Capítulo XIII:
Combate
Eram seis horas da manhã.
O sol elevando-se no
horizonte derramava cascatas de ouro sobre o verde brilhante das vastas
florestas.
O tempo estava soberbo; o
céu azul, esmaltado de pequenas nuvens brancas que se achamalotavam como as
dobras de uma lençaria.
Os Aimorés, grupados em
torno de alguns troncos já meio reduzidos a cinza, faziam preparativos para dar
um ataque decisivo.
O instinto selvagem
supria a indústria do homem civilizado; a primeira das artes foi
incontestavelmente a arte da guerra, — a arte da defesa e da vingança, os dois
mais fortes estímulos do coração humano.
Nesse momento os Aimorés preparavam
setas inflamáveis para incendiar a casa de D. Antônio de Mariz; não podendo
vencer o inimigo pelas armas, contavam destruí-lo pelo fogo.
A maneira por que
arranjavam esses terríveis projéteis, que lembravam os pelouros e bombardas dos
povos civilizados, era muito simples: envolviam a ponta da flecha com flocos de
algodão embebidos na resina da almécega.
Essas setas assim
inflamadas, despedidas dos seus arcos voavam pelos ares e iam cravar-se nas
vigas e portas das casas; o fogo que o vento incitava, lambia a madeira,
estendia a sua língua vermelha, e lastrava pelo edifício.
Enquanto se ocupavam com
esse trabalho, um prazer feroz animava todas essas fisionomias sinistras, nas
quais a braveza, a ignorância e os instintos carniceiros tinham quase de todo
apagado o cunho da raça humana.
Os cabelos arruivados
caiam-lhe sobre a fronte e ocultavam inteiramente a parte mais nobre do rosto,
criada por Deus para a sede da inteligência, e para o trono donde o pensamento
deve reinar sobre a matéria.
Os lábios decompostos,
arregaçados por uma contração dos músculos faciais, tinham perdido a expressão
suave e doce que imprimem o sorriso e a palavra; de lábios de homem se haviam
transformado em mandíbulas de fera afeitas ao grito e ao bramido.
Os dentes agudos como a
presa do jaguar, já não tinham o esmalte que a natureza lhes dera; armas ao
mesmo tempo que instrumento da alimentação, o sangue os tingira da cor
amarelenta que têm os dentes dos animais carniceiros.
As grandes unhas negras e
retorcidas que cresciam nos dedos, a pele áspera e calosa, faziam de suas mãos,
antes garras temíveis, do que a parte destinada a servir ao homem e dar ao
aspecto a nobreza do gesto.
Grandes peles de animais
cobriam o corpo agigantado desses filhos das brenhas, que a não ser o porte
ereto se julgaria alguma raça de quadrúmanos indígenas do novo mundo.
Alguns se ornavam de
penas, e colares de ossos; outros completamente nus tinham o corpo untado de
óleo por causa dos insetos.
Entre todos distinguia-se
um velho que parecia ser o chefe da tribo. Sua alta estatura, direita apesar da
idade avançada, dominava a cabeça dos seus companheiros sentados ou agrupados
em torno do fogo.
Não trabalhava; presidia
apenas aos trabalhos dos selvagens, e de vez em quando lançava um olhar de
ameaça para a casa que se elevava ao longe sobre o rochedo inexpugnável.
Ao lado dele, uma bela
índia, na flor da idade, queimava sobre uma pedra cova algumas folhas de
tabaco, cuja fumaça se elevava em grossas espirais e cingia a cabeça do velho
de uma espécie de brama ou névoa.
Ele aspirava esse aroma
embriagador que fazia dilatar o seu vasto peito, e dava a sua fisionomia
terrível um quer que seja de sensual, que se poderia chamar a voluptuosidade
dos seus instintos de canibal. Envolta pelo fumo espesso que se enovelava em
torno dela, aquela figura fantástica parecia algum ídolo selvagem, divindade
criada pelo fanatismo desses povos ignorantes e bárbaros.
De repente a pequena
índia que soprava o brasido queimando as folhas de pitima estremeceu, levantou
a cabeça, e fitou os olhos no velho, como para interrogar a sua fisionomia.
Vendo-o calmo e impassível, a menina debruçou-se sobre o ombro do selvagem, e
tocandolhe de leve na cabeça, disse-lhe uma palavra ao ouvido. Ele voltou-se
tranqüilamente, um riso sardônico mostrou os seus dentes; sem responder obrigou
a índia a sentar-se de novo, e a voltar à sua ocupação.
Pouco tempo havia passado
depois deste pequeno incidente, quando a menina tornou a estremecer; tinha
ouvido perto o mesmo rumor que já ouvira ao longe. Ao passo que ela espantada
procurava confirmar-se, um dos selvagens sentados em roda do fogo a trabalhar
fez o mesmo movimento que a índia, e levantou a cabeça.
Como se um fio elétrico
se comunicasse entre esses homens e imprimisse a todos sucessivamente o mesmo
movimento, um após outro interrompeu o seu trabalho de chofre, e inclinando o
ouvido pôs-se à escuta.
A menina não escutava só;
colocando-se longe do fumo e de encontro à brisa que soprava, de vez em quando
aspirava o ar com a finura de olfato com que os cães farejam a caça.
Tudo isto passou
rapidamente, sem que os atores desta cena tivessem nem sequer o tempo de trocar
uma observação e dizer o seu pensamento.
De repente a índia soltou
um grito; todos voltaram-se para ela e a viram trêmula, ofegante, apoiando-se
com uma mão sobre o ombro do velho cacique, e a outra estendida na direção da
floresta que passava a duas braças servindo de fundo a esse quadro.
O velho ergueu-se então
sempre com a mesma calma feroz e sinistra; e empunhando a sua pesada tangapema,
que parecia uma clava de ciclope, fê-la girar sobre a sua cabeça como um junco;
depois fincando-a no chão, e apoiando-se sobre ela, esperou.
Os outros selvagens
armados de arcos e tacapes, espécie de longas espadas de pau que cortavam como
ferro, colocaram-se a par do velho, e prontos para o ataque, esperavam como
ele. As mulheres misturaram-se com os guerreiros; as crianças e meninos,
defendidos pela barreira que opunham os combatentes, conservaram-se no centro
do campo.
Todos com os olhos fitos,
os sentidos aplicados, contavam ver o inimigo aparecer a cada momento e se
preparavam para cair sobre ele com a audácia e ímpeto de ataque que distinguia
a raça dos Aimorés.
Um segundo se passou
nesta expectativa inquieta.
O estalido que a
princípio tinham ouvido cessou completamente; e os selvagens cobrando-se do
susto, voltaram aos seus trabalhos, convencidos de que tinham sido iludidos por
algum vago rumor na floresta.
Mas o inimigo caiu no
meio deles, subitamente, sem que pudessem saber se tinha surgido do seio da
terra, ou se tinha descido das nuvens.
Era Peri.
Altivo, nobre, radiante
da coragem invencível e do sublime heroísmo de que já dera tantos exemplos, o
índio se apresentava só em face de duzentos inimigos fortes e sequiosos de
vingança.
Caindo do alto de uma
árvore sobre eles, tinha abatido dois; e volvendo o seu montante como um raio
em torno de sua cabeça abriu um círculo no meio dos selvagens.
Então encostou-se a uma
lasca de pedra que descansava sobre uma ondulação do terreno, e preparou-se
para o combate monstruoso de um só homem contra duzentos.
A posição em que se
achava o favorecia, se isso é possível à vista de uma tal disparidade de
número: apenas dois inimigos podiam atacá-lo de frente.
Passado o primeiro
espanto, os selvagens bramindo atiraram-se todos como uma só mole, como uma
tromba do oceano, contra o índio que ousava atacá-los a peito descoberto.
Houve uma confusão, um
turbilhão horrível de homens que se repeliam, tombavam e se estorciam; de
cabeças que se levantavam e outras que desapareciam; de braços e dorsos que se
agitavam e se contraiam, como se tudo isto fosse partes de um só corpo, membros
de algum monstro desconhecido debatendo-se em convulsões.
No meio desse caos via-se
brilhar aos raios do sol com reflexos rápidos e luzentes a lamina do montante
de Peri, que passava e repassava com a velocidade do relâmpago quando percorre
as nuvens e atravessa o espaço.
Um coro de gritos,
imprecações e gemidos roucos e abafados, confundindo-se com o choque das armas,
se elevava desse pandemônio, e ia perder-se ao longe nos rumores da cascata.
Houve uma calma
aterradora; os selvagens imóveis de espanto e de raiva suspenderam o ataque; os
corpos dos mortos faziam uma barreira entre eles e o inimigo.
Peri abaixou o seu
montante e esperou; seu braço direito fatigado desse enorme esforço não podia
mais servir-lhe e caía inerte; passou a arma para a mão esquerda.
Era tempo.
O velho cacique dos
Aimorés se avançava para ele sopesando a sua imensa clava crivada de escamas de
peixe e dentes de fera; alavanca terrível que o seu braço possante fazia jogar
com a ligeireza da flecha.
Os olhos de Peri
brilharam; endireitando o seu talhe, fitou no selvagem esse olhar seguro e
certeiro, que não o enganava nunca.
O velho aproximando-se
levantou a sua clava e imprimindo-lhe o movimento de rotação, ia descarregá-la
sobre Peri e abatê-lo; não havia espada nem montante que pudesse resistir
àquele choque.
O que passou-se então foi
tão rápido, que não é possível descrevê-lo; quando o braço do velho volvendo a
clava ia atirá-la, o montante de Peri lampejou no ar e decepou o punho do
selvagem; mão e clava foram rojar pelo chão.
O velho selvagem soltou
um bramido, que repercutiu ao longe pelos ecos da floresta, e levantando ao céu
o seu punho decepado atirou as gotas de sangue que vertiam, sobre os Aimorés,
como conjurando-os à vingança.
Os guerreiros lançaram-se
para vingar o seu chefe; mas um novo espetáculo se apresentava aos seus olhos.
Peri, vencedor do cacique,
volveu um olhar em torno dele, e vendo o estrago que tinha feito, os cadáveres
dos Aimóres amontoados uns sobre os outros, fincou a ponta do montante no chão
e quebrou a lamina. Tomou depois os dois fragmentos e atirou-os ao rio.
Então passou-se nele uma
luta silenciosa, mas terrível para quem pudesse compreendê-la. Tinha quebrado a
sua espada, porque não queria mais combater; e decidira que era tempo de
suplicar a vida ao inimigo.
Mas quando chegou o
momento de realizar essa súplica, conheceu que exigia de si mesmo uma coisa
sobre-humana, uma coisa superior às suas forças.
Ele, Peri, o guerreiro
invencível, ele, o selvagem livre, o senhor das florestas, o rei dessa terra
virgem, o chefe da mais valente nação dos Guaranis, suplicar a vida ao inimigo!
Era impossível.
Três vezes quis ajoelhar,
e três vezes as curvas de suas pernas distendendo-se como duas molas de aço o
obrigaram a erguer-se.
Finalmente a lembrança de
Cecília foi mais forte do que a sua vontade.
Ajoelhou.
Capítulo XIV: O Prisioneiro
Quando os selvagens se
precipitavam sobre o inimigo, que já não se defendia e se confessava vencido, o
velho cacique adiantou-se; e deixando cair a mão sobre o ombro de Peri, fez um
movimento enérgico com o braço direito decepado.
Esse movimento exprimia
que Peri era seu prisioneiro, que lhe pertencia como o primeiro que tinha posto
a mão sobre ele, como seu vencedor; e que todos deviam respeitar o seu direito
de propriedade, o seu direito de guerra.
Os selvagens abaixaram as
armas e não deram um passo; esse povo bárbaro tinha seus costumes e suas leis;
e uma delas era esse direito exclusivo do vencedor sobre o seu prisioneiro de
guerra, essa conquista do fraco pelo forte.
Tinham em tanta conta a
glória de trazerem um cativo do combate e sacrificá-lo no meio das festas e
cerimônias que costumavam celebrar, que nenhum selvagem matava o inimigo que se
rendia; fazia-o prisioneiro.
Quanto a Peri, vendo o
gesto do cacique e o efeito que produzia, a sua fisionomia expandiu-se; a
humildade fingida, a posição suplicante que por um esforço supremo conseguira
tomar, desapareceu imediatamente.
Ergueu-se, e com um
soberbo desdém estendeu os punhos aos selvagens que por mandado do velho se
dispunham a ligar-lhe os braços; parecia antes um rei que dava uma ordem aos
seus vassalos, do que um cativo que se sujeitava aos vencedores; tal era a
altivez do seu porte e o desprezo com que encarava o inimigo.
Os Aimorés, depois de
ligarem os punhos do prisioneiro, o conduziram a alguma distancia à sombra de
uma árvore, e ai o prenderam com uma corda de algodão matizada de várias cores
a que os Guaranis chamavam muçurana.
Depois, ao passo que as
mulheres enterravam os mortos, reuniram-se em conselho, presididos pelo velho
cacique, a quem todos ouviam com respeito e respondiam cada um por sua vez.
Durante o tempo que os
guerreiros falavam, a pequena índia escolhia os melhores frutos, as bebidas
mais bem preparadas, e oferecia ao prisioneiro, a quem estava encarregada de
servir.
Peri, sentado sobre a
raiz da árvore e apoiado contra o tronco, não percebia o que se passava em
torno dele; tinha os olhos fitos na esplanada da casa que se elevava a alguma
distancia.
Via o vulto de D. Antônio
de Mariz que assomava por cima da paliçada; e suspensa ao seu braço, reclinada
sobre o abismo, Cecília, sua linda senhora, que lhe fazia de longe um gesto de
desespero; ao lado Álvaro e a família.
Tudo o que ele havia
amado neste mundo ali estava diante de seus olhos; sentia um prazer intenso por
ver ainda uma vez esses objetos de sua dedicação extrema, de seu amor profundo.
Adivinhava e compreendia
o que sentia então o coração de seus bons amigos; sabia que sofriam vendo-o
prisioneiro, próximo a morrer, sem terem o poder e a força para salvá-lo das
mãos do inimigo.
Consolava-o porém essa
esperança que estava prestes a realizar-se; esse gozo inefável de salvar sua
senhora, e de deixá-la feliz no seio de sua família, protegida pelo amor de
Álvaro.
Enquanto Peri, preocupado
por essas idéias, enlevava-se ainda uma vez em contemplar mesmo de longe a
figura de Cecília, a índia de pé, defronte dele, olhava-o com um sentimento de
prazer misturado de surpresa e curiosidade.
Comparava suas formas
esbeltas e delicadas com o corpo selvagem de seus companheiros; a expressão
inteligente de sua fisionomia com o aspecto embrutecido dos Aimorés; para ela,
Peri era um homem superior e excitava-lhe profunda admiração.
Foi só quando Cecília e
D. Antônio de Mariz desapareceram da esplanada, que Peri, lançando ao redor um
olhar para ver se a sua morte ainda se demoraria muito, descobriu a índia perto
dele.
Voltou o rosto e
continuou a pensar em sua senhora e a rever a sua imagem; debalde a menina
selvagem lhe apresentava um lindo fruto, um alimento, um vinho saboroso; ele
não lhe dava atenção.
A índia tornou-se triste
por causa dessa obstinação com que o prisioneiro recusava o que lhe oferecia e
achegando-se levantou a cabeça pensativa de Peri.
Havia nos olhos da menina
tanto fogo, tanta lubricidade no seu sorriso; as ondulações mórbidas do seu
corpo traiam tantos desejos e tanta voluptuosidade, que o prisioneiro
compreendeu imediatamente qual era a missão dessa enviada da morte, dessa
esposa do túmulo, destinada a embelezar os últimos momentos da vida!
O índio voltou o rosto
com desdém; recusava as flores como tinha recusado os frutos; repelia a
embriaguez do prazer como havia repelido a embriaguez do vinho.
A menina enlaçou-o com os
braços, murmurando palavras entrecortadas de uma língua desconhecida, da língua
dos Aimorés, que Peri não entendia; era talvez uma súplica, ou um consolo com
que procurava mitigar a dor do vencido.
Mal sabia que o índio ia
morrer feliz e esperava o suplício como a realização de um sonho doce, como a
satisfação de um desejo querido e por muito tempo afagado com amor.
Mas podia ela, pobre
selvagem, pressentir e mesmo compreender semelhante coisa? O que sabia era que
Peri ia ser morto; que ela devia suavizarlhe a última hora; e cumpria esse
dever com um certo contentamento.
Peri sentindo os braços
da menina cingirem seu colo, repeliu-a vivamente para longe de si; e voltando
procurou ver por entre as folhas se descobria os preparativos que os Aimorés
faziam para o sacrifício.
Tardava-lhe o momento
supremo em que devia ser imolado à cólera e à vingança dos inimigos; sua
altivez revoltava-se contra essa humilhação do cativeiro.
A índia continuava a
olhá-lo tristemente, e sem compreender por que a repelia; ela era linda e
desejada por todos os jovens guerreiros de sua tribo; seu pai, o velho cacique,
tinha-a destinado para o mais valente prisioneiro, ou para o mais forte dos
vencedores.
Depois de conservar-se
muito tempo nesta posição, a menina adiantou-se de novo, tomou um vaso cheio de
cauim, e apresentou-o a Peri sorrindo e quase suplicante.
Ao gesto de recusa que
fez o índio, ela deitou o vaso no rio, e escolhendo sobre as folhas um cardo
vermelho e doce como um favo de mel, estendeu a mão e tocou com o fruto a boca
do prisioneiro.
Peri enjeitou o fruto
como tinha enjeitado o vinho, e a virgem selvagem atirando-o por sua vez ao
rio, aproximou-se e ofereceu ao prisioneiro seus lábios encarnados,
ligeiramente distendidos como para receberem o beijo que pediam.
O índio fechou os olhos e
pensou em sua senhora. Elevando-se até Cecília, seu pensamento desprendia-se do
invólucro terrestre e adejava numa atmosfera pura e isenta da fascinação dos
sentidos que escraviza o homem.
Contudo Peri sentia o
hálito ardente da menina que lhe requeimava as faces: entreabriu os olhos, e
viu-a na mesma posição, esperando uma carícia, um afago daquele a quem a sua
tribo mandara que amasse, e a quem ela já amava espontaneamente.
Na vida selvagem, tão próxima
da natureza, onde a conveniência e os costumes não reprimem os movimentos do
coração, o sentimento é uma flor que nasce como a flor do campo, e cresce em
algumas horas com uma gota de orvalho e um raio de sol.
Nos tempos de
civilização, ao contrário, o sentimento torna-se planta exótica; que só vinga e
floresce nas estufas, isto é, nos corações onde o sangue é vigoroso, e o fogo
da paixão ardente e intenso.
Vendo Peri no meio do
combate, só contra toda a sua tribo, a índia o admirara: contemplando-o depois
quando prisioneiro, o achara mais belo do que todos os guerreiros.
Seu pai a destinara para
esposa do inimigo que ia ser sacrificado; e portanto ela que começara por
admirá-lo, acabava por desejá-lo, por amá-lo, algumas horas apenas depois que o
tinha visto.
Mas Peri, frio e
indiferente, não se comovia, nem aceitava essa afeição passageira e efêmera que
tinha começado com o dia e devia acabar com ele; sua idéia fixa, a lembrança de
seus amigos, o protegia contra a tentação.
Voltando as costas,
levantou os olhos ao céu para evitar o rosto da selvagem que acompanhava a sua
vista, como certas flores acompanham a rotação aparente do sol.
Entre a folhagem das
árvores passava-se uma das cenas graciosas e singelas, que a cada momento no
campo se oferecem à atenção daqueles que estudam a natureza nas suas pequenas
criaturas.
Um casal de corrixos, que
tinha feito o seu ninho num ramo, sentindo a habitação do homem e o fogo
embaixo da árvore, mudava a sua pequena casa de palha e algodão.
Um desfazia com o bico o
ninho, e o outro conduzia a palha para longe, para o lugar onde iam novamente
fabricá-lo; quando acabaram este trabalho, acariciaram-se, e batendo as asas
foram esconder o seu amor nalgum lindo retiro.
Peri se divertia em ver
esse inocente idílio, quando a índia levantando-se de repente soltou um pequeno
grito de alegria e de prazer, e sorrindo mostrou ao prisioneiro os dois
passarinhos que voavam um a par do outro sobre a cúpula da floresta.
Enquanto ele procurava
compreender o que queria dizer este aceno, a virgem desapareceu, e voltou quase
imediatamente trazendo um instrumento de pedra que cortava como faca e um arco
de guerra.
Aproximou-se do índio,
soltou-lhe os laços que lhe ligavam os punhos, e partiu a muçurana que o
prendia à árvore. Executou isto com uma extrema rapidez; e entregando a Peri o
arco e as flechas, estendeu a mão na direção da floresta, mostrando-lhe o
espaço que se abria diante deles.
Seus olhos e seu gesto
falavam melhor do que a sua linguagem inculta, e exprimiam claramente o seu
pensamento:
— Tu és livre. Partamos!