Wednesday, 2 November 2016

“Sermão de Dia de Ramos” pelo Padre Antônio Vieira (in Portuguese)




Alii autem caedebant ramos de arboribus, et sternebant in via.

I
Como Deus não se agrada de afetos súbitos, senão de corações preparados, maravilhosas são as disposições cada vez maiores e mais estreitas, com que a Igreja Católica, nossa mãe, governada pelo Espírito Santo, de muito longe nos começou a preparar, e foi preparando sempre, para que chegássemos dignamente a este dia, e entrássemos como convém nesta sagrada semana. Para chegar ao Sancta Sanctorum, que era o lugar mais sagrado do templo de Jerusalém, traçou Deus a entrada com tal artifício, que primeiro se passasse por três estâncias, tão misteriosas no sítio como na medida, porque quanto eram mais interiores, tanto se estreitavam mais. A primeira e a segunda se chamavam átrios, e a terceira propriamente templo. Por estes como degraus de reverência e culto, e com todas estas disposições de sempre maior recolhimento e aperto, se chegava finalmente ao Sancta Sanctorum; e com as mesmas quer e ordenou a Igreja que entrássemos nós à Semana Santa, porque assim como o Sancta Sanctorum era o lugar mais sagrado do templo, assim a Semana Santa é o Sancta Sanctorum do tempo. As três estâncias que o precedem, e já passamos, tanto mais estreitas quanto mais interiores, foram, a primeira, desde a Septuagésima até a Quaresma; a segunda, do princípio da Quaresma até a Dominga próxima, chamada da Paixão; a terceira, da mesma Dominga da Paixão até o dia presente. Na entrada da Septuagésima se começaram a enlutar os altares, e cessaram no canto eclesiástico as aleluias, sendo esta cerimônia exterior o primeiro prelúdio ou reclamo da penitência, para que não dissolutos, mas compungidos, entrássemos no tempo santo da Quaresma. Começou a Quaresma com a memória da cinza e do pó que somos, e com o jejum universal; continuou com tanta freqüência de sermões, com tantas procissões de modéstia, compunção e piedade cristã, com tantas mortificações secretas e públicas, e com tanta efusão violenta do próprio sangue; e, não se dando por satisfeita com todas estas demonstrações, a Igreja, para maior representação de sua justa dor e tristeza, na dominga proximamente passada, correu totalmente as cortinas aos altares, e até as imagens sacrossantas de Cristo crucificado nos encobriu e escondeu com aquele véu negro, para que, eclipsado assim e escurecido o Divino Sol de nossas almas, chegássemos com maior assombro e santo horror aos dias em que somos entrados. Os antigos, como se lê em São Bernardo, chamavam a esta semana a Semana Penosa, pelos tormentos e penas que Cristo nosso Redentor nela padeceu, e pelo sentimento e dor com que nós as devemos corresponder e acompanhar. A Igreja universal lhe chama a Semana Maior, porque nela se consumaram os maiores mistérios de nossa Redenção, os maiores excessos do amor e misericórdia divina, e o maior e mais tremendo exemplo de sua justiça. Nós, em significação de todas estas coisas juntas, chamamos vulgarmente à mesma semana a Semana Santa, mas não sei se as nossas ações e exercícios nela respondem às obrigações de tão sagrado nome. Ora eu tão escandalizado do que algumas vezes acontece, como zeloso do que é bem se veja e reconheça em todos estes santos dias, o assunto que somente vos determino pregar hoje é este: que deve fazer todo o cristão para que a Semana Santa seja santa? A matéria, nem pode ser mais pia, nem mais útil, nem mais própria da ocasião, se aquele Senhor, que hoje chorou sobre a cidade de Jerusalém, puser seus divinos olhos na nossa, e nos assistir com sua graça. Peçamo-la por intercessão da Virgem Senhora, com tão devoto afeto de nossos corações, que a mereçamos alcançar. Ave Maria.

II
Santo Agostinho, São Basílio e São Pedro Crisólogo comparam os quarenta dias da Quaresma aos quarenta dias do dilúvio universal. Naquele dilúvio esteve Deus quarenta dias chovendo castigos; neste está outros quarenta dias chovendo misericórdia. Mas somos os homens tão protervos, que nem por bem, nem por mal pode Deus conosco: os castigos não nos emendam, as misericórdias não nos abrandam. Barro, enfim. Assim como o barro se endurece com os raios do sol, assim nós com os favores do céu não nos abrandamos, antes nos endurecemos mais. O mesmo que lhes sucedeu àqueles antigos homens no primeiro dilúvio, nos acontece a nós neste segundo. Começou a chover o dilúvio de Noé: alagaram-se na primeira semana os vales e os quartos baixos dos edifícios; subiram-se os homens aos quartos altos. Choveu a segunda semana; venceram as águas os quartos altos, subiram-se aos telhados. Choveu a terceira semana: sobrepujou o dilúvio os telhados, subiram-se às torres. Choveu a quarta semana: ficaram debaixo das águas as torres e as ameias mais altas, subiram-se aos montes. Choveu a quinta semana: ficaram também afogados os montes, subiram-se finalmente às árvores, e assim estavam suspensos e pegados nos ramos. Postos neste estado os homens, já não tinham para onde subir, e não lhes restava mais que uma de duas: ou nadar, ou acolher-se à Arca, ou deixar-se afogar e perecer no dilúvio. Oh! se nos víssemos bem neste grande espelho! E quantos de nós estamos hoje no mesmo estado! Desde o princípio da Quaresma começou Deus a querer-nos conquistar as almas, e nós sempre a retirar e a fugir de Deus de semana em semana. Passou a primeira semana da Quaresma, guardamo-nos para a segunda; passou a segunda, deixamo-nos para a terceira; passou a terceira, esperamos para a quarta; passou a quarta, dilatamo-nos para a quinta; passou a quinta, apelamos para a sexta; já estamos na sexta e na última semana deste dilúvio espiritual, já estamos, como os do outro dilúvio, com as mãos nos ramos das árvores, ou com os ramos das árvores nas mãos: Caedebant ramos de arboribus. Em dia de ramos estamos, e chegados a este dia e a esta semana precisa, em que não há já para onde retirar, que é o que nos resta? Ou afogar e perecer, ou resolver e nadar para a Arca. Os daqueloutro dilúvio não podiam nadar nem salvar-se na Arca de Noé, uns porque estavam muito longe, outros porque não sabiam dela, e todos porque a Arca não tinha mais que uma porta, e essa estava fechada por fora, e tinha Deus levado as chaves, como diz o texto. Cá no nosso dilúvio não é assim. O Noé é Cristo, Salvador e reparador do mundo, e a Arca em que salvou o gênero humano é a sua cruz. Assim lhe chama a Igreja no hino corrente deste tempo: Atque portum praeparare Arca mundo naufrago. O antigo Noé não tinha porta por onde recolher os que se quisessem valer da Arca; mas o nosso Noé divino está com cinco portas abertas, e abertas em si mesmo, para recolher e salvar todos os que se quiserem valer dele e de sua cruz. Oh! que diferente dilúvio é este daquele! Naquele morreram todos os homens, e salvou-se só Noé; neste morreu e afogou-se só o divino Noé: Veni in altitudinem maris, et tempestas demersit me, para que todos os homens se salvem. Os que pereceram naquele dilúvio são os que não se quiseram persuadir, e se foram dilatando até que não tiveram remédio. E será bem que nós, chegados a este dia, ainda nos dilatemos mais, e pereçamos como eles? Perecer não, cristãos, pelo que nos merece o amor de Cristo e suas santíssimas chagas. Aproveitemo-nos ao menos destes poucos dias da Semana Santa, já que dos de toda a Quaresma nos não soubemos aproveitar. Diz São Basílio Magno que os anjos de cada cidade, desde o princípio da Quaresma, vão escrevendo em um livro os que jejuam e os que não jejuam. Assim como os párocos no mesmo tempo tomam a rol todos os fregueses, para lhes pedirem conta da confissão e comunhão, assim o fazem os anjos para a tomarem do jejum. Mas além destes dois livros, ainda há outro terceiro, de que muito mais dificultosamente nos havemos de desobrigar. E que livro é este? É o que vedes naquele altar. O primeiro livro é o do pároco, o segundo o do anjo, o terceiro o de Cristo. Em todos os dias da Quaresma nos manda Cristo ler um novo Evangelho — o que não se faz nos outros dias do ano — e por este diário da doutrina havemos de ser também examinados todos os que nos chamamos cristãos. Ouvi ao profeta Davi, falando deste livro em nome da Igreja universal, que daquele altar e desta cadeira nos lê estas lições tão mal aprendidas: Imperfectum meum viderunt oculi tui, et in libro tuo omnes scribentur: dies formabuntur et nemo in eis (Sl. 138, 16): Os vossos olhos, Senhor, — diz a Igreja — vêem as minhas imperfeições, isto é, as imperfeições daqueles de que eu me componho, que são os cristãos; todos se escreverão no vosso livro; formar-se-ão os dias, e ninguém neles. O lugar é escuro, mas admirável. Que tenha Deus livro em que se escrevam os defeitos e pecados de todos, e os nomes de todos os que os cometem, e os dias em que se cometem, é coisa muito sabida e vulgar nas Escrituras. Mas que dias são estes que se chamam formados, e nos quais ninguém se acha: Dies formabuntur, et nemo in eis? São propriissimamente os dias da Quaresma, em cada um dos quais nos propõe Cristo uma forma particular do Evangelho, pela qual forma, como por exemplar e idéia de nossas ações, nos devemos nós também formar e reformar, que esse é o intento deste tempo santo. E porque geralmente ninguém se reforma nem conforma com o que se lhe propõe no Evangelho daquele dia, por isso diz o profeta que os dias se formam, e ninguém se acha neles: Dies formabuntur, et nemo in eis. De sorte que o nemo refere-se ao formabuntur como se dissera: Dies formabuntur et nemo in eis, idest, formabuntur. Os dias dão a forma, e ninguém se conforma com ela, porque, sendo a forma de cada Evangelho ordenada cada dia à reformação de cada vício, em vez de se ver a emenda e reformação, continuam as mesmas deformidades, e pode ser que maiores. Oh! se aqui aparecera agora este livro como está notado e cotado na mente divina, se se abrira este livro diante de todos, e se começara a ler publicamente o que cada um fez ou deixou de fazer nesta Quaresma, que vergonha havia de ser, e que confusão a de muitos, quando se fossem confrontando dia por dia a forma dos Evangelhos e a deformidade das vidas! Veio um primeiro dia da Quaresma, veio uma Quarta-feira de Cinzas, pôs-nos a Igreja diante dos olhos não só a memória, senão a mesma morte, e quantos houve que mudassem de vida? Veja-se o livro neste dia: Dies formabuntui; et nemo in eis. Passou o dia, e ninguém se achou escrito nele. Continuamos na mesma vida, como se ela nunca houvera de acabar, e tão esquecidos da conta, como se Deus no-la não houvera de pedir. Chegou uma primeira sexta-feira de Quaresma, leu-se aquele admirável Evangelho do amor dos inimigos, e quantos houve que deixassem os ódios, quantos que se arrependessem dos propósitos da vingança, quantos que se reconciliassem e se pedissem perdão? Dies formabuntur, et nemo in eis. Passou o dia, e os ódios não passaram: ainda fulano se não corre com fulano, ainda se não falam, ainda se não saúdam, ainda inimigos, ainda escandalosos, ainda não cristãos, como de antes. Chegou o Domingo das Tentações, vimos como Cristo no-las ensinou a vencer com tanto despego, sendo tão naturais, e com tanta resolução, sendo tão fortes. Mas quantas vitórias alcançamos depois disso contra o demônio? Dies formabuntur, et nemo in eis. O demônio sempre vencedor, e vencedor sem batalha, porque onde o pecar é hábito, não .há resistência. Tantas vezes vencidos quantas tentados, e o que pior é, antes de tentados, vencidos não sendo já necessário ao demônio tentar a muitos, porque eles são os que buscam as tentações, e os piores tentadores. Chegou o segundo Domingo da Glória: vimos transfigurado a Cristo, e arrebatado a São Pedro no Monte Tabor. E quem houve que por saudades do céu se despegasse um pouco da terra? Também em tal dia, folha em branco: Dies formabuntur, et nemo in eis. Tão apegados à terra, tão cegos, tão enterrados e tão toupeiras nela, como se o céu não fora criado para nós, nem nós para ele, e como se o Filho de Deus o não comprara para nós com seu próprio sangue. Chegou o terceiro Domingo do Diabo Mudo, e quantos houve que aprendessem a saber calar os pecados alheios, e a confessar, como convém, os próprios? Dies formabuntur et nemo in eis. Ainda aquele miserável, ainda aquela mesquinha, que traz encoberto o pecado há tanto tempo, se não deliberou a o confessar, acrescentando em cada confissão fingida um novo sacrilégio, sem reparar que é justo juízo de Deus, provado com muitos exemplos, que falte a fala e a confissão na morte, a quem a não faz como deve na vida. Chegou finalmente uma sexta-feira de Lázaro ressuscitado de quatro dias, e que moço ou velho houve que, à sua imitação, — se levantasse da sepultura, em que podres de seus vícios jazem há tantos meses, e pode ser que tantos anos? Chegaram os dias da conversão da Samaritana e da Madalena, uma de baixa condição, outra nobre e senhora, e que mulher houve perdida, ou arriscada a se perder, que reparasse na sua mesma perdição, e abrisse os olhos à sua cegueira? Dies formabuntur, et nemo in eis. Ainda continuam os mesmos pensamentos e malditos cuidados, ainda as mesmas correspondências, ainda as mesmas ocasiões, ainda as mesmas torpezas, ainda os mesmos escândalos, e ainda continua e arde o mesmo fogo para se continuar no do inferno. Eis aqui, cristãos, como muitos de vós tendes passado a Quaresma, perdendo tantos dias em que pudéreis abrir os olhos, e em que pudéreis entrar dentro em vós, cerrando sempre os ouvidos às vozes do céu, e fechando os corações às inspirações divinas. Os dias que passaram já não podem tornar, nem têm remédio; os que estão por vir daqui até quinta-feira — que é a última reserva das consciências mais descuidadas — não são mais que três dias; vede se será bem que até estes deixemos passar debalde, e que nem de um prazo tão estreito nos aproveitemos. Vomitado da baleia, como muitas vezes ouvistes, o profeta Jonas nas praias de Nínive, entrou por aquela grandíssima cidade pregando ou apregoando a altas vozes: Adhuc quadraginta dies, et Ninive subvertetur (Jon. 3, 4): Daqui a quarenta dias se há de subverter Nínive. — Assim se lê no texto sagrado da Bíblia, chamada Vulgata, de que hoje usa a Igreja. Porém os Setenta intérpretes, que também são autores canônicos, em lugar de quarenta dias, põem somente três, e dizem que disse Jonas: Adhuc tres dies, et Ninive subvertetur: Daqui a três dias se há de subverter Nínive. — Todos estais vendo o encontro destas duas escrituras e a dificuldade delas, porque se é certo que Jonas disse, daqui a quarenta dias, como pode concordar com a mesma verdade que dissesse: daqui a três? S. Isidoro Pelusiota soltou admiravelmente a dúvida, e diz que uma e outra coisa disse o profeta, não no mesmo, senão em diferentes tempos. Quando começou disse: daqui a quarenta dias; quando acabou, disse: daqui a três. Foi o caso desta maneira. Entrou Jonas o primeiro dia pregando e dizendo: Daqui a quarenta dias se há de subverter Nínive — e muitos dos ninivitas zombaram do que dizia o estrangeiro. Amanheceu o segundo dia, continuou o profeta a mesma pregação, mas diminuindo um dia, que era o que já tinha passado, e disse assim: Daqui a trinta e nove dias se há de subverter Nínive; porém os que não tinham feito caso dos primeiros brados, também o não fizeram dos segundos. Amanheceu o dia terceiro, foi por diante Jonas com sua pregação: Daqui a trinta e oito dias se há de subverter Nínive; e os maus ouvintes como dantes. Passaram dez dias, passaram vinte, passaram trinta, e Jonas sempre diminuindo, até que finalmente chegaram os dias a ser trinta e sete: então disse o profeta o que referem os Setenta intérpretes: Adhuc tres dies, et Ninive subvertetur: Daqui a três dias se há de subverter Nínive — porque estes só faltavam para cumprimento do prazo que Deus lhe tinha dado. Vendo, pois, os rebeldes que já lhes não restavam mais que três dias, ainda que até ali tinham estado tão obstinados e insensíveis, o mesmo aperto do tempo os fez entrar em si. Consideraram que a ameaça do profeta era muito conforme a suas culpas, creram que as vozes daquele homem verdadeiramente eram de Deus, e, reconhecendo de perto o mesmo perigo, em que não reparavam quando se lhes representava mais longe, resolveram-se de todo o coração a se converter. Cobrem as cabeças de cinza, vestem-se de cilício, publicam jejum universal, em que ninguém comesse bocado, prostram-se por terra, batem os peitos, choram e clamam ao céu, e desde o rei até o menor da cidade, desde os homens até os animais do campo, fizeram aquela tão celebrada e tão notável penitência, com que mereceram que Deus levantasse o castigo e lhes perdoasse. Os ninivitas eram gentios; nós por graça de Deus somos cristãos. Cada cidade é uma Nínive grande, cada casa uma Nínive pequena, e cada alma uma Nínive maior que ambas. Ainda que em todos os dias nos podemos converter a Deus, o tempo que sua divina misericórdia nos sinalou particularmente para a penitência dos pecados são os quarenta dias da Quaresma: Adhuc quadraginta dies. O dia maior destes quarenta, e em que todos, ou por verdadeira devoção, ou por costume e cerimônia, nos lançamos geralmente aos pés de Cristo e lhe pedimos perdão em um Sacramento e o recebemos em outro, é o dia de Quinta-Feira de Endoenças. Neste grande dia, segundo a disposição de cada um, ou se convertem ou se subvertem as Nínives, ou se convertem ou se perdem as almas, como se perdeu a de Judas. Lançai agora a conta aos dias que nos restam para este último, e achareis que somos chegados a termos que não são já mais que três: Adhuc tres dies. Oh! que desgraça seria tão indigna do caráter e piedade cristã, se os que imitaram, aqueles gentios em se dilatar, os não imitarem, posto que tarde, em se converter! Os ninivitas, diz Cristo, que se hão de levantar no dia do Juízo, e acusar aquele povo duro e incrédulo, a quem o Senhor pregava e não se convertia. Por reverência do mesmo Cristo, que não queiramos nós também que se levantem contra nós. Se os ninivitas, sem fé nem batismo, se o seu rei, que era Sardanapalo, o mais vicioso de todos os homens, vendo-se reduzidos a um termo tão apertado, conheceram o seu perigo, e por meios tão extraordinários lhe buscaram remédio, nós, a quem Deus com os braços abertos, há tantos dias no-lo está oferecendo tão fácil, por que o desprezaremos? Acabemos de nos desenganar, antes que se acabe o tempo: Ecce nunc tempus acceptabile. Acabemos de tratar da salvação, antes que se fechem as portas da misericórdia: Ecce nunc dies salutis. Ou fazemos conta de nos converter deveras a Deus alguma hora, ou não: se não fazemos esta conta, para que somos cristãos? Por outro caminho mais largo podíamos ir ao inferno. Mas se nenhum há tão rematadamente inimigo de sua alma, que ao menos não tenha tenção de algum dia a tirar do poder do demônio e a dar a Deus, quando há de ser este dia? Que dia, ou que dias mais a propósito podemos ter ou esperar que estes da Semana Santa? Que dias mais a propósito para pedir a Deus perdão dos pecados, que aqueles mesmos dias em que Deus se pôs em uma cruz por meus pecados? Que dias mais a propósito para alcançar e ter parte nos merecimentos do sangue de Cristo, que os dias em que se está derramando o mesmo sangue? Agora, agora, e não depois, é o tempo aceito a Deus: Ecce nunc tempus acceptabile. Estes dias, estes, e não os futuros, incertos e enganosos, são os dias da salvação: Ecce nunc dies salutis.

III
Suposto pois, cristãos, que este é o tempo, e suposto que os dias são tão precisos que não temos outros para que apelar, o que resta é recuperar o perdido, e que nos aproveitemos deles com tais atos de verdadeira contrição e devoção, que esta Semana Santa, como o é em si, seja em nós também santa. Os ramos que cortaram das árvores os que hoje saíram a receber a Cristo: Caedebant ramos de arboribus, posto que São Mateus não declare quais fossem, São João diz que eram de palma, e São Lucas de oliveira. E com os dois afetos que estes ramos significavam, devemos nós seguir e acompanhar o Senhor em todos seus passos, oferecendo estes humildes obséquios a seus sacratíssimos pés, que isto quer dizer: Et sternebant in via. A palma é símbolo da paciência, como a oliveira da misericórdia e compaixão; e tais eram os dois mistérios que encerrava o aparato e diferença daqueles ramos: padecer e compadecer. Desta maneira receberemos e acompanharemos a nosso bom Rei e Redentor muito melhor que a ingrata e inconstante Jerusalém, se não só hoje, mas todos estes dias, padecermos alguma coisa com ele, e nos compadecermos dele. Tudo resumiu São Paulo a uma só palavra, quando disse: Si tamen compatimur.Uma coisa é compadecer, e outra padecer com: compadecer, é compadecer dele; padecer com, é padecer com ele; e tanto nos merecem a paciência as suas penas, como a compaixão o seu amor. Toda a sua sagrada humanidade do corpo e alma de Cristo nos mereceu sempre muito, mas nunca tanto como nestes dias: padecendo na imitação de seus tormentos, acompanharemos seu santíssimo corpo, e compadecendo-nos na meditação de suas dores, acompanharemos sua santíssima alma. Digo pois, quanto ao corpo, que havemos nesta semana de procurar padecer alguma coisa em todos os cinco sentidos, assim como Cristo padeceu em todos. Adão e Eva, em um só pecado, pecaram com todos os cinco sentidos. Pecaram com o ouvir, ouvindo a serpente; pecaram com o ver, olhando para a fruta; pecaram com o palpar, tirando-a; pecaram com o cheirar, cheirando-a; pecaram com o gostar, comendo-a. Com todos os cinco sentidos pecaram nossos primeiros pais, e nós, tão herdeiros de suas misérias como de suas culpas, em todos pecamos infinitas vezes. E como Cristo vinha pagar pelo pecado de Adão e pelos nossos, quis padecer também em todos os cinco sentidos. Padeceu no sentido de ver, vendo fugir a todos seus discípulos: vendo que um o entregou tão aleivosamente; vendo que outro o negou três vezes; vendo-se atar e levar preso, e a tantos tribunais; vendo-se tapar os olhos; vendo-se despir no Pretório, e estar despido no Calvário tantas horas à vista de todo o mundo, e no meio de dois ladrões; sobretudo, vendo a desconsolada Mãe ao pé da cruz, em cujo coração e em cujos olhos estava outras três vezes crucificado. Finalmente, vendo os meus pecados e os vossos, com que tão ingratos havíamos de ser a tanto amor, que todos naquela hora lhe eram presentes. Padeceu no sentido do ouvir, ouvindo o Deus-te-salve aleivoso da boca de Judas; ouvindo os crimes e testemunhos falsos com que foi acusado; ouvindo as vozes e brados com que os mesmos que hoje o aclamaram rei lhe pediam a morte; ouvindo a sentença com que o iníquo juiz o entregou à vontade de seus inimigos; ouvindo o pregão de malfeitor e alvorotador do povo; ouvindo as injúrias e blasfêmias dos príncipes dos sacerdotes na cruz, e as dos mesmos ladrões que com ele estavam crucificados, e não ouvindo em todo este tempo uma só palavra de consolação aquele mesmo Senhor que com palavras e obras tinha consolado a tantos. Padeceu no sentido do olfato, ou de cheirar, porque morreu entre os ascos e horrores do Monte Calvário, chamado assim das caveiras e ossos dos malfeitores que ali se justiçavam, os quais, ou porque os enterravam mal os algozes, ou porque depois os desenterravam os cães, estavam espalhados por todo o monte, e de mistura com a corrupção do sangue faziam aquele infame lugar horrendo, hediondo, asqueroso e insuportável ao cheiro. E como divino pagador de nossos pecados, não só escolheu o gênero da morte, senão também a circunstância do lugar; para satisfazer nele pelos excessos do olfato, quis que fosse tão infeccionado e malcheiroso. Padeceu no sentido do gosto, não só pelo fel e vinagre que lhe deram a beber, senão muito mais por aquela ardentíssima sede, maior incomparavelmente que todos os outros tormentos, porque só ela obrigou ao pacientíssimo Redentor a pedir alívio. Mas podendo mais o desejo de padecer por nós, que a força da natureza na humanidade enfraquecida e exausta, provou o azedo do vinagre e o amargoso do fel, para mortificar o gosto, e não quis levar para baixo o úmido, para não moderar o ardor nem aliviar a sede. Padeceu, finalmente, no sentido do tato, não ficando em todo o sagrado corpo parte alguma que não fosse martirizada com particular tormento. Padeceu nos braços as cordas e cadeias, no rosto as bofetadas, na cabeça a coroa de espinhos, nos ombros o peso da cruz, nas costas os milhares de açoites, nas mãos e nos pés os cravos, e em todos os ossos, em todos os nervos, em todas as veias, em todas as artérias a suspensão, a aflição, a violência mais que mortal de estar três horas no ar pendente de um madeiro até expirar nele. Pois, se estes são os dias em que o meu Deus padeceu tão cruelmente em todos os cinco sentidos, e tão amorosamente por mim, não será justo que eu também em todos os sentidos padeça alguma coisa por ele? Nenhum coração me parece que haverá tão ingrato e tão insensível, que se não deixe mover desta razão: Hoc enim sentite in vobis, quod et in Christo Jesu (Flp. 2,5), diz São Paulo: O que Cristo Jesus sentiu em si, devemos nós sentir em nós — ele por amor de nós, e nós por amor dele. E se a vossa devoção deseja saber e me pergunta de que modo poremos em prática este recíproco sentimento, mortificando-nos também em todos os nossos sentidos, digo primeiramente que mortifiquemos o ver, andando nestes dias com grande modéstia e recato, e negando aos olhos as vistas de todas as criaturas, e apartando-os principalmente daquelas que mais nos agradam e mais nos apartam de Deus. Os olhos têm dois ofícios: ver e chorar; e mais parece que os criou Deus para chorar que para ver, pois os cegos não vêem e choram. Já que tantos dias damos aos olhos para ver, já que tão cansados andam os nossos olhos de ver, não lhes daremos alguns dias de férias, para que descansem em chorar? Chorem os nossos olhos os nossos pecados nestes dias, e chorem muito em particular o não haverem antes cegado que ofendido a Deus. Ah! Senhor, quanto melhor fora não ter olhos, que ter-vos ofendido com eles! O sentido de ouvir mortificá-lo-emos, retirando-nos esta semana de todas as práticas e conversações, não só ilícitas e ociosas, mas ainda das lícitas. Troquemos o ouvir pelo ler, lendo todos estes dias algum livro espiritual em que Deus nos fale e nós o ouçamos. A quem não está muito exercitado no orar, é mais fácil o ler, e muitas vezes mais proveitoso. Na oração falamos nós com Deus; na lição fala Deus conosco. E de quantas coisas — que fora melhor não ouvir — ouvimos todo o ano aos homens; estes dias ao menos, bem é que ouçamos a Deus. No sentido do olfato pouco têm que mortificar os homens nesta terra, porque não vejo nela este vício. Nas mulheres, se nelas há alguma demasia, lembrem-se de que nesta semana derramou a Madalena os seus cheiros e os seus ungüentos aos pés de Cristo. E para os aborrecerem e detestarem para sempre, saibam que a última disposição da morte do mesmo Senhor foram estes cheiros. Porque a Madalena derramou os ungüentos, se excitou a cobiça de Judas; porque em Judas se excitou a cobiça, tratou da venda; porque vendeu a seu Mestre, o prenderam e o mataram. Por isso o Senhor disse — e este é o sentido literal: -Mittens haec unguentum hoc in corpus meum, ad sepeliendum me fecit, como se dissera: Estes ungüentos são para a minha sepultura, porque destes ungüentos se me há de ocasionar a morte. O sentido do gosto, ainda que se tenha mortificado por toda a Quaresma com o jejum ordinário, nestes dias é bem que haja para ele alguma particular mortificação. Muitos santos do ermo passavam esta semana inteira sem comer, e pessoas de mui diferente estado, não no ermo, senão nas cortes, passam em jejum de quinta-feira até sábado. Nos maiores dias desta semana é estilo das mesas dos grandes príncipes não se porem nelas mais que ervas; para estes dias se fizeram propriamente os jejuns de pão e água: ao menos estes dias não são para regalo. O cordeiro mandava Deus que se comesse com alfaces agrestes, porque o agreste e desabrido no comer destes dias é a melhor disposição para comer quinta-feira o Divino Cordeiro sacramentado. O sentido do tato, como o mais vil e mais delinqüente que todos, é razão que seja nestes dias mais mortificado. Quando Urias veio do exército com aviso a el-rei Davi, disse-lhe o rei que fosse descansar à sua casa. E ele, que respondeu? E bem, Senhor: está o meu general dormindo sobre a terra na campanha, e eu que me haja de deitar em cama? Não farei tal desprimor. — E foi-se deitar em uma tábua no corpo da guarda. A cama em que dormiu o último sono da morte o nosso Jesus, bem sabeis qual foi. Pois, será justo que quando ele tem por cama o duro madeiro da cruz, descanse o nosso corpo tão regaladamente como nos outros dias? Alguma diferença é bem que haja nestes. Ao menos o nosso rei e seus filhos, de quinta-feira até domingo não se deitam em cama, nem se assentam, senão no chão, assistindo sempre ao Senhor, sem sair nunca da Capela Real, nem de dia, nem de noite. Estas são as noites e os dias para que se fizeram as penitências: para estas noites se fizeram os pés descalços, para estas noites as disciplinas, e para estes dias e para estas noites os cilícios. Que poucos cilícios deve de haver no Maranhão? Não vos escuseis com isto. Quando os ninivitas se resolveram a fazer penitência, mandaram que todos, não só os homens, senão também os animais, se cobrissem de cilício. Que fosse tão universal a penitência, que até aos animais a estendessem, não me espanta, porque a contrição, quando é verdadeira, dá nestes extremos. O que sobretudo pode admirar a muitos é que, sendo a cidade tão grande, que só de crianças inocentes tinha cento e vinte mil, e, sendo os moradores tão ociosos, que os mandava Deus subverter, houvesse em tal cidade e entre tal gente tantos cilícios, que se pudessem cobrir deles tanta imensidade de homens, mulheres e meninos, e até os animais. Se o não dissera a Escritura, parecera coisa incrível, mas é muito fácil de crer. Os cilícios, não é necessário que sejam tecidos de sedas de camelo, como os do Batista; de qualquer coisa áspera se faz um cilício, se há devoção e vontade de o trazer. Um irmão tivemos na Companhia, chamado Luís Gonzaga, o qual era filho herdeiro dos Marqueses de Castiglione, em Itália; e como em casa de seu pai houvesse mais instrumentos de cavalaria que de penitência, tomava o devoto moço umas esporas de roseta, e, pondo-as de uma parte e de outra, fazia delas cilício. E porque aplicou as esporas desta maneira a seu corpo, correu com tanta velocidade a carreira da virtude e perfeição, que em menos de vinte e três anos, que só teve de vida, mereceu ser — como já é — contado entre os beatos. Assim que, para haver cilícios, não são necessários camelos nem teares, se há vontade e devoção. Estas são as mortificações com que os nossos cinco sentidos hão de imitar nesta semana as penas de Cristo. Não falo na continência de outros vícios, porque sei que estamos em terra de cristãos. Mas porque também estamos em terra de soldados, advirto que em dia de Ramos se cerram as portas às casas de jogo, e que não é coisa que devam consentir os oficiais nem ao soldado mais perdido. Queixa-se Cristo pelo profeta de que no dia de sua Paixão lhe jogassem as vestiduras: Et super vestem meam miserunt sortem. Assim foi que os que crucificaram ao Senhor, depois que o tiveram posto na cruz, lançaram as mãos aos dados, e jogaram os sagrados vestidos. E acrescenta logo o evangelista: Et milites quidem haec fecerunt (Jo. 19,24): E os que fizeram isto foram os soldados. — Os soldados foram também os que crucificaram ao Senhor, mas o evangelista não faz a reflexão em que eles o crucificaram, senão em que jogaram as vestiduras, porque o crucificar a Cristo foi obediência de seus maiores, o jogar as vestiduras foi vício depravado seu. Sabeis quem joga em tais dias como estes? Só quem crucifica a Cristo, e quem jogara suas sagradas vestiduras, se as tivera. Quero-vos contar o que me sucedeu em Inglaterra. Iam comigo dois portugueses, os quais em um domingo se puseram a jogar as tábulas em uma estalagem; saiu o hóspede muito assustado, e como fora de si: — E bem, senhores, quereis que me venham queimar a casa? — Queimar a casa? E por quê? — Porque é esse um jogo que se pode ouvir de fora, e se o ouvirem, ou souberem os magistrados, sou perdido. — Assim o dizia este homem, e assim havia de ser. E para que mais vos admireis, a cidade, ou vila, era Dovres, porto e escala marítima, onde todos, sem se excetuar um só, são hereges. Oh! vergonha dos que tanto nos prezamos do nome de católicos! Se em terra de hereges é sacrilégio jogar as tábulas em um domingo ordinário, que será jogar, ou estes ou outros jogos, em uma Semana Santa, em terra onde se adora a cruz e as imagens de Cristo, e se celebram os mistérios de sua morte? Seja esta também uma das mortificações que pertencem ao corpo.

IV
E a alma, que há de fazer? O corpo, imitar; a alma, meditar: o corpo com os ramos da palma, a alma com os da oliveira. A alma nestes santos dias há de fazer do coração um Monte Calvário, levantar nele um Cristo crucificado, e pôr-se desta maneira a contemplar suas dores. Oh! quem pudera explicar-se agora com o pensamento, e falar com o silêncio! Quando os amigos de Jó o foram visitar nos seus trabalhos, diz a Escritura Sagrada que estiveram uma semana inteira olhando só para ele, sem falarem palavra. Assim o hão de fazer nossas almas esta semana, se são amigas de Jesus: olhar, calar e pasmar. Oh! que vista! Oh! que silêncio! Oh! que admiração! Oh! que pasmo! Só três coisas dou licença a nossas almas que se possam perguntar a si mesmas no meio desta suspensão. Quem padece? Que padece? Por quem padece? E que meditação esta para uma eternidade! Quem padece? Deus, aquele ser eterno, infinito, imenso, todo-poderoso, aquele que criou o céu e a terra com uma palavra, e o pode aniquilar com outra; aquele, diante de cujo acatamento, os principados, as potestades e as dominações, e todas as hierarquias estão tremendo. Este Deus, cuja grandeza, este Deus, cuja majestade, este Deus, cuja soberania incompreensível só ele conhece inteiramente, e todos os entendimentos criados com infinita distância de nenhum modo podem alcançar, este, este é o que padece. Aqui se há de fazer uma pausa, e pasmar. São Bernardo, cheio de pasmo e assombro nesta mesma consideração, rompeu dizendo: Ergo ne credendum est, quod iste sit Deus, qui flagellatur, qui conspuitur, qui crucifigitur? É possível que se há de crer que este, que padece tantas injúrias e afrontas, e a mesma morte, é aquele mesmo Deus imortal, impassível, eterno, que não teve princípio, e é o princípio e fonte de todo ser? Este, este é; que nem ele fora Deus, nem a nossa fé fora fé, se ela não fizera, e nós não crêramos o que excede toda a capacidade humana. Por isso Isaías, quando entrou a falar da Paixão, como profeta que sobre todos era o mais eloqüente, o exórdio por onde começou, foi aquela pergunta: Quis credidit auditui nostro (Is. 53,1)? Quem haverá que dê crédito ao que há de ouvir de minha boca? — Tão alheio é quem padece do que padece, e este é Deus. Vede se há bem de que pasmar aqui. Depois de considerarmos que é Deus quem padece, então se segue a consideração do que padece. E não só havemos de trazer à memória o que já vimos que padeceu exteriormente em todos os sentidos do corpo, mas muito mais devemos considerar e ponderar o que padeceu no interior da alma e em todas suas potências. Com dois nomes, ou com duas semelhanças nos declarou nosso amorosíssimo Redentor o que padeceu em sua Paixão, com nome e semelhança de cálix, quando disse a S. Pedro: Calicem, quem dedit mihi Pater, non vis ut bibam illum (Jo. 18,11)? O cálix que mc deu meu Padre, não queres que o beba? — E com nome e semelhança de Batismo, quando disse a todos os discípulos: Baptismo habeo baptizari, et quomodo coarctor usque dum perficiatur (Lc. 12,50)? Eu hei de ser batizado em um batismo, o qual desejo com grandes ânsias e aperto do coração até que chegue. — De sorte que declarou o Senhor o que havia de padecer por nós, já chamando-lhe cálix, já batismo, e por quê? Porque o batismo recebe-se por fora, o cálix bebe-se por dentro, e Cristo, Redentor nosso, em toda sua Paixão não só padeceu por fora os martírios do corpo, senão também, e muito mais, por dentro os tormentos da alma. Por fora padeceu os tormentos dos açoites, dos espinhos, dos cravos, da lança, que o banharam todo em sangue, e por isso lhes chamou Batismo; por dentro padeceu as tristezas, os tédios, os temores, as angústias e agonias, que, sem ferro, lhe tiraram também sangue no Horto, e lhe penetravam mortalmente a alma: Tristis est anima mea usque ad mortem. Oh! quem pudesse entrar profundamente no interior da alma de Jesus, e entender o que naquele consistório sacratíssimo e secretíssimo das suas três potências passava e se conferia em tantas horas! A memória, desde o princípio do mundo representava os pecados de todos os homens, por quem satisfazia a divina justiça; o entendimento ponderava o pouco número dos mesmos homens que se haviam de aproveitar do preço infinito daqueles tormentos, e a vontade se desfazia com dor de ver perder tantas almas por sua culpa, sem achar consolação alguma a tamanha perda; e esta era a tristeza que ocupava toda a alma do Salvador, e com três cravos mais agudos e penetrantes a crucificava. Aqui havemos de fazer a segunda pausa, e pasmar tanto daquele infinito amor, como da nossa infinita cegueira. Oh! Senhor, quantos pode ser que vísseis então, dos que agora se acham nesta mesma igreja, que, por que haviam de desprezar e condenar as suas almas, agonizavam a vossa! Considere cada um se porventura, ou eterna desventura, é algum destes, e veja bem o seu perigo, enquanto tem tempo. Este é o Deus que padece, estas as penas e dores que padece, e só resta ver por quem padece. Se a fé me não ensinara outra coisa, cuidara eu que padecia Deus pelo céu, porque vejo o sol eclipsado e coberto de luto; cuidara que padecia pela terra, porque a vejo tremer e arrancar-se de seu próprio centro; cuidara que padecia pelas pedras, porque as vejo quebrarem-se umas com outras e abrirem-se as sepulturas; cuidara que padecia pelo Templo de Jerusalém, porque vejo rasgar-se de alto a baixo o véu do Sancta Sanctorum; cuidara que padecia por este mundo elementar, porque vejo confusos, perturbados, atônitos e com prodígios de sentimento e assombro todos os elementos. Mas não são estas as criaturas por quem padece Deus, posto que todas confessam que padece seu Criador; e, com serem irracionais e insensíveis, quiseram acabar com ele quando o vêem morrer. Quem são logo aqueles por quem padece o Autor da natureza, e por quem morre o Autor da vida? Sou eu, sois cada um de vós, e somos todos os homens. Por nós, e só por nós padece Deus; por nós, e só por nós padece quanto padece. Por nós que, depois de nos criar, o não respeitamos; por nós que, depois de nos sustentar, o não servimos; por nós que, depois de nos remir, o não obedecemos; por nós que, depois de morrer por nosso amor, o não amamos; por nós que, depois de se pôr em uma cruz por nós, o tornamos a crucificar mil vezes; por nós que, esperando-nos assim, e chamando-nos com os braços abertos, não queremos acudir a suas vozes; por nós, enfim, que, sabendo que nos há de julgar, e nos prometeu o céu, se o não ofendermos, queremos antes o inferno sem ele, que o céu com ele. Isto é o que faz todo o homem que peca mortalmente, e isto o que continua a fazer enquanto se não tira do pecado, para que vejais se tem razão, não só de pasmar, mas de perder o juízo.

V
Estes são, cristãos, os três pontos breves e altíssimos que havemos de meditar nestes poucos dias, os quais torno a repetir, para que vos fiquem bem na memória: Quem padece, o que padece, e por quem padece? Espero de vossa cristandade, que não só para estes dias da Semana Santa, senão para todos os de vossa vida, haveis de tomar esta devoção tão devida ao que nos merece o amor de quem deu a sua por nós. E ninguém se escuse com dizer que não sabe meditar ou discorrer, porque Deus não quer discursos, senão vontades, antes, nem ainda vontades nos pede; só com memórias se contenta: Hoc facite in meam commemorationem: Filhos — diz Cristo — dei a vida, dei o sangue, dei-me todo a mim mesmo por vosso amor; não quero de vós outra paga, senão que vos lembreis de mim. — De quantas coisas disse e fez o Filho de Deus na vida e na morte, nenhuma é mais para enternecer, e ainda magoar qualquer coração humano, que esta última recomendação com que se despediu de nós. Que Deus, feito homem por amor dos homens, e morto por amor dos homens, chegue a pedir aos mesmos homens que se lembrem dele? Oh! amor! Oh! benignidade divina! Oh! dureza! Oh! ingratidão humana! É Deus tão amoroso e tão benigno que nos pede a nossa memória, e somos tão duros e tão ingratos, que é necessário a Deus que no-la peça. Não me enternece tanto, nem me move tanto à compaixão tudo o que Cristo padeceu, quanto o que argüi no seu coração e nos nossos esta lastimosa recomendação. E que lástima seria, cristãos, ou que lástima é tão indigna, e tão afrontosa de nossos corações, que, pedindo-nos um tão bom Senhor só a memória, ainda essa lhe neguemos? Ora, por reverência do sangue, da morte e de toda a Paixão de Jesus, que não seja assim ao menos nestes santos dias. Lembremo-nos de suas dores, lembremo-nos de suas penas, lembremo-nos de suas chagas, e, sobretudo, lembremo-nos de seu amor. Com esta memória nos levantemos ao amanhecer, com esta memória nos recolhamos à noite, e nesta memória gastemos alguma parte dela. Particularmente vos encomendo muito esta única memória nas igrejas e no correr das igrejas. Grande fraqueza é a dos homens, e grande a astúcia do demônio, que até nesta Santa Semana nos arme laços e no-los teça da nossa própria devoção. As igrejas não se hão de correr por ostentação, nem por festa, nem por curiosidade, nem para ver quem vai, e como vai, e com quem vai, senão para ir com os olhos no chão, e a alma mui dentro em si mesma, considerando que naquele mesmo dia e por aqueles mesmos passos ia Deus com uma cruz às costas a morrer por mim, para que eu não morresse eternamente, e padecendo tantas afrontas e penas, para me livrar das do inferno. Oh! que memória esta para nos tirar tudo o mais da memória! Finalmente, chegados à igreja, haveis de imaginar que chegais ao Monte Calvário — que não é imaginação, senão verdade de fé, porque ali estava realmente o mesmo Cristo — e fazer com efeito o que fizéreis, se então estivera o Senhor na cruz, e o víreis com vossos olhos. Com esta modéstia e com esta consideração havemos de correr e visitar as igrejas, e com a mesma, e muito maior, assistir nelas aos Divinos Ofícios, e não olhando, falando e conversando, que é um abuso maldito, o qual, não se vendo em outra alguma parte da cristandade, só em Espanha e Portugal — onde tanto nos prezamos de católicos — se tem introduzido, com escândalo e abominação até dos hereges. Oh! se assistíramos nas nossas igrejas como eles nas suas, posto que indignas de tão sagrado nome, onde não há altar, nem cruz, nem está Cristo! Por amor do mesmo Cristo, cristãos e cristãs, que não cometamos uma tão grande indecência, e não façamos um tão público e manifesto agravo à fé com que cremos que aquele Senhor, que temos presente no Santíssimo Sacramento, é o mesmo que esteve por nós crucificado no Calvário. No Calvário assistiram a Cristo a Virgem Senhora nossa, São João, Santa Maria Madalena, e outras Marias, e é coisa digníssima de se notar que em todos os quatro evangelistas se não diz que alguma de todas estas pessoas falasse uma só palavra. Todos viam e consideravam o que passava, mas ninguém falava, porque os mistérios da Paixão querem-se venerados com suma atenção e meditados com sumo silêncio. Façamos, pois, todos nestes dias este pequeno sacrifício — de que ninguém tem causa para se escusar — e com satisfação do muito que temos ofendido a Deus com nossas línguas, ofereçamos-lhes o não falarmos com outrem, senão com ele, ao menos enquanto estivermos na sua presença. De tudo o mais que até aqui tenho dito, fará cada um o que seu fervor e devoção lhe ditar; mas deste silêncio, modéstia e reverência nas igrejas, a ninguém excetua o mesmo Cristo. Lembremo-nos que somos cristãos, e que em alguma coisa se há de ver que o somos, e que desse mesmo sermão, e das advertências que nele vos tenho feito, vos há de pedir Deus estreita conta. Lembremo-nos de quantas Semanas Santas têm passado sem nos aproveitarmos delas, e que pode mui bem ser que seja esta a última para alguns de nós. Quantos viram a passada, que não vêem esta, e quantos verão esta, que não hão de ver a que vem! Se soubéramos de certo que havia de ser esta a última Semana Santa de nossa vida, que havíamos de fazer? Pois, façamos isso mesmo, e não o façamos por temor da nossa morte, senão por amor de Jesus. Ah! Senhor, que as minhas palavras são de regelo, e estes corações, sem vossa graça, de bronze. Quando expirastes na cruz, inclinastes a cabeça sobre o peito, em sinal que havíeis de pôr os olhos em vós, e não em nós, em vosso coração, e não em nossos pecados. Desse mesmo coração alanceado e ofendido saíram os dois elementos com que formastes vossa Igreja; saíam também agora os espíritos vitais, espíritos de vida e graça, com que a reformeis. E, assim como alumiastes e destes vista ao mesmo que vos feriu, assim, posto que tão ferido e ofendido de nós — pois está sempre vivo no vosso coração o mesmo amor — saia dele um raio de luz que alumie nossas cegueiras. Fertilize, Senhor, este sangue, e regue esta água que saiu de vosso coração, nossas almas, que todas rendidas a vosso amor, e prostradas ao pé de vossa cruz, contritas e humilhadas, vos pedem perdão de todas suas culpas e de todas as ofensas vossas até esta hora cometidas. Nunca mais, Senhor, ofender-vos, nunca mais, por serdes vós quem sois. Assim o prometemos e protestamos firmissimamente. E assim o esperamos, clementíssimo Jesus, de vossa misericórdia infinita, dos merecimentos de vossa Paixão, e dos auxílios de vossa graça. Amém.

Tuesday, 1 November 2016

Instruction “Ad Resurgendum cum Christo” sur la sépulture des défunts et la conservation des cendres en cas d’incinération pour la Congrégation pour la Doctrine de la Foi (translated into French)




1. Pour ressusciter avec le Christ, il faut mourir avec le Christ, il faut « quitter ce corps pour aller demeurer auprès du Seigneur » (2 Co 5, 8). Dans son Instruction Piam et constantem du 5 juillet 1963, le Saint-Office avait demandé de « maintenir fidèlement la coutume d’ensevelir les corps des fidèles », précisant toutefois que l’incinération n’est pas « contraire en soi à la religion chrétienne » et qu’on ne devait plus refuser les sacrements et les obsèques à ceux qui demandaient l’incinération, à condition qu’un tel choix ne soit pas motivé par « une négation des dogmes chrétiens, dans un esprit sectaire, ou par haine contre la religion catholique ou l’Église »[1]. Ce changement de la discipline ecclésiastique a été ensuite inséré dans le Code de droit canonique (1983) et le Code des Canons des Églises orientales (1990).
                Depuis lors, la pratique de l’incinération s’est sensiblement répandue dans de nombreuses nations, mais, dans le même temps, se sont aussi diffusées de nouvelles idées en contradiction avec la foi de l’Église. Après avoir dûment consulté la Congrégation pour le culte divin et la discipline des sacrements, le Conseil pontifical pour les textes législatifs et de nombreuses Conférences épiscopales et Synodes des évêques des Églises orientales, la Congrégation pour la doctrine de la foi a jugé opportun de publier une nouvelle Instruction pour réaffirmer les raisons doctrinales et pastorales de la préférence pour l’inhumation des corps ; elle voudrait aussi établir des normes portant sur la conservation des cendres en cas d’incinération.
                2. La résurrection de Jésus est la vérité suprême de la foi chrétienne, prêchée comme une partie essentielle du mystère pascal depuis les origines du christianisme : « Je vous ai donc transmis en premier lieu ce que j’avais moi-même reçu, à savoir que le Christ est mort pour nos péchés selon les Écritures, qu’il a été mis au tombeau, qu’il est ressuscité le troisième jour selon les Écritures, et qu’il est apparu à Céphas, puis aux Douze » (1 Co 15, 3-4).
                Par sa mort et sa résurrection, le Christ nous a libérés du péché et nous a ouvert l’accès à une nouvelle vie : « Le Christ est ressuscité des morts par la gloire du Père, afin que nous vivions nous aussi d’une vie nouvelle » (Rm 6, 4). En outre, le Christ ressuscité est le principe et la source de notre résurrection future : « Le Christ est ressuscité d’entre les morts, prémices de ceux qui se sont endormis. […] De même, en effet, que tous meurent en Adam, ainsi tous revivront dans le Christ » (1 Co 15, 20-22).
                S’il est vrai que le Christ nous ressuscitera « au dernier jour », il est vrai aussi que, d’une certaine façon, nous sommes déjà ressuscités avec Lui. En effet, par le baptême, nous sommes plongés dans la mort et la résurrection du Christ, et assimilés à lui sacramentellement : « Ensevelis avec lui lors du baptême, vous êtes aussi ressuscités avec lui, parce que vous avez cru en la force de Dieu qui l’a ressuscité des morts » (Col 2, 12). Unis au Christ par le baptême, nous participons déjà réellement à la vie du Christ ressuscité (cf. Ep 2, 6).
                Grâce au Christ, la mort chrétienne a un sens positif. Dans la liturgie, l’Église prie ainsi : « Pour tous ceux qui croient en toi, Seigneur, la vie n’est pas détruite, elle est transformée ; et lorsque prend fin leur séjour sur la terre, ils ont déjà une demeure éternelle dans les cieux »[2]. Par la mort, l’âme est séparée du corps, mais, dans la résurrection, Dieu rendra la vie incorruptible à notre corps transformé, en le réunissant à notre âme. Même de nos jours, l’Église est appelée à proclamer la foi en la résurrection : « La foi des chrétiens, c’est la résurrection des morts : y croire, c’est ressusciter »[3].
                3. Suivant la tradition chrétienne immémoriale, l’Église recommande avec insistance que les corps des défunts soient ensevelis dans un cimetière ou en un lieu sacré[4].
                En souvenir de la mort, de la sépulture et de la résurrection du Seigneur, mystère à la lumière duquel se manifeste le sens chrétien de la mort[5], l’inhumation est d’abord et avant tout la forme la plus idoine pour exprimer la foi et l’espérance dans la résurrection du corporelle[6].
                Comme mère, l’Église accompagne le chrétien lors de son pèlerinage terrestre ; dans le Christ, elle offre au Père le fils de sa grâce et remet sa dépouille mortelle à la terre, dans l’espérance qu’il ressuscitera dans la gloire[7].
                En ensevelissant les corps des fidèles, l’Église confirme la foi en la résurrection de la chair[8] et veut mettre l’accent sur la grande dignité du corps humain, en tant que partie intégrante de la personne, dont le corps partage l’histoire[9]. Elle ne peut donc tolérer des attitudes et des rites impliquant des conceptions erronées de la mort, considérée soit comme l’anéantissement définitif de la personne, soit comme un moment de sa fusion avec la Mère-nature ou avec l’univers, soit comme une étape dans le processus de réincarnation, ou encore comme la libération définitive de la “prison” du corps.
                En outre, la sépulture dans les cimetières ou dans d’autres lieux sacrés répond de manière adéquate à la piété ainsi qu’au respect dus aux corps des fidèles défunts qui, par le baptême, sont devenus temple de l’Esprit Saint et qui ont été « comme les instruments et les vases dont l’Esprit s’est saintement servi pour opérer tant de bonnes œuvres »[10].
                Tobie, le juste, est loué pour les mérites acquis devant Dieu en ensevelissant les morts[11], un acte que l’Église considère comme une œuvre de miséricorde corporelle[12].
                Enfin, la sépulture des corps des fidèles défunts dans les cimetières ou autres lieux sacrés favorise le souvenir ainsi que la prière de la famille et de toute la communauté chrétienne pour les défunts, sans oublier la vénération des martyrs et des saints.
                Grâce à la sépulture des corps dans les cimetières, dans les églises ou les espaces réservés à cet usage, la tradition chrétienne a préservé la communion entre les vivants et les morts, et s’est opposée à la tendance à dissimuler ou à privatiser l’événement de la mort ainsi que la signification qu’il revêt pour les chrétiens.
                4. Là où des raisons de type hygiénique, économique ou social poussent à choisir l’incinération – choix qui ne doit pas être contraire à la volonté expresse ou raisonnablement présumée du fidèle défunt –, l’Église ne voit pas de raisons doctrinales pour prohiber cette pratique. En effet, l’incinération du cadavre ne touche pas à l’âme et n’empêche pas la toute-puissance divine de ressusciter le corps ; elle ne contient donc pas, en soi, la négation objective de la doctrine chrétienne sur l’immortalité de l’âme et la résurrection des corps[13].
                L’Église continue d’accorder la préférence à l’inhumation des corps, car celle-ci témoigne d’une plus grande estime pour les défunts ; toutefois, l’incinération n’est pas interdite, « à moins qu’elle n’ait été choisie pour des raisons contraires à la doctrine chrétienne »[14].
                Lorsqu’il n’existe pas de motivations contraires à la doctrine chrétienne, l’Église accompagne, après la célébration des obsèques, le choix de l’incinération avec d’opportunes directives liturgiques et pastorales, en veillant surtout à éviter toute forme de scandale ou d’indifférentisme religieux.
                5. Si, pour des raisons légitimes, l’on opte pour l’incinération du cadavre, les cendres du défunt doivent être conservées normalement dans un lieu sacré, à savoir le cimetière ou, le cas échéant, une église ou un espace spécialement dédié à cet effet par l’autorité ecclésiastique compétente.
                Dès l’origine, les chrétiens ont désiré que leurs défunts fissent l’objet de l’intercession et du souvenir de la communauté chrétienne. Leurs tombes sont devenues des lieux de prière, de mémoire et de réflexion. Les fidèles défunts font partie de l’Église qui croit en la communion « de ceux qui sont pèlerins sur la terre, des défunts qui achèvent leur purification, des bienheureux du ciel, tous ensemble formant une seule Église »[15].
                La conservation des cendres dans un lieu sacré peut contribuer à réduire le risque de soustraire les défunts à la prière et au souvenir de leur famille et de la communauté chrétienne. De la sorte, on évite également d’éventuels oublis et manques de respect qui peuvent advenir surtout après la disparition de la première génération, ainsi que des pratiques inconvenantes ou superstitieuses.
                6. Pour les motifs énumérés ci-dessus, la conservation des cendres dans l’habitation domestique n’est pas autorisée. C’est seulement en cas de circonstances graves et exceptionnelles liées à des conditions culturelles à caractère local que l’Ordinaire, en accord avec la Conférence épiscopale ou le Synode des évêques des Églises orientales, peut concéder l’autorisation de conserver des cendres dans l’habitation domestique. Toutefois, les cendres ne peuvent être distribuées entre les différents cercles familiaux, et l’on veillera toujours à leur assurer des conditions respectueuses et adéquates de conservation.
                7. Pour éviter tout malentendu de type panthéiste, naturaliste ou nihiliste, la dispersion des cendres dans l’air, sur terre, dans l’eau ou de toute autre manière, n’est pas permise ; il en est de même de la conservation des cendres issues de l’incinération dans des souvenirs, des bijoux ou d’autres objets. En effet, les raisons hygiéniques, sociales ou économiques qui peuvent motiver le choix de l’incinération ne s’appliquent pas à ces procédés.
                8. Dans le cas où le défunt aurait, de manière notoire, requis l’incinération et la dispersion de ses cendres dans la nature pour des raisons contraires à la foi chrétienne, on doit lui refuser les obsèques, conformément aux dispositions du droit[16].
                Au cours de l’audience accordée le 18 mars 2016 au Cardinal Préfet de la Congrégation pour la doctrine de la foi, le Souverain Pontife François a approuvé la présente Instruction, décidée lors de la Session ordinaire de ce Dicastère en date du 2 mars 2016, et il en a ordonné la publication.

Donné à Rome, au siège de la Congrégation pour la doctrine de la foi, le 15 août 2016, Solennité de l’Assomption de la Bienheureuse Vierge Marie.

Gerhard Card. Müller
Préfet

+ Luis F. Ladaria, S.I.
Archevêque titulaire de Thibica
Secrétaire

Saturday, 29 October 2016

"Eu Cheguei Lá" by Dorival Caymmi (in Portuguese)


Eu cheguei lá mas me esqueci
Do que ia dizer, do que ia falar
Eu cheguei lá, eu cheguei lá
Maria Amélia, eu passei toda a noite
Sonhando
Maria Amélia, eu passei toda a noite
Pensando
Lindas palavras
Que eu preparei pra lhe dizer
Mas me esqueci, mas me esqueci.

"Eu Cheguei Lá" sung by Dorival Caymmi.

Friday, 28 October 2016

“A Baffled Ambuscade” by Ambrose Bierce (in English)



Connecting Readyville and Woodbury was a good, hard turnpike nine or ten miles long. Readyville was an outpost of the Federal army at Murfreesboro; Woodbury had the same relation to the Confederate army at Tullahoma. For months after the big battle at Stone River these outposts were in constant quarrel, most of the trouble occurring, naturally, on the turnpike mentioned, between detachments of cavalry. Sometimes the infantry and artillery took a hand in the game by way of showing their goodwill.
            One night a squadron of Federal horse commanded by Major Seidel, a gallant and skillful officer, moved out from Readyville on an uncommonly hazardous enterprise requiring secrecy, caution and silence.
            Passing the infantry pickets, the detachment soon afterward approached two cavalry videttes staring hard into the darkness ahead. There should have been three.
            "Where is your other man?" said the major. "I ordered Dunning to be here tonight."
            "He rode forward, sir," the man replied. "There was a little firing afterward, but it was a long way to the front."
            "It was against orders and against sense for Dunning to do that," said the officer, obviously vexed. "Why did he ride forward?"
            "Don't know, sir; he seemed mighty restless. Guess he was skeered."
            When this remarkable reasoner and his companion had been absorbed into the expeditionary force, it resumed its advance. Conversation was forbidden; arms and accountrements were denied the right to rattle. The horses tramping was all that could be heard and the movement was slow in order to have as little as possible of that. It was after midnight and pretty dark, although there was a bit of moon somewhere behind the masses of cloud.
            Two or three miles along, the head of the column approached a dense forest of cedars bordering the road on both sides. The major commanded a halt by merely halting, and, evidently himself a bit "skeered," rode on alone to reconnoiter. He was followed, however, by his adjutant and three troopers, who remained a little distance behind and, unseen by him, saw all that occurred.
            After riding about a hundred yards toward the forest, the major suddenly and sharply reined in his horse and sat motionless in the saddle. Near the side of the road, in a little open space and hardly ten paces away, stood the figure of a man, dimly visible and as motionless as he. The major's first feeling was that of satisfaction in having left his cavalcade behind; if this were an enemy and should escape he would have little to report. The expedition was as yet undetected.
            Some dark object was dimly discernible at the man's feet; the officer could not make it out. With the instinct of the true cavalryman and a particular indisposition to the discharge of firearms, he drew his saber. The man on foot made no movement in answer to the challenge. The situation was tense and a bit dramatic. Suddenly the moon burst through a rift in the clouds and, himself in the shadow of a group of great oaks, the horseman saw the footman clearly, in a patch of white light. It was Trooper Dunning, unarmed and bareheaded. The object at his feet resolved itself into a dead horse, and at a right angle across the animal's neck lay a dead man, face upward in the moonlight.
            "Dunning has had the fight of his life," thought the major, and was about to ride forward. Dunning raised his hand, motioning him back with a gesture of warning; then, lowering the arm, he pointed to the place where the road lost itself in the blackness of the cedar forest.
            The major understood, and turning his horse rode back to the little group that had followed him and was already moving to the rear in fear of his displeasure, and so returned to the head of his command.
            "Dunning is just ahead there," he said to the captain of his leading company. "He has killed his man and will have something to report."
            Right patiently they waited, sabers drawn, but Dunning did not come. In an hour the day broke and the whole force moved cautiously forward, its commander not altogether satisfied with his faith in Private Dunning. The expedition had failed, but something remained to be done.
            In the little open space off the road they found the fallen horse. At a right angle across the animal's neck face upward, a bullet in the brain, lay the body of Trooper Dunning, stiff as a statue, hours dead.
            Examination disclosed abundant evidence that within a half hour the cedar forest had been occupied by a strong force of Confederate infantry - an ambuscade.