Na Igreja Maior da Cidade de
São Luís no Maranhão. Ano de 1654.
Si dixero quia non scio eum,
ero similis vobis, mendax.
§ I
A verdade e a mentira: a
verdade do pregador e a mentira dos ouvintes. As três espécies de mentiras com
que os escribas e fariseus hoje contradisseram, caluniaram e quiseram afrontar
e desonrar o Filho de Deus. Temos juntamente hoje no Evangelho duas coisas que
nunca podem andar juntas: a verdade e a mentira. E por que não podem andar
juntas, por isso as temos divididas; a verdade no pregador, a mentira nos
ouvintes; o pregador muito verdadeiro, o auditório muito mentiroso. Uma e outra
coisa disse Cristo aos escribas e fariseus, com quem falava. O pregador muito
verdadeiro: Si veritatem dico vobis;
o auditório muito mentiroso: Ero similis
vobis, mendax. De três modos - que há muitos modos de mentir - mentiram
hoje estes maus ouvintes. Mentiram, porque não creram a verdade; mentiram,
porque impugnaram a verdade; mentiram, porque afirmaram a mentira. Não crer a
verdade é mentir com o pensamento; impugnar a verdade é mentir com a obra;
afirmar a mentira é mentir com a palavra. Tudo isto lhe tinha profetizado a
Cristo seu pai Davi, quando disse: In
multitudine virtutis tuae mentientur tibi inimici tui. De muitos modos
mostrareis eficazmente a verdade de vosso ser, mas vossos inimigos vos mentirão
também por muitos modos; mentir-vos-ão não crendo; mentir-vos-ão impugnando;
mentir-vos-ão mentindo, como hoje fizeram. Disse-lhes Cristo que era Filho de
Deus verdadeiro, a quem eles chamavam Pai sem o conhecerem: disse-lhes que os
que recebessem e observassem sua doutrina viveriam eternamente, e aqui mentiram
não crendo a verdade: Si veritatem dico
vobis, quare non creditis mihi? Disse-lhes mais, que Abraão desejara ver o
seu dia, isto é, o dia em que havia de descer do céu à terra, e nascer homem
entre os homens, e que, finalmente, o vira com grande júbilo e alegria da sua
alma, e aqui mentiram impugnando a verdade: Quinquaginta
annos nondum habes, et Abraham vidisti (Jo 8, 57)? Tu não tens ainda
cinqüenta anos, e viste Abraão? - E o bezerro que vós dissestes que vos livrara
do Egito, quantos anos tinha? Não era nascido e gerado naquele mesmo dia? O
ditame com que o tivestes por Deus era falso, mas a suposição com que
entendestes que em Deus podia haver duas gerações, uma antes e outra depois,
era verdadeira. Respondeu Cristo: Antequam
Abraham fieret, ego sum (Jo 8, 58): Antes que Abraão fosse, eu já era. -
Mas este era, declarou-o pela palavra Ego
sum: eu sou para que entendessem que era aquele mesmo Deus, que quando se
definiu a Moisés disse: Ego sum qui sum
(Êx 3, 14): Eu sou o que sou porque no eterno não há passado, nem futuro: tudo
é presente. Enfim, mentiram afirmando a mentira, porque disseram que Cristo era
samaritano e endemoninhado: Samaritanus
es, et daemonium habes. E para mentirem duas vezes em uma mentira,
repetiram a mesma blasfêmia ratificando o que tinham dito e alegando-se a si
mesmos: Nonne bene dicimus nos? Mal é
dizer mal, mas depois de o haverdes dito, dizerdes ainda que dizeis bem, é um
mal maior sobre outro mal, porque é estar obstinado nele. Estas são as mentiras
com que os escribas e fariseus hoje contradisseram, caluniaram e quiseram
afrontar e desonrar ao Filho de Deus, como o Senhor lhes disse: Ego honorifico Patrem meum, et vos
inhonorastis me. Mas, posto que a Sabedoria eterna fosse caluniada e
injuriada por semelhante gente, nem por isto ficou afrontado nem desonrado
Cristo, porque tudo o que disseram dele e lhe fizeram foi por inveja, por ódio,
por raiva, por vingança, e quando as causas são estas, as injúrias não
injuriam, as afrontas desafrontam, as desonras honram. Não está muito honrado
Cristo? Dizei-o vós. Ora eu, que pregarei neste dia, em que tanto se espera o
assunto dos pregadores? Hei também de dizer-vos uma grande injúria, uma grande
afronta e uma grande desonra da vossa terra. Contudo, ainda que as verdades
causam ódio, espero que não haveis de ficar mal comigo, porque hei de afrontar
todos para desafrontar a cada um. O discurso dirá como. Ave Maria.
§II
O Domingo das verdades. No
Maranhão a corte da mentira. O galante apólogo do diabo. O M de Maranhão. No
Maranhão até o sol e os céus mentem. Si
dixero quia non scio eum, ero similis
vobis, mendax. A este Evangelho do Domingo Quinto da Quaresma chamais
comumente o domingo das verdades. Para mim todos os domingos têm este
sobrenome, porque em todos prego verdades, e muito claras, como tendes visto.
Por me não sair, contudo, do que hoje todos esperam, estive considerando comigo
que verdades vos diria, e, segundo as notícias que vou tendo desta nossa terra,
resolvi-me a vos dizer uma só verdade. Mas que verdade será esta? Não gastemos
tempo. A verdade que vos digo é que no Maranhão não há verdade. Cuidavam e
diziam os sábios antigos, que em diferentes ilhas do mundo reinavam diferentes
deidades: que em Creta reinava Júpiter, que em Delos reinava Apolo, que em
Samos reinava Juno, que em Chipre reinava Vênus, e assim de outras. Se o
império da mentira não fora tão universal no mundo, pudera-se suspeitar que
nesta nossa ilha tinha a sua corte a mentira. Todas as terras, assim como tem
particulares estrelas, que naturalmente predominam sobre elas, assim padecem
também diferentes vícios, a que geralmente são sujeitas. Fingiram a este
propósito os alemães uma galante fábula. Dizem que quando o diabo caiu do céu,
que no ar se fez em pedaços, e que estes pedaços se espalharam em diversas
províncias da Europa, onde ficaram os vícios que nelas reinam. Dizem que a
cabeça do diabo caiu em Espanha, e que por isso somos furiosos, altivos, e com
arrogância graves. Dizem que o peito caiu em Itália, e que daqui lhes veio
serem fabricadores de máquinas, não se darem a entender, e trazerem o coração
sempre coberto. Dizem que o ventre caiu em Alemanha, e que esta é a causa de
serem inclinados à gula, e gastarem mais que os outros com a mesa e com a taça.
Dizem que os pés caíram em França, e que daqui nasce serem pouco sossegados,
apressados no andar, e amigos de bailes. Dizem que os braços com as mãos e
unhas crescidas, um caiu na Holanda, outro em Argel, e que daí lhes veio - ou
nos veio - o serem corsários. Esta é a substância do apólogo, nem mal formado,
nem mal repartido, porque, ainda que a aplicação dos vícios totalmente não seja
verdadeira, tem contudo a semelhança de verdade, que basta para dar sal à
sátira. E, suposto que à Espanha lhe coube a cabeça, cuido eu que a parte dela
que nos toca ao nosso Portugal é a língua, ao menos assim o entendem as nações
estrangeiras que de mais perto nos tratam. Os vícios da língua são tantos, que
fez Drexélio um abecedário inteiro e muito copioso deles. E se as letras deste
abecedário se repartissem pelos estados de Portugal, que letra tocaria ao nosso
Maranhão? Não há dúvida, que o M. M - Maranhão, M - murmurar, M - motejar, M -
maldizer, M - malsinar, M - mexericar, e, sobretudo, M - mentir: mentir com as
palavras, mentir com as obras, mentir com os pensamentos, que de todos e por
todos os modos aqui se mente. Novelas e novelos, são as duas moedas correntes
desta terra, mas têm uma diferença, que as novelas armam-se sobre nada, e os
novelos armam-se sobre muito, para tudo ser moeda falsa. Na Bahia, que é a
cabeça desta nossa província do Brasil; acontece algumas vezes o que no
Maranhão quase todos os dias. Amanhece o sol muito claro, prometendo um formoso
dia, e dentro em uma hora tolda o céu de nuvens, e começa a chover como no mais
entranhado inverno. Sucedeu-lhe um caso como este a D. Fradique de Toledo,
quando veio a restaurar a Bahia no ano de mil seiscentos e vinte e cinco. E
tendo toda a gente da armada em campo para lhe passar mostra, admirado da
inconstância do clima, disse: En el Brasil hasta los cielos mientem. Não sei se
é isto descrédito, se desculpa. Que mais pode fazer um homem, que ser tão bom
como o céu da terra em que vive? Outra terra há em Europa, na qual eu estive há
poucos anos, em que se experimentaram cada dia as mesmas mudanças, pelas quais
Galeno não quis curar nela; porém, ali há outra razão, porque como a terra tem
jurisdição sobre o céu, segue o céu as influências da terra. Mas o que se disse
do Brasil por galanteria, se pode afirmar do Maranhão com toda a verdade. É
experiência inaudita a que agora direi, e não sei que fé lhe darão os
matemáticos que estão mais longe da linha. Quer pesar o sol um piloto nesta
cidade onde estamos, e não no porto, onde está surto o seu navio, senão com os
pés em terra: toma o astrolábio na mão com toda a quietação e segurança. E que
lhe acontece? Coisa prodigiosa! Um dia acha que está o Maranhão em um grau,
outro dia em meio, outro dia em dois, outro dia em nenhum. E esta é a causa por
que os pilotos que não são práticos nesta costa, areiam, e se têm perdido
tantos nelas. De maneira que o sol, que em toda a parte é a regra certa e
infalível por onde se medem os tempos, os lugares, as alturas, em chegando à
terra do Maranhão, até ele mente. E terra onde até o sol mente, vede que
verdade falarão aqueles sobre cujas cabeças e corações ele influi.
Acontece-lhes aqui aos moradores o mesmo que aos pilotos, que nenhum sabe em
que altura está. Cuida o homem nobre hoje que está em altura de honrado, e
amanhã acha-se infamado e envilecido. Cuida a donzela recolhida que está em
altura de virtuosa, e amanhã acha-se murmurada pelas praças. Cuida o
eclesiástico que está em altura de bom sacerdote, e amanhã acha-se com
reputação de mau homem. Enfim, um dia estais aqui em uma altura, e ao outro dia
noutra, porque os lábios são como o astrolábio. É isto assim? A vós mesmos o
ouço, que eu não o adivinhei. vede se é certa a minha verdade: que não há
verdade no Maranhão.
§ III
A influência do clima no nascimento de vícios e
virtudes. Os dois vícios dos cretenses: mentira e preguiça. As mais desfechadas
mentiras que nunca se ouviram nem imaginaram. A mentira, filha primogênita do
ócio. A proposição de Davi. O juízo temerário. A língua, a fera mais
dificultosa de enfrear. Ora, eu me pus a especular a causa por que o clima e o
céu desta terra influi tanta mentira, e parece-me que achei a causa verdadeira
e natural. Assim como o céu com uma virtude influi outra virtude, assim o
clima, que também se chama céu, com um vício influi outro vício. Ponhamos o
exemplo na verdade, que é a virtude contrária da mentira: Veritas de terra orta est (Sl 8, 12), diz Davi: A verdade nasceu da
terra. - E logo advertiu que a terra de que falava não era toda a terra, senão
a sua: Et terra nostra dabit fructum suum.
Mas donde lhe veio aquela terra - que era a de Promissão - donde veio uma
virtude tão singular no mundo, que nascesse dela a verdade? O mesmo profeta o
disse: Veritas de terra orta est, et
justitia de coelo prospexit. Toda esta virtude da terra veio-lhe do céu.
Influiu o céu na terra a justiça, e nasceu nela a verdade. A verdade é filha
legítima da justiça, porque a justiça dá a cada um o que é seu. E isto é o que
faz e o que diz a verdade, ao contrário da mentira. A mentira, ou vos tira o
que tendes, ou vos dá o que não tendes; ou vos rouba, ou vos condena. A verdade
não: a cada um dá o seu, como a justiça. E porque o céu influiu naquela terra a
justiça, por isso influiu e nasceu nela a verdade. Influiu uma virtude, e
nasceu outra. O mesmo passa nos vícios. Se o clima influi soberba, nasce a
inveja; se influi gula, nasce a luxúria; se influi cobiça, nasce a avareza; se
influi ira, nasce a vingança. E para nascer a mentira, que é o que influi?
Ociosidade. Onde o clima influi ócio, dá-se a mentira a perder. Nasce, cresce,
espiga, e de um não-sei-quê, tamanho como um grão de trigo, podeis colher
mentiras aos alqueires. Estes são os dois vícios do Maranhão, e estas as duas
influências deste clima - ócio e mentira. - O ócio é a primeira influência, a
mentira a segunda; o ócio a causa, a mentira o efeito. Não há terra no mundo
que mais incline ao ócio ou à preguiça, como vós dizeis, e esta é a semente de
que nasce tão má erva. Ouvi a S. Paulo. Fala o apóstolo da Ilha de Creta, que é
a Cândia, que hoje vai conquistando o turco, e diz assim: Cretenses semper mendaces, ventres pigri: os cretenses têm dois
vícios, que sempre se acham neles: mentirosos e preguiçosos. Pudera dizer mais,
se falara da nossa ilha, e de toda esta terra? Digam-no os naturais. Nem a sua
diligência nem a sua verdade o pode negar. Não há gente mais mentirosa nem mais
preguiçosa no mundo. Deitados na sua rede: Ventres
pigri; ouvidos nas suas palavras: semper mendaces. Mas como estas virtudes
vêem do céu, como são influências do clima, pegaram-se também aos portugueses.
Falta a verdade, porque sobeja a ociosidade. Dai-me vós homens ociosos, que eu
vo-los darei mentirosos. E se não, vamos ao Evangelho. As mais desfechadas
mentiras, que nunca se ouviram nem imaginaram, foram as que hoje lhe disseram a
Cristo na cara os escribas e fariseus, pelas quais o mesmo Senhor lhes chamou
mentirosos: Ero similis vobis, mendax
(Jo 8, 55). Disseram que era samaritano e endemoninhado. E não só o disseram
esta vez, como advertiu Orígenes, mas assim o diziam publicamente; Nonne bene dicimus nos, quia samaritanus es
tu, et daemonium habes? E notai o que disseram mais abaixo: Nunc cognovimus, quia samaritanus est tu, et
daemonium habes (Jo 8, 52). Agora conhecemos que és samaritano e
endemonhinhado. - Pois, se agora o conhecestes, como o dizíeis dantes? Porque
os mentirosos dizem as coisas antes de as saberem. Mas, tornemos à substância
da mentira. Cristo lançava os demônios de todos os corpos, e eles chamam-lhe
endemoninhado; Cristo era galileu natural de Nazaré, e chamam-lhe samaritano. E
se o diziam pela religião e pelos costumes, os samaritanos eram idólatras e
apóstatas da lei, e Cristo era o legislador e reformador dela. Estas eram as
mentiras que diziam os escribas e fariseus. E o povo, que dizia? Dizia a
verdade: que Cristo era um grande profeta, que era o Rei prometido de Israel,
que era o Messias. Pois, se o povo simples e sem letras conhecia e dizia a
verdade, os escribas e fariseus, que se prezavam de sábios, como cuidavam e
diziam tão desatinadas mentiras? Porque os escribas e fariseus era gente
abastada e ociosa, e o povo não. Ide-lhe ver as mãos, achar-lhas-eis cheias de
calos. Quem trabalha, trata da sua vida; quem está ocioso, trata das alheias.
Quem trabalha, como cuida no que faz, fala verdade, porque diz as coisas como
são. O ocioso, como não tem que fazer, mente, porque diz o que imagina. Esta é
a razão por que a mentira é filha primogênita do ócio. Vede como se forma
dentro em vós mesmos este monstruoso parto. Quem está ocioso não tem mais que
fazer que pôr-se a imaginar; da ociosidade nasce a imaginação, da imaginação a
suspeita, da suspeita a mentira. É a imaginação no ocioso como a serpente de
Eva. Estava ociosa Eva no paraíso, entrou a serpente coleando-se mansamente sem
pés, mas com cabeça; começou pela especulação, e acabou pela mentira. Começou
pela especulação: Cur praecepit vobis
Deus; e acabou pela mentira, e duas mentiras: Nequaquam moriemini: eritis sicut dii. Consentiu Eva na mentira
peçonhenta: de Eva passou a Adão, de Adão ao gênero humano. Não sucede assim às
mentiras imaginadas, que vós, como bicho da seda, gerastes dentro em vós
mesmos, fabricando de vossas entranhas a mortalha para vós e o vestido para os
outros? Meterá a língua a tesoura; e sem tomar as medidas à verdade, vós lhes
cortareis de vestir. Por que cuidais que se dizem tantas coisas mal feitas? Por
que se fizeram? Não, que a mim me consta do contrário. É porque se imaginaram;
e tanto que vieram à imaginação, já estão na prancha da língua. Que bem o disse
Davi: Tota die iniquitatem cogitavit
lingua tua (Sl 51, 4): Todo o dia a vossa língua estava cuidando e
imaginando maldades. Tota die: todo o
dia. Vede se era ocioso aquele de quem falava Davi: todo o dia não tinha outra
coisa que fazer. E que fazia? Estava a sua língua cuidando e imaginando
maldades. Não sei se reparais na impropriedade das palavras. O cuidar, o
imaginar, é obra do entendimento, não é da língua: a língua fala, o
entendimento imagina. Pois, se a imaginação está no entendimento, como diz Davi
que estes fabricadores de maldades imaginavam com a língua: Tota die iniquitatem cogitavit lingua tua?
Falou Davi com esta que parece impropriedade, para declarar com toda a
propriedade o que queria dizer. Não diz que imagina com a língua, porque a
língua imagine, que isso não pode ser; mas diz que imaginam com a língua, por
duas razões: primeira, porque a sua língua não diz o que é senão o que imagina;
segunda, porque quanto lhes vem à imaginação, logo o põe na língua. O mesmo
Davi: Cogitaverunt et locuti sunt
iniquitatem: Em imaginando a maldade, logo a dizem, sem outra causa para a
dizerem mais que a sua maldade, sem outro fundamento mais que a sua imaginação.
Por isso lhes chama o profeta verba
praecipitationis, tão precipitados em afirmar quanto imaginam sem
consideração, sem advertência, sem reparo, sem escrúpulo, sem temor de Deus,
sem meter espaço nem fazer diferença entre o imaginar e o dizer, como se
tiveram a imaginação na língua, ou a língua na imaginação, como se a língua
fôra a que imagina, ou a imaginação a que fala: Cogitavit injustitiam lingua tua. Quantas vezes se diz do honrado e
da honrada, do inocente e da inocente o que nunca lhes passou pela imaginação?
Mas basta que o maldizente o imagine ou o queira imaginar, para o pôr na
conversação e na praça, e o afirmar com tanta certeza, como se o lêra em um
Evangelho. Deus nos livre de tais línguas, e muito mais de tais imaginações,
porque se a vossa honra lhes entrou na imaginação, nenhum remédio tendes: não
há de parar aí, há de passar à língua: Cogitaverunt,
et locuti sunt. Daqui entendereis a razão de um notável preceito de Deus,
que por uma parte parece rigoroso, e, por outra, menos necessário. Proíbe Deus,
sob pena de pecado mortal e de inferno, que ninguém tenha juízo temerário do
seu próximo. Juízo temerário é cuidar eu e julgar mal de meu próximo dentro do
meu pensamento. Pois, se o meu juízo fica dentro do meu pensamento, e não sai
fora, nem pode fazer bem nem mal ao próximo, por que o proíbe Deus com tanta
severidade? Primeiramente notai e adverti quão estimada é, e quão delicada para
com Deus a honra e a reputação de cada um de nós. Nem cá dentro no meu
entendimento, nem cá dentro na minha imaginação quer Deus que estejais mal
reputado. Zela Deus e cia a vossa honra e a vossa reputação, até de mim para
comigo. Vede quanto ciará e sentirá que passe aos ouvidos, e ande pelas bocas
de uns e outros. Daqui nasce a razão por que Deus proíbe tão rigorosamente os
juízos temerários. Não quer que haja juízos temerários, para que não haja
falsos testemunhos. Os falsos testemunhos formam-se na língua: os juízos
temerários formam-se na imaginação; e como da imaginação à língua há tão pouca
distância, para que não haja falsos testemunhos na língua, proíbe que não haja
juízos temerários na imaginação. Não se contentou Deus com meter o inferno
entre a imaginação e a língua, com um preceito de pecado mortal, mas meteu
outra vez o inferno entre o entendimento e a imaginação, para que com estes
dois muros de fogo tivesse defendida a nossa honra das nossas línguas. E,
contudo, isto não basta. Por que? Porque em se passando a primeira muralha,
está vencida a segunda; em chegando à imaginação, já está na língua: Cogitaverunt, et locuti sunt. Senhores
meus, vivemos em uma terra muito ociosa, e por isso muito sujeita a
imaginações. Aqui se há de pôr o remédio. Diz o apóstolo S. Tiago que não há
fera mais dificultosa de enfrear que a língua. Para se pôr o freio na língua,
hão-se de meter as cabeçadas na imaginação. Nos vossos engenhos, para que não
corra a levada, pondes o resisto no açude. O primeiro a quem mentis é a vós.
Não mentiram as línguas a todos se as imaginações não mentiram a cada um. Aqui
é que se há de pôr o resisto. Jó, que conhecia muito bem a simpatia das
potências com os sentidos, dizia: Pepigi
faedus cum oculis meis, ut ne cogitarem de virgine: Fiz concerto com os
meus olhos, para estar seguro dos meus pensamentos. - Concertai-vos com os
vossos pensamentos, se quereis estar seguro das vossas línguas. Mas porque dais
entrada a quanto quereis no pensamento, por isso dizeis tantas coisas que nunca
passaram pelo pensamento.
§ IV
Quantas voltas dão as
palavras desde a boca até os ouvidos. O exemplo dos apóstolos. Os que ouvem
pelos ouvidos e os que ouvem pelos corações. O que ouviram Moisés e Josué ao
descer do Sinai. As mentiras e as formas do fundidor. O notável artifício com que
a natureza formou os nossos ouvidos. Como saíram torcidas da boca dos fariseus
as palavras de Cristo. A quimera e a mentira. A primeira mentira que no mundo
se disse foi feita de duas verdades. As falsas testemunhas diante de Pilatos.
Vejo que estão agora alguns no auditório mui contentes, dizendo consigo que
isto não fala com eles, porque é verdade que não são mudos, e que quando se
acham em conversação também falam nas vidas alheias; mas que não são homens que
digam o que imaginam: dizem o que ouvem, e quem diz o que ouve não mente. Ora,
estai comigo. Se vós soubéreis quantas voltas dão as palavras desde a boca até
os ouvidos, não houvéreis de dizer isso, ainda que foreis mui verdadeiros.
Quero-vos pôr o exemplo na melhor boca e nos melhores ouvidos do mundo.
Perguntou S. Pedro a Cristo que havia de ser de S. João. Respondeu o Senhor: Sic eum volo manere (Jo 21, 22): Quero
que fique assim. - Isto é o que Cristo disse. E os apóstolos que disseram? Exiit sermo inter fratres, quod discipulus
ille non moritur: Começaram a dizer uns com os outros que S. João não havia
de morrer. - E acrescenta o Evangelista: Et
non dixit Jesus non moritur, sed sic eum volo manere (Jo 21, 23): E Cristo não disse que ele não havia de
morrer, senão que queria que ficasse assim. - Pois, se Cristo o não disse, como
o disseram os apóstolos? Eles é certo que não quiseram dizer uma coisa por
outra, mas desde a boca aos ouvidos são tantas as voltas que dão as palavras,
ou no que soam, ou no que significam, que o que na boca de Cristo é ficar, nos
ouvidos dos apóstolos é não morrer. Não podia haver nem melhor boca que a de
Cristo, nem melhores ouvidos que os dos apóstolos; e se entre o dizer de tal
boca e o perceber de tais ouvidos sucedem estas contradições, que será quando a
boca não é de Cristo, e quando os ouvidos não são de S. Pedro nem de S. João?
Quantas vezes vos disseram uma coisa e percebestes outra? Quantas vezes ouvis o
que não ouvis? Quantas vezes entre a boca do outro e os nossos ouvidos ficou a
honra alheia pendurada por um fio? E queira Deus que não ficasse enforcada.
Isto acontece quando os homens ouvem com os ouvidos; mas quando ouvem com os
corações, ainda é muito pior. E os corações também ouvem? Nunca vistes
corações? Os corações também têm orelhas, e estai certos que cada um ouve, não
conforme tem os ouvidos, senão conforme tem o coração e a inclinação. Enquanto
Moisés estava no Monte Sinai recebendo a lei de Deus, pediram os judeus a Arão
que lhes fundisse um bezerro de ouro. E como era o primeiro dia da dedicação
daquela imagem, celebraram-no eles com grandes festas. Desce do monte Moisés
com Josué, ouviram as vozes ao longe: disse Moisés: - Eu ouço cantar a coros; -
disse Josué: - Não é senão tumulto de guerra (Êx 32, 18). Aqui temos choros castrorum. Se as vozes eram as
mesmas, como a um parecem música e a outro parecem trombetas? A razão é clara.
Moisés era religioso, Josué era soldado: ao religioso, parecem-lhe as vozes do
côro; ao soldado, de guerra. Cada um ouve conforme o seu coração e a sua
inclinação. Deus nos livre de um coração mal inclinado. Se ouvir um Te Deum laudamus há de dizer que ouviu
uma carta de excomunhão. Os que ouvem são os ouvidos, mas os que ouvem bem ou
mal são os corações. Tudo o que entra pelo ouvido faz eco no coração, e
conforme está disposto o coração, assim se formam os ecos. Ainda vos hei de
declarar isto com outra comparação mais própria. Na fundição de Arão a temos.
Quer um fundidor formar uma imagem. Suponhamos que é de S. Bartolomeu com o seu
diabo aos pés. Que faz para isto? Faz duas formas de barro, uma do santo e
outra do diabo, e deixa aberto um ouvido em cada uma. Depois disto derrete o
seu metal em um forno, e, tanto que está derretido e preparado, abre a boca ao
forno, corre o metal, entra por seus canais no ouvido de cada forma, e em uma
sai uma imagem de S. Bartolomeu muito formosa, noutra uma figura do diabo, tão
feia como ele. Pois, valha-me Deus, que diferença é esta? O metal era o mesmo,
a boca por onde saiu a mesma, e, entrando por um ouvido faz um santo, entrando
por outro ouvido faz um diabo? Sim, que não está a coisa nos ouvidos, senão nas
formas que estão lá dentro. Onde estava a forma do diabo, saiu um diabo; onde
estava a forma do santo, saiu um santo. Senhores meus, todos os nossos ouvidos
vão a dar lá dentro em uma forma, que é o coração. Se o coração é forma do
santo, tudo o que entra pelo ouvido é santo; se é forma do diabo, tudo o que
entra pelo ouvido é diabólico. Querei-lo ver? Olhai para o nosso Evangelho.
Disse Cristo aos escribas e fariseus: Ego
honorifico Patrem meum (Jo 8, 49): Eu honro a meu Pai: Ego non quaero gloriam meam (ibid.
50): Eu não busco a minha glória: Si quis
sermonem meum servaverit, mortem non videbit in aeternum (ibid. 51 ): Se alguém guardar os meus
preceitos, viverá eternamente. - Ouvidas estas palavras, quem não diria, quando
menos, que era um santo quem as dizia, principalmente tendo provado a sua
doutrina com tantos milagres? E os escribas e fariseus que disseram? Nunc cognovimus quia daemonium habes (ibid. 52): Agora conhecemos que trazes
dentro em ti o demônio. - Pois, também de umas palavras tão santas e tão
divinas formam estes homens um conceito tão diabólico? Sim, também, porque tais
eram as formas em que receberam o que lhes entrou pelos ouvidos. Aqueles
malditos homens eram filhos do diabo, como Cristo lhes disse nesta mesma
ocasião: Vos ex patre diabolo estis -
e de uns corações diabólicos, de umas formas endemoninhadas, ainda que o metal
fosse tão divino, que havia de sair senão um demônio: daemonium habes? Isto
sucedeu às palavras de Cristo, para que vejamos o que pode suceder às demais. É
verdade que as formas não são todas umas. Assim como sai um diabo e outro
diabo, pode sair também um S. Bartolomeu; mas, ainda assim, o melhor é não
entrar por ouvidos de homens, posto que as formas não sejam do diabo, senão do
santo, porque se a forma é do diabo, ficais diabo, e se é de S. Bartolomeu,
ficais esfolado. Ninguém passou pelos dois estreitos da boca e ouvidos humanos
que não deixasse neles, quando menos, a pele. Notável é o artifício, com que a
natureza formou os nossos ouvidos. Cada ouvido é um caracol, e de matéria que
tem sua dureza. E como as palavras entram passadas pelo oco deste parafuso, não
é muito que quando saem pela boca, saiam torcidas. Tornemos às de Cristo hoje.
Disse o Senhor aos seus ouvintes: Abraham
exsultavit ut videret diem meum vidit, et gavisus est (Jo 8, 56): Abraão
desejou ver minha vinda ao mundo, viu-a, e alegrou-se. - Isto é o que entrou
pelos ouvidos dos escribas e fariseus. E que é o que saiu pelas bocas? Quinquaginta annos nondum habes, et Abraham
vidisti (Jo 8, 57 )? Ainda não tens cinqüenta anos, e viste Abraão? - Vede
como saíram torcidas as palavras dos ouvidos à boca. Cristo disse que Abraão
vira a ele, e os fariseus dizem que dissera que ele vira a Abraão: Et Abraham vidisti. Assim torceram o
nome, e mais o verbo. Ao nome mudaram-lhe o caso, e ao verbo a pessoa. Cristo
disse o nome em nominativo, e eles puseram-no em acusativo; Cristo disse o
verbo na terceira pessoa, e eles puseram-no na segunda. De Abraham vidit, formaram Abraham vidisti. Eis aqui como saem as
palavras dos ouvidos à boca, torcidas e retorcidas: torcidos os nomes, torcidos
os verbos, torcidas as pessoas; torcidos os casos. Então dizeis que dissestes o
que ouvistes. Mais sucede nesta passagem dos ouvidos à boca. Como os ouvidos
são dois, e a boca uma, sucede que, entrando pelos ouvidos duas verdades, sai
pela boca uma mentira. Parece coisa de trejeito, mas é tão certa, que a
primeira mentira que se disse no mundo foi desta casta: uma mentira feita de
duas verdades. Antes que vo-la diga, quero-vos mostrar como isto pode ser.
Quando quereis dizer que fulano é grande mentiroso, dizeis que é uma quimera.
Mas que coisa é quimera? Mui poucos de vós deveis de o saber. Quimera é um animal
fingido, composto de dois animais verdadeiros: um monstro, meio homem, meio
cavalo, é quimera; um monstro, meio águia, meio serpente, é quimera; um
monstro, meio leão, meio peixe, é quimera; mas não há tais monstros nem tais
quimeras no mundo. De maneira que as ametades são verdadeiras; os todos, ou
monstros que delas se compõem, são fingidos. As ametades são verdadeiras,
porque há homem e cavalo, há águia e serpente, há leão e peixe; os monstros que
se compõem destas ametades são fingidos, porque não há tal coisa no mundo. Isto
mesmo fazem os mentirosos: partem duas verdades pelo meio, e, sem mudar nem
acrescentar nada ao que dissestes, de duas verdades partidas fazem uma mentira
inteira. Tal foi a mentira que disse o diabo a nossos primeiros pais, e foi a
primeira mentira que no mundo se disse: Cur
praecepit vobis Deus, ut non comederetis de omni ligno paradisi (Gên 3, 1 )
? Por que vos mandou Deus - diz o diabo a Eva - que de todas as árvores,
quantas há no paraíso, não comêsseis? - Há tal mentira como esta? E foi feita
de duas verdades. Deus deu a nossos primeiros pais uma permissão e um preceito:
a permissão foi: comei de todas as árvores; o preceito foi: não comais desta
árvore. E que fez o diabo? Do comei de todas as árvores, tomou o de todas as árvores,
e do não comais desta árvore, tomou o não comais, e, ajuntando o não comais com
o de todas as árvores, disse que mandara Deus que de todas as árvores não
comessem. Pode haver maior mentira? Pois foi grudada de duas verdades.
Defendei-vos lá agora das vossas mentiras, com dizer que dissestes as mesmas
palavras que ouvistes e que não acrescentastes nada. Que importa que não
acrescenteis, se diminuístes? Pior é uma verdade diminuída, que uma mentira mui
declarada, porque a verdade diminuída na essência é mentira, e tem aparências
de verdade; e mentiras que parecem verdades são as piores mentiras de todas.
Mas por que acabemos de uma vez com as mentiras de ouvidas, para que seja
mentira o que dizeis, não é necessário que oiçais mal nem que diminuais ou acrescenteis
o que ouvistes: pode um homem dizer pontualmente o que ouviu, e ouvir
pontualmente o que disseram, e com tudo isso mentir. Quando os judeus acusaram
a Cristo diante de Pilatos, buscavam diversos falsos testemunhos, e nenhum
concluía. Ultimamente, diz o Evangelista que vieram duas testemunhas falsas, as
quais disseram que ouviram dizer a Cristo que, se o Templo de Jerusalém se
desfizesse, ele o reedificaria em três dias. Para inteligência deste testemunho
havemos de saber que, entrando Cristo no Templo de Jerusalém, e achando que
nele estavam comprando e vendendo, fez um azorrague das cordas que ali estavam,
e a açoites lançou fora os que compravam e vendiam. Espantados eles da
resolução de Cristo, disseram que lhes desse algum sinal do poder com que fazia
aquilo. Respondeu o Senhor: Solvite
templum hoc, et in tribus diebus excitabo illud. Pois, se Cristo disse,
derribai o Templo, e em três dias o levantarei, e eles testemunharam o que lhe
ouviram, como eram testemunhas falsas: Venerunt
duo falsi testes? O Evangelista o declarou: Ille autem dicebat de templo corporis sui (Jo 2, 21 ): Falava do
templo do seu corpo - o qual templo o Senhor excitou três dias depois de
derrubado, que foi no dia da ressurreição. E como Cristo disse aquelas palavras
em um sentido, e eles as referiram em outro, ainda que as palavras eram as
mesmas que tinham ouvido, sem mudar, nem acrescentar, nem diminuir, as
testemunhas eram falsas. Cuidais que para mentir e para dizer testemunhos
falsos é necessário mudar, diminuir ou acrescentar as palavras que ouvistes?
Não é necessário nada disso: basta mudar-lhes o sentido, ou a intenção, ainda
que as não entendais, porque haveis supor que as podem ter, e mais quando as
pessoas são tais - como era a de Cristo - que podem falar com mistério. Quantas
vezes se dizem as palavras sinceramente com uma tenção muito sã, e vós as
interpretais e corrompeis de maneira que de um louvor fazeis um agravo, de uma
confiança uma injúria, de uma galantaria uma blasfêmia, e de uma graça levantais
uma tal labareda, que se originaram dela muitas desgraças. E se isto sucede
quando os homens dizem o que ouviram, e só o que ouviram, que será quando dizem
o que imaginaram, e o que sonharam, ou que ninguém imaginou nem sonhou?
§V
A mentira dos olhos. Quais
toram as coisas de que se formou o engano dos moabitas na campanha contra os
reis de Israel. O cego do Evangelho. O que aconteceu aos cegos vigiadores, que
vão estudar de noite o que hão de rezar de dia. O negrume das nuvens e da água.
Também contra este segundo discurso há quem cuide que está adargado. Dizem
alguns, ou diz algum: não sou eu daqueles, porque a mim nunca me saiu pela boca
coisa que me entrasse pelos ouvidos: para afirmar, hei de ver com os olhos
primeiro; e se para isso for necessário que os olhos não durmam quarenta
noites, estando vigiando a uma esquina, hei-o de fazer sem descansar, até ver
averiguada a minha suspeita. Ah! ronda do inferno! Ah! sentinela de Satanás!
Este mesmo, se lhe mandar o confessor que faça exame de consciência meio quarto
de hora antes de se deitar, não o há de poder fazer com o sono. Mas, para
destruir honras, para abrasar casas, estará feito um Argos quarenta noites
inteiras. Não cuidem, porém, estes malignos vigiadores, que por aí se livrarão
de mentirosos. Fostes, vigiastes, observastes, vistes, dissestes, e tendes para
vós que falastes verdade? Pois mentistes muito grande mentira. Os olhos mentem
de dia, quanto mais de noite. Grande caso! No Livro quarto dos Reis, capítulo
terceiro (4 Rs 3, 22): Saíram em campanha contra os moabitas el-rei de Israel,
el-rei de Judá e el-rei de Edon. Estavam ainda os exércitos para dar batalha na
manhã seguinte: eis que, ao romper do sol, olharam os moabitas para os arraiais
dos inimigos, e viram que pelo meio deles corria um rio de sangue. Começaram a
aclamar com grande alegria: - Sangue, sangue, sem dúvida que os três reis
pelejaram esta noite entre si, e mataram-se uns aos outros: vamos a recolher os
despojos. - Saíram os moabitas correndo tumultuariamente; mas eles foram os
despojados e os vencidos, porque o sangue que viram, ou se lhes afigurou que
viram, não era sangue. Foi o caso que passava um rio por meio dos arraiais dos
três reis, e como ao sair do sol feriram os raios na água que ia correndo, fez
tais reflexos a luz, que parecia sangue. E esta aparência de sangue, tão
enganosamente visto, e tão falsa, e tão facilmente crido, foi o que precipitou
aos moabitas, e os levou a meterem-se nas mãos de seus inimigos. Se reparais no
caso, as duas coisas mais claras que há no mundo é o sol e a água. Os nossos
provérbios o dizem: Claro como a água, claro como a luz do sol. E quais foram
as coisas de que se formou aquele engano nos olhos dos moabitas, com que
cuidaram que o rio era sangue? Uma coisa foi o sol, e outra coisa foi a água: o
sol, porque feriu com seus raios as águas, e as águas porque, feridas, deram
com os reflexos aparências de sangue. De sorte que se enganaram os olhos nas
duas coisas mais claras que há no mundo. Pois, se os olhos se enganam nas
coisas mais claras, como se não enganarão nas mais escuras, e às escuras? De
dia, engana-vos o sol, e, de noite, quereis-vos desenganar com as trevas?
Dir-me-eis que havia lua e estrelas quando vistes. Essa pequena luz é a que
cega mais, porque faz que umas coisas pareçam outras. Trouxeram um cego a
Cristo, pos-lhe o Senhor as mãos nos olhos, e perguntou-lhe se via? Respondeu o
cego: Video homines velut arbores
ambulantes (Mar 8, 24): Senhor, vejo os homens como árvores que andam. -
Mais cego estava agora este cego que dantes, porque dantes não via nada, agora
via umas coisas por outras. Os homens que são de tão diferente figura e
estatura, via-os como árvores, e as árvores que estão presas com raízes na
terra, via que andavam como homens. Eis aqui o que tem ver com pouca luz. O
mesmo acontece a estes cegos vigiadores, que vão estudar de noite o que hão de
rezar de dia: Video homines velut arbores
ambulantes. O cego de Cristo, figurava-se-lhe que os homens eram árvores, e
estes cegos do diabo, figura-se-lhes que as árvores são homens. Põem-se a
espreitar, veem uma árvore em um quintal: eis lá vai um homem. A árvore está
tão pregada pelas raízes que dois cavadores a não arrancarão em um dia, e ele
há de jurar aos Santos Evangelhos, que viu entrar e sair aquele vulto; arbores
ambulantes. Oh! maldito ofício! oh! infernal curiosidade! Já se os olhos
levarem alguma nuvenzinha, como sempre levam, ou de desconfiança, ou de ódio,
ou de inveja, ou de suspeita, ou de vingança, ou de outra qualquer paixão, aí
vos gabo eu: Tenebrosa aqua in nubibus
aeris. Notou Davi admiravelmente que a água nas nuvens é negra. Vedes lá
vir um aguaceiro escuro mais que a mesma noite: que negrume é aquele? Não é
mais que água e nuvem: a nuvem é um volante, a água é um cristal; e destes dois
ingredientes tão puros e tão diáfanos se faz uma escuridade tão negra e tão
espessa. Se quem vai vigiar e espreitar a vossa vida e a vossa honra levar
alguma nuvem diante dos olhos, ainda que seja tão delgada como um volante, por
mais que a vossa vida e a vossa honra seja tão clara e tão pura como um
cristal, há-lhe de parecer escura e tenebrosa: Tenebrosa aqua in nubibus aeris. Finalmente, reduzindo todo o
discurso, ou discursos: mentem as línguas, porque mentem as imaginações; mentem
as línguas, porque mentem os ouvidos; mentem as línguas, porque mentem os
olhos; e mentem as línguas, porque tudo mente, e todos mentem.
§ VI
A consolação e a
desafronta da mentira. Bem-aventurados vós, quando os homens disserem todo o
mal de vós, mentindo. A razão por que Cristo, quando o diabo o nomeou por Filho
de Deus, lhe mandou que calasse. O engano e a falsa suposição em que estão os
que não tem prática interior da terra. A confissão dos falsos testemunhos.
Tenho acabado de provar a matéria que propus. Mas parece-me que estais dizendo
- como disse no princípio - que tenho dito muitas afrontas à vossa terra. Porém
eu digo - como também prometi - que antes a tenho desafrontado. E senão,
pergunto: Qual vos está melhor: que seja verdade o que se diz, ou que sejam
mentiras? Não há dúvida que vos está melhor que sejam mentiras. Pois isto é o
que eu tenho dito. Se fora verdade o que se diz, era grande afronta vossa; mas,
como tenho mostrado que tudo são mentiras, ficais todos muito honrados.Hoje vos
restituí vossa honra, porque provei que mentem todos os que dizem mal de vós.
Vós bem sabeis melhor que eu que tudo são mentiras; mas eu tomei por minha
conta este manifesto por amor dos forasteiros que me ouvem, que não são
práticos nos costumes da terra. Dos apóstolos de Cristo se diziam e se haviam
de dizer muitos males, porque é uso do mundo dizer mal dos bons. E o Senhor,
para os desafrontar e animar disse-lhes esta divina sentença: Beati eritis cum maledixerint vobis homines,
et dixerint omne malum adversum vos mentientes (Mt 5, 11): Bem-aventurados
vós, quando os homens disserem todo o mal de vós mentientes: mentindo. Nesta palavra está a consolação e a desafronta. Se
os homens dizem mal, falando verdade, é grande desgraça; mas se eles dizem mal
mentientes: mentindo, não importa nada. Por isso disse, e quero que saibam
todos, que o que nesta terra se diz são mentiras. O mentiroso conhecido há de
se entender às avessas; e entendido às avessas, nem afronta, nem mente, porque
diz verdade. E assim haveis de entender tudo o que ouvis. Guarde-vos Deus de
que o mentiroso diga bem de vós, porque é sinal que sois o contrário do que ele
diz. Essa foi a razão porque Cristo, quando o diabo o nomeou por Filho de Deus,
lhe mandou que calasse, porque, como o diabo é pai da mentira, em dizer que era
Filho de Deus dizia que o não era. E esse foi também o modo geral com que o
mesmo Senhor hoje se desafrontou de todas as injúrias que os escribas e
fariseus lhe tinham dito, qualificando-os por mentirosos: Ero similis vobis, mendax. É verdade que os forasteiros a quem eu
prego esta doutrina fazem um terrível argumento contra a nossa terra. Chegam a
este porto, põem os pés em terra, e, ouvindo dizer mal de todos e de tudo,
fazem este discurso: Ou estes homens mentem, ou falam a verdade; se falam
verdade, esta é a mais má terra de todo o mundo, pois, nela se cometem tantas
maldades; e se mentem também a terra é muito má, pois os homens tem tão pouca
consciência, que levantam tantos falsos testemunhos. - Este é o argumento que
parece não tem fácil solução. Mas eu respondo a uma e outra parte dele. Quanto
à primeira, digo que as maldades que se dizem são falsas, e que, como falsas,
não se devem crer. São falsas? - insta a outra parte - logo onde os homens
levantam tantos falsos testemunhos, não pode ser senão a pior terra do mundo.
Eis aí o engano e a falsa suposição em que estão os que não têm prática
interior da terra. No Maranhão é verdade que há muitas mentiras, mas
mentirosos, isso não; muito falso testemunho, sim, mas quem levante falso
testemunho, por nenhum caso. Pois, como pode isto ser? Como pode ser que haja
falsos testemunhos, sem haver quem os levante? Eu vo-lo direi. Nas outras
terras os homens levantam os falsos testemunhos; nesta terra os falsos
testemunhos levantam-se a si mesmos. Se vos parece dificultosa a proposição,
vamos à prova. Confessa-se um homem, e, chegando ao quinto mandamento, diz:
Padre, acuso-me que eu desejei a morte a um homem, e o busquei para o matar, e
propus de lhe fazer todo o mal que pudesse. - E por quê? - Porque me tirou a minha
honra com um falso testemunho de que eu estava tão inocente como S. Francisco.
- Irmão, perdoai-lhe, para que Deus vos perdoe. - Passamos adiante, chegamos ao
oitavo mandamento: - Levantastes algum falso testemunho? - Não, Padre, pecado é
de que nunca me acusei, seja Deus louvado. - Vem uma mulher, chega ao quinto:
Digo a Deus minha culpa, que eu há tantos meses que tenho ódio a uma mulher, e
roguei-lhe muitas pragas, que a fala e a confissão lhe faltasse na hora da
morte, e que nem nesta vida nem na outra lhe perdoava; que seus filhos visse
ela mortos diante de si a estocadas frias. - Por quê? - Porque me levantou um
aleive a mim e a uma filha minha, com que nos infamou em toda esta terra, e não
me atrevo a lhe perdoar. - Ora, senhora, estamos em Quaresma; alguma coisa
havemos de fazer por amor de um Deus que padeceu tantas afrontas e se pôs em
uma cruz por amor de nós. - Enfim, compungiu-se, prometeu de perdoar. Chega o
confessor ao oitavo mandamento. - E vossa mercê levantou algum falso
testemunho? - Senhor padre, melhor estréia me dê Deus: muito grande pecadora
sou, mas nunca Deus permita que eu diga das pessoas o que nelas não há; se ouço
alguma coisa, ajudo também, mas levantar falso testemunho, nunca em minha vida
o fiz. - Isto que aqui vos pus em dois, acontece infinitas vezes. De maneira
que no quinto todos se queixam que lhes levantam falsos testemunhos; no oitavo
ninguém se acusa de levantar falso testemunho. Logo, bem dizia eu que nesta
terra os falsos testemunhos se levantam a si mesmos. Em suma, que temos aqui os
pecados, mas não temos os pecadores: temos os falsos testemunhos, mas não temos
as falsas testemunhas. Isto é o que posso cuidar. Mas, se acaso é o contrário,
miseráveis daqueles que assim vivem! Grande miséria é que os falsos testemunhos
se levantem; mas maior miséria é, que, depois de levantados, se faça deles tão
pouco caso e tão pouco escrúpulo. Ou deixais de confessar o falso testemunho,
conhecendo que o levantastes ou não o conhecendo: se o deixastes de confessar
conhecendo-o, mentis a Deus; se o deixais de confessar pelo não conhecer,
mentis-vos a vós. E uma e outra cegueira, é bem merecido castigo: que minta a
Deus e que se minta a si mesmo, quem mentiu tão gravemente contra seu próximo,
e que de um ou de outro modo se vá ao inferno!
§ VII
Aborrecer a mentira não só por consciência
mas por conveniência. Quantas mentiras se dirão cada dia no Maranhão? Quantas
cabem a cada casa? O pecado que mais facilmente se comete e com mais
dificuldade se restitui. Exortação. Senhores meus, se algum sermão não tinha
necessidade de exortação era este. Só vos digo, como a homens e como a
cristãos, que não só por consciência, mas por conveniência se deve aborrecer a
mentira e amar a verdade. Por conveniência, porque viveis em uma terra muito pequena.
Em toda a parte fazem muito mal as mentiras, mas nas terras grandes têm saca e
têm muito por onde se espalhar; nas terras pequenas, todas ali ficam. Em Lisboa
muita mentira se diz, mas repartem-se as mentiras por todo o reino e por todo o
mundo. Chegou navio de Levante, fala-se nas guerras do turco, nas do veneziano,
nas do tártaro, nas do polaco; fala-se no Papa, nos cardeais, nos outros
príncipes e potentados de Itália: dizem-se muitas mentiras, mas repartem-se;
umas caem em Constantinopla, outras em Veneza, outras em Roma, outras na
Toscana, Sabóia, etc. Vem navio do Norte, fala-se em el-rei de França, no
imperador, no sueco, no parlamento de Inglaterra, nos Estados de Holanda e
Flandres: dizem-se muitas mentiras, mas repartem-se, por Paris, por Londres,
por Viena de Áustria, por Amsterdam, por Estocolmo, etc. Partem também os
nossos correios todos os sábados, e levam grande cópia das mentiras por todo o
reino e o mesmo é das frotas do Brasil e da Índia; porém as mentiras do
Maranhão não têm nem outra parte donde vir nem outra parte para onde ir: aqui
nascem e aqui ficam; e quando as mentiras todas ficam na terra, e todas vos
caem em casa, ainda por conveniência e razão de estado as haveis de lançar
fora. E se não, fazei-me por curiosidade duas contas, as quais eu agora não
posso fazer. Uma é: quantas mentiras se dirão cada dia no Maranhão? A outra:
quantas casas há nesta cidade, e logo reparti as mentiras, e vereis quantas
cabem a cada casa! E que será em uma semana, que será em um mês, que será em um
ano? Pois, se tudo isto vos fica em casa, e é força que assim seja, não é muito
pouca razão de estado, e muito grande sem-razão, que vos andeis levantando
falsos testemunhos, que vos andeis infamando e afrontando uns aos outros? Não
fora muito melhor serdes todos muito amigos, muito conformes, amardes-vos
todos, honrardes-vos todos, autorizardes-vos todos, e poupardes todos
desgostos? Há outros pecados que parece que os pode desculpar o gosto ou o
interesse; mas o mentir e o levantar falso testemunho? Que dão a um homem por
mentir? Que gosto se pode ter em levantar um falso testemunho? Se é por me
vingar de meu inimigo, muito maior mal me faço a mim que a ele, porque a ele,
quando muito, tiro-lhe a honra: a mim condeno-me a alma. Ora, cristãos, por
reverência daquele Senhor - que sendo Deus se preza de se chamar Verdade - que
façamos hoje uma muito firme e muito verdadeira resolução de não haver paixão
nenhuma, nem respeito, nem interesse que vos faça torcer nem faltar um ponto à
verdade; quanto ao passado, que examinemos muito devagar e muito
escrupulosamente se temos faltado à verdade em alguma coisa, principalmente em
matéria da honra de nossos próximos. Olhai, senhores, que este, este é o pecado
que mais facilmente se comete, e com mais dificuldade se restitui. Olhai,
cristãos, que as balanças em que se pesam as consciências na outra vida são
muito delicadas, e que será grande desgraça ir ao inferno para sempre por um
falso testemunho. O remédio está em uma consciência muito bem examinada, em uma
confissão muito bem feita, e em uma satisfação muito verdadeira, advertindo-vos
e protestando-vos da parte de Deus, que sem estas três condições, nem nesta
vida podeis alcançar a graça, nem na outra merecer a glória.