Pregado na Capela Real de
Lisboa, no ano de 1655.
Semen est verbum Dei. S.
Lucas, VIII, 11.
I
E se quisesse Deus que
este tão ilustre e tão numeroso auditório saísse hoje tão desenganado da
pregação, como vem enganado com o pregador! Ouçamos o Evangelho, e ouçamo-lo
todo, que todo é do caso que me levou e trouxe de tão longe.
Ecce exiit qui seminat, seminare. Diz Cristo que «saiu o pregador
evangélico a semear» a palavra divina. Bem parece este texto dos livros de
Deus. Não só faz menção do semear, mas também faz caso do sair: Exiit, porque no dia da messe hão-nos de
medir a semeadura e hão-nos de contar os passos. O Mundo, aos que lavrais com
ele, nem vos satisfaz o que dispendeis, nem vos paga o que andais. Deus não é
assim. Para quem lavra com Deus até o sair é semear, porque também das passadas
colhe fruto. Entre os semeadores do Evangelho há uns que saem a semear, há
outros que semeiam sem sair. Os que saem a semear são os que vão pregar à
Índia, à China, ao Japão; os que semeiam sem sair, são os que se contentam com
pregar na Pátria. Todos terão sua razão, mas tudo tem sua conta. Aos que têm a seara
em casa, pagar-lhes-ão a semeadura; aos que vão buscar a seara tão longe,
hão-lhes de medir a semeadura e hão-lhes de contar os passos. Ah Dia do Juízo!
Ah pregadores! Os de cá, achar-vos-eis com mais paço; os de lá, com mais
passos: Exiit seminare.
Mas daqui mesmo vejo que
notais (e me notais) que diz Cristo que o semeador do Evangelho saiu, porém não
diz que tornou porque os pregadores evangélicos, os homens que professam pregar
e propagar a Fé, é bem que saiam, mas não é bem que tornem. Aqueles animais de
Ezequiel que tiravam pelo carro triunfal da glória de Deus e significavam os
pregadores do Evangelho que propriedades tinham? Nec revertebantur, cum ambularent: «Uma vez que iam, não tornavam».
As rédeas por que se governavam era o ímpeto do espírito, como diz o mesmo
texto: mas esse espírito tinha impulsos para os levar, não tinha regresso para
os trazer; porque sair para tornar melhor é não sair. Assim argúis com muita
razão, e eu também assim o digo. Mas pergunto: E se esse semeador evangélico, quando
saiu, achasse o campo tomado; se se armassem contra ele os espinhos; se se
levantassem contra ele as pedras, e se lhe fechassem os caminhos que havia de
fazer? Todos estes contrários que digo e todas estas contradições experimentou
o semeador do nosso Evangelho. Começou ele a semear (diz Cristo), mas com pouca
ventura. «Uma parte do trigo caiu entre espinhos, e afogaram-no os espinhos»: Aliud cecidit inter spinas et simul exortae
spinae suffocaverunt illud. Outra parte caiu sobre pedras, e secou-se nas
pedras por falta de humidade»: Aliud
cecidit super petram, et natum aruit, quia non habebat humorem. «Outra
parte caiu no caminho, e pisaram-no os homens e comeram-no as aves»: Aliud cecidit secus viam, et conculcatum
est, et volucres coeli comederunt illud. Ora vede como todas as criaturas
do Mundo se armaram contra esta sementeira. Todas as criaturas quantas há no
Mundo se reduzem a quatro gêneros: criaturas racionais, como os homens;
criaturas sensitivas, como os animais; criaturas vegetativas, como as plantas;
criaturas insensíveis, como as pedras; e não há mais. Faltou alguma destas que
se não armasse contra o semeador? Nenhuma. A natureza insensível o perseguiu
nas pedras, a vegetativa nos espinhos, a sensitiva nas aves, a racional nos
homens. E notai a desgraça do trigo, que onde só podia esperar razão, ali achou
maior agravo. As pedras secaram-no, os espinhos afogaram-no, as aves
comeram-no; e os homens? Pisaram-no: Conculcatum
est. Ab hominibus (diz a Glossa).
Quando Cristo mandou
pregar os Apóstolos pelo Mundo, disse-lhes desta maneira: Euntes in mundum universum, praedicate omni creaturae: «Ide, e
pregai a toda a criatura». Como assim, Senhor?! Os animais não são criaturas?!
As árvores não são criaturas?! As pedras não são criaturas?! Pois hão os
Apóstolos de pregar às pedras?! Hão-de pregar aos troncos?! Hão-de pregar aos
animais?! Sim, diz S. Gregório, depois de Santo Agostinho. Porque como os
Apóstolos iam pregar a todas as nações do Mundo, muitas delas bárbaras e
incultas, haviam de achar os homens degenerados em todas as espécies de
criaturas: haviam de achar homens homens, haviam de achar homens brutos, haviam
de achar homens troncos, haviam de achar homens pedras. E quando os pregadores
evangélicos vão pregar a toda a criatura, que se armem contra eles todas as
criaturas?! Grande desgraça!
Mas ainda a do semeador do
nosso Evangelho não foi a maior. A maior é a que se tem experimentado na seara
aonde eu fui, e para onde venho. Tudo o que aqui padeceu o trigo, padeceram lá
os semeadores. Se bem advertirdes, houve aqui trigo mirrado, trigo afogado,
trigo comido e trigo pisado. Trigo mirrado: Natum
aruit, quia non habebat humorem; trigo afogado: Exortae spinae suffocaverunt illud; trigo comido: Volucres caeli comederunt illud; trigo
pisado: Conculcutum est. Tudo isto
padeceram os semeadores evangélicos da missão do Maranhão de doze anos a esta
parte. Houve missionários afogados, porque uns se afogaram na boca do grande
rio das Amazonas; houve missionários comidos, porque a outros comeram os bárbaros
na ilha dos Aroãs; houve missionários mirrados, porque tais tornaram os da
jornada dos Tocatins, mirrados da fome e da doença, onde tal houve, que andando
vinte e dois dias perdido nas brenhas matou somente a sede com o orvalho que
lambia das folhas. Vede se lhe quadra bem o Notum aruit, quia non habebant
humorem! E que sobre mirrados, sobre afogados, sobre comidos, ainda se vejam
pisados e perseguidos dos homens: Conculcatum
est! Não me queixo nem o digo, Senhor, pelos semeadores; só pela seara o
digo, só pela seara o sinto. Para os semeadores, isto são glórias: mirrados
sim, mas por amor de vós mirrados; afogados sim, mas por amor de vós afogados;
comidos sim, mas por amor de vós comidos; pisados e perseguidos sim, mas por
amor de vós perseguidos e pisados.
Agora torna a minha
pergunta: E que faria neste caso, ou que devia fazer o semeador evangélico,
vendo tão mal logrados seus primeiros trabalhos? Deixaria a lavoura? Desistiria
da sementeira? Ficar-se-ia ocioso no campo, só porque tinha lá ido? Parece que
não. Mas se tornasse muito depressa a buscar alguns instrumentos com que
alimpar a terra das pedras e dos espinhos, seria isto desistir? Seria isto
tornar atrás?-- Não por certo. No mesmo texto de Ezequiel com que arguistes,
temos a prova. Já vimos como dizia o texto, que aqueles animais da carroça de
Deus, «quando iam não tornavam»: Nec
revertebantur, cum ambularent. Lede agora dois versos mais abaixo, e vereis
que diz o mesmo texto que «aqueles animais tornavam, e semelhança de um raio ou
corisco»: Ibant et revertebantur in
similitudinem fulgoris coruscantis. Pois se os animais iam e tornavam à
semelhança de um raio, como diz o texto que quando iam não tornavam? Porque
quem vai e volta como um raio, não torna. Ir e voltar como raio, não é tornar,
é ir por diante. Assim o fez o semeador do nosso Evangelho. Não o desanimou nem
a primeira nem a segunda nem a terceira perda; continuou por diante no semear,
e foi com tanta felicidade, que nesta quarta e última parte do trigo se
restauraram com vantagem as perdas do demais: nasceu, cresceu, espigou,
amadureceu, colheu-se, mediu-se, achou-se que por um grão multiplicara cento: Et fecit fructum centuplum.
Oh que grandes esperanças
me dá esta sementeira! Oh que grande exemplo me dá este semeador! Dá-me grandes
esperanças a sementeira porque, ainda que se perderam os primeiros trabalhos,
lograr-se-ão os últimos. Dá-me grande exemplo o semeador, porque, depois de
perder a primeira, a segunda e a terceira parte do trigo, aproveitou a quarta e
última, e colheu dela muito fruto. Já que se perderam as três partes da vida,
já que uma parte da idade a levaram os espinhos, já que outra parte a levaram
es pedras, já que outra parte a levaram os caminhos, e tantos caminhos, esta
quarta e última parte, este último quartel da vida, porque se perderá também?
Porque não dará fruto? Porque não terão também os anos o que tem o ano? O ano
tem tempo para as flores e tempo para os frutos. Porque não terá também o seu
Outono a vida? As flores, umas caem, outras secam, outras murcham, outras leva
o vento; aquelas poucas que se pegam ao tronco e se convertem em fruto, só
essas são as venturosas, só essas são as que aproveitam, só essas são as que
sustentam o Mundo. Será bem que o Mundo morra à fome? Será bem que os últimos
dias se passem em flores? -- Não será bem, nem Deus quer que seja, nem há-de
ser. Eis aqui porque eu dizia ao princípio, que vindes enganados com o
pregador. Mas para que possais ir desenganados com o sermão, tratarei nele uma
matéria de grande peso e importância. Servirá como de prólogo aos sermões que
vos hei-de pregar, e aos mais que ouvirdes esta Quaresma.
II
Semen est verbum Dei.
O trigo que semeou o pregador evangélico, diz
Cristo que é a palavra de Deus. Os espinhos, as pedras, o caminho e a terra boa
em que o trigo caiu, são os diversos corações dos homens. Os espinhos são os
corações embaraçados com cuidados, com riquezas, com delícias; e nestes
afoga-se a palavra de Deus. As pedras são os corações duros e obstinados; e
nestes seca-se a palavra de Deus, e se nasce, não cria raízes. Os caminhos são
os corações inquietos e perturbados com a passagem e tropel das coisas do
Mundo, umas que vão, outras que vêm, outras que atravessam, e todas passam; e
nestes é pisada a palavra de Deus, porque a desatendem ou a desprezam.
Finalmente, a terra boa são os corações bons ou os homens de bom coração; e
nestes prende e frutifica a palavra divina, com tanta fecundidade e abundância,
que se colhe cento por um: Et fructum fecit centuplum.
Este grande frutificar da
palavra de Deus é o em que reparo hoje; e é uma dúvida ou admiração que me traz
suspenso e confuso, depois que subo ao púlpito. Se a palavra de Deus é tão
eficaz e tão poderosa, como vemos tão pouco fruto da palavra de Deus? Diz
Cristo que a palavra de Deus frutifica cento por um, e já eu me contentara com
que frutificasse um por cento. Se com cada cem sermões se convertera e emendara
um homem, já o Mundo fora santo. Este argumento de fé, fundado na autoridade de
Cristo, se aperta ainda mais na experiência, comparando os tempos passados com
os presentes. Lede as histórias eclesiásticas, e achá-las-eis todas cheias de
admiráveis efeitos da pregação da palavra de Deus. Tantos pecadores
convertidos, tanta mudança de vida, tanta reformação de costumes; os grandes
desprezando as riquezas e vaidades do Mundo; os reis renunciando os ceptros e
as coroas; as mocidades e as gentilezas metendo-se pelos desertos e pelas
covas; e hoje? - Nada disto. Nunca na Igreja de Deus houve tantas pregações,
nem tantos pregadores como hoje. Pois se tanto se semeia a palavra de Deus,
como é tão pouco o fruto? Não há um homem que em um sermão entre em si e se
resolva, não há um moço que se arrependa, não há um velho que se desengane. Que
é isto? Assim como Deus não é hoje menos omnipotente, assim a sua palavra não é
hoje menos poderosa do que dantes era. Pois se a palavra de Deus é tão
poderosa; se a palavra de Deus tem hoje tantos pregadores, porque não vemos
hoje nenhum fruto da palavra de Deus? Esta, tão grande e tão importante dúvida,
será a matéria do sermão. Quero começar pregando-me a mim. A mim será, e também
a vós; a mim, para aprender a pregar; a vós, que aprendais a ouvir.
III
Fazer pouco fruto a
palavra de Deus no Mundo, pode proceder de um de três princípios: ou da parte
do pregador, ou da parte do ouvinte, ou da parte de Deus. Para uma alma se
converter por meio de um sermão, há-de haver três concursos: há-de concorrer o
pregador com a doutrina, persuadindo; há-de concorrer o ouvinte com o
entendimento, percebendo; há-de concorrer Deus com a graça, alumiando. Para um
homem se ver a si mesmo, são necessárias três coisas: olhos, espelho e luz. Se
tem espelho e é cego, não se pode ver por falta de olhos; se tem espelho e
olhos, e é de noite, não se pode ver por falta de luz. Logo, há mister luz, há
mister espelho e há mister olhos. Que coisa é a conversão de uma alma, senão
entrar um homem dentro em si e ver-se a si mesmo? Para esta vista são
necessários olhos, é necessária luz e é necessário espelho. O pregador concorre
com o espelho, que é a doutrina; Deus concorre com a luz, que é a graça; o
homem concorre com os olhos, que é o conhecimento. Ora suposto que a conversão
das almas por meio da pregação depende destes três concursos: de Deus, do
pregador e do ouvinte, por qual deles devemos entender que falta? Por parte do
ouvinte, ou por parte do pregador, ou por parte de Deus?
Primeiramente, por parte
de Deus, não falta nem pode faltar. Esta proposição é de fé, definida no
Concílio Tridentino, e no nosso Evangelho a temos. Do trigo que deitou à terra
o semeador, uma parte se logrou e três se perderam. E porque se perderam estas
três? - A primeira perdeu-se, porque a afogaram os espinhos; a segunda, porque
a secaram as pedras; a terceira, porque a pisaram os homens e a comeram as
aves. Isto é o que diz Cristo; mas notai o que não diz. Não diz que parte
alguma daquele trigo se perdesse por causa do sol ou da chuva. A causa por que
ordinariamente se perdem as sementeiras, é pela desigualdade e pela
intemperança dos tempos, ou porque falta ou sobeja a chuva, ou porque falta ou
sobeja o sol. Pois porque não introduz Cristo na parábola do Evangelho algum
trigo que se perdesse por causa do sol ou da chuva? - Porque o sol e a chuva
são as afluências da parte do Céu, e deixar de frutificar a semente da palavra
de Deus, nunca é por falta: do Céu, sempre é por culpa nossa. Deixará de
frutificar a sementeira, ou pelo embaraço dos espinhos, ou pela dureza das
pedras, ou pelos descaminhos dos caminhos; mas por falta das influências do
Céu, isso nunca é nem pode ser. Sempre Deus está pronto da sua parte, com o sol
para aquentar e com a chuva para regar; com o sol para alumiar e com a chuva
para amolecer, se os nossos corações quiserem: Qui solem suum oriri facit super
bonos et malos, et pluit super justos et injustos. Se Deus dá o seu sol e a sua
chuva aos bons e aos maus; aos maus que se quiserem fazer bons, como a negará?
Este ponto é tão claro que não há para que nos determos em mais prova. Quid
debui facere vineae meae, et non feci? - disse o mesmo Deus por Isaías.
Sendo, pois, certo que a
palavra divina não deixa de frutificar por parte de Deus, segue-se que ou é por
falta do pregador ou por falta dos ouvintes. Por qual será? Os pregadores
deitam a culpa aos ouvintes, mas não é assim. Se fora por parte dos ouvintes,
não fizera a palavra de Deus muito grande fruto, mas não fazer nenhum fruto e
nenhum efeito, não é por parte dos ouvintes. Provo.
Os ouvintes ou são maus ou
são bons; se são bons, faz neles fruto a palavra de Deus; se são maus, ainda
que não faça neles fruto, faz efeito. No Evangelho o temos. O trigo que caiu
nos espinhos, nasceu, mas afogaram-no: Simul
exortae spinae suffocaverunt illud. O trigo que caiu nas pedras, nasceu
também, mas secou-se: Et natum aruit.
O trigo que caiu na terra boa, nasceu e frutificou com grande multiplicação: Et natum fecit fructum centuplum. De
maneira que o trigo que caiu na boa terra, nasceu e frutificou; o trigo que
caiu na má terra, não frutificou, mas nasceu; porque a palavra de Deus é tão
funda, que nos bons faz muito fruto e é tão eficaz que nos maus ainda que não
faça fruto, faz efeito; lançada nos espinhos, não frutificou, mas nasceu até
nos espinhos; lançada nas pedras, não frutificou, mas nasceu até nas pedras. Os
piores ouvintes que há na Igreja de Deus, são as pedras e os espinhos. E
porquê? - Os espinhos por agudos, as pedras por duras. Ouvintes de
entendimentos agudos e ouvintes de vontades endurecidas são os piores que há.
Os ouvintes de entendimentos agudos são maus ouvintes, porque vêm só a ouvir
sutilezas, a esperar galantarias, a avaliar pensamentos, e às vezes também a
picar a quem os não pica. Aliud cecidit inter spinas: O trigo não picou os
espinhos, antes os espinhos o picaram a ele; e o mesmo sucede cá. Cuidais que o
sermão vos picou e vós, e não é assim; vós sois os que picais o sermão. Por
isto são maus ouvintes os de entendimentos agudos. Mas os de vontades
endurecidas ainda são piores, porque um entendimento agudo pode ferir pelos
mesmos fios, e vencer-se uma agudeza com outra maior; mas contra vontades
endurecidas nenhuma coisa aproveita a agudeza, antes dana mais, porque quanto
as setas são mais agudas, tanto mais facilmente se despontam na pedra. Oh! Deus
nos livre de vontades endurecidas, que ainda são piores que as pedras! A vara
de Moisés abrandou as pedras, e não pôde abrandar uma vontade endurecida: Percutiens virga bis silicem, et egressae
sunt aquae largissimae. Induratum est cor Pharaonis. E com os ouvintes de
entendimentos agudos e os ouvintes de vontades endurecidas serem os mais
rebeldes, é tanta a força da divina palavra, que, apesar da agudeza, nasce nos
espinhos, e apesar da dureza nasce nas pedras.
Pudéramos argüir ao
lavrador do Evangelho de não cortar os espinhos e de não arrancar as pedras
antes de semear, mas de indústria deixou no campo as pedras e os espinhos, para
que se visse a força do que semeava. É tanta a força da divina palavra, que,
sem cortar nem despontar espinhos, nasce entre espinhos. É tanta a força da
divina palavra, que, sem arrancar nem abrandar pedras, nasce nas pedras.
Corações embaraçados como espinhos corações secos e duros como pedras, ouvi a
palavra de Deus e tende confiança! Tomai exemplo nessas mesmas pedras e nesses
espinhos! Esses espinhos e essas pedras agora resistem ao semeador do Céu; mas
virá tempo em que essas mesmas pedras o aclamem e esses mesmos espinhos o
coroem.
Quando o semeador do Céu
deixou o campo, saindo deste Mundo, as pedras se quebraram para lhe fazerem
aclamações, e os espinhos se teceram para lhe fazerem coroa. E se a palavra de
Deus até dos espinhos e das pedras triunfa; se a palavra de Deus até nas
pedras, até nos espinhos nasce; não triunfar dos alvedrios hoje a palavra de
Deus, nem nascer nos corações, não é por culpa, nem por indisposição dos
ouvintes.
Supostas estas duas
demonstrações; suposto que o fruto e efeitos da palavra de Deus, não fica, nem
por parte de Deus, nem por parte dos ouvintes, segue-se por consequência clara,
que fica por parte do pregador. E assim é. Sabeis, cristãos, porque não faz
fruto a palavra de Deus? Por culpa dos pregadores. Sabeis, pregadores, porque
não faz fruto a palavra de Deus? - Por culpa nossa.
IV
Mas como em um pregador há
tantas qualidades, e em uma pregação tantas leis, e os pregadores podem ser
culpados em todas, em qual consistirá esta culpa? - No pregador podem-se
considerar cinco circunstâncias: a pessoa, a ciência, a matéria, o estilo, a
voz. A pessoa que é, e ciência que tem, a matéria que trata, o estilo que
segue, a voz com que fala. Todas estas circunstâncias temos no Evangelho. Vamo-las
examinando uma por uma e buscando esta causa.
Será porventura o não
fazer fruto hoje a palavra de Deus, pela circunstância da pessoa? Será porque
antigamente os pregadores eram santos eram varões apostólicos e exemplares, e
hoje os pregadores são eu e outros como eu? - Boa razão é esta. A definição do
pregador é a vida e o exemplo. Por isso Cristo no Evangelho não o comparou ao
semeador, senão ao que semeia. Reparai. Não diz Cristo: saiu a semear o
semeador, senão, saiu a semear o que semeia: Ecce exiit, qui seminat, seminare. Entre o semeador e o que semeia
há muita diferença. Uma coisa é o soldado e outra coisa o que peleja; uma coisa
é o governador e outra o que governa. Da mesma maneira, uma coisa é o semeador
e outra o que semeia; uma coisa é o pregador e outra o que prega. O semeador e
o pregador é nome; o que semeia e o que prega é ação; e as ações são as que dão
o ser ao pregador. Ter o nome de pregador, ou ser pregador de nome, não importa
nada; as ações, a vida, o exemplo, as obras, são as que convertem o Mundo. O
melhor conceito que o pregador leva ao púlpito, qual cuidais que é? - o
conceito que de sua vida têm os ouvintes.
Antigamente convertia-se o
Mundo, hoje porque se não converte ninguém? Porque hoje pregam-se palavras e
pensamentos, antigamente pregavam-se palavras e obras. Palavras sem obra são
tiros sem bala; atroam, mas não ferem. A funda de David derrubou o gigante, mas
não o derrubou com o estalo, senão com a pedra: Infixus est lapis in fronte
ejus. As vozes da harpa de David lançavam fora os demônios do corpo de Saul,
mas não eram vozes pronunciadas com a boca, eram vozes formadas com a mão: David tollebat citharam, et percutiebat manu
sua. Por isso Cristo comparou o pregador ao semeador. O pregar que é falar
faz-se com a boca; o pregar que é semear, faz-se com a mão. Para falar ao
vento, bastam palavras; para falar ao coração, são necessárias obras. Diz o
Evangelho que a palavra de Deus frutificou cento por um. Que quer isto dizer?
Quer dizer que de uma palavra nasceram cem palavras? - Não. Quer dizer que de
poucas palavras nasceram muitas obras. Pois palavras que frutificam obras, vede
se podem ser só palavras! Quis Deus converter o Mundo, e que fez? - Mandou ao
Mundo seu Filho feito homem. Notai. O Filho de Deus, enquanto Deus, é palavra
de Deus, não é obra de Deus: Genitum non
factum. O Filho de Deus, enquanto Deus e Homem, é palavra de Deus e obra de
Deus juntamente: Verbum caro factum est.
De maneira que até de sua palavra desacompanhada de obras não fiou Deus a
conversão dos homens. Na união da palavra de Deus com a maior obra de Deus
consistiu a eficácia da salvação do Mundo. Verbo Divino é palavra divina; mas
importa pouco que as nossas palavras sejam divinas, se forem desacompanhadas de
obras. A razão disto é porque as palavras ouvem-se, as obras vêem-se; as
palavras entram pelos ouvidos, as obras entram pelos olhos, e a nossa alma
rende-se muito mais pelos olhos que pelos ouvidos. No Céu ninguém há que não
ame a Deus, nem possa deixar de o amar. Na terra há tão poucos que o amem,
todos o ofendem. Deus não é o mesmo, e tão digno de ser amado no Céu e na
Terra? Pois como no Céu obriga e necessita a todos a o amarem, e na terra não?
A razão é porque Deus no Céu é Deus visto; Deus na terra é Deus ouvido. No Céu
entra o conhecimento de Deus à alma pelos olhos: Videbimus eum sicut est'; na terra entra-lhe o conhecimento de Deus
pelos ouvidos: Fides ex auditu; e o
que entra pelos ouvidos crê-se, o que entra pelos olhos necessita. Viram os
ouvintes em nós o que nos ouvem a nós, e o abalo e os efeitos do sermão seriam
muito outros.
Vai um pregador pregando a
Paixão, chega ao pretório de Pilatos, conta como a Cristo o fizeram rei de
zombaria, diz que tomaram uma púrpura e lha puseram aos ombros; ouve aquilo o
auditório muito atento. Diz que teceram uma coroa de espinhos e que lha
pregaram na cabeça; ouvem todos com a mesma atenção. Diz mais que lhe ataram as
mãos e lhe meteram nelas uma cana por ceptro; continua o mesmo silêncio e a
mesma suspensão nos ouvintes. Corre-se neste espaço uma cortina aparece a
imagem do Ecce Homo; eis todos prostrados por terra, eis todos a bater no peito
eis as lágrimas, eis os gritos, eis os alaridos, eis as bofetadas. Que é isto?
Que apareceu de novo nesta igreja? Tudo o que descobriu aquela cortina, tinha
já dito o pregador. Já tinha dito daquela púrpura, já tinha dito daquela coma e
daqueles espinhos, já tinha dito daquele ceptro e daquela cana. Pois se isto
então não fez abalo nenhum, como faz agora tanto? - Porque então era Ecce Homo
ouvido, e agora é Ecce Homo visto; a relação do pregador entrava pelos ouvidos
a representação daquela figura entra pelos olhos. Sabem, Padres pregadores,
porque fazem pouco abalo os nossos sermões? - Porque não pregamos aos olhos,
pregamos só aos ouvidos. Porque convertia o Baptista tantos pecadores? - Porque
assim como as suas palavras pregavam aos ouvidos, o seu exemplo pregava aos
olhos. As palavras do Baptista pregavam penitência: Agite poenitentiam.
«Homens, fazei penitência» - e o exemplo clamava: Ecce Homo: «eis aqui está o
homem» que é o retrato da penitência e da aspereza. As palavras do Baptista
pregavam jejum e repreendiam os regalos e demasias da gula; e o exemplo
clamava: Ecce Homo: eis aqui está o homem que se sustenta de gafanhotos e mel
silvestre. As palavras do Baptista pregavam composição e modéstia, e condenavam
a soberba e a vaidade das galas; e o exemplo clamava: Ecce Homo: eis aqui está
o homem vestido de peles de camelo, com as cordas e cilício à raiz da carne. As
palavras do Baptista pregavam despegos e retiros do Mundo, e fugir das ocasiões
e dos homens; e o exemplo Clamava: Ecce Homo: eis aqui o homem que deixou as
cortes e as sociedades, e vive num deserto e numa cova. Se os ouvintes ouvem
uma coisa e vêem outra, como se hão-de converter? Jacob punha as varas
manchadas diante das ovelhas quando concebiam, e daqui procedia que os
cordeiros nasciam malhados. Se quando os ouvintes percebem os nossos conceitos,
têm diante dos olhos as nossas manchas, como hão-de conceber virtudes? Se a
minha vida é apologia contra a minha doutrina, se as minhas palavras vão já
refutadas nas minhas obras, se uma cousa é o semeador e outra o que semeia,
como se há-de fazer fruto?
Muito boa e muito forte
razão era esta de não fazer fruto a palavra de Deus; mas tem contra si o
exemplo e experiência de Jonas. Jonas fugitivo de Deus, desobediente, contumaz,
e, ainda depois de engolido e vomitado iracundo, impaciente, pouco caritativo,
pouco misericordioso, e mais zeloso e amigo da própria estimação que da honra
de Deus e salvação das almas, desejoso de ver subvertida a Nínive e de a ver
subverter com seus olhos, havendo nela tantos mil inocentes; contudo este mesmo
homem com um sermão converteu o maior rei, a maior corte e o maior reinado do
Mundo, e não de homens fiéis senão de gentios idólatras. Outra é logo a causa
que buscamos. Qual será?
V
Será porventura o estilo
que hoje se usa nos púlpitos? Um estilo tão empeçado, um estilo tão
dificultoso, um estilo tão afectado, um estilo tão encontrado a toda a arte e a
toda a natureza? Boa razão é também esta. O estilo há-de ser muito fácil e
muito natural. Por isso Cristo comparou o pregar ao semear: Exiit, qui seminat, seminare. Compara
Cristo o pregar ao semear, porque o semear é uma arte que tem mais de natureza
que de arte. Nas outras artes tudo é arte: na música tudo se faz por compasso,
na arquitectura tudo se faz por regra, na aritmética tudo se faz por conta, na
geometria tudo se faz por medida. O semear não é assim. É uma arte sem arte
caia onde cair. Vede como semeava o nosso lavrador do Evangelho. «Caía o trigo
nos espinhos e nascia» Aliud cecidit
inter spinas, et simul exortae spinae «Caía o trigo nas pedras e nascia»: Aliud cecidit super petram, et ortum.
«Caía o trigo na terra boa e nascia»: Aliud
cecidit in terram bonam, et natum. Ia o trigo caindo e ia nascendo.
Assim há-de ser o pregar.
Hão-de cair as coisas hão-de nascer; tão naturais que vão caindo, tão próprias
que venham nascendo. Que diferente é o estilo violento e tirânico que hoje se
usa! Ver vir os tristes passos da Escritura, como quem vem ao martírio; uns vêm
acarretados, outros vêm arrastados, outros vêm estirados, outros vêm torcidos,
outros vêm despedaçados; só atados não vêm! Há tal tirania? Então no meio
disto, que bem levantado está aquilo! Não está a coisa no levantar, está no
cair: Cecidit. Notai uma alegoria
própria da nossa língua. O trigo do semeador, ainda que caiu quatro vezes, só
de três nasceu; para o sermão vir nascendo, há-de ter três modos de cair: há-de
cair com queda, há-de cair com cadência há-de cair com caso. A queda é para as
coisas, a cadência para as palavras, o caso para a disposição. A queda é para
as coisas porque hão-de vir bem trazidas e em seu lugar; hão-de ter queda. A
cadência é para as palavras, porque não hão-de ser escabrosas nem dissonantes;
hão-de ter cadência. O caso é para a disposição, porque há-de ser tão natural e
tão desafectada que pareça caso e não estudo: Cecidit, cecidit, cecidit.
Já que falo contra os
estilos modernos, quero alegar por mim o estilo do mais antigo pregador que
houve no Mundo. E qual foi ele? - O mais antigo pregador que houve no Mundo foi
o céu. Coeli enarrant gloriam Dei et
opera manuum ejus annuntiat Firmamentum - diz David. Suposto que o céu é
pregador, deve de ter sermões e deve de ter palavras. Sim, tem, diz o mesmo
David; tem palavras e tem sermões; e mais, muito bem ouvidos. Non sunt loquellae, nec sermones, quorum non
audiantur voces eorum. E quais
são estes sermões e estas palavras do céu? - As palavras são as estrelas, os
sermões são a composição, a ordem, a harmonia e o curso delas. Vede como diz o
estilo de pregar do céu, com o estilo que Cristo ensinou na terra. Um e outro é
semear; a terra semeada de trigo, o céu semeado de estrelas. O pregar há-de ser
como quem semeia, e não como quem ladrilha ou azuleja. Ordenado, mas como as
estrelas: Stellae manentes in ordine suo.
Todas as estrelas estão por sua ordem; mas é ordem que faz influência, não é
ordem que faça lavor. Não fez Deus o céu em xadrez de estrelas, como os
pregadores fazem o sermão em xadrez de palavras. Se de uma parte há-de estar
branco, da outra há-de estar negro; se de uma parte dizem luz, da outra hão-de
dizer sombra; se de uma parte dizem desceu, da outra hão-de dizer subiu. Basta
que não havemos de ver num sermão duas palavras em paz? Todas hão-de estar
sempre em fronteira com o seu contrário? Aprendamos do céu o estilo da
disposição, e também o das palavras. As estrelas são muito distintas e muito
claras. Assim há-de ser o estilo da pregação; muito distinto e muito claro. E
nem por isso temais que pareça o estilo baixo; as estrelas são muito distintas
e muito claras, e altíssimas. O estilo pode ser muito claro e muito alto; tão
claro que o entendam os que não sabem e tão alto que tenham muito que entender
os que sabem. O rústico acha documentos nas estrelas para sua lavoura e o
mareante para sua navegação e o matemático para as suas observações e para os
seus juízos. De maneira que o rústico e o mareante, que não sabem ler nem
escrever entendem as estrelas; e o matemático, que tem lido quantos escreveram,
não alcança a entender quanto nelas há. Tal pode ser o sermão: - estrelas que
todos vêem, e muito poucos as medem.
Sim, Padre; porém esse
estilo de pregar não é pregar culto. Mas fosse! Este desventurado estilo que
hoje se usa, os que o querem honrar chamam-lhe culto, os que o condenam
chamam-lhe escuro, mas ainda lhe fazem muita honra. O estilo culto não é
escuro, é negro, e negro boçal e muito cerrado. E possível que somos
portugueses e havemos de ouvir um pregador em português e não havemos de
entender o que diz?! Assim como há Lexicon para o grego e Calepino para o
latim, assim é necessário haver um vocabulário do púlpito. Eu ao menos o tomara
para os nomes próprios, porque os cultos têm desbaptizados os santos, e cada
autor que alegam é um enigma. Assim o disse o Ceptro Penitente, assim o disse o
Evangelista Apeles, assim o disse a Águia de África, o Favo de Claraval, a
Púrpura de Belém, a Boca de Ouro. Há tal modo de alegar! O Ceptro Penitente
dizem que é David, como se todos os ceptros não foram penitência; o Evangelista
Apeles, que é S. Lucas; o Favo de Claraval, S. Bernardo; a Águia de África,
Santo Agostinho; a Púrpura de Belém, S. Jerónimo; a Boca de Ouro, S.
Crisóstomo. E quem quitaria ao outro cuidar que a Púrpura de Belém é Herodes
que a Águia de África é Cipião, e que a Boca de Ouro é Midas? Se houvesse um
advogado que alegasse assim a Bártolo e Baldo, havíeis de fiar dele o vosso
pleito? Se houvesse um homem que assim falasse na conversação, não o havíeis de
ter por néscio? Pois o que na conversação seria necessidade, como há-de ser
discrição no púlpito?
Boa me parecia também esta
razão; mas como os cultos pelo pulido e estudado se defendem com o grande
Nazianzeno, com Ambrósio, com Crisólogo, com Leão, e pelo escuro e duro com
Clemente Alexandrino, com Tertuliano, com Basílio de Selêucia, com Zeno
Veronense e outros, não podemos negar a reverência a tamanhos autores posto que
desejáramos nos que se prezam de beber destes rios, a sua profundidade. Qual
será logo a causa de nossa queixa?
VI
Será pela matéria ou
matérias que tomam os pregadores? Usa-se hoje o modo que chamam de apostilar o
Evangelho, em que tomam muitas matérias, levantam muitos assuntos e quem
levanta muita caça e não segue nenhuma não é muito que se recolha com as mãos
vazias. Boa razão é também esta. O sermão há-de ter um só assunto e uma só
matéria. Por isso Cristo disse que o lavrador do Evangelho não semeara muitos
géneros de sementes, senão uma só: Exiit,
qui seminat, seminare semen. Semeou uma semente só, e não muitas, porque o
sermão há-de ter uma só matéria, e não muitas matérias. Se o lavrador semeara
primeiro trigo, e sobre o trigo semeara centeio, e sobre o centeio semeara
milho grosso e miúdo, e sobre o milho semeara cevada, que havia de nascer? Uma
mata brava, uma confusão verde. Eis aqui o que acontece aos sermões deste
género. Como semeiam tanta variedade, não podem colher coisa certa. Quem semeia
misturas, mal pode colher trigo. Se uma nau fizesse um bordo para o norte,
outro para o sul, outro para leste, outro para oeste, como poderia fazer
viagem? Por isso nos púlpitos se trabalha tanto e se navega tão pouco. Um
assunto vai para um vento, outro assunto vai para outro vento; que se há-de
colher senão vento? O Baptista convertia muitos em Judeia; mas quantas matérias
tomava? Uma só matéria: Parate viam
Domini: a preparação para o Reino de Cristo. Jonas converteu os Ninivitas;
mas quantos assuntos tomou? Um só assunto: Adhuc
quadraginta dies, et Ninive subvertetur: a subversão da cidade. De maneira
que Jonas em quarenta dias pregou um só assunto; e nós queremos pregar quarenta
assuntos em uma hora? Por isso não pregamos nenhum. O sermão há-de ser de uma
só cor, há-de ter um só objecto, um só assunto, uma só matéria.
Há-de tomar o pregador uma
só matéria; há-de defini-la, para que se conheça; há-de dividi-la, para que se
distinga; há-de prová-la com a Escritura; há-de declará-la com a razão; há-de
confirmá-la com o exemplo; há-de amplificá-la com as causas, com os efeitos,
com as circunstâncias, com as conveniências que se hão-de seguir, com os
inconvenientes que se devem evitar; há-de responder às dúvidas, há-de
satisfazer às dificuldades; há-de impugnar e refutar com toda a força da
eloquência os argumentos contrários; e depois disto há-de colher, há-de
apertar, há-de concluir, há-de persuadir, há-de acabar. Isto é sermão, isto é
pregar; e o que não é isto, é falar de mais alto.
Não nego nem quero dizer
que o sermão não haja de ter variedade de discursos, mas esses hão-de nascer
todos da mesma matéria e continuar e acabar nela. Quereis ver tudo isto com os
olhos? Ora vede. Uma árvore tem raízes, tem tronco, tem ramos, tem folhas, tem
varas, tem flores, tem frutos. Assim há-de ser o sermão: há-de ter raízes
fortes e sólidas, porque há-de ser fundado no Evangelho; há-de ter um tronco,
porque há-de ter um só assunto e tratar uma só matéria; deste tronco hão-de
nascer diversos ramos, que são diversos discursos, mas nascidos da mesma
matéria e continuados nela; estes ramos hão-de ser secos, senão cobertos de
folhas, porque os discursos hão-de ser vestidos e ornados de palavras. Há-de
ter esta árvore varas, que são a repreensão dos vícios; há-de ter flores, que
são as sentenças; e por remate de tudo, há-de ter frutos, que é o fruto e o fim
a que se há-de ordenar o sermão. De maneira que há-de haver frutos, há-de haver
flores, há-de haver varas, há-de haver folhas, há-de haver ramos; mas tudo
nascido e fundado em um só tronco, que é uma só matéria. Se tudo são troncos,
não é sermão, é madeira. Se tudo são ramos, não é sermão, são maravalhas. Se
tudo são folhas, não é sermão, são versas. Se tudo são varas, não é sermão, é
feixe. Se tudo são flores, não é sermão, é ramalhete. Serem tudo frutos, não
pode ser; porque não há frutos sem árvore. Assim que nesta árvore, à que
podemos chamar «árvore da vida», há-de haver o proveitoso do fruto, o formoso
das flores, o rigoroso das varas, o vestido das folhas, o estendido dos ramos;
mas tudo isto nascido e formado de um só tronco e esse não levantado no ar,
senão fundado nas raízes do Evangelho: Seminare
semen. Eis aqui como hão-de ser os sermões, eis aqui como não são. E assim
não é muito que se não faça fruto com eles.
Tudo o que tenho dito
pudera demonstrar largamente, não só com os preceitos dos Aristóteles, dos
Túlios, dos Quintilianos, mas com a prática observada do príncipe dos oradores
evangélicos, S. João Crisóstomo, de S. Basílio Magno, S. Bernardo. S. Cipriano,
e com as famosíssimas orações de S. Gregório Nazianzeno, mestre de ambas as
Igrejas. E posto que nestes mesmos Padres, como em Santo Agostinho, S. Gregório
e muitos outros, se acham os Evangelhos apostilados com nomes de sermão e
homilias, uma coisa é expor, e outra pregar; uma ensinar e outra persuadir,
desta última é que eu falo, com a qual tanto fruto fizeram no mundo Santo
António de Pádua e S. Vicente Ferrer. Mas nem por isso entendo que seja ainda
esta a verdadeira causa que busco.
VII
Será porventura a falta de
ciência que há em muitos pregadores? Muitos pregadores há que vivem do que não
colheram e semeiam o que não trabalharam. Depois da sentença de Adão, a terra
não costuma dar fruto, senão a quem come o seu pão com o suor do seu rosto. Boa
razão parece também esta. O pregador há-de pregar o seu, e não o alheio. Por
isso diz Cristo que semeou o lavrador do Evangelho o trigo seu: Semen suum.
Semeou o seu, e não o alheio, porque o alheio e, o furtado não é bom para
semear, ainda que o furto seja de ciência. Comeu Eva o pomo da ciência, e
queixava-me eu antigamente desta nossa mãe; já que comeu o pomo, por que lhe
não guardou as pevides? Não seria bem que chegasse a nós a árvore, já que nos
chegaram os encargos dela? Pois por que não o fez assim Eva? Porque o pomo era
furtado, e o alheio é bom para comer, mas não é bom para semear: é bom para
comer, porque dizem que é saboroso; não é bom para semear, porque não nasce.
Alguém terá experimentado que o alheio lhe nasce em casa, mas esteja certo, que
se nasce, não há-de deitar raízes, e o que não tem raízes não pode dar fruto.
Eis aqui por que muitos pregadores não fazem fruto; porque pregam o alheio, e
não o seu: Semen suum. O pregar é entrar em batalha com os vícios; e armas
alheias, ainda que sejam as de Aquiles, a ninguém deram vitória. Quando David
saiu a campo com o gigante, ofereceu-lhe Saul as suas armas, mas ele não as
quis aceitar. Com armas alheias ninguém pode vencer, ainda que seja David. As
armas de Saul só servem a Saul, e as de David a David; e mais aproveita um
cajado e uma funda própria, que a espada e a lança alheia. Pregador que peleja
com as armas alheias, não hajais medo que derrube gigante.
Fez Cristo aos Apóstolos
pescadores de homens, que foi ordená-los de pregadores; e que faziam os
Apóstolos? Diz o texto que estavam: Reficientes
retia sua: «Refazendo as redes suas; eram as redes dos Apóstolos, e não
eram alheias. Notai: Retia sua: Não
diz que eram suas porque as compraram, senão que eram suas porque as faziam;
não eram suas porque lhes custaram o seu dinheiro, senão porque lhes custavam o
seu trabalho. Desta maneira eram as redes suas; e porque desta maneira eram
suas, por isso eram redes de pescadores que haviam de pescar homens. Com redes
alheias, ou feitas por mão alheia, podem-se pescar peixes, homens não se podem
pescar. A razão disto é porque nesta pesca de entendimentos só quem sabe fazer
a rede sabe fazer o lanço. Como se faz uma rede? Do fio e do nó se compõe a
malha; quem não enfia nem ata, como há-de fazer rede? E quem não sabe enfiar
nem sabe atar, como há-de pescar homens? A rede tem chumbada que vai ao fundo,
e tem cortiça que nada em cima da água. A pregação tem umas coisas de mais peso
e de mais fundo, e tem outras mais superficiais e mais leves; e governar o leve
e o pesado, só o sabe fazer quem faz a rede. Na boca de quem não faz a
pregação, até o chumbo é cortiça.
As razões não hão-de ser
enxertadas, hão-de ser nascidas. O pregar não é recitar. As razões próprias
nascem do entendimento, as alheias vão pegadas à memória, e os homens não se
convencem pela memória, senão pelo entendimento.
Veio o Espírito Santo
sobre os Apóstolos, e quando as línguas desciam do Céu, cuidava eu que se lhes
haviam de pôr na boca; mas elas foram-se pôr na cabeça. Pois por que na cabeça
e não na boca, que é o lugar da língua? Porque o que há-de dizer o pregador,
não lhe há-de sair só da boca; há-lhe de sair pela boca, mas da cabeça. O que
sai só da boca pára nos ouvidos; o que nasce do juízo penetra e convence o
entendimento. Ainda tem mais mistério estas línguas do Espírito Santo. Diz o
texto que não se puseram todas as línguas sobre todos os Apóstolos, senão cada
uma sobre cada um: Apparuerunt dispertitae linguae tanquam ignis, seditque
supra singulos eorum. E por que cada uma sobre cada um, e não todas sobre
todos? Porque não servem todas as línguas a todos, senão a cada um a sua. Uma
língua só sobre Pedro, porque a língua de Pedro não serve a André; outra língua
só sobre André, porque a língua de André não serve a Filipe; outra língua só
sobre Filipe, porque a língua de Filipe não serve a Bartolomeu, e assim dos
mais. E senão vede-o no estilo de cada um dos Apóstolos, sobre que desceu o
Espírito Santo. Só de cinco temos escrituras; mas a diferença com que
escreveram, como sabem os doutos, é admirável. As penas todas eram tiradas das
asas daquela pomba divina; mas o estilo tão diverso, tão particular e tão
próprio de cada um, que bem mostra que era seu. Mateus fácil, João misterioso,
Pedro grave, Jacob forte, Tadeu sublime, e todos com tal valentia no dizer, que
cada palavra era um trovão, cada cláusula um raio e cada razão um triunfo.
Ajuntai a estes cinco S. Lucas e S. Marcos, que também ali estavam, e achareis
o número daqueles sete trovões que ouviu S. João no Apocalipse. Loquuti sunt
septem tonitrua voces suas. Eram trovões que falavam e desarticulavam as vozes,
mas essas vozes eram suas: Voces suas;
«suas, e não alheias», como notou Ansberto: Non
alienas, sed suas. Enfim, pregar o alheio é pregar o alheio, e com o alheio
nunca se fez coisa boa.
Contudo eu não me firmo de
todo nesta razão, porque do grande Baptista sabemos que pregou o que tinha
pregado Isaías, como notou S. Lucas, e não com outro nome, senão de sermões:
Praedicans baptismum poenitentiae in remissionem peccatorum, sicut scriptum est
in libro sermonun Isaiae prophetae. Deixo o que tomou Santo Ambrósio de S.
Basílio; S. Próspero e Beda de Santo Agostinho; Teofilato e Eutímio de S. João
Crisóstomo.
VIII
Será finalmente a causa,
que tanto há buscamos, a voz com que hoje falam os pregadores? Antigamente
pregavam bradando, hoje pregam conversando. Antigamente a primeira parte do
pregador era boa voz e bom peito. E verdadeiramente, como o mundo se governa tanto
pelos sentidos, podem às vezes mais os brados que a razão. Boa era também esta,
mas não a podemos provar com o semeador, porque já dissemos que não era ofício
de boca. Porém o que nos negou o Evangelho no semeador metafórico, nos deu no
semeador verdadeiro, que é Cristo. Tanto que Cristo acabou a parábola, diz o
Evangelho que começou o Senhor a bradar: Haec
dicens clamabat. Bradou o Senhor, e não arrazoou sobre a parábola, porque
era tal o auditório, que fiou mais dos brados que da razão.
Perguntaram ao Baptista
quem era? Respondeu ele: Ego vox
clamantis in deserto: Eu sou uma voz que anda bradando neste deserto. Desta
maneira se definiu o Baptista. A definição do pregador, cuidava eu que era: voz
que arrazoa e não voz que brada. Pois por que se definiu o Baptista pelo bradar
e não pelo arrazoar; não pela razão, senão pelos brados? Porque há muita gente
neste mundo com quem podem mais os brados que a razão, e tais eram aqueles a
quem o Baptista pregava. Vede-o claramente em Cristo. Depois que Pilatos examinou
as acusações que contra ele se davam, lavou as mãos e disse: Ego nullam causam invenio in homine isto:
Eu nenhuma causa acho neste homem. Neste tempo todo o povo e os escribas
bradavam de fora, que fosse crucificado: At
illi magis clamabant, crucifigatur. De maneira que Cristo tinha por si a
razão e tinha contra si os brados. E qual pôde mais? Puderam mais os brados que
a razão. A razão não valeu para o livrar, os brados bastaram para o pôr na
Cruz. E como os brados no Mundo podem tanto, bem é que bradem alguma vez os
pregadores, bem é que gritem. Por isso Isaías chamou aos pregadores «nuvens»: Qui sunt isti, qui ut nubes volant? A
nuvem tem relâmpago, tem trovão e tem raio: relâmpago para os olhos, trovão
para os ouvidos, raio para o coração; com o relâmpago alumia, com o trovão
assombra, com o raio mata. Mas o raio fere a um, o relâmpago a muitos, o trovão
a todos. Assim há-de ser a voz do pregador, um trovão do Céu, que assombre e
faça tremer o Mundo.
Mas que diremos à oração de Moisés? Concrescat
ut pluvia doctrina mea: fluat ut ros eloquim meume: Desça minha doutrina
como chuva do céu, e a minha voz e as minhas palavras como orvalho que se
destila brandamente e sem ruído. Que diremos ao exemplo ordinário de Cristo,
tão celebrado por Isaías: Non clamabit
neque audietur vox ejus foris? Não clamará, não bradará, mas falará com uma
voz tão moderada que se não possa ouvir fora. E não há dúvida que o praticar
familiarmente, e o falar mais ao ouvido que aos ouvidos, não só concilia maior
atenção, mas naturalmente e sem força se insinua, entra, penetra e se mete na
alma. Em conclusão que a causa de não fazerem hoje fruto os pregadores com a
palavra de Deus, nem é a circunstância da pessoa: Qui seminat: nem a do estilo: Seminare;
nem a da matéria: Semen; nem a da
ciência: Suum; nem a da voz: Clamabat. Moisés tinha fraca voz; Amós
tinha grosseiro estilo; Salamão multiplicava e variava os assuntos; Balaão não
tinha exemplo de vida; o seu animal não tinha ciência; e contudo todos estes,
falando, persuadiam e convenciam. Pois se nenhuma destas razões que
discorremos, nem todas elas juntas são a causa principal nem bastante do pouco
fruto que hoje faz a palavra de Deus, qual diremos finalmente que é a
verdadeira causa?
IX
As palavras que tomei por
tema o dizem. Semen est verbum Dei. Sabeis, Cristãos, a causa por que se faz
hoje tão pouco fruto com tantas pregações? É porque as palavras dos pregadores
são palavras, mas não são palavras de Deus. Falo do que ordinariamente se ouve.
A palavra de Deus (como diria) é tão poderosa e tão eficaz, que não só na boa
terra faz fruto, mas até nas pedras e nos espinhos nasce. Mas se as palavras
dos pregadores não são palavras de Deus, que muito que não tenham a eficácia e
os efeitos da palavra de Deus? Ventum
seminabunt, et turbinem colligent, diz o Espírito Santo: «Quem semeia
ventos, colhe tempestades». Se os pregadores semeiam vento, se o que se prega é
vaidade, se não se prega a palavra de Deus, como não há a Igreja de Deus de
correr tormenta, em vez de colher fruto?
Mas dir-me-eis: Padre, os
pregadores de hoje não pregam do Evangelho, não pregam das Sagradas Escrituras?
Pois como não pregam a palavra de Deus? Esse é o mal. Pregam palavras de Deus,
mas não pregam a palavra de Deus: Qui
habet sermonem meum, loquatur sermonem meum vere, disse Deus por Jeremias.
As palavras de Deus, pregadas no sentido em que Deus as disse, são palavras de
Deus; mas pregadas no sentido que nós queremos, não são palavras de Deus, antes
podem ser palavras do Demónio. Tentou o Demónio a Cristo a que fizesse das
pedras pão. Respondeu-lhe o Senhor: Non in solo pane vivit homo, sed in omni
verbo, quod procedit de ore dei. Esta sentença era tirada do capítulo VIII do
Deuteronómio. Vendo o Demónio que o Senhor se defendia da tentação com a
Escritura, leva-o ao Templo, e alegando o lugar do salmo XC, diz-lhe desta
maneira: Mille te deorsum; scriptum est
enim, quia Angelis suis Deus mandavit de te, ut custodiant te in omnibus viis
tuis: «Deita-te daí abaixo, porque prometido está nas Sagradas Escrituras
que os anjos te tomarão nos braços, para que te não faças mal.» De sorte que
Cristo defendeu-se do Diabo com a Escritura, e o Diabo tentou a Cristo com a
Escritura. Todas as Escrituras são palavra de Deus: pois se Cristo toma a
Escritura para se defender do Diabo, como toma o Diabo a Escritura para tentar
a Cristo? A razão é porque Cristo tomava as palavras da Escritura em seu
verdadeiro sentido, e o Diabo tomava as palavras da Escritura em sentido alheio
e torcido; e as mesmas palavras, que tomadas em verdadeiro sentido são palavras
de Deus, tomadas em sentido alheio, são armas do Diabo. As mesmas palavras que,
tomadas no sentido em que Deus as disse, são defesa, tomadas no sentido em que
Deus as não disse, são tentação. Eis aqui a tentação com que então quis o Diabo
derrubar a Cristo, e com que hoje lhe faz a mesma guerra do pináculo do templo.
O pináculo do templo é o púlpito, porque é o lugar mais alto dele. O Diabo
tentou a Cristo no deserto, tentou-o no monte, tentou-o no templo: no deserto,
tentou-o com a gula; no monte, tentou-o com a ambição; no templo, tentou-o com
as Escrituras mal interpretadas, e essa é a tentação de que mais padece hoje a
Igreja, e que em muitas partes tem derrubado dela, senão a Cristo, a sua fé.
Dizei-me, pregadores
(aqueles com quem eu falo indignos verdadeiramente de tão sagrado nome),
dizei-me: esses assuntos inúteis que tantas vezes levantais, essas empresas ao
vosso parecer agudas que prosseguis, achaste-las alguma vez nos Profetas do
Testamento Velho, ou nos Apóstolos e Evangelistas do Testamento Novo, ou no
autor de ambos os Testamentos, Cristo? É certo que não, porque desde a primeira
palavra do Génesis até à última do Apocalipse, não há tal coisa em todas as
Escrituras. Pois se nas Escrituras não há o que dizeis e o que pregais, como
cuidais que pregais a palavra de Deus? Mais: nesses lugares, nesses textos que
alegais para prova do que dizeis, é esse o sentido em que Deus os disse? É esse
o sentido em que os entendem os padres da Igreja? É esse o sentido da mesma
gramática das palavras? Não, por certo; porque muitas vezes as tomais pelo que
toam e não pelo que significam, e talvez nem pelo que toam. Pois se não é esse
o sentido das palavras de Deus, segue-se que não são palavras de Deus. E se não
são palavras de Deus, que nos queixamos que não façam fruto as pregações? Basta
que havemos de trazer as palavras de Deus a que digam o que nós queremos, e não
havemos de querer dizer o que elas dizem?! E então ver cabecear o auditório a
estas coisas, quando devíamos de dar com a cabeça pelas paredes de as ouvir!
Verdadeiramente não sei de que mais me espante, se dos nossos conceitos, se dos
vossos aplausos? Oh, que bem levantou o pregador! Assim é; mas que levantou? Um
falso testemunho ao texto, outro falso testemunho ao santo, outro ao
entendimento e ao sentido de ambos. Então que se converta o mundo com falsos
testemunhos da palavra de Deus? Se a alguém parecer demasiada a censura,
ouça-me.
Estava Cristo acusado
diante de Caifás, e diz o Evangelista S. Mateus que por fim vieram duas testemunhas
falsas: Novissime venerunt duo falsi
testes. Estas testemunhas referiram que ouviram dizer a Cristo que, se os
Judeus destruíssem o templo, ele o tornaria a reedificar em três dias. Se
lermos o Evangelista S. João, acharemos que Cristo verdadeiramente tinha dito
as palavras referidas. Pois se Cristo tinha dito que havia de reedificar o
templo dentro em três dias, e isto mesmo é o que referiram as testemunhas, como
lhes chama o Evangelista testemunhas falsas: Duo falsi testes? O mesmo S. João deu a razão: Loquebatur de templo corporis sui. Quando Cristo disse que em três
dias reedificaria o templo, falava o Senhor do templo místico de seu corpo, o
qual os Judeus destruíram pela morte e o Senhor o reedificou pela ressurreição;
e como Cristo falava do templo místico e as testemunhas o referiram ao templo
material de Jerusalém, ainda que as palavras eram verdadeiras, as testemunhas
eram falsas. Eram falsas, porque Cristo as dissera em um sentido, e eles as
referiram em outro; e referir as palavras de Deus em diferente sentido do que
foram ditas, é levantar falso testemunho a Deus, é levantar falso testemunho às
Escrituras. Ah, Senhor, quantos falsos testemunhos vos levantam! Quantas vezes
ouço dizer que dizeis o que nunca dissestes! Quantas vezes ouço dizer que são
palavras vossas, o que são imaginações minhas, que me não quero excluir deste
número! Que muito logo que as nossas imaginações, e as nossas vaidades, e as
nossas fábulas não tenham a eficácia de palavra de Deus!
Miseráveis de nós, e
miseráveis dos nossos tempos! Pois neles se veio a cumprir a profecia de S.
Paulo: Erit tempus, cum sanam doctrinam
non sustinebunt: Virá tempo, diz S. Paulo, «em que os homens não sofrerão a
doutrina sã. Sed ad sua desideria
coacervabunt sibi magistros prurientes auribus: Mas para seu apetite terão
grande número de pregadores feitos a montão e sem escolha, os quais não façam
mais que adular-lhes as orelhas. A
veritate quidem auditum avertent, ad fabulas auten convertentur: Fecharão
os ouvidos à verdade, e abri-los-ão às fábulas». Fábula tem duas significações:
quer dizer fingimento e quer dizer comédia; e tudo são muitas pregações deste
tempo. São fingimento, porque são sutilezas e pensamentos aéreos, sem
fundamento de verdade; são comédia, porque os ouvintes vêm à pregação como à
comédia; e há pregadores que vêm ao púlpito como comediantes. Uma das
felicidades que se contava entre as do tempo presente era acabarem-se as
comédias em Portugal; mas não foi assim. Não se acabaram, mudaram-se;
passaram-se do teatro ao púlpito. Não cuideis que encareço em chamar comédias a
muitas pregações das que hoje se usam. Tomara ter aqui as comédias de Plauto,
de Terêncio, de Séneca, e veríeis se não acháveis nelas muitos desenganos da
vida e vaidade do Mundo, muitos pontos de doutrina moral, muito mais
verdadeiros, e muito mais sólidos, do que hoje se ouvem nos púlpitos. Grande
miséria por certo, que se achem maiores documentos para a vida nos versos de um
poeta profano, e gentio, que nas pregações de um orador cristão, e muitas vezes,
sobre cristão, religioso!
Pouco disse S. Paulo em
lhe chamar comédia, porque muitos sermões há que não são comédia, são farsa.
Sobe talvez ao púlpito um pregador dos que professam ser mortos ao mundo,
vestido ou amortalhado em um hábito de penitência (que todos, mais ou menos
ásperos, são de penitência; e todos, desde o dia que os professamos,
mortalhas); a vista é de horror, o nome de reverência, a matéria de compunção,
a dignidade de oráculo, o lugar e a expectação de silêncio; e quando este se
rompeu, que é o que se ouve? Se neste auditório estivesse um estrangeiro que
nos não conhecesse e visse entrar este homem a falar em público naqueles trajos
e em tal lugar, cuidaria que havia de ouvir uma trombeta do Céu; que cada
palavra sua havia de ser um raio para os corações, que havia de pregar com o
zelo e com o fervor de um Elias, que com a voz, com o gesto e com as ações
havia de fazer em pó e em cinza os vícios. Isto havia de cuidar o estrangeiro.
E nós que é o que vemos? Vemos sair da boca daquele homem, assim naqueles
trajos, uma voz muito afectada e muito polida, e logo começar com muito
desgarro, a quê? A motivar desvelos, a acreditar empenhos, a requintar finezas,
a lisonjear precipícios, a brilhar auroras, a derreter cristais, a desmaiar
jasmins, a toucar primaveras, e outras mil indignidades destas. Não é isto
farsa a mais digna de riso, se não fora tanto para chorar? Na comédia o rei
veste como rei, e fala como rei; o lacaio, veste como lacaio, e fala como
lacaio; o rústico veste como rústico, e fala como rústico; mas um pregador,
vestir como religioso e falar como... não o quero dizer, por reverência do
lugar. Já que o púlpito é teatro, e o sermão comédia se quer, não faremos bem a
figura? Não dirão as palavras com o vestido e com o ofício? Assim pregava S.
Paulo, assim pregavam aqueles patriarcas que se vestiram e nos vestiram destes
hábitos? Não louvamos e não admiramos o seu pregar? Não nos prezamos de seus
filhos? Pois por que não os imitamos? Por que não pregamos como eles pregavam?
Neste mesmo púlpito pregou S. Francisco Xavier, neste mesmo púlpito pregou S.
Francisco de Borja; e eu, que tenho o mesmo hábito, por que não pregarei a sua
doutrina, já que me falta o seu espírito?
X
Dir-me-eis o que a mim me
dizem, e o que já tenho experimentado, que, se pregamos assim, zombam de nós os
ouvintes, e não gostam de ouvir. Oh, boa razão para um servo de Jesus Cristo!
Zombem e não gostem embora, e façamos nós nosso ofício! A doutrina de que eles
zombam, a doutrina que eles desestimam, essa é a que lhes devemos pregar, e por
isso mesmo, porque é mais proveitosa e a que mais hão mister. O trigo que caiu
no caminho comeram-no as aves. Estas aves, como explicou o mesmo Cristo, são os
demónios, que tiram a palavra de Deus dos corações dos homens: Venit Diabolus, et tollit verbum de corde
ipsorum! Pois por que não comeu o Diabo o trigo que caiu entre os espinhos,
ou o trigo que caiu nas pedras, senão o trigo que caiu no caminho? Porque o
trigo que caiu no caminho: Conculcatum
est ab hominibus: Pisaram-no os homens; e a doutrina que os homens pisam, a
doutrina que os homens desprezam, essa é a de que o Diabo se teme. Dessoutros
conceitos, dessoutros pensamentos, dessoutras sutilezas que os homens estimam e
prezam, dessas não se teme nem se acautela o Diabo, porque sabe que não são
essas as pregações que lhe hão-de tirar as almas das unhas. Mas daquela
doutrina que cai: Secus viam: daquela doutrina que parece comum: Secus viam; daquela doutrina que parece
trivial: Secus viam; daquela doutrina que parece trilhada: Secus viam; daquela doutrina que nos põe em caminho e em via da
nossa salvação (que é a que os homens pisam e a que os homens desprezam), essa
é a de que o Demónio se receia e se acautela, essa é a que procura comer e
tirar do Mundo; e por isso mesmo essa é a que deviam pregar os pregadores, e a
que deviam buscar os ouvintes. Mas se eles não o fizerem assim e zombarem de
nós, zombemos nós tanto de suas zombarias como dos seus aplausos. Per infamiam et bonam famam, diz S.
Paulo: O pregador há-de saber pregar com fama e sem fama. Mais diz o Apóstolo:
Há-de pregar com fama e com infâmia. Pregar o pregador para ser afamado, isso é
mundo: mas infamado, e pregar o que convém, ainda que seja com descrédito de
sua fama?, isso é ser pregador de Jesus Cristo.
Pois o gostarem ou não
gostarem os ouvintes! Oh, que advertência tão digna! Que médico há que repare
no gosto do enfermo, quando trata de lhe dar saúde? Sarem e não gostem;
salvem-se e amargue-lhes, que para isso somos médicos das almas. Quais vos
parece que são as pedras sobre que caiu parte do trigo do Evangelho? Explicando
Cristo a parábola, diz que as pedras são aqueles que ouvem a pregação com
gosto: Hi sunt, qui cum gaudio suscipiunt
verbum. Pois será bem que os ouvintes gostem e que no cabo fiquem pedras?!
Não gostem e abrandem-se; não gostem e quebrem-se; não gostem e frutifiquem.
Este é o modo com que frutificou o trigo que caiu na boa terra: Et fructum afferunt in patientia,
conclui Cristo. De maneira que o frutificar não se ajunta com o gostar, senão com
o padecer; frutifiquemos nós, e tenham eles paciência. A pregação que
frutifica, a pregação que aproveita, não é aquela que dá gosto ao ouvinte, é
aquela que lhe dá pena. Quando o ouvinte a cada palavra do pregador treme;
quando cada palavra do pregador é um torcedor para o coração do ouvinte; quando
o ouvinte vai do sermão para casa confuso e atónito, sem saber parte de si,
então é a preparação qual convém, então se pode esperar que faça fruto: Et fructum afferunt in patientia.
Enfim, para que os pregadores
saibam como hão-de pregar e os ouvintes a quem hão-de ouvir, acabo com um
exemplo do nosso Reino, e quase dos nossos tempos. Pregavam em Coimbra dois
famosos pregadores, ambos bem conhecidos por seus escritos; não os nomeio,
porque os hei-de desigualar. Altercou-se entre alguns doutores da Universidade
qual dos dois fosse maior pregador; e como não há juízo sem inclinação, uns
diziam este, outros, aquele. Mas um lente, que entre os mais tinha maior
autoridade, concluiu desta maneira: «Entre dois sujeitos tão grandes não me
atrevo a interpor juízo; só direi uma diferença, que sempre experimento: quando
ouço um, saio do sermão muito contente do pregador; quando ouço outro, saio
muito descontente de mim.»
Com isto tenho acabado.
Algum dia vos enganastes tanto comigo, que saíeis do sermão muito contentes do
pregador; agora quisera eu desenganar-vos tanto, que saíreis muito descontentes
de vós. Semeadores do Evangelho, eis aqui o que devemos pretender nos nossos
sermões: não que os homens saiam contentes de nós, senão que saiam muito
descontentes de si; não que lhes pareçam bem os nossos conceitos, mas que lhes
pareçam mal os seus costumes, as suas vidas, os seus passatempos, as suas
ambições e, enfim, todos os seus pecados. Contanto que se descontentem de si,
descontentem-se embora de nós. Si
hominibus placerem, Christus servus non essem, dizia o maior de todos os
pregadores, S. Paulo: Se eu contentara aos homens, não seria servo de Deus. Oh,
contentemos a Deus, e acabemos de não fazer caso dos homens! Advirtamos que
nesta mesma Igreja há tribunas mais altas que as que vemos: Spectaculum facti sumus Deo, Angelis et hominibus. Acima das
tribunas dos reis, estão as tribunas dos anjos, está a tribuna e o tribunal de
Deus, que nos ouve e nos há-de julgar. Que conta há-de dar a Deus um pregador
no Dia do Juízo? O ouvinte dirá: Não mo disseram. Mas o pregador? Vae mihi, quia tacui: Ai de mim, que não
disse o que convinha! Não seja mais assim, por amor de Deus e de nós.
Estamos às portas da
Quaresma, que é o tempo em que principalmente se semeia a palavra de Deus na
Igreja, e em que ela se arma contra os vícios. Preguemos e armemo-nos todos
contra os pecados, contra as soberbas, contra os ódios, contra as ambições,
contra as invejas, contra as cobiças, contra as sensualidades. Veja o Céu que
ainda tem na terra quem se põe da sua parte. Saiba o Inferno que ainda há na
terra quem lhe faça guerra com a palavra de Deus, e saiba a mesma terra que
ainda está em estado de reverdecer e dar muito fruto: Et fecit fructum centuplum.