CARTA DE JAIRO ALENCAR AO PADRE PEDRO BOGUCKI DATADA DE 15 DE MAIO DE 1975.
Obs.: esta carta não faz parte dos processos policiais sobre as mortes de Cláudio Sertório ou de Mônica Oliveira do Nascimento, pois foi mantida oculta pelo pe. Bogucki junto de seus papéis pessoais, tendo sido encontrada somente após a sua morte.
Querido padre Bogucki, estou lhe escrevendo, não
sei bem porque e nem como.
Não sei como, porque o que lhe quero contar não
está claro em minha mente. É assim como a memória de outro que não eu; mas,
sim, é de mim que vou falar.
Também
não sei por que, uma vez que o lhe vou contar é tão estranho que, por certo o
senhor não me vai crer.
O sangue que mancha este papel não é meu, mas de
Mônica, minha namorada. Ainda tenho em meus olhos o sangue que corria de seu
pescoço, o pescoço antes amado e que rasguei com minhas unhas.
Mas
preciso contar isso a alguém e nos conhecemos desde sempre, não é, padre Bogucki? Foi o senhor
quem me batizou e me catequizou, muito mais que a dona Amélia, lembra?
Deixe-me agora por os
pensamentos em ordem e restabelecer a seqüência dos fatos. Tudo começou naquela
noite horrível de 18 de Abril.
O senhor se lembra do
Cláudio, meu amigo desde os tempos de menino. Naquela noite eu e ele voltávamos
duma boate. Era uma noite de serração, quente e úmida.
Tínhamos chegado na Câncio
Gomes e, derrepente, ouvimos um som de asas batendo; grandes asas batendo.
Paramos para tentar
entender aquele som unusual e, derrepente, coisa de um segundo, mesmo, Cláudio
foi puxado pra cima, sumindo no nevoeiro.
Ouvi o seu grito por um breve
momento, mas quase imediatamente, o sangue dele começou a cair sobre mim num
chuvisqueiro medonho.
Não podia entender que
fosse sangue assim, imediatamente. Só muito tempo depois realizei que era o
sangue de Cláudio que caía na calçada e sobre mim. Então Cláudio caiu ao solo,
perto de mim, com a cabeça... O senhor viu as fotos, não viu, quando a polícia
o entrevistou?
Eu estava apavorado,
queria gritar mas não conseguia; estava em choque!
Então eu também fui pego e
erguido no ar e lembro-me apenas de ver, brilhando de dentro da névoa, uns
olhos vermelhos, cheios de ódio. Eram olhos ferozes e a coisa que me tinha nos
braços emanava um hálito de coisa podre.
Eu comecei a chorar e ouvi
aquilo que me sustentava no ar dizer qualquer coisa numa língua gutural que não
entendi, na altura.
Foi então que tudo ficou
negro.
Precisei de muito tempo
para saber que estava morto.
Acordei sete dias depois,
na Gruta dos Bugres. O sol me incomodava demais e eu tentava desviar dele.
Sentia uma sede terrível,
uma fraqueza terrível e acabei por beber o sangue dum cachorro que encontrei
vagando por ali. Serviu para saciar-me e voltei à gruta onde dormi até a noite.
Me parecia que sonhava que
estava voando, mas o fato é que acordei na porta de casa. Queria entrar, mas
não pude e então apertei a campainha.
Meu pai abriu a porta.
Oh, que quer que lhe diga?
Que houveram lágrimas? Claro que houveram, mas enquanto eu estava abraçado a
meu pai, não podia desviar os olhos de sua jugular pulsando em seu pescoço, tão
próxima a mim, e eu sedento!
Por isso eu não podia
entrar naquela casa; ela não era mais minha.
Para mim, o meu pai, como
todos vocês, agora, era apenas comida.
Apesar disso estar claro
para mim, faltava-me coragem para romper os laços. Ou melhor: faltava-me
coragem para ver os laços já rompidos.
Logo os policiais que
vigiavam a casa de meus pais entraram para marcar o fato de que eu era a mais
importante peça para investigar a morte de Cláudio.
Mas a sujeira que me
vestia, minha palidez e o mau cheiro que meu corpo exalava denunciavam que eu
não tinha muitas condições de responder a qualquer questionário e afinal
consentiram que eu ficasse na casa por dois dias e deixaram alguém do lado de
fora, em vigia.
Puseram-me na cama,
deram-me a comer de qualquer coisa que já não lembro e fui pra cama, pra um
sono sem sonhos.
Acordei no meio da tarde
com meus pais abrindo a porta para conferir se estava bem. Pude ver a reação
deles ao mau cheiro que eu exalava no quarto fechado.
- O dia está lindo, meu
bem, não queres levantar-te?
- Acho que não...
- Estás doente?
- Não. Só um pouco
faminto.
- Queres que te faça um
sanduiche?
- Não! Eu só preciso
dormir um pouco mais.
Deixaram-me e voltei a
dormir até a noite chegar.
Abri a janela para receber
o frescor bom da noite e vi o policial de vigia em frente de casa.
Mudei meu corpo para uma
névoa leve e voei de minha janela até o quarto de Mônica.
Não sei pra onde vou
agora, padre Bogucki. Tenho 17 anos e o mundo é grande. Precisava de alguém que
me dissesse o que fazer, mas já não tenho isso. Não ouso chegar perto de si ou
de qualquer outro, por causa de minha fome e porque, de momento a momento sinto
um ódio por vocês, tremendo, a crescer e crescer em mim.
Como disse antes, não me
parece que sou eu, mas outro agindo em mim e não entendo isso.
Por favor, console os que
feri e reze por mim.