhas se maldiziam; uns tentavam restabelecer a paz, e outros aumentavam a desordem. Reinava por conseqüência uma algazarra infernal.
Quando menos o esperavam, viu-se surdir dentre as moitas o major Vidigal fechando um círculo de granadeiros que partiam de sua esquerda e da sua direita, e que encerravam toda a súcia.
— Segura aquele homem, granadeiro, disse o major a um dos seus soldados, apontando para o toma-largura que se achava em pé cambaleando, tendo numa mão um balaio em que viera a farinha, e na outra uma garrafa com que ameaçava os circunstantes.
A ordem do major o granadeiro hesitou: toda a família, reunindo-se em um grupo, soltou um grito de espanto apontando para o soldado.
— Então! replicou o major vendo aquela hesitação.
O granadeiro deu um passo para o toma-largura.
— Devagar com a louça, camarada, bradou este; lembre-se que ainda não ajustamos contas a respeito daquele caldo...
O toma-largura acabava de reconhecer no granadeiro o nosso amigo Leonardo, como toda a família o tinha reconhecido apenas ele apareceu.
Era com efeito ele.

XIX - O Granadeiro         
Estavam pois as contas ajustadas completamente entre o Leonardo e o toma-largura; haviam-se vingado um do outro: o último golpe na luta competira ao Leonardo: ele abençoou o acaso, e mesmo o major Vidigal, por lhe ter fornecido ocasião de ir arrancar dos lábios de seu rival a taça da ventura. Até quase que estimou que lhe tivessem sentado praça; e bem dissemos nós que para ele não havia fortuna que não se transformasse em desdita, e desdita de que lhe não resultasse fortuna.
O toma-largura, como dissemos, fora levado pelo Leonardo; e os leitores, familiarizados com o destino que tinham todos os prisioneiros do major Vidigal, adivinham já que lhe indicaram o caminho da casa da guarda no largo da Sé. O estado em que ele se achava não permitiu porém que o levassem até lá. Os vapores que do estômago lhe tinham subido à cabeça foram-se pouco a pouco condensando, e em meio do caminho pesavam-lhe sobre o cérebro vinte arrobas; a cabeça, não se podendo manter, abandonou-se ao tronco, que, achando o peso excessivo, quis apelar para as pernas; estas porém não eram mais fortes, e, curvando-se trêmulas e bambas, deram com o valentão de ainda há pouco estirado na calçada. Os soldados não o puderam levantar, porque era, como dissemos a princípio, de uma corpulência colossal. Foi mister pois abandonar a presa: o major não teve grande dificuldade nisso, primeiro, pelo trabalho que daria qualquer outra resolução, segundo, porque se bem que da última classe, sempre era o toma-largura gente da casa real, e nesse tempo tal qualidade trazia consigo não pequenas imunidades.
O Leonardo tentou ainda alguns meios para que lhe não escapasse assim sem resultado mais estrondoso a primeira presa que fazia, pois era isto de mau agouro para o seu futuro militar; mas também sua mais bela vingança estava tomada.
Ficou pois o toma-largura abandonado na calçada.
Satisfaçamos agora em poucas palavras a curiosidade que têm sem dúvida os leitores de saber o como chegara o Leonardo à posição em que se achava. Agarrado pelo major na porta da ucharia, como se sabe, fora por ele em pessoa conduzido a lugar seguro, donde só saíra para sentar praça no Regimento Novo. Todos os batalhões que havia na cidade tinham uma companhia de granadeiros, e havendo uma vaga na companhia do Regimento Novo, fora o Leonardo escolhido para preenchê-la. Sabendo disto o major, reclamou-o para seu serviço (porque era dessas companhias de granadeiros que se tiravam soldados para o serviço policial), pois como homem experimentado naquelas coisas, pressentira que ele lhe seria um valioso auxiliar. Até um certo ponto o major não se enganou. Com efeito o Leonardo, sendo naturalmente astuto, e tendo até ali vivido numa rica escola de vadiação e peraltismo, deveria conhecer todas as manhas do ofício. Havia porém uma circunstância que o impedia de prestar bons serviços, e era que com ele próprio, com suas próprias façanhas, tinha muitas vezes o major de gastar o tempo que lhe era preciso para o demais. O poder dos hábitos adquiridos era nele tal, que nem mesmo o rigor da disciplina lhe servia de barreira.
Contemos a primeira diabrura que lhe lembrou praticar depois que vestiu farda, e que foi tanto mais sensível quanto a princípio se mostrara um soldado por tal maneira sisudo que ia quase adquirindo reputação de rígido.
Os gaiatos e suciantes da cidade, a quem o major Vidigal dava constantemente caça, lembraram-se de imortalizar as suas façanhas por qualquer meio, e inventaram um fado com o seguinte estribilho nas cantigas:

    Papai lelê, seculorum.

Nesse fado a personagem principal representava o major que, figurado morto, vinha estender-se amortalhado no meio da sala; as demais personagens cantavam-lhe em roda cantigas alusivas, que terminavam todas pelo estribilho que acima indicamos.
O major, que disto soubera, andava em busca de uma ocasião oportuna para tirar desforra de semelhante gracejo, que dava a entender qual era, a seu respeito, o desejo dos que o tinham inventado. Teve um dia denúncia que numa casa do morro da Conceição se preparava para essa noite um rigoroso-papai lelê,-e dispôs as coisas para pilhar os da roda em flagrante.
À hora oportuna mandou dois ou três granadeiros adiante, cada um por sua vez, para examinar o que havia, tendo combinado primeiramente um sinal positivo e outro negativo para indicarem uns aos outros se havia ou não ocasião e motivo de dar o assalto: estes sinais o granadeiro que devia aproximar-se mais da casa comunicaria ao que lhe ficasse imediato, este passaria adiante, o outro faria o mesmo até chegar ao lugar em que estava o major; era um verdadeiro sistema de sentinelas avançadas, como se se tratasse de uma grande campanha. No caso de ser dado o sinal positivo, marchariam todos vagarosamente e se reuniriam para o assalto; dado o sinal negativo, dispersar-se-iam em silêncio, porque um dos maiores caprichos do major era nunca mostrar que havia sido logrado. Ao Leonardo coube a incumbência de ser a vedeta mais próxima ao inimigo, e de dar o primeiro sinal. Marchou pois adiante, e os companheiros postaram-se à espera. Esperaram por longo tempo, e cansaram de esperar; finalmente, quando já se iam dispondo a contravir às ordens e abandonar o posto para procurar o Leonardo, ouviram três vezes seguidas um longo assovio, que era o sinal negativo convencionado. Em virtude disto dispersaram-se exasperados, e foram depois reunir-se ao major embaixo da ladeira, no lugar que dá para a entrada do Aljube. Aí reunidos, esperaram muito tempo pelo Leonardo sem que ele aparecesse. O major principiou a cismar com o caso; de novo e repentinamente deu ordem de subir o morro. Subiram com efeito, e marchando desta vez o major adiante, foram ter à casa indicada. Com surpresa de todos, apenas se foram aproximando viram luzes e ouviram o zunzum das violas e a toada das cantigas. Fervia dentro o fado rigoroso. Sem necessitar grandes precauções, porque todos pareciam entregues à maior segurança, cercou o major a casa, e apanhou tudo, como se costuma dizer, com a boca na botija. Estava-se exatamente no ponto solene da cerimônia.
Achava-se a personagem que representava o papai amortalhado em um lençol, com a cabeça coberta, deitado no chão, e a chusma em roda a cantar e a dançar.
Quando o major bateu, e foi entrando, acompanhado da sua gente, ficou tudo gelado de medo: o sujeito que se achava amortalhado teve um grande estremeção e ficou depois imóvel, como se fosse de pedra, representando com mais propriedade do que talvez desejasse o papel de morto. Segundo seu costume, o major fez continuar por um pouco a brincadeira em sua presença. Depois começou a indagação das ocupações de cada um, e, conforme o que colhia, os foi mandando embora, ou pondo de parte, para lhes dar melhor destino. Durante toda esta cena, que levou seu tempo, o amortalhado deixou-se ficar imóvel, na mesma posição, com a cabeça coberta. Corrida toda a roda, disse-lhe o major:
— Olá, camarada da mortalha, então deveras você quer que o levem daí para a cova?
Nem um movimento em resposta.
— Ah! está morto; perdeu a fala; é natural.
Silêncio profundo.
O major fez sinal a um dos granadeiros, que tocou no sujeito com a ponta do camarão: nem assim porém ele sequer moveu-se. A um novo sinal do major o granadeiro desandou-lhe uma tremenda lambada. Ressuscitou com isso o morto, pôs-se de um salto em pé. Procurou porém evadir-se por uma janela, conservando sempre a cabeça coberta: os granadeiros seguraram-no, e o major disse-lhe:
— Homem, você por estar morto não tenha tanta pressa de ir para o inferno: fale primeiro com a gente.
E tirando-lhe o pano da cara acrescentou:
— Ora vamos ver a cara do defunto...
Um grito de espanto, acompanhado de uma gargalhada estrondosa dos granadeiros, interrompeu o major. Descoberta a cara do morto, reconheceu-se ser ele o nosso amigo Leonardo!...

XX - Novas diabruras     
Não sabemos se valeu ao Leonardo ser aquela a primeira ocasião em que incorria em castigo, tendo até então guardado a mais rigorosa observância de todos os seus deveres, ou se a mesma audácia do fato lhe granjeara mais as simpatias do major; o caso foi que além das risadas, dos remoques dos camaradas e dos transes da meia hora que estivera amortalhado, nada mais lhe sucedeu, com espanto de todos, e principalmente dele mesmo: o major dera daquele modo uma grande prova de desusada benevolência. Andou pois o Leonardo por alguns dias cabisbaixo e pensativo, como esmagado ao peso de grandes remorsos; os camaradas tiravam daquilo um partido imenso para meterem-no à bulha, e não o deixavam parar um só instante sossegado na companhia.
— Ele ainda não está bem ressuscitado, dizia um passando-lhe por perto.
— Qual! dizia outro, ele já não é deste mundo.
— Papai lelê, seculorum, entoavam outros em coro.
A nenhuma destas coisas dava ele a menor resposta, e tinha nisso bom aviso, porque desse modo poupava aos desapiedados camaradas tema para novos remoques. Passados aqueles transes tudo foi esquecido, e as coisas entraram de novo em seus eixos ordinários.
Um dia o major anunciou que tinha uma grande e importante diligência a fazer.
Havia um endiabrado patusco que era o tipo perfeito dos capadócios daquele tempo, sobre quem há muitos meses andava o major de olhos abertos, sem que entretanto tivesse achado ocasião de pilhá-lo: sujeitinho cuja ocupação era uma indecifrável adivinhação para muita gente, sempre andava entretanto mais ou menos apatacado: tudo quanto ele possuía de maior valor era um capote em que andava constantemente embuçado, e uma viola que jamais deixava. Gozava reputação de homem muito divertido, e não havia festa de qualquer gênero para a qual não fosse convidado. Em satisfazer a esses convites gastava todo o seu tempo. Ordinariamente amanhecia numa súcia que começara na véspera, uns anos, por exemplo; ao sair daí ia para um jantar de batizado; à noite tinha uma ceia de casamento. A fama que tinha de homem divertido, e que lhe proporcionava tão belos meios de passar o tempo, devia-a a certas habilidades, e principalmente a uma na qual não tinha rival. Tocava viola e cantava muito bem modinhas, dançava o fado com grande perfeição, falava língua de negro, e nela cantava admiravelmente, fingia-se aleijado de qualquer parte do corpo com muita naturalidade, arremedava perfeitamente a fala dos meninos da roça, sabia milhares de adivinhações, e finalmente,-eis aqui o seu mais raro talento,-sabia com rara perfeição fazer uma variedade infinita de caretas que ninguém era capaz de imitar. Era por conseqüência as delícias das espirituosas sociedades em que se achava. Quem dava uma súcia em sua casa, e queria ter grande roda e boa companhia, bastava somente anunciar aos convidados que o Teotônio (era este o seu nome) se acharia presente.
Agora quanto à sua ocupação ou meio de vida, que para muitos era, como dissemos, impenetrável segredo, o major Vidigal tanto fez que a descobriu: em dias designados da semana reunia-se no sótão onde ele morava certo número de pessoas que levavam até alta noite aí metidas: Teotônio era o banqueiro de uma roda de jogo.
Nesta conformidade andava o major a querer pilhá-lo em flagrante; e como tentava isso desde muito sem que o pudesse conseguir, por ser sempre iludida a sua vigilância pela troca constante que faziam os da roda dos seus dias de reunião, resolveu pôr a mão no Teotônio na primeira ocasião, e servir-se depois dele para a captura dos outros companheiros.
Como os leitores estarão lembrados, o Leonardo-velho, isto é, o Leonardo-Pataca, vivia com a filha da comadre; dela tinha um descendente, a cujo nascimento nós os fizemos assistir. Pois apesar de haver já passado algum tempo, a criança ainda não estava batizada. O Leonardo-Pataca, a instâncias da comadre, que muito se afligia com aquela demora, determinou finalmente o dia que ela se devia fazer cristã. Segundo os hábitos imutáveis, havia súcia por essa ocasião; e, segundo a moda, foi o Teotônio convidado. O major soubera de tudo, e era exatamente aí que o esperava, e tinha determinado pilhá-lo. Para isso dera aos seus soldados o aviso de que acima falamos.
Era má sina do major ter sempre de andar desmanchando prazeres alheios; e infelicidade para nós que escrevemos estas linhas estar caindo na monotonia de repetir quase sempre as mesmas cenas com ligeiras variantes: a fidelidade porém com que acompanhamos a época, da qual pretendemos esboçar uma parte dos costumes, a isso nos obriga.
A hora ajustada chegou o major à casa do Leonardo-Pataca; como não havia o menor motivo para violências, porque tudo corria na mais perfeita paz, o major entrou sozinho, com prévia permissão do Leonardo-Pataca, e assistiu ao divertimento. Quando ele chegou estava exatamente Teotônio em cena com as suas habilidades. Tendo esgotado já todas elas, ia recorrer à última, que era a das caretas. É preciso notar que ele não sabia só fazer caretas a capricho, sabia-as também fazer imitando, pouco mais ou menos, esta ou aquela cara conhecida: era isso o que fazia morrer de riso aos circunstantes.
Estavam todos sentados, e o Teotônio em pé no meio da sala olhava para um, e apresentava uma cara de velho, virava-se repentinamente para outro, e apresentava uma cara de tolo a rir-se asnaticamente; e assim por muito tempo mostrando de cada vez um tipo novo. Finalmente, tendo já esgotado toda a sua arte, correu a um canto, colocou-se numa posição que pudesse ser visto por todos ao mesmo tempo, e apresentou a sua última careta. Todos desataram a rir estrondosamente apontando para o major.
Acabava de imitar com muita semelhança a cara comprida e chupada do Vidigal.
O major mordeu os beiços percebendo a caçoada do Teotônio; e se já tinha boas intenções a seu respeito, ainda as formou melhor naquela ocasião.
As risadas continuaram por muito tempo; e ele, não podendo afrontá-las impassível, e não havendo, como já fizemos sentir, motivo justo para um rompimento, achou mais conveniente retirar-se, e pondo-se em posição conveniente, esperar que a súcia se debandasse, para então convidar o Teotônio a ir fazer algumas caretas aos granadeiros na casa da guarda.
Saiu pois completamente corrido.
Encontrando os seus granadeiros que tinham ficado a pouca distância, dirigiu-se ao Leonardo, e fez-lhe sentir que querendo a todo o custo naquela noite segurar o Teotônio, temia que os de casa desconfiassem disso e lhe dessem escapula por qualquer meio; era-lhe pois mister uma pessoa que o fosse vigiar de perto sem que despertasse suspeitas: essa pessoa devia ser o Leonardo.
— Sou malvisto em casa de meu pai, replicou este à proposta do major.
— É hoje um bom dia de conciliação...
— Talvez não queiram receber-me...
— E sua madrinha que lá se acha?...
— Mas a filha que é uma víbora contra mim?...
— Víbora ou não, há de ir; que quando manda a disciplina... Não quero que aquele valdevinos ande tomando impunemente a minha cara para original de caretas.
Os granadeiros, que conheciam o Teotônio e lhe sabiam da habilidade, compreenderam logo o que tinha sucedido por aquele dito do major, e desataram por seu turno a rir. O Leonardo, por aquele apelo à disciplina, com a qual não se achava em muito bom pé de relações desde a noite do papai lelê, venceu todas as dificuldades e repugnância que manifestara no desempenho da missão de que o encarregara o major, e pôs-se a caminho para a casa de seu pai.
Chegou e bateu: assim que de dentro lhe perceberam as cores da farda e barretina houve um grito de medo, e por um movimento que parecia combinado (o major tinha razão!) foram repentinamente apagadas todas as velas da sala, e começou a reinar uma confusão tal, que parecia haver-se travado uma luta entre todos.
O Leonardo viu nisso uma primeira contrariedade, porém não deixou de achar graça no susto que causara. Resolveu então falar da parte de fora para tranqüilizar aos medrosos.
— Bom modo de ser recebido um filho em casa de seu pai! Para quarta-feira de trevas só lhe faltam as matracas...
A comadre, que ouvira e reconhecera a voz do afilhado, desatou a rir, exclamando:
— Vejam que logro! é o Leonardo; tragam as velas, gente: não há novidade, que o cabo da guarda é nosso compadre.
— Aquele brejeiro, resmoneou o Leonardo-velho, sempre há de andar a fazer das suas: vejam que susto causou a toda essa gente... Ó amigo Teotônio, desça, que não há novidade...
À luz da primeira vela que traziam viu-se descer por uma porta o Teotônio do forro do quarto da sala onde se havia escondido.
Apenas pôs o pé em terra fez logo uma careta de medo, por tal forma expressiva, que houve em todos uma tremenda explosão de hilaridade. Começou a surdir gente de diversos cantos da casa, e em presença do Leonardo recomeçou a folia.
Algumas pessoas não deixaram de estranhar e recear a presença do Leonardo naquela ocasião e naqueles trajes logo depois da saída do major; porém a comadre a todos tranqüilizou, dizendo que tendo ele obtido licença no quartel, por não estar de serviço naquele dia, viera assistir ao batizado de sua irmã.
— Ele é meio doido, repetia ela a todos, mas é muito amoroso, e nunca se esquece da família,
Leonardo confirmava esses protestos da comadre, e ia entretanto tomando parte na brincadeira, uma vez que contra as suas esperanças todos o haviam recebido bem em casa. À proporção que se ia esquentando no prazer do fado e das cantigas começou o Leonardo a sentir remorsos pelo papel de judas que ali estava representando: quando olhava para o Teotônio, que desde que entrara lhe havia feito dar tão boas risadas, pungia-lhe o coração lembrando-se que ele próprio o havia de entregar ao major. Não poucas vezes lhe passou pela cabeça dar-lhe escapula avisando-o, porém a disciplina, o papai lelê, vinham-lhe à idéia, e hesitava.
Enquanto era assaltado por estes pensamentos olhava repetidas vezes para o Teotônio.
Este, que nada tinha de tolo, desconfiou da coisa; não sabemos por que instinto leu o que pensava o Leonardo, e pôs-se em guarda.
O Leonardo tomou repentinamente sua resolução.
— Ora, adeus, disciplina, disse consigo; hei de dar escapula ao homem, seja lá como for.
E do lugar em que estava acrescentou alto:
— Ah! Sr. Teotônio, quer saber uma coisa? Pois se puser o pé daquela porta para fora, o major põe-lhe a unha, que para isso está ele à sua espera, e para aqui me mandou...
— Ó diabo! exclamaram todos.
— Mas nada de sustos; tudo se há de arranjar, que tenho eu boa vontade disto.
— Mas não te comprometas, rapaz, acrescentou a comadre ao ouvido do Leonardo; olha que o major não é de graças, e daí te pode vir mal.
— Ora, tenho pena dele só por aquelas caretas.
Juntaram-se então os dois, Leonardo e Teotônio, e juntos concertaram o seu plano de modo que este escapasse ao major, e que aquele não ficasse comprometido.
Estava já a noite muito adiantada, ordenaram os dois que saíssem ao mesmo tempo muitos convidados, e o Leonardo, partindo adiante deles, foi correndo ter com o major.
— Aí vem o bicho, Sr. major.
— Cerca, cerca! disse o major.
E cada um se dividiu para seu lado.
O major colou-se à porta de um corredor, e pôs-se de olho alerta.
Veio-se aproximando ao major um vulto assobiando tranqüilamente o estribilho de uma modinha. Quando se achou em pequena distancia o major deu um salto donde estava e segurou-o.
Um ai franzino se fez ouvir, acompanhado de um:
— Me largue! Que é isto?
O major prestou atenção, não tendo reconhecido a voz do Teotônio, e viu que tinha segurado um pobre corcunda, aleijado, ainda em cima, da perna direita e do braço esquerdo.
— Ora vá-se para o inferno, disse o major; suma-se daqui. Também não sei o que andam fazendo a estas horas pelas ruas estas figuras.
O aleijado safou-se apressadamente livre do susto, e lá foi continuando a assobiar o seu estribilho.
Fez-se depois disto o mais profundo silêncio, e o major não viu mais passar senão os convidados da patuscada, não vendo entre eles o Teotônio.
Então ardeu com o caso; e reunindo os granadeiros disse para Leonardo:
— Ele não saiu...
— Saiu, replicou este; até de jaqueta branca e chapéu de palha: eu o vi tomar ali para a porta onde estava o Sr. major.
— De jaqueta branca e chapéu de palha? perguntou o major.
— Sim, senhor, e de calça preta: não o peguei porque logo vi que não havia de escapar ao Sr. major.
— Ah! patife, patife, resmungou: destas nunca levei... Era o corcunda, o aleijado...
— Ele sabe fazer muito bem de corcunda e de aleijado, disse um dos granadeiros; já o vi uma vez fazer isso, que era mesmo tal e qual...
Era com efeito o Teotônio o aleijado que o major tinha segurado.
O Leonardo ria-se às furtadelas do logro que levara o major.
Não tardou porém muito tempo que lhe não amargasse aquele prazer, vindo o major a saber que tudo aquilo se fizera de combinação com ele.