Saturday, 21 January 2017

“Sermão da Quinta Dominga da Quaresma” by Father António Vieira (in Portuguese)



Na Igreja Maior da Cidade de São Luís no Maranhão. Ano de 1654.


Si dixero quia non scio eum, ero similis vobis, mendax.

§ I
            A verdade e a mentira: a verdade do pregador e a mentira dos ouvintes. As três espécies de mentiras com que os escribas e fariseus hoje contradisseram, caluniaram e quiseram afrontar e desonrar o Filho de Deus. Temos juntamente hoje no Evangelho duas coisas que nunca podem andar juntas: a verdade e a mentira. E por que não podem andar juntas, por isso as temos divididas; a verdade no pregador, a mentira nos ouvintes; o pregador muito verdadeiro, o auditório muito mentiroso. Uma e outra coisa disse Cristo aos escribas e fariseus, com quem falava. O pregador muito verdadeiro: Si veritatem dico vobis; o auditório muito mentiroso: Ero similis vobis, mendax. De três modos - que há muitos modos de mentir - mentiram hoje estes maus ouvintes. Mentiram, porque não creram a verdade; mentiram, porque impugnaram a verdade; mentiram, porque afirmaram a mentira. Não crer a verdade é mentir com o pensamento; impugnar a verdade é mentir com a obra; afirmar a mentira é mentir com a palavra. Tudo isto lhe tinha profetizado a Cristo seu pai Davi, quando disse: In multitudine virtutis tuae mentientur tibi inimici tui. De muitos modos mostrareis eficazmente a verdade de vosso ser, mas vossos inimigos vos mentirão também por muitos modos; mentir-vos-ão não crendo; mentir-vos-ão impugnando; mentir-vos-ão mentindo, como hoje fizeram. Disse-lhes Cristo que era Filho de Deus verdadeiro, a quem eles chamavam Pai sem o conhecerem: disse-lhes que os que recebessem e observassem sua doutrina viveriam eternamente, e aqui mentiram não crendo a verdade: Si veritatem dico vobis, quare non creditis mihi? Disse-lhes mais, que Abraão desejara ver o seu dia, isto é, o dia em que havia de descer do céu à terra, e nascer homem entre os homens, e que, finalmente, o vira com grande júbilo e alegria da sua alma, e aqui mentiram impugnando a verdade: Quinquaginta annos nondum habes, et Abraham vidisti (Jo 8, 57)? Tu não tens ainda cinqüenta anos, e viste Abraão? - E o bezerro que vós dissestes que vos livrara do Egito, quantos anos tinha? Não era nascido e gerado naquele mesmo dia? O ditame com que o tivestes por Deus era falso, mas a suposição com que entendestes que em Deus podia haver duas gerações, uma antes e outra depois, era verdadeira. Respondeu Cristo: Antequam Abraham fieret, ego sum (Jo 8, 58): Antes que Abraão fosse, eu já era. - Mas este era, declarou-o pela palavra Ego sum: eu sou para que entendessem que era aquele mesmo Deus, que quando se definiu a Moisés disse: Ego sum qui sum (Êx 3, 14): Eu sou o que sou porque no eterno não há passado, nem futuro: tudo é presente. Enfim, mentiram afirmando a mentira, porque disseram que Cristo era samaritano e endemoninhado: Samaritanus es, et daemonium habes. E para mentirem duas vezes em uma mentira, repetiram a mesma blasfêmia ratificando o que tinham dito e alegando-se a si mesmos: Nonne bene dicimus nos? Mal é dizer mal, mas depois de o haverdes dito, dizerdes ainda que dizeis bem, é um mal maior sobre outro mal, porque é estar obstinado nele. Estas são as mentiras com que os escribas e fariseus hoje contradisseram, caluniaram e quiseram afrontar e desonrar ao Filho de Deus, como o Senhor lhes disse: Ego honorifico Patrem meum, et vos inhonorastis me. Mas, posto que a Sabedoria eterna fosse caluniada e injuriada por semelhante gente, nem por isto ficou afrontado nem desonrado Cristo, porque tudo o que disseram dele e lhe fizeram foi por inveja, por ódio, por raiva, por vingança, e quando as causas são estas, as injúrias não injuriam, as afrontas desafrontam, as desonras honram. Não está muito honrado Cristo? Dizei-o vós. Ora eu, que pregarei neste dia, em que tanto se espera o assunto dos pregadores? Hei também de dizer-vos uma grande injúria, uma grande afronta e uma grande desonra da vossa terra. Contudo, ainda que as verdades causam ódio, espero que não haveis de ficar mal comigo, porque hei de afrontar todos para desafrontar a cada um. O discurso dirá como. Ave Maria.

§II
            O Domingo das verdades. No Maranhão a corte da mentira. O galante apólogo do diabo. O M de Maranhão. No Maranhão até o sol e os céus mentem. Si dixero quia non scio eum, ero similis vobis, mendax. A este Evangelho do Domingo Quinto da Quaresma chamais comumente o domingo das verdades. Para mim todos os domingos têm este sobrenome, porque em todos prego verdades, e muito claras, como tendes visto. Por me não sair, contudo, do que hoje todos esperam, estive considerando comigo que verdades vos diria, e, segundo as notícias que vou tendo desta nossa terra, resolvi-me a vos dizer uma só verdade. Mas que verdade será esta? Não gastemos tempo. A verdade que vos digo é que no Maranhão não há verdade. Cuidavam e diziam os sábios antigos, que em diferentes ilhas do mundo reinavam diferentes deidades: que em Creta reinava Júpiter, que em Delos reinava Apolo, que em Samos reinava Juno, que em Chipre reinava Vênus, e assim de outras. Se o império da mentira não fora tão universal no mundo, pudera-se suspeitar que nesta nossa ilha tinha a sua corte a mentira. Todas as terras, assim como tem particulares estrelas, que naturalmente predominam sobre elas, assim padecem também diferentes vícios, a que geralmente são sujeitas. Fingiram a este propósito os alemães uma galante fábula. Dizem que quando o diabo caiu do céu, que no ar se fez em pedaços, e que estes pedaços se espalharam em diversas províncias da Europa, onde ficaram os vícios que nelas reinam. Dizem que a cabeça do diabo caiu em Espanha, e que por isso somos furiosos, altivos, e com arrogância graves. Dizem que o peito caiu em Itália, e que daqui lhes veio serem fabricadores de máquinas, não se darem a entender, e trazerem o coração sempre coberto. Dizem que o ventre caiu em Alemanha, e que esta é a causa de serem inclinados à gula, e gastarem mais que os outros com a mesa e com a taça. Dizem que os pés caíram em França, e que daqui nasce serem pouco sossegados, apressados no andar, e amigos de bailes. Dizem que os braços com as mãos e unhas crescidas, um caiu na Holanda, outro em Argel, e que daí lhes veio - ou nos veio - o serem corsários. Esta é a substância do apólogo, nem mal formado, nem mal repartido, porque, ainda que a aplicação dos vícios totalmente não seja verdadeira, tem contudo a semelhança de verdade, que basta para dar sal à sátira. E, suposto que à Espanha lhe coube a cabeça, cuido eu que a parte dela que nos toca ao nosso Portugal é a língua, ao menos assim o entendem as nações estrangeiras que de mais perto nos tratam. Os vícios da língua são tantos, que fez Drexélio um abecedário inteiro e muito copioso deles. E se as letras deste abecedário se repartissem pelos estados de Portugal, que letra tocaria ao nosso Maranhão? Não há dúvida, que o M. M - Maranhão, M - murmurar, M - motejar, M - maldizer, M - malsinar, M - mexericar, e, sobretudo, M - mentir: mentir com as palavras, mentir com as obras, mentir com os pensamentos, que de todos e por todos os modos aqui se mente. Novelas e novelos, são as duas moedas correntes desta terra, mas têm uma diferença, que as novelas armam-se sobre nada, e os novelos armam-se sobre muito, para tudo ser moeda falsa. Na Bahia, que é a cabeça desta nossa província do Brasil; acontece algumas vezes o que no Maranhão quase todos os dias. Amanhece o sol muito claro, prometendo um formoso dia, e dentro em uma hora tolda o céu de nuvens, e começa a chover como no mais entranhado inverno. Sucedeu-lhe um caso como este a D. Fradique de Toledo, quando veio a restaurar a Bahia no ano de mil seiscentos e vinte e cinco. E tendo toda a gente da armada em campo para lhe passar mostra, admirado da inconstância do clima, disse: En el Brasil hasta los cielos mientem. Não sei se é isto descrédito, se desculpa. Que mais pode fazer um homem, que ser tão bom como o céu da terra em que vive? Outra terra há em Europa, na qual eu estive há poucos anos, em que se experimentaram cada dia as mesmas mudanças, pelas quais Galeno não quis curar nela; porém, ali há outra razão, porque como a terra tem jurisdição sobre o céu, segue o céu as influências da terra. Mas o que se disse do Brasil por galanteria, se pode afirmar do Maranhão com toda a verdade. É experiência inaudita a que agora direi, e não sei que fé lhe darão os matemáticos que estão mais longe da linha. Quer pesar o sol um piloto nesta cidade onde estamos, e não no porto, onde está surto o seu navio, senão com os pés em terra: toma o astrolábio na mão com toda a quietação e segurança. E que lhe acontece? Coisa prodigiosa! Um dia acha que está o Maranhão em um grau, outro dia em meio, outro dia em dois, outro dia em nenhum. E esta é a causa por que os pilotos que não são práticos nesta costa, areiam, e se têm perdido tantos nelas. De maneira que o sol, que em toda a parte é a regra certa e infalível por onde se medem os tempos, os lugares, as alturas, em chegando à terra do Maranhão, até ele mente. E terra onde até o sol mente, vede que verdade falarão aqueles sobre cujas cabeças e corações ele influi. Acontece-lhes aqui aos moradores o mesmo que aos pilotos, que nenhum sabe em que altura está. Cuida o homem nobre hoje que está em altura de honrado, e amanhã acha-se infamado e envilecido. Cuida a donzela recolhida que está em altura de virtuosa, e amanhã acha-se murmurada pelas praças. Cuida o eclesiástico que está em altura de bom sacerdote, e amanhã acha-se com reputação de mau homem. Enfim, um dia estais aqui em uma altura, e ao outro dia noutra, porque os lábios são como o astrolábio. É isto assim? A vós mesmos o ouço, que eu não o adivinhei. vede se é certa a minha verdade: que não há verdade no Maranhão.

§ III
A influência do clima no nascimento de vícios e virtudes. Os dois vícios dos cretenses: mentira e preguiça. As mais desfechadas mentiras que nunca se ouviram nem imaginaram. A mentira, filha primogênita do ócio. A proposição de Davi. O juízo temerário. A língua, a fera mais dificultosa de enfrear. Ora, eu me pus a especular a causa por que o clima e o céu desta terra influi tanta mentira, e parece-me que achei a causa verdadeira e natural. Assim como o céu com uma virtude influi outra virtude, assim o clima, que também se chama céu, com um vício influi outro vício. Ponhamos o exemplo na verdade, que é a virtude contrária da mentira: Veritas de terra orta est (Sl 8, 12), diz Davi: A verdade nasceu da terra. - E logo advertiu que a terra de que falava não era toda a terra, senão a sua: Et terra nostra dabit fructum suum. Mas donde lhe veio aquela terra - que era a de Promissão - donde veio uma virtude tão singular no mundo, que nascesse dela a verdade? O mesmo profeta o disse: Veritas de terra orta est, et justitia de coelo prospexit. Toda esta virtude da terra veio-lhe do céu. Influiu o céu na terra a justiça, e nasceu nela a verdade. A verdade é filha legítima da justiça, porque a justiça dá a cada um o que é seu. E isto é o que faz e o que diz a verdade, ao contrário da mentira. A mentira, ou vos tira o que tendes, ou vos dá o que não tendes; ou vos rouba, ou vos condena. A verdade não: a cada um dá o seu, como a justiça. E porque o céu influiu naquela terra a justiça, por isso influiu e nasceu nela a verdade. Influiu uma virtude, e nasceu outra. O mesmo passa nos vícios. Se o clima influi soberba, nasce a inveja; se influi gula, nasce a luxúria; se influi cobiça, nasce a avareza; se influi ira, nasce a vingança. E para nascer a mentira, que é o que influi? Ociosidade. Onde o clima influi ócio, dá-se a mentira a perder. Nasce, cresce, espiga, e de um não-sei-quê, tamanho como um grão de trigo, podeis colher mentiras aos alqueires. Estes são os dois vícios do Maranhão, e estas as duas influências deste clima - ócio e mentira. - O ócio é a primeira influência, a mentira a segunda; o ócio a causa, a mentira o efeito. Não há terra no mundo que mais incline ao ócio ou à preguiça, como vós dizeis, e esta é a semente de que nasce tão má erva. Ouvi a S. Paulo. Fala o apóstolo da Ilha de Creta, que é a Cândia, que hoje vai conquistando o turco, e diz assim: Cretenses semper mendaces, ventres pigri: os cretenses têm dois vícios, que sempre se acham neles: mentirosos e preguiçosos. Pudera dizer mais, se falara da nossa ilha, e de toda esta terra? Digam-no os naturais. Nem a sua diligência nem a sua verdade o pode negar. Não há gente mais mentirosa nem mais preguiçosa no mundo. Deitados na sua rede: Ventres pigri; ouvidos nas suas palavras: semper mendaces. Mas como estas virtudes vêem do céu, como são influências do clima, pegaram-se também aos portugueses. Falta a verdade, porque sobeja a ociosidade. Dai-me vós homens ociosos, que eu vo-los darei mentirosos. E se não, vamos ao Evangelho. As mais desfechadas mentiras, que nunca se ouviram nem imaginaram, foram as que hoje lhe disseram a Cristo na cara os escribas e fariseus, pelas quais o mesmo Senhor lhes chamou mentirosos: Ero similis vobis, mendax (Jo 8, 55). Disseram que era samaritano e endemoninhado. E não só o disseram esta vez, como advertiu Orígenes, mas assim o diziam publicamente; Nonne bene dicimus nos, quia samaritanus es tu, et daemonium habes? E notai o que disseram mais abaixo: Nunc cognovimus, quia samaritanus est tu, et daemonium habes (Jo 8, 52). Agora conhecemos que és samaritano e endemonhinhado. - Pois, se agora o conhecestes, como o dizíeis dantes? Porque os mentirosos dizem as coisas antes de as saberem. Mas, tornemos à substância da mentira. Cristo lançava os demônios de todos os corpos, e eles chamam-lhe endemoninhado; Cristo era galileu natural de Nazaré, e chamam-lhe samaritano. E se o diziam pela religião e pelos costumes, os samaritanos eram idólatras e apóstatas da lei, e Cristo era o legislador e reformador dela. Estas eram as mentiras que diziam os escribas e fariseus. E o povo, que dizia? Dizia a verdade: que Cristo era um grande profeta, que era o Rei prometido de Israel, que era o Messias. Pois, se o povo simples e sem letras conhecia e dizia a verdade, os escribas e fariseus, que se prezavam de sábios, como cuidavam e diziam tão desatinadas mentiras? Porque os escribas e fariseus era gente abastada e ociosa, e o povo não. Ide-lhe ver as mãos, achar-lhas-eis cheias de calos. Quem trabalha, trata da sua vida; quem está ocioso, trata das alheias. Quem trabalha, como cuida no que faz, fala verdade, porque diz as coisas como são. O ocioso, como não tem que fazer, mente, porque diz o que imagina. Esta é a razão por que a mentira é filha primogênita do ócio. Vede como se forma dentro em vós mesmos este monstruoso parto. Quem está ocioso não tem mais que fazer que pôr-se a imaginar; da ociosidade nasce a imaginação, da imaginação a suspeita, da suspeita a mentira. É a imaginação no ocioso como a serpente de Eva. Estava ociosa Eva no paraíso, entrou a serpente coleando-se mansamente sem pés, mas com cabeça; começou pela especulação, e acabou pela mentira. Começou pela especulação: Cur praecepit vobis Deus; e acabou pela mentira, e duas mentiras: Nequaquam moriemini: eritis sicut dii. Consentiu Eva na mentira peçonhenta: de Eva passou a Adão, de Adão ao gênero humano. Não sucede assim às mentiras imaginadas, que vós, como bicho da seda, gerastes dentro em vós mesmos, fabricando de vossas entranhas a mortalha para vós e o vestido para os outros? Meterá a língua a tesoura; e sem tomar as medidas à verdade, vós lhes cortareis de vestir. Por que cuidais que se dizem tantas coisas mal feitas? Por que se fizeram? Não, que a mim me consta do contrário. É porque se imaginaram; e tanto que vieram à imaginação, já estão na prancha da língua. Que bem o disse Davi: Tota die iniquitatem cogitavit lingua tua (Sl 51, 4): Todo o dia a vossa língua estava cuidando e imaginando maldades. Tota die: todo o dia. Vede se era ocioso aquele de quem falava Davi: todo o dia não tinha outra coisa que fazer. E que fazia? Estava a sua língua cuidando e imaginando maldades. Não sei se reparais na impropriedade das palavras. O cuidar, o imaginar, é obra do entendimento, não é da língua: a língua fala, o entendimento imagina. Pois, se a imaginação está no entendimento, como diz Davi que estes fabricadores de maldades imaginavam com a língua: Tota die iniquitatem cogitavit lingua tua? Falou Davi com esta que parece impropriedade, para declarar com toda a propriedade o que queria dizer. Não diz que imagina com a língua, porque a língua imagine, que isso não pode ser; mas diz que imaginam com a língua, por duas razões: primeira, porque a sua língua não diz o que é senão o que imagina; segunda, porque quanto lhes vem à imaginação, logo o põe na língua. O mesmo Davi: Cogitaverunt et locuti sunt iniquitatem: Em imaginando a maldade, logo a dizem, sem outra causa para a dizerem mais que a sua maldade, sem outro fundamento mais que a sua imaginação. Por isso lhes chama o profeta verba praecipitationis, tão precipitados em afirmar quanto imaginam sem consideração, sem advertência, sem reparo, sem escrúpulo, sem temor de Deus, sem meter espaço nem fazer diferença entre o imaginar e o dizer, como se tiveram a imaginação na língua, ou a língua na imaginação, como se a língua fôra a que imagina, ou a imaginação a que fala: Cogitavit injustitiam lingua tua. Quantas vezes se diz do honrado e da honrada, do inocente e da inocente o que nunca lhes passou pela imaginação? Mas basta que o maldizente o imagine ou o queira imaginar, para o pôr na conversação e na praça, e o afirmar com tanta certeza, como se o lêra em um Evangelho. Deus nos livre de tais línguas, e muito mais de tais imaginações, porque se a vossa honra lhes entrou na imaginação, nenhum remédio tendes: não há de parar aí, há de passar à língua: Cogitaverunt, et locuti sunt. Daqui entendereis a razão de um notável preceito de Deus, que por uma parte parece rigoroso, e, por outra, menos necessário. Proíbe Deus, sob pena de pecado mortal e de inferno, que ninguém tenha juízo temerário do seu próximo. Juízo temerário é cuidar eu e julgar mal de meu próximo dentro do meu pensamento. Pois, se o meu juízo fica dentro do meu pensamento, e não sai fora, nem pode fazer bem nem mal ao próximo, por que o proíbe Deus com tanta severidade? Primeiramente notai e adverti quão estimada é, e quão delicada para com Deus a honra e a reputação de cada um de nós. Nem cá dentro no meu entendimento, nem cá dentro na minha imaginação quer Deus que estejais mal reputado. Zela Deus e cia a vossa honra e a vossa reputação, até de mim para comigo. Vede quanto ciará e sentirá que passe aos ouvidos, e ande pelas bocas de uns e outros. Daqui nasce a razão por que Deus proíbe tão rigorosamente os juízos temerários. Não quer que haja juízos temerários, para que não haja falsos testemunhos. Os falsos testemunhos formam-se na língua: os juízos temerários formam-se na imaginação; e como da imaginação à língua há tão pouca distância, para que não haja falsos testemunhos na língua, proíbe que não haja juízos temerários na imaginação. Não se contentou Deus com meter o inferno entre a imaginação e a língua, com um preceito de pecado mortal, mas meteu outra vez o inferno entre o entendimento e a imaginação, para que com estes dois muros de fogo tivesse defendida a nossa honra das nossas línguas. E, contudo, isto não basta. Por que? Porque em se passando a primeira muralha, está vencida a segunda; em chegando à imaginação, já está na língua: Cogitaverunt, et locuti sunt. Senhores meus, vivemos em uma terra muito ociosa, e por isso muito sujeita a imaginações. Aqui se há de pôr o remédio. Diz o apóstolo S. Tiago que não há fera mais dificultosa de enfrear que a língua. Para se pôr o freio na língua, hão-se de meter as cabeçadas na imaginação. Nos vossos engenhos, para que não corra a levada, pondes o resisto no açude. O primeiro a quem mentis é a vós. Não mentiram as línguas a todos se as imaginações não mentiram a cada um. Aqui é que se há de pôr o resisto. Jó, que conhecia muito bem a simpatia das potências com os sentidos, dizia: Pepigi faedus cum oculis meis, ut ne cogitarem de virgine: Fiz concerto com os meus olhos, para estar seguro dos meus pensamentos. - Concertai-vos com os vossos pensamentos, se quereis estar seguro das vossas línguas. Mas porque dais entrada a quanto quereis no pensamento, por isso dizeis tantas coisas que nunca passaram pelo pensamento.

§ IV
            Quantas voltas dão as palavras desde a boca até os ouvidos. O exemplo dos apóstolos. Os que ouvem pelos ouvidos e os que ouvem pelos corações. O que ouviram Moisés e Josué ao descer do Sinai. As mentiras e as formas do fundidor. O notável artifício com que a natureza formou os nossos ouvidos. Como saíram torcidas da boca dos fariseus as palavras de Cristo. A quimera e a mentira. A primeira mentira que no mundo se disse foi feita de duas verdades. As falsas testemunhas diante de Pilatos. Vejo que estão agora alguns no auditório mui contentes, dizendo consigo que isto não fala com eles, porque é verdade que não são mudos, e que quando se acham em conversação também falam nas vidas alheias; mas que não são homens que digam o que imaginam: dizem o que ouvem, e quem diz o que ouve não mente. Ora, estai comigo. Se vós soubéreis quantas voltas dão as palavras desde a boca até os ouvidos, não houvéreis de dizer isso, ainda que foreis mui verdadeiros. Quero-vos pôr o exemplo na melhor boca e nos melhores ouvidos do mundo. Perguntou S. Pedro a Cristo que havia de ser de S. João. Respondeu o Senhor: Sic eum volo manere (Jo 21, 22): Quero que fique assim. - Isto é o que Cristo disse. E os apóstolos que disseram? Exiit sermo inter fratres, quod discipulus ille non moritur: Começaram a dizer uns com os outros que S. João não havia de morrer. - E acrescenta o Evangelista: Et non dixit Jesus non moritur, sed sic eum volo manere (Jo 21, 23): E Cristo não disse que ele não havia de morrer, senão que queria que ficasse assim. - Pois, se Cristo o não disse, como o disseram os apóstolos? Eles é certo que não quiseram dizer uma coisa por outra, mas desde a boca aos ouvidos são tantas as voltas que dão as palavras, ou no que soam, ou no que significam, que o que na boca de Cristo é ficar, nos ouvidos dos apóstolos é não morrer. Não podia haver nem melhor boca que a de Cristo, nem melhores ouvidos que os dos apóstolos; e se entre o dizer de tal boca e o perceber de tais ouvidos sucedem estas contradições, que será quando a boca não é de Cristo, e quando os ouvidos não são de S. Pedro nem de S. João? Quantas vezes vos disseram uma coisa e percebestes outra? Quantas vezes ouvis o que não ouvis? Quantas vezes entre a boca do outro e os nossos ouvidos ficou a honra alheia pendurada por um fio? E queira Deus que não ficasse enforcada. Isto acontece quando os homens ouvem com os ouvidos; mas quando ouvem com os corações, ainda é muito pior. E os corações também ouvem? Nunca vistes corações? Os corações também têm orelhas, e estai certos que cada um ouve, não conforme tem os ouvidos, senão conforme tem o coração e a inclinação. Enquanto Moisés estava no Monte Sinai recebendo a lei de Deus, pediram os judeus a Arão que lhes fundisse um bezerro de ouro. E como era o primeiro dia da dedicação daquela imagem, celebraram-no eles com grandes festas. Desce do monte Moisés com Josué, ouviram as vozes ao longe: disse Moisés: - Eu ouço cantar a coros; - disse Josué: - Não é senão tumulto de guerra (Êx 32, 18). Aqui temos choros castrorum. Se as vozes eram as mesmas, como a um parecem música e a outro parecem trombetas? A razão é clara. Moisés era religioso, Josué era soldado: ao religioso, parecem-lhe as vozes do côro; ao soldado, de guerra. Cada um ouve conforme o seu coração e a sua inclinação. Deus nos livre de um coração mal inclinado. Se ouvir um Te Deum laudamus há de dizer que ouviu uma carta de excomunhão. Os que ouvem são os ouvidos, mas os que ouvem bem ou mal são os corações. Tudo o que entra pelo ouvido faz eco no coração, e conforme está disposto o coração, assim se formam os ecos. Ainda vos hei de declarar isto com outra comparação mais própria. Na fundição de Arão a temos. Quer um fundidor formar uma imagem. Suponhamos que é de S. Bartolomeu com o seu diabo aos pés. Que faz para isto? Faz duas formas de barro, uma do santo e outra do diabo, e deixa aberto um ouvido em cada uma. Depois disto derrete o seu metal em um forno, e, tanto que está derretido e preparado, abre a boca ao forno, corre o metal, entra por seus canais no ouvido de cada forma, e em uma sai uma imagem de S. Bartolomeu muito formosa, noutra uma figura do diabo, tão feia como ele. Pois, valha-me Deus, que diferença é esta? O metal era o mesmo, a boca por onde saiu a mesma, e, entrando por um ouvido faz um santo, entrando por outro ouvido faz um diabo? Sim, que não está a coisa nos ouvidos, senão nas formas que estão lá dentro. Onde estava a forma do diabo, saiu um diabo; onde estava a forma do santo, saiu um santo. Senhores meus, todos os nossos ouvidos vão a dar lá dentro em uma forma, que é o coração. Se o coração é forma do santo, tudo o que entra pelo ouvido é santo; se é forma do diabo, tudo o que entra pelo ouvido é diabólico. Querei-lo ver? Olhai para o nosso Evangelho. Disse Cristo aos escribas e fariseus: Ego honorifico Patrem meum (Jo 8, 49): Eu honro a meu Pai: Ego non quaero gloriam meam (ibid. 50): Eu não busco a minha glória: Si quis sermonem meum servaverit, mortem non videbit in aeternum (ibid. 51 ): Se alguém guardar os meus preceitos, viverá eternamente. - Ouvidas estas palavras, quem não diria, quando menos, que era um santo quem as dizia, principalmente tendo provado a sua doutrina com tantos milagres? E os escribas e fariseus que disseram? Nunc cognovimus quia daemonium habes (ibid. 52): Agora conhecemos que trazes dentro em ti o demônio. - Pois, também de umas palavras tão santas e tão divinas formam estes homens um conceito tão diabólico? Sim, também, porque tais eram as formas em que receberam o que lhes entrou pelos ouvidos. Aqueles malditos homens eram filhos do diabo, como Cristo lhes disse nesta mesma ocasião: Vos ex patre diabolo estis - e de uns corações diabólicos, de umas formas endemoninhadas, ainda que o metal fosse tão divino, que havia de sair senão um demônio: daemonium habes? Isto sucedeu às palavras de Cristo, para que vejamos o que pode suceder às demais. É verdade que as formas não são todas umas. Assim como sai um diabo e outro diabo, pode sair também um S. Bartolomeu; mas, ainda assim, o melhor é não entrar por ouvidos de homens, posto que as formas não sejam do diabo, senão do santo, porque se a forma é do diabo, ficais diabo, e se é de S. Bartolomeu, ficais esfolado. Ninguém passou pelos dois estreitos da boca e ouvidos humanos que não deixasse neles, quando menos, a pele. Notável é o artifício, com que a natureza formou os nossos ouvidos. Cada ouvido é um caracol, e de matéria que tem sua dureza. E como as palavras entram passadas pelo oco deste parafuso, não é muito que quando saem pela boca, saiam torcidas. Tornemos às de Cristo hoje. Disse o Senhor aos seus ouvintes: Abraham exsultavit ut videret diem meum vidit, et gavisus est (Jo 8, 56): Abraão desejou ver minha vinda ao mundo, viu-a, e alegrou-se. - Isto é o que entrou pelos ouvidos dos escribas e fariseus. E que é o que saiu pelas bocas? Quinquaginta annos nondum habes, et Abraham vidisti (Jo 8, 57 )? Ainda não tens cinqüenta anos, e viste Abraão? - Vede como saíram torcidas as palavras dos ouvidos à boca. Cristo disse que Abraão vira a ele, e os fariseus dizem que dissera que ele vira a Abraão: Et Abraham vidisti. Assim torceram o nome, e mais o verbo. Ao nome mudaram-lhe o caso, e ao verbo a pessoa. Cristo disse o nome em nominativo, e eles puseram-no em acusativo; Cristo disse o verbo na terceira pessoa, e eles puseram-no na segunda. De Abraham vidit, formaram Abraham vidisti. Eis aqui como saem as palavras dos ouvidos à boca, torcidas e retorcidas: torcidos os nomes, torcidos os verbos, torcidas as pessoas; torcidos os casos. Então dizeis que dissestes o que ouvistes. Mais sucede nesta passagem dos ouvidos à boca. Como os ouvidos são dois, e a boca uma, sucede que, entrando pelos ouvidos duas verdades, sai pela boca uma mentira. Parece coisa de trejeito, mas é tão certa, que a primeira mentira que se disse no mundo foi desta casta: uma mentira feita de duas verdades. Antes que vo-la diga, quero-vos mostrar como isto pode ser. Quando quereis dizer que fulano é grande mentiroso, dizeis que é uma quimera. Mas que coisa é quimera? Mui poucos de vós deveis de o saber. Quimera é um animal fingido, composto de dois animais verdadeiros: um monstro, meio homem, meio cavalo, é quimera; um monstro, meio águia, meio serpente, é quimera; um monstro, meio leão, meio peixe, é quimera; mas não há tais monstros nem tais quimeras no mundo. De maneira que as ametades são verdadeiras; os todos, ou monstros que delas se compõem, são fingidos. As ametades são verdadeiras, porque há homem e cavalo, há águia e serpente, há leão e peixe; os monstros que se compõem destas ametades são fingidos, porque não há tal coisa no mundo. Isto mesmo fazem os mentirosos: partem duas verdades pelo meio, e, sem mudar nem acrescentar nada ao que dissestes, de duas verdades partidas fazem uma mentira inteira. Tal foi a mentira que disse o diabo a nossos primeiros pais, e foi a primeira mentira que no mundo se disse: Cur praecepit vobis Deus, ut non comederetis de omni ligno paradisi (Gên 3, 1 ) ? Por que vos mandou Deus - diz o diabo a Eva - que de todas as árvores, quantas há no paraíso, não comêsseis? - Há tal mentira como esta? E foi feita de duas verdades. Deus deu a nossos primeiros pais uma permissão e um preceito: a permissão foi: comei de todas as árvores; o preceito foi: não comais desta árvore. E que fez o diabo? Do comei de todas as árvores, tomou o de todas as árvores, e do não comais desta árvore, tomou o não comais, e, ajuntando o não comais com o de todas as árvores, disse que mandara Deus que de todas as árvores não comessem. Pode haver maior mentira? Pois foi grudada de duas verdades. Defendei-vos lá agora das vossas mentiras, com dizer que dissestes as mesmas palavras que ouvistes e que não acrescentastes nada. Que importa que não acrescenteis, se diminuístes? Pior é uma verdade diminuída, que uma mentira mui declarada, porque a verdade diminuída na essência é mentira, e tem aparências de verdade; e mentiras que parecem verdades são as piores mentiras de todas. Mas por que acabemos de uma vez com as mentiras de ouvidas, para que seja mentira o que dizeis, não é necessário que oiçais mal nem que diminuais ou acrescenteis o que ouvistes: pode um homem dizer pontualmente o que ouviu, e ouvir pontualmente o que disseram, e com tudo isso mentir. Quando os judeus acusaram a Cristo diante de Pilatos, buscavam diversos falsos testemunhos, e nenhum concluía. Ultimamente, diz o Evangelista que vieram duas testemunhas falsas, as quais disseram que ouviram dizer a Cristo que, se o Templo de Jerusalém se desfizesse, ele o reedificaria em três dias. Para inteligência deste testemunho havemos de saber que, entrando Cristo no Templo de Jerusalém, e achando que nele estavam comprando e vendendo, fez um azorrague das cordas que ali estavam, e a açoites lançou fora os que compravam e vendiam. Espantados eles da resolução de Cristo, disseram que lhes desse algum sinal do poder com que fazia aquilo. Respondeu o Senhor: Solvite templum hoc, et in tribus diebus excitabo illud. Pois, se Cristo disse, derribai o Templo, e em três dias o levantarei, e eles testemunharam o que lhe ouviram, como eram testemunhas falsas: Venerunt duo falsi testes? O Evangelista o declarou: Ille autem dicebat de templo corporis sui (Jo 2, 21 ): Falava do templo do seu corpo - o qual templo o Senhor excitou três dias depois de derrubado, que foi no dia da ressurreição. E como Cristo disse aquelas palavras em um sentido, e eles as referiram em outro, ainda que as palavras eram as mesmas que tinham ouvido, sem mudar, nem acrescentar, nem diminuir, as testemunhas eram falsas. Cuidais que para mentir e para dizer testemunhos falsos é necessário mudar, diminuir ou acrescentar as palavras que ouvistes? Não é necessário nada disso: basta mudar-lhes o sentido, ou a intenção, ainda que as não entendais, porque haveis supor que as podem ter, e mais quando as pessoas são tais - como era a de Cristo - que podem falar com mistério. Quantas vezes se dizem as palavras sinceramente com uma tenção muito sã, e vós as interpretais e corrompeis de maneira que de um louvor fazeis um agravo, de uma confiança uma injúria, de uma galantaria uma blasfêmia, e de uma graça levantais uma tal labareda, que se originaram dela muitas desgraças. E se isto sucede quando os homens dizem o que ouviram, e só o que ouviram, que será quando dizem o que imaginaram, e o que sonharam, ou que ninguém imaginou nem sonhou?

§V
            A mentira dos olhos. Quais toram as coisas de que se formou o engano dos moabitas na campanha contra os reis de Israel. O cego do Evangelho. O que aconteceu aos cegos vigiadores, que vão estudar de noite o que hão de rezar de dia. O negrume das nuvens e da água. Também contra este segundo discurso há quem cuide que está adargado. Dizem alguns, ou diz algum: não sou eu daqueles, porque a mim nunca me saiu pela boca coisa que me entrasse pelos ouvidos: para afirmar, hei de ver com os olhos primeiro; e se para isso for necessário que os olhos não durmam quarenta noites, estando vigiando a uma esquina, hei-o de fazer sem descansar, até ver averiguada a minha suspeita. Ah! ronda do inferno! Ah! sentinela de Satanás! Este mesmo, se lhe mandar o confessor que faça exame de consciência meio quarto de hora antes de se deitar, não o há de poder fazer com o sono. Mas, para destruir honras, para abrasar casas, estará feito um Argos quarenta noites inteiras. Não cuidem, porém, estes malignos vigiadores, que por aí se livrarão de mentirosos. Fostes, vigiastes, observastes, vistes, dissestes, e tendes para vós que falastes verdade? Pois mentistes muito grande mentira. Os olhos mentem de dia, quanto mais de noite. Grande caso! No Livro quarto dos Reis, capítulo terceiro (4 Rs 3, 22): Saíram em campanha contra os moabitas el-rei de Israel, el-rei de Judá e el-rei de Edon. Estavam ainda os exércitos para dar batalha na manhã seguinte: eis que, ao romper do sol, olharam os moabitas para os arraiais dos inimigos, e viram que pelo meio deles corria um rio de sangue. Começaram a aclamar com grande alegria: - Sangue, sangue, sem dúvida que os três reis pelejaram esta noite entre si, e mataram-se uns aos outros: vamos a recolher os despojos. - Saíram os moabitas correndo tumultuariamente; mas eles foram os despojados e os vencidos, porque o sangue que viram, ou se lhes afigurou que viram, não era sangue. Foi o caso que passava um rio por meio dos arraiais dos três reis, e como ao sair do sol feriram os raios na água que ia correndo, fez tais reflexos a luz, que parecia sangue. E esta aparência de sangue, tão enganosamente visto, e tão falsa, e tão facilmente crido, foi o que precipitou aos moabitas, e os levou a meterem-se nas mãos de seus inimigos. Se reparais no caso, as duas coisas mais claras que há no mundo é o sol e a água. Os nossos provérbios o dizem: Claro como a água, claro como a luz do sol. E quais foram as coisas de que se formou aquele engano nos olhos dos moabitas, com que cuidaram que o rio era sangue? Uma coisa foi o sol, e outra coisa foi a água: o sol, porque feriu com seus raios as águas, e as águas porque, feridas, deram com os reflexos aparências de sangue. De sorte que se enganaram os olhos nas duas coisas mais claras que há no mundo. Pois, se os olhos se enganam nas coisas mais claras, como se não enganarão nas mais escuras, e às escuras? De dia, engana-vos o sol, e, de noite, quereis-vos desenganar com as trevas? Dir-me-eis que havia lua e estrelas quando vistes. Essa pequena luz é a que cega mais, porque faz que umas coisas pareçam outras. Trouxeram um cego a Cristo, pos-lhe o Senhor as mãos nos olhos, e perguntou-lhe se via? Respondeu o cego: Video homines velut arbores ambulantes (Mar 8, 24): Senhor, vejo os homens como árvores que andam. - Mais cego estava agora este cego que dantes, porque dantes não via nada, agora via umas coisas por outras. Os homens que são de tão diferente figura e estatura, via-os como árvores, e as árvores que estão presas com raízes na terra, via que andavam como homens. Eis aqui o que tem ver com pouca luz. O mesmo acontece a estes cegos vigiadores, que vão estudar de noite o que hão de rezar de dia: Video homines velut arbores ambulantes. O cego de Cristo, figurava-se-lhe que os homens eram árvores, e estes cegos do diabo, figura-se-lhes que as árvores são homens. Põem-se a espreitar, veem uma árvore em um quintal: eis lá vai um homem. A árvore está tão pregada pelas raízes que dois cavadores a não arrancarão em um dia, e ele há de jurar aos Santos Evangelhos, que viu entrar e sair aquele vulto; arbores ambulantes. Oh! maldito ofício! oh! infernal curiosidade! Já se os olhos levarem alguma nuvenzinha, como sempre levam, ou de desconfiança, ou de ódio, ou de inveja, ou de suspeita, ou de vingança, ou de outra qualquer paixão, aí vos gabo eu: Tenebrosa aqua in nubibus aeris. Notou Davi admiravelmente que a água nas nuvens é negra. Vedes lá vir um aguaceiro escuro mais que a mesma noite: que negrume é aquele? Não é mais que água e nuvem: a nuvem é um volante, a água é um cristal; e destes dois ingredientes tão puros e tão diáfanos se faz uma escuridade tão negra e tão espessa. Se quem vai vigiar e espreitar a vossa vida e a vossa honra levar alguma nuvem diante dos olhos, ainda que seja tão delgada como um volante, por mais que a vossa vida e a vossa honra seja tão clara e tão pura como um cristal, há-lhe de parecer escura e tenebrosa: Tenebrosa aqua in nubibus aeris. Finalmente, reduzindo todo o discurso, ou discursos: mentem as línguas, porque mentem as imaginações; mentem as línguas, porque mentem os ouvidos; mentem as línguas, porque mentem os olhos; e mentem as línguas, porque tudo mente, e todos mentem.

§ VI
            A consolação e a desafronta da mentira. Bem-aventurados vós, quando os homens disserem todo o mal de vós, mentindo. A razão por que Cristo, quando o diabo o nomeou por Filho de Deus, lhe mandou que calasse. O engano e a falsa suposição em que estão os que não tem prática interior da terra. A confissão dos falsos testemunhos. Tenho acabado de provar a matéria que propus. Mas parece-me que estais dizendo - como disse no princípio - que tenho dito muitas afrontas à vossa terra. Porém eu digo - como também prometi - que antes a tenho desafrontado. E senão, pergunto: Qual vos está melhor: que seja verdade o que se diz, ou que sejam mentiras? Não há dúvida que vos está melhor que sejam mentiras. Pois isto é o que eu tenho dito. Se fora verdade o que se diz, era grande afronta vossa; mas, como tenho mostrado que tudo são mentiras, ficais todos muito honrados.Hoje vos restituí vossa honra, porque provei que mentem todos os que dizem mal de vós. Vós bem sabeis melhor que eu que tudo são mentiras; mas eu tomei por minha conta este manifesto por amor dos forasteiros que me ouvem, que não são práticos nos costumes da terra. Dos apóstolos de Cristo se diziam e se haviam de dizer muitos males, porque é uso do mundo dizer mal dos bons. E o Senhor, para os desafrontar e animar disse-lhes esta divina sentença: Beati eritis cum maledixerint vobis homines, et dixerint omne malum adversum vos mentientes (Mt 5, 11): Bem-aventurados vós, quando os homens disserem todo o mal de vós mentientes: mentindo. Nesta  palavra está a consolação e a desafronta. Se os homens dizem mal, falando verdade, é grande desgraça; mas se eles dizem mal mentientes: mentindo, não importa nada. Por isso disse, e quero que saibam todos, que o que nesta terra se diz são mentiras. O mentiroso conhecido há de se entender às avessas; e entendido às avessas, nem afronta, nem mente, porque diz verdade. E assim haveis de entender tudo o que ouvis. Guarde-vos Deus de que o mentiroso diga bem de vós, porque é sinal que sois o contrário do que ele diz. Essa foi a razão porque Cristo, quando o diabo o nomeou por Filho de Deus, lhe mandou que calasse, porque, como o diabo é pai da mentira, em dizer que era Filho de Deus dizia que o não era. E esse foi também o modo geral com que o mesmo Senhor hoje se desafrontou de todas as injúrias que os escribas e fariseus lhe tinham dito, qualificando-os por mentirosos: Ero similis vobis, mendax. É verdade que os forasteiros a quem eu prego esta doutrina fazem um terrível argumento contra a nossa terra. Chegam a este porto, põem os pés em terra, e, ouvindo dizer mal de todos e de tudo, fazem este discurso: Ou estes homens mentem, ou falam a verdade; se falam verdade, esta é a mais má terra de todo o mundo, pois, nela se cometem tantas maldades; e se mentem também a terra é muito má, pois os homens tem tão pouca consciência, que levantam tantos falsos testemunhos. - Este é o argumento que parece não tem fácil solução. Mas eu respondo a uma e outra parte dele. Quanto à primeira, digo que as maldades que se dizem são falsas, e que, como falsas, não se devem crer. São falsas? - insta a outra parte - logo onde os homens levantam tantos falsos testemunhos, não pode ser senão a pior terra do mundo. Eis aí o engano e a falsa suposição em que estão os que não têm prática interior da terra. No Maranhão é verdade que há muitas mentiras, mas mentirosos, isso não; muito falso testemunho, sim, mas quem levante falso testemunho, por nenhum caso. Pois, como pode isto ser? Como pode ser que haja falsos testemunhos, sem haver quem os levante? Eu vo-lo direi. Nas outras terras os homens levantam os falsos testemunhos; nesta terra os falsos testemunhos levantam-se a si mesmos. Se vos parece dificultosa a proposição, vamos à prova. Confessa-se um homem, e, chegando ao quinto mandamento, diz: Padre, acuso-me que eu desejei a morte a um homem, e o busquei para o matar, e propus de lhe fazer todo o mal que pudesse. - E por quê? - Porque me tirou a minha honra com um falso testemunho de que eu estava tão inocente como S. Francisco. - Irmão, perdoai-lhe, para que Deus vos perdoe. - Passamos adiante, chegamos ao oitavo mandamento: - Levantastes algum falso testemunho? - Não, Padre, pecado é de que nunca me acusei, seja Deus louvado. - Vem uma mulher, chega ao quinto: Digo a Deus minha culpa, que eu há tantos meses que tenho ódio a uma mulher, e roguei-lhe muitas pragas, que a fala e a confissão lhe faltasse na hora da morte, e que nem nesta vida nem na outra lhe perdoava; que seus filhos visse ela mortos diante de si a estocadas frias. - Por quê? - Porque me levantou um aleive a mim e a uma filha minha, com que nos infamou em toda esta terra, e não me atrevo a lhe perdoar. - Ora, senhora, estamos em Quaresma; alguma coisa havemos de fazer por amor de um Deus que padeceu tantas afrontas e se pôs em uma cruz por amor de nós. - Enfim, compungiu-se, prometeu de perdoar. Chega o confessor ao oitavo mandamento. - E vossa mercê levantou algum falso testemunho? - Senhor padre, melhor estréia me dê Deus: muito grande pecadora sou, mas nunca Deus permita que eu diga das pessoas o que nelas não há; se ouço alguma coisa, ajudo também, mas levantar falso testemunho, nunca em minha vida o fiz. - Isto que aqui vos pus em dois, acontece infinitas vezes. De maneira que no quinto todos se queixam que lhes levantam falsos testemunhos; no oitavo ninguém se acusa de levantar falso testemunho. Logo, bem dizia eu que nesta terra os falsos testemunhos se levantam a si mesmos. Em suma, que temos aqui os pecados, mas não temos os pecadores: temos os falsos testemunhos, mas não temos as falsas testemunhas. Isto é o que posso cuidar. Mas, se acaso é o contrário, miseráveis daqueles que assim vivem! Grande miséria é que os falsos testemunhos se levantem; mas maior miséria é, que, depois de levantados, se faça deles tão pouco caso e tão pouco escrúpulo. Ou deixais de confessar o falso testemunho, conhecendo que o levantastes ou não o conhecendo: se o deixastes de confessar conhecendo-o, mentis a Deus; se o deixais de confessar pelo não conhecer, mentis-vos a vós. E uma e outra cegueira, é bem merecido castigo: que minta a Deus e que se minta a si mesmo, quem mentiu tão gravemente contra seu próximo, e que de um ou de outro modo se vá ao inferno!

§ VII
            Aborrecer a mentira não só por consciência mas por conveniência. Quantas mentiras se dirão cada dia no Maranhão? Quantas cabem a cada casa? O pecado que mais facilmente se comete e com mais dificuldade se restitui. Exortação. Senhores meus, se algum sermão não tinha necessidade de exortação era este. Só vos digo, como a homens e como a cristãos, que não só por consciência, mas por conveniência se deve aborrecer a mentira e amar a verdade. Por conveniência, porque viveis em uma terra muito pequena. Em toda a parte fazem muito mal as mentiras, mas nas terras grandes têm saca e têm muito por onde se espalhar; nas terras pequenas, todas ali ficam. Em Lisboa muita mentira se diz, mas repartem-se as mentiras por todo o reino e por todo o mundo. Chegou navio de Levante, fala-se nas guerras do turco, nas do veneziano, nas do tártaro, nas do polaco; fala-se no Papa, nos cardeais, nos outros príncipes e potentados de Itália: dizem-se muitas mentiras, mas repartem-se; umas caem em Constantinopla, outras em Veneza, outras em Roma, outras na Toscana, Sabóia, etc. Vem navio do Norte, fala-se em el-rei de França, no imperador, no sueco, no parlamento de Inglaterra, nos Estados de Holanda e Flandres: dizem-se muitas mentiras, mas repartem-se, por Paris, por Londres, por Viena de Áustria, por Amsterdam, por Estocolmo, etc. Partem também os nossos correios todos os sábados, e levam grande cópia das mentiras por todo o reino e o mesmo é das frotas do Brasil e da Índia; porém as mentiras do Maranhão não têm nem outra parte donde vir nem outra parte para onde ir: aqui nascem e aqui ficam; e quando as mentiras todas ficam na terra, e todas vos caem em casa, ainda por conveniência e razão de estado as haveis de lançar fora. E se não, fazei-me por curiosidade duas contas, as quais eu agora não posso fazer. Uma é: quantas mentiras se dirão cada dia no Maranhão? A outra: quantas casas há nesta cidade, e logo reparti as mentiras, e vereis quantas cabem a cada casa! E que será em uma semana, que será em um mês, que será em um ano? Pois, se tudo isto vos fica em casa, e é força que assim seja, não é muito pouca razão de estado, e muito grande sem-razão, que vos andeis levantando falsos testemunhos, que vos andeis infamando e afrontando uns aos outros? Não fora muito melhor serdes todos muito amigos, muito conformes, amardes-vos todos, honrardes-vos todos, autorizardes-vos todos, e poupardes todos desgostos? Há outros pecados que parece que os pode desculpar o gosto ou o interesse; mas o mentir e o levantar falso testemunho? Que dão a um homem por mentir? Que gosto se pode ter em levantar um falso testemunho? Se é por me vingar de meu inimigo, muito maior mal me faço a mim que a ele, porque a ele, quando muito, tiro-lhe a honra: a mim condeno-me a alma. Ora, cristãos, por reverência daquele Senhor - que sendo Deus se preza de se chamar Verdade - que façamos hoje uma muito firme e muito verdadeira resolução de não haver paixão nenhuma, nem respeito, nem interesse que vos faça torcer nem faltar um ponto à verdade; quanto ao passado, que examinemos muito devagar e muito escrupulosamente se temos faltado à verdade em alguma coisa, principalmente em matéria da honra de nossos próximos. Olhai, senhores, que este, este é o pecado que mais facilmente se comete, e com mais dificuldade se restitui. Olhai, cristãos, que as balanças em que se pesam as consciências na outra vida são muito delicadas, e que será grande desgraça ir ao inferno para sempre por um falso testemunho. O remédio está em uma consciência muito bem examinada, em uma confissão muito bem feita, e em uma satisfação muito verdadeira, advertindo-vos e protestando-vos da parte de Deus, que sem estas três condições, nem nesta vida podeis alcançar a graça, nem na outra merecer a glória.

Friday, 20 January 2017

“Fiz Uma Viagem” by Dorival Caymmi (in Portuguese)




Eu fiz uma viagem
A qual foi pequeninha
Eu sai dos Olhos d'Água
Fui até Alagoinha.

Agora, colega, veja
Como carregado eu vinha:
Trazia minha nega
E também minha filhinha

Trazia o meu tatu-bola,
Filho do tatu-bolinha;
Trazia o meu facão
Com todo o aço que tinha.

Vinte couros de boi manso
Só no bocal da bainha.
Trazia uma capoeira
Com quatrocentas galinhas

Vinte sacos de feijão
E trinta sacos de farinha.
Mas a sorte desandou
Quando eu cheguei em Alagoinha

Bexiga deu na nega,
Catapora na filhinha.
Morreu o meu tatu-bola,
Filho do tatu-bolinha.

Roubaram o meu facão,
Como todo o aço que tinha;
Vinte couros de boi manso,
Só no bocal da bainha.

Morreu minha capoeira
Das quatrocentas galinhas;
Gorgulho deu no feijão, colega,
E deu mofo na farinha.



You can hear "Fiz uma Viagem" sung by Dorival Caymmi here.

Thursday, 19 January 2017

“A Cold Greeting” by Ambrose Bierce (in English)



This is a story told by the late Benson Foley of San Francisco:
          In the summer of 1881 I met a man named James H. Conway, a resident of Franklin, Tennessee. He was visiting San Francisco for his health, deluded man, and brought me a note of introduction from Mr. Lawrence Barting. I had known Barting as a captain in the Federal army during the civil war. At its close he had settled in Franklin, and in time became, I had reason to think, somewhat prominent as a lawyer. Barting had always seemed to me an honorable and truthful man, and the warm friendship which he expressed in his note for Mr. Conway was to me sufficient evidence that the latter was in every way worthy of my confidence and esteem. At dinner one day Conway told me that it had been solemnly agreed between him and Barting that the one who died first should, if possible, communicate with the other from beyond the grave, in some unmistakable way--just how, they had left (wisely, it seemed to me) to be decided by the deceased, according to the opportunities that his altered circumstances might present.
            "A few weeks after the conversation in which Mr. Conway spoke of this agreement, I met him one day, walking slowly down Montgomery street, apparently, from his abstracted air, in deep thought. He greeted me coldly with merely a movement of the head and passed on, leaving me standing on the walk, with half-proffered hand, surprised and naturally somewhat piqued. The next day I met him again in the office of the Palace Hotel, and seeing him about to repeat the disagreeable performance of the day before, intercepted him in a doorway, with a friendly salutation, and bluntly requested an explanation of his altered manner. He hesitated a moment; then, looking me frankly in the eyes, said:
            "'I do not think, Mr. Foley, that I have any longer a claim to your friendship, since Mr. Barting appears to have withdrawn his own from me--for what reason, I protest I do not know. If he has not already informed you he probably will do so.'
            "'But,' I replied, 'I have not heard from Mr. Barting.'
            "'Heard from him!' he repeated, with apparent surprise. 'Why, he is here. I met him yesterday ten minutes before meeting you. I gave you exactly the same greeting that he gave me. I met him again not a quarter of an hour ago, and his manner was precisely the same: he merely bowed and passed on. I shall not soon forget your civility to me. Good morning, or--as it may please you--farewell.'
            "All this seemed to me singularly considerate and delicate behavior on the part of Mr. Conway.
            "As dramatic situations and literary effects are foreign to my purpose I will explain at once that Mr. Barting was dead. He had died in Nashville four days before this conversation. Calling on Mr. Conway, I apprised him of our friend's death, showing him the letters announcing it. He was visibly affected in a way that forbade me to entertain a doubt of his sincerity.
            "'It seems incredible,' he said, after a period of reflection. 'I suppose I must have mistaken another man for Barting, and that man's cold greeting was merely a stranger's civil acknowledgment of my own. I remember, indeed, that he lacked Barting's mustache.'
            "'Doubtless it was another man,' I assented; and the subject was never afterward mentioned between us. But I had in my pocket a photograph of Barting, which had been inclosed in the letter from his widow. It had been taken a week before his death, and was without a mustache."