Tuesday, 23 April 2019

Tuesday's Serial: "História do Futuro" by Fr. António Vieira (in Portuguese) II


Capítulo IV: Utilidades da História do Futuro    
§ I Se o fim desta escritura fora só a satisfação da curiosidade humana, e o gosto ou lisonja daquele apetite com que a impaciência do nosso desejo se adianta em querer saber as cousas futuras; e se as esperanças que temos prometido foram só flores sem outro fruto mais que o alvoroço e alegria com que as felicidades grandes e próprias se costumam esperar, certamente eu suspendera logo a pena e a lançara da mão, tendo este meu trabalho por inútil, impertinente e ocioso, e por indigno não só de o comunicar ao Mundo, mas de gastar nele o tempo e o cuidado.
                Mas se a história das cousas passadas (a que os sábios chamaram mestra da vida) tem esta e tantas. outras utilidades necessárias ao governo e bem comum do gênero humano e ao particular de todos os homens, e se como tal empregaram nela sua indústria tantos sujeitos em ciência, engenho e juízo eminentes, como foram os que em todos os tempos imortalizaram a memória deles com seus escritos; porque não será igualmente útil e proveitosa, e ainda com vantagem, esta nossa História do Futuro, quanto é mais poderosa e eficaz para mover os ânimos dos. homens a esperança das cousas próprias, que a memória das alheias?
                Se em todos os Livros Sagrados contarmos os escritores de cousas passadas (como foram, na Lei da Graça, os quatro Evangelistas, e na Escrita, Moisés, Josué, Samuel, Esdras e alguns outros, cujos nomes ;e não sabem com tão averiguada certeza), acharemos que são em muito maior número os que escreveram das futuras: diferença que de nenhum modo fizera Deus, que é o verdadeiro Autor de todas as .Escrituras (sendo todas elas como diz S. Paulo escritas para nossa doutrina, se não fora igual e ainda maior a utilidade que podemos e devemos tirar do conhecimento das cousas futuras, que da noticiaria das passadas. E verdadeiramente que se os bens da ciência se colhem e conhecem melhor pelos males da ignorância, achará facilmente quem discorrer pelos sucessos do Mundo, desde seu princípio até hoje, que foram muito menos os danos em que caíam os homens por lhes faltar a notícia do passado, que aqueles que cegamente se precipitaram pela ignorância do futuro.
                Em conseqüência desta verdade e em consideração das cousas que tenho disposto escrever, digo, leitor cristão, que todos aqueles fins que sabemos teve a Providência Divina em diversos tempos, lugares e nações para lhes revelar antecedentemente o sucesso das cousas que estavam por vir, concorrem com particular influxo nesta nossa História e se acham juntos nela. Esta é não só a principal razão, nas a única e total, por que nos sujeitamos ao trabalho de tão molesto gênero de escritura, esperando que será grato e aceito a Deus, a quem só pretende nos servir; e entendendo que foram vontade, inspiração e ainda força suave da mesma Providência os impulsos que a isto (não sem alguma violência) nos levaram, para que estes secretos de seu oculto juízo e conselho se descobrissem e publicassem ao Mundo e em todo ele produzissem proporcionadamente os efeitos de mudança, melhoria e reformação a que são encaminhados e dirigidos. A mesma Majestade divina, humildemente prostrados diante de seu infinito acatamento, pedimos com todo o afeto de coração, agora que entramos na maior importância desta matéria, se sirva de nos comunicar aquela luz, graça e espírito que para negócio tão árduo nos é necessário, conhecendo e confessando que sem assistência deste soberano auxílio, nem nós saberemos explicar a outros o pouco que por mercê do Céu temos alcançado e conhecido, nem menos poderemos descobrir e alcançar ao diante o muito que nos resta por conhecer.

§ II
Primeira utilidade.
                O primeiro motivo e mui principal por que Deus costuma revelar as cousas futuras (ou sejam benefícios ou castigos) muito tempo antes de sucederem, é para que conheçam clara e firmemente os homens, que todas vêm dispensadas por sua mão. Arma-se assim a sabedoria eterna contra a natureza humana, sempre soberba, rebelde e ingrata, ou porque se não levante a maiores com os benefícios divinos, e se beije as mãos a si mesma, como dizia Job, ou porque não atribua a cousas naturais (e muito menos ao caso) os efeitos que vêm sentenciados como castigo por sua justiça, ou ordenados para mais altos e ocultos fins por sua providência.
                Foram mostradas a Faraó em sonhos .as sete espigas gradas e as sete falidas, as sete vacas fracas e as sete robustas, e logo ordenou a Providência divina que estivesse em Egito um José (posto que vendido e desterrado), que lhe declarasse o mistério dos sete anos da fartura e sete de fome, para que conhecesse o bárbaro que Deus, e não o seu adorado Nilo, era o autor da abundância e da esterilidade, e que a ele havia de agradecer no benefício dos sete anos o remédio dos catorze. Como na terra do Egito não chove jamais e se regam e fertilizam os campos com as inundações do rio Nilo, disse discretamente Plínio que só os Egípcios não olhavam para o céu, porque não esperavam de lá o sustento, como as outras nações.
                Oh quantos cristãos há egípcios, que nem esperando, nem temendo, levantam os olhos ao Céu, e em lugar de reverenciarem em ,todos os sucessos a primeira causa, só adoram as segundas! Por isso mostra Deus a Faraó, tantos anos antes, quais hão-de ser os da fome e quais os da fartura; para que conheça a ignorante sabedoria do Egito que os meios da conservação ou ruína dos reinos, a mão onipotente de Deus é a que os distribui, quando são, pois só ele os pode determinar antes que sejam.
                Quis a mesma Providência, como acima dizíamos tirar o império a Baltasar e dá-lo a Dario; mas apareceu primeiro a sentença escrita no paço de Babilônia, e houve logo um Daniel (também cativo e desterrado), que interpretasse ao rei os mistérios dela, para que Baltasar, que perdia o reino, conhecesse que o perdia, porque Deus lho tirava; e para que Dario, que o havia de receber, entendesse que o recebia, porque Deus lho dava. Deus é o que dá e tira os reinos e os impérios, quando e a quem é servido. E não bastam, se Deus dispõe outra cousa, nem as armas de Dario para os adquirir, nem o direito e herança de Baltasar para os conservar; por isso quer a mesma Providência Divina que as sentenças estejam escritas antes da execução, e que haja quem as interprete antes do sucesso.
                Os futuros portentosos do Mundo e Portugal, de que há-de tratar a nossa História, muitos anos há que estão sonhados como os de Faraó e escritos como os de Baltasar; mas não houve até agora nem José que interpretasse os sonhos, nem Daniel que construísse as escrituras; e isto é o que eu começo a fazer (com a graça daquele Senhor que sempre se serve de instrumentos pequenos em cousas grandes), para que conheça o Mundo e Portugal, com os olhos sempre no Céu e em Deus, que tudo são efeitos de seu poder e conselhos da sua providência; e para que não haja ignorância tão cega nem ambição tão presumida, que tire a Deus o que é de Deus, por dar a César o que não é de César, atribuindo à fortuna ou indústria humana o que se deve só à disposição divina.
                Estilo foi este que sempre Deus usou com Portugal, receoso porventura de que uma nação tão amiga da honra e da glória lhe quisesse roubar a sua. Quem considerar o Reino de Portugal no tempo passado, no presente e no futuro, no passado o verá vencido, no presente ressuscitado e no futuro glorioso; e em todas estas três diferenças de tempos e estilos lhe revelou e mandou primeiro interpretar o. favores e as mercês tão notáveis com que o determinava enobrecer: na primeira, fazendo-o, na segunda restituindo-o, na terceira, sublimando-o.
                Antes do nascimento de Portugal, apareceu o mesmo Cristo a El-Rei (que ainda o não era) D. Afonso Henriques, e lhe revelou como era servido de o fazei rei, e a Portugal reino; a vitória que lhe havia de dar em batalha tão duvidosa e as armas de tanta glória com que o queria singularizar entre todos os reinos do Mundo. E o embaixador e intérprete deste e de outros futuros, que depois se viram cumpridos, foi aquele velho, desconhecido e retirado do Mundo o ermitão do campo de Ourique; para que conhecesse e não pudesse negar Portugal que devia a Deus a vitória e a coroa, e que era todo seu desde seu nascimento. Antes da sua ressurreição, que todos vimos também, foi revelado o sucesso dela com todas suas circunstancias, não havendo quem ignorasse ou quem não tivesse lido que no ano de quarenta se havia de levantar em Portugal um rei novo e que se havia de chamar João. E o intérprete deste futuro que parecia tão impossível, e de tantos outros que logo se cumpriram e vão cumprindo, foi a nossa experiência, para que conhecesse outra vez Portugal que a Deus e não a outrem devia a restituição da coroa que havia sessenta anos lhe caíra da cabeça ou lhe fora arrancada dela.
                Antes das glórias de Portugal, que é o tempo futuro, e muitos centos e ainda milhares de anos antes (como depois mostraremos), também está prometido este terceiro e mais feliz estado do nosso Reino, e prometidos juntamente os meios e instrumentos prodigiosos por onde há-de subir e ser levantado ao cume mais alto e sublime de toda a felicidade humana; e o intérprete deste último e glorioso estado de Portugal já tenho dito quem é, e quão indigno de o ser. e por isso mui proporcionado (segundo o estilo de Deus) para tão grande e dificultosa empresa; para que até por esta circunstancia conheçam os Portugueses que a mesma mão onipotente que há vinte e quatro anos conserva e defende tão constante e vitoriosamente o Reino de Portugal, é a que há-de levantar e sublimar ao estado felicíssimo e glorioso que lhe está prometido.
                Considerem agora os Portugueses, e leiam tudo o que daqui por diante formos escrevendo com este pressuposto e importantíssima advertência: que, se alguma cousa lhes poderia retardar o cumprimento destas promessas, seria só o esquecimento ou desconhecimento do soberano Autor delas, quando por nossa desgraça fôssemos tão injuriosamente ingratos a Deus, que ou referíssemos os benefícios passados, ou esperássemos os futuros de outra mão que a sua.
                Prometeu Deus de livrar os filhos de Israel do cativeiro do Egito, como tinha jurado aos seus maiores, e de os levar e meter de posse da terra da Promissão; e posto que todas viram o cumprimento da primeira promessa, conseguindo milagrosamente a liberdade, e sacudiram sem sangue nem golpe de espada a sujeição de tão poderoso domínio, sendo contudo mais de seiscentos mil homens os que triunfaram de Faraó e passaram da outra parte do mar Vermelho, de todos eles não entraram na Terra da Promissão nem chegaram a lograr a felicidade e descanso da segunda promessa mais que Josué e Calef, dois daqueles aventureiros que, escolhidos pelos Doze Tribos, foram diante a explorar a terra. Raro exemplo de severidade na misericórdia de Deus , mas bem merecido castigo; porque, se buscarmos no Texto Sagrado as causas deste desvio e dilação (a qual durou quarenta anos inteiros, sendo a distancia do caminho breve, e que se podia vencer em poucos dias) acharemos que foram ,três. Agora nos servem as duas, depois diremos a terceira.
                A primeira causa foi atribuírem a liberdade do cativeiro a Moisés; assim o disseram no cap. XXXII. Moysi enim huic viro, qui nos eduxit de terra Aegypti, ignoramus quid acciderit. A segunda, e ainda mais ignorante (sobre ímpia e blasfema), foi atribuírem a mesma liberdade ao ídolo que de seu ouro tinham fundido no deserto. Assim o disseram também no mesmo capítulo e o apregoaram impiamente a altas vozes: Hi sunt dii tui, Israel, qui te eduxerunt de terra AEgypti.
                Basta, povo descortês, ingrato e blasfemo! Que Moisés e o vosso ídolo foram os que vos livraram do cativeiro do Egito?! Por certo que o não disse assim Deus ao mesmo Moisés, quando lhe deu o ofício e a vara, e o fez com ,tanta repugnância sua instrumento de seus poderes: Vidi afflictionem populi mei in AEgypto et clamorem ejus audivi; et sciens dolorem ejus, descendi ut liberem eum de manibus AEgyptorum, et deducam de terra illa in terram bonam et spatiosam, in terram quae fluit lacte et melle: «Vi — diz Deus — a aflição do meu povo, e ouvi os seus clamores; e porque sei com quão justa razão se queixam, desci em pessoa a livrá-lo das mãos dos Egípcios e tirá-lo daquela terra para outra, que lhe hei-de dar, boa, espaçosa, abundante e cheia de todos os regalos e delícias». De maneira que quem tirou os filhos de Israel do Egito foi Deus, e quem fez os portentos e maravilhas foi Deus, e quem abriu o Mar Vermelho e afogou nele Faraó e seus exércitos foi Deus; e os que atribuem as obras de Deus e os benefícios (de que só a Ele se devem as graças) a Moisés e ao ídolo não merecem ter vida nem olhos para chegar a ver a Terra de Promissão; sendo muito justo e muito justificado castigo que morram e acabem todos antes de chegar o prazo das felicidades, e que, pois tão ingrata e impiamente interpretaram o benefício da primeira promessa, sejam privados de gozar a segunda.
                Eu não nego que em bom sentido se podia chamar Moisés libertador do cativeiro, como também Deus pelo honrar lhe dava esse nome; mas nos homens que deviam dar a Deus toda a glória (pois toda era sua), referirem-se a Moisés, era descortesia; atribuírem-na ao ídolo, era blasfêmia, e não a darem a Deus toda, era ingratidão suma.
                Já Deus, Portugueses, nos livrou do cativeiro, já por mercê de Deus triunfamos de Faraó e do poder de seus exércitos; já os vimos, não uma, mas muitas vezes, afogados no Mar Vermelho de seu próprio sangue. Imos caminhando pelo deserto para a Terra da Promissão, e pode ser que estejamos já muito perto dela, e do último cumprimento das prometidas felicidades. Se há algum tão invejoso dos bens da Pátria e tão inimigo de si mesmo, que queira retardar o curso de tão próspera e feliz jornada e acabar infelizmente, ainda antes de ver o fim desejado dela, negue a Deus o que é de Deus e atribua à liberdade as vitórias e o cumprimento das primeiras promessas que temos visto, ou a Moisés ou ao ídolo. Quem refere a glória dos bons sucessos ao seu valor, à sua ciência militar, ao seu braço, ao seu talento, dá a glória de Deus ao ídolo; por isso se vos escrevem aqui essa mesma liberdade, essas mesmas vitórias e esses mesmos sucessos, assim os que já se viram, como os que restam para se ver, tantos anos antes revelados por Deus. Para que conheça por nossa confissão todo o Mundo que são misericórdias suas e não obras do nosso poder; e para que nós, como efeitos da providência, da bondade e onipotência divina, a Deus só as refiramos todas, e a Deus só louvemos e demos as graças.
                Os inimigos que mais temo a Portugal são soberba e ingratidão, vícios tão naturais da próspera fortuna, que, como filhos da víbora, juntamente nascem dela e a corrompem. A humildade e agradecimento, a desconfiança de nós, a confiança em Deus e o zelo e desejo puríssimo de sua glória, dando-lha em tudo e por tudo, sempre são os meios seguros que nos hão-de sustentar, levar e meter de posse daquelas segundas promessas. E este conhecimento tão grato a Deus, que aprendemos nas noticias de seus futuros, é o primeiro fruto e utilidade que da lição desta nossa História se pode tirar, tão importantemente para a vida como para a vista.
Breve Advertência aos incrédulos
                Mas antes que passemos às outras utilidades, que ficarão para os capítulos seguintes, justo será que fechemos este com a terceira causa do castigo que ponderávamos, a qual refere o Texto Sagrado no cap. XIV dos Números, e pode ser de grande exemplo para outra casta de gente, que são os que a Escritura chama filhos da desconfiança.
                Chegados os doze exploradores da Terra da Promissão, concordaram todos na largueza, bondade e fertilidade da terra; mas exceto Josué e Calef, que - facilitaram a conquista e animavam o povo a ela, os outros, conformemente, instavam que era impossível, assim pela fortaleza e sitio das cidades, como pela valentia, forças e corpulências dos homens, que, comparados com os Hebreus (diziam eles) pareciam gigantes. Enfim, prevaleceu o número contra a razão) (como as mais vezes sucede). Deliberou o povo eleger capitão e voltar-se com ele ao cativeiro do Egito, não bastando a experiência de tantas vitórias passadas e de tantos sucessos e prodígios inauditos, e sobre tudo as promessas divinas tão repetidamente inculcadas, de que Deus os havia de meter de posse daquela terra, para crerem e confiarem que assim havia de ser.
                Esta tão covarde incredulidade foi a última ou a última sem-razão com que acabou de se apurar a paciência divina. E resoluto Deus a não sofrer mais tal gente, nem os perdoar ou dissimular como até ali tinha feito, resolveu que fosse executada neles a sentença de sua própria incredulidade; e pois criam que Deus os não havia de meter de posse da Terra da Promissão, que nenhum deles entrasse nela nem a visse, e que todos morressem primeiro e fossem sepultados naquele deserto. Assim o disse e assim se executou.
                As palavras da queixa de Deus e da sentença, foram estas: Usque quo detrahet mibi populus iste? Quosque non credent mihi in omnibus signis, qae feci coram eis? [...] Vivo ego, ait Dominus, sicut locuti estis, audiente me, sic faciam vobis. In solitudine hac jacebunt cadavera vestra; [...] non intrabitis terram, super quam levavi manum meam, ut habitare vos facerem...
                Leiam e pesem bem estas palavras de Deus os incrédulos e desanimados (vícios ambos, não sei se de pouco, se de mau coração) e vejam o perigo em que os pode meter ou tem metido a sua incredulidade:
                Sicut locuti estis, sic faciam vobis. Os que pela experiência do que têm visto crêem o que está prometido, vê-lo-ão, porque são dignos de o verem; os que não crêem, ou não querem crer, a sua mesma incredulidade será a sua sentenc: já que o não creram, não o verão. Diz Santo Agostinho (cujas excelentes palavras adiante citaremos) que, depois de cumprida uma parte das promessas, não crer que se hão-de cumprir as outras, é não só pertinácia de incredulidade racional, senão crime de ingratidão grande contra o divino Autor dos mesmos benefícios; e a estes incrédulos e ingratos castiga justissimamente sua Providência, com que não cheguem a ver nem gozar o que não querem crer de sua bondade:
                Quo usque non credent mihi in omnibus signis, quae feci coram eis?
Antes da experiência das primeiras maravilhas, alguma desculpa parece que podia ter a incredulidade na fraqueza do receio e desconfiança humana; mas depois de cumpridas e vistas com os olhos tantas cousas, tão grandes, tão maravilhosas e tão raras, não crer ainda as que estão por vir, é rebeldia de ingratidão e dureza da incredulidade, merecedoras ambas de que Deus as castigue com se conformar com elas: Sicut locuti estis, sic faciam vobis.
                Quem quiser saber (segundo o estilo ordinário da justiça e providência divina) se há-de chegar a ver as felicidades que debaixo de sua palavra aqui lhe prometemos, examine o seu coração e consulte a sua fé; do nosso próprio coração nos conta Deus a sentença e de nossas próprias palavras a forma: Exore tuo te judico. Aos que crêem, como ao Centurião, diz Cristo: Sicut credidisti, fiat tibi. E aos que não crêem como os Israelitas do deserto, diz Deus: Sicut locuti estis. Quem crê que se hão-de cumprir aquelas ,tão felizes promessas, para ele será o vê-las e gozá-las: Sicut creditisti, fiat tibi. E quem não crê que se hão-de cumprir, será também para ele não gozá-las, nem vê-las. É lei da liberalidade de Deus pagar a fé com a vista, por isso havemos de ver no Céu os mistérios que vemos na Terra. E este estilo que Deus costuma guardar na glória da outra vida, guarda também ordinariamente nas felicidades desta, quando as tem prometido: os que as crêem, terão vida para as verem; os que as não crerem, morrerão, para que as não vejam. Assim o sentenciou o mesmo Deus outra vez em semelhante caso por boca do profeta Habacuc: Ecce qui incredulus est, non erit recta anima ejus in semetipso, justus autem in fide sua vivet. <O incrédulo - diz Deus - nem terá a vida segura; e ao que crê, a sua mesma fé lhe conservará a vida > Assim sucedeu, porque na guerra que Nabucodonosor fez a Jerusalém, os que creram aos profetas com el-rei Iconias viveram; e os que não quiseram crer, com el-rei Sedecias pereceram. Quem não crê, desmerece a vista; e para que não chegue a ver, tira-lhe Deus a vida. Olhem por si os incrédulos, e se não crêem que havemos de ver, creiam que não hão-de viver: Si non credideritis, non permanebitis — diz o profeta Isaías.


Capítulo V: Segunda utilidade.
A segunda utilidade desta História, e mais necessária aos tempos próximos e presentes, é a paciência, constância e consolação nos trabalhos, perigos e calamidades com que há-de ser allito e purificado o Mundo, antes que chegue a esperada felicidade.
                Quando o lavrador quer plantar de novo em mata brava, mete primeiro o machado, corta, derriba, queima, arranca, alimpa, cava, e depois planta e semeia. Quando o arquiteto quer fabricar de novo sobre edifício velho e arruinado, também começa derribando, desfazendo, arrasando e arrancando até os fundamentos, e depois sobre o novo alicerce levanta nova traça e novo edifício. Assim o faz e fez sempre o supremo Criador e Artífice do Mundo, quando quis plantar e edificar de novo. Assim o disse e mandou notificar a todo o Mundo pelo profeta Jeremias: Ecce constitui te hodie super gentes et super regna, ut evellas, et destruas, et disperdas, et dissites, et aedifices, et plantes.
                Ó gentes, ó reis, ó reinos! Quanto arrancar, quanto destruir, quanto perder, quanto dissipar se verá em vossas terras, campos e cidades, antes que Deus vos replante e reedifique, e se veja restaurado o Universo! Maravilha é que há muitos anos está prometida para esta última idade do Mundo por aquele supremo Monarca, que tem por assento o trono de todo ele: Et dixit qui sedebut in throno: Ecce nova facio omnia. E porque ninguém o duvidasse como cousa tão nova e desusada, acrescenta logo o Evangelista Profeta: Haec verba fidelissima sunt et vera.
                Se deste trabalho e castigo pode também caber alguma parte a Portugal, e se é ele um dos reinos da Cristandade que merece ser mui renovado e reformado, o mesmo Portugal o examine, e ele mesmo, se se conhece, o julgue, lembrando-lhe que está escrito que o juízo e exemplo de Deus há-de começar por sua casa: Judicium incipiet a domo Dei. Mas, ou sejam para Portugal, ou para o resto do Mundo, ou para todos (como é mais certo) nenhuma cousa poderão ter os homens de maior consolação, alívio, nem remédio para o sofrimento e constante firmeza de tão fortes calamidades, do que a lição e condição desta História do Futuro, não pelo que ela tem de nossa, mas pelas escrituras originais de que foi tirada. Este é o fim, diz S. Paulo, e o fruto muito principal .para que elas se escreveram: Quaecumque scripta sunt, ad nostram doctrinam scripta sunt, ut per patientiam et consolationem Scrip turarum spem habeamus.
                A lição das Escrituras, do conhecimento e fé das cousas futuras, é a que mais que tudo nos pode consolar nos trabalhos, porque a paciência tem a sua consolação na esperança, a esperança tem o seu fundamento na fé e a fé nas Escrituras.
                Que maior trabalho ou perigo pode sobrevir a uma república, que ver-se cercada e combatida por todas as partes de poderosíssimos inimigos, só e desamparada, e sem amigo nem aliado que a socorra? Neste estado se viram muitas vezes no tempo de seu governo os Macabeus, de que Deus . sempre os livrou com maravilhosas vitórias e assistências do Céu, pelas quais lhes não foi necessário valerem-se da confederação que naquele tempo tinham com os Romanos e Esparcíatas; e dando conta disso aos mesmos Esparcíatas, Jónatas, que então governava o povo, diz assim em uma epístola: Nos. cum nullo horum indigeremus, habentes solatio sanctos libros qui sunt in manibus nostris, maluimus mittere ad vos renovare fraternitatem et amicitiam: «Mandamos renovar por este nosso embaixador (diz Jonatas) a antiga amizade e confederação» que convosco fizeram nossos maiores, não porque tenhamos necessidade dela e dos vossos socorros, posto que não nos faltam inimigos, guerras, opressões e trabalhos, mas temos sempre em nossas mãos os Livros Santos, em que lemos as promessas divinas, e com eles e com elas nos consolamos e animamos a resistir, pelejar e vencer, como temos vencido e vencemos a todos nossos inimigos.
                No cap. VIII se verá que sem atrevimento ou demasiada confiança podemos chamar a esta nossa História do Futuro livro santo, se houver (como há-de haver primeiro) trabalhos, perigos, opressões, tribulações, assolações, e todo o gênero de calamidades, misérias e açoites, com que Deus costuma castigar, emendar e domar a rebeldia dos corações humanos.
                Para esta ocasião, e tão apertada sai a luz e se oferece ao Mundo este livro santo, no qual acharão os aflitos alívio, os tristes consolação, os atribulados esperança, paciência, constância e fortaleza, tudo por meio da lição e fé das divinas promessas e consolação dos felicíssimos fins a que todos estes trabalhos e tribulações pela providência do Altíssimo são ordenadas.
                É cousa muito digna de notar, que nunca no povo de Israel concorreram tantos Profetas juntos como antes do cativeiro de Babilônia e no mesmo cativeiro. Antes do cativeiro profetizaram por sua ordem Oseas, Isaías, Joel e Amos; no cativeiro profetizou Miqueas, Habacuc Jeremias, Ezequiel, Daniel e Solonias. De maneira que, sendo só doze os Profetas canônicos, os dez deles tiveram por assunto e matéria muito principal de todas suas profecias o cativeiro de Babilônia. Os quatro primeiros, que escreveram mais de seis anos antes daquele tempo, profetizaram que o povo por seus pecados havia de ir cativo, mas que por misericórdia de Deus seria depois restituído à sua pátria. Os outros seis, que profetizaram no tempo do cativeiro, insistiram constantemente em que ele havia de ter fim, determinando sinaladamente o ano da liberdade.
                A razão deste concurso tão extraordinário de Profetas e profecias (nunca antes, nem depois visto) foi porque nunca o povo e reino de Judá padeceu tão grande trabalho e calamidade como o cativeiro ou transmigração de Babilônia, sendo cativos, presos e. despojados de seus bens, arrancados da pátria e levados a terras de bárbaros, e lá oprimidos e tratados como escravos em duríssima servidão.
                Ordenou pois a providência e misericórdia divina, que naquele tempo e estado tão calamitoso, houvesse muitos Profetas e muitas profecias, uns que as tivessem escrito no tempo passado, e outros que as pregassem no presente, para que o povo não desmaiasse com o peso da aflição, e animado com a esperança da liberdade, pudesse com o trabalho do cativeiro. O cativeiro e o tirano os oprimiam; os Profetas e as profecias os alentavam. Cantavam-se as profecias ao som das cadeias, e com a brandura deste som os ferros se tornavam menos duros e os corações mais fortes.
                Foi mui particular neste caso entre todos os outros Profetas o zelo e diligência de Jeremias, porque, tendo ficado em Jerusalém, onde padeceu grandes trabalhos, prisões e perigos da vida por pregar e profetizar a verdade (pela qual finalmente morreu apedrejado), no meio destas opressões e perigos próprios, não esquecido dos alheios, antes mui lembrado do que padeciam os desterrados de Babilônia, escreveu um livro das suas profecias, em que por termos muito claros e palavras de grande consolação lhes anunciava a liberdade e o tempo dela, como se pode ver no cap. XXIX do mesmo Profeta. Levou este livro a Babilônia o Profeta Baruch, companheiro de Jeremias, leu-se em presença de El-Rei Iconias e publicamente de todo o povo, que com ele vivia no cativeiro, e nota o mesmo Baruch que todos com grande alvoroço corriam ao livro. Assim o diz no primeiro capítulo da relação que fez desta jornada, e anda no Texto Sagrado junta com as obras de Jeremias: Et legit Baruch verba libri hujus ad aures Jechoniae, filii Joachim, regis Juda, et ad aures universi populi venientis ad librum
                Não sei se terá a mesma fortuna, e se será recebido e lido com o mesmo animo e afeto este nosso livro da História do Futuro; mas sei que nos trabalhos calamidades e aflições que há-de padecer o Mundo e pode ser cheguem também a Portugal, nem Portugal nem o Mundo poderá ter outro alívio nem outra consolação maior que a freqüente lição e consideração deste livro e das profecias e promessas do futuro que nele se verão escritas. Ao menos não negará Portugal que, no tempo da sua Babilônia e do cativeiro e opressões com que tantas vezes se viu tão maltratado e apertado, nenhuma outra apelação tinha a sua dor, nem outro alívio ou consolação a sua miséria, mais que a lição e interpretação das profecias, e a esperança da liberdade e do ano dela, e do termo e fim do cativeiro que nelas se lia.
                Lia-se na carta e tradição de S. Bernardo que quando Deus alguma hora permitisse que o reino viesse a mãos e poder de rei estranho, não seria por espaço mais que de sessenta anos. Lia-se no juramento de El-Rei D. Afonso Henriques e na promessa do santo ermitão, que, na décima sexta geração atenuada, poria Deus os olhos de sua misericórdia no Reino. Lia-se nas célebres tradições de Gregório de Almeida no seu Portugal Restaurado, que o tempo desejado havia de chegar, e as esperanças dele se haviam de cumprir no ano sinalado de quarenta; e no concurso de todas estas profecias se consolava e animava Portugal a ir vivendo ou durando até ver o cumprimento delas.
                Falando no mesmo cativeiro de Babilônia o mesmo profeta Isaías, e do alívio e consolação que com suas profecias haviam de ter em seus trabalhos aqueles cativos, diz com igual brandura e eloquência estas notáveis palavras: Spiritus Domini super me [...] ut mederer contritis corde et praedicarem captivis indulgentiam [...] ut praedicarem annum placabilem Domino [...] ut consolarem omnes 1ugentes [...] et darem eis coronam pro cinere, oleum gaudii pro luctu... «Desceu sobre mim o Senhor, e ungiu-me com seu espírito, diz Isaías, para que como médico dos aflitos cativos de Babilônia, curasse com o talento de minhas promessas e profecias, a tristeza e desmaio de seus corações». E declarando mais em particular os remédios cordiais que lhes aplicava, aponta nomeadamente dois que mais parecem receitados para o nosso cativeiro que para o de Babilônia: o primeiro, era um ano de indulgência e redenção, em que o cativeiro se havia de acabar: Et praedicarem captivis indulgentiam, annum placabilem Domino; o segundo, era uma coroa trocada pelas antigas cinzas, com que os lutos e tristezas passadas se convertessem em festas e alegrias: Et darem eis coronam pro cinere, oleum gauudii pro luctu.
                Assim o liam os cativos de Babilônia; a nas suas profecias, e assim o líamos nós também nas nossas. E assim como eles não tinham outro remédio na sua dor senão a esperança daquele desejado ano e a mudança daquela prometida coroa, assim nós, com os olhos longos no suspirado ano de quarenta e na esperada coroa do novo rei português, aliviávamos o peso do nosso jugo e consolávamos a pena do nosso cativeiro. E pois este remédio das profecias foi tão presente e eficaz para os trabalhos passados, razão tenho eu (e razão sobre a experiência) para esperar e confirmar que o será também para os futuros.
                Eu não prometo nem espero infortúnios a Portugal; mas ou sejam de Portugal, ou da Cristandade, ou do Mundo os que pode causar nele a necessidade ou a adversidade dos tempos, para todos lhes prometo este remédio: melhor é que sobejem os remédios à cautela, do que faltem à providência.
                E porque não pareça que argumento só de casos e profecias de tempos antigos, sejam os casos e profecias próprias dos nossos tempos e escritas só para eles.
                Ninguém ignora que as profecias do Apocalipse e mais ainda as que estão por cumprir) são próprias dos tempos que hoje correm e hão-de parar no fim do Mundo. Assim o dizem Padres e expositores, e nós o mostraremos em seu próprio lugar. Mas a que fim, pergunto, ordenou a Providência Divina que S. João tivesse aquelas revelações e escrevesse aquelas profecias?
                É pergunta esta de que foi respondida Santa Brígida, como se lê no Livro VI de suas Revelações. Querendo Cristo, por particular favor, que a santa ouvisse a resposta da boca do mesmo Profeta, apareceu ali S. João e disse desta maneira: Tu, Domine, inspirasti mihi mysteria ejus, et ego scrpsi ad consolationem futurorum, ne fideles tui propter futuros casus everterentur: «Vós, Senhor, me revelastes aqueles mistérios, e eu escrevi as profecias deles para consolação dos vindouros e para que os vossos fiéis com os casos futuros se não perturbassem», antes confirmados com as mesmas profecias, estejam neles constantes.
                Este é o fim (posto que não só este) por que Deus revela as cousas futuras, e por que os Profetas antigos, e o último de todos, que foi S. João, as escreveram: para que se veja quão justa e quão útil é, e quão conforme com a vontade e intento de Deus, a diligência com que eu me disponho, e o trabalho de escolher entre todas as profecias que pertencem a nossos tempos, e de as ajuntar, ordenar e tirar à luz para o benefício público. E porque o fruto deste benefício se pode colher nas novidades que promete este mesmo ano em que. somos entrados, aplicando o remédio à ferida ou aos ameaços dela, digo assim com o profeta Amos: Leo rugiet; quis non timebit? Dominus Deus locutus est quis non prophetabit ? Está o leão bramindo? Sim, está; pois agora é o tempo de se ouvirem as profecias e de se saber e publicar o que Deus tem dito: Dominus Deus locutus est. quis non prophetabit? Falem todos nas profecias e entendam-nas todos, pratiquem-nas todos, que agora é o tempo.
                Quando as bramidos do leão se ouvirem em suas caixas e trombetas, soe também em nossos ouvidos por cima de todas elas, o trovão de nossas profecias. Assim lhes chamei, porque são voz do Céu. Leo rugiet, quis non timebit? «Quando bramir o leão, quem não tremerá?»
                Responderão com razão os nossos soldados que não temerão aqueles que tantas vezes os têm vencido; que não temerá Portugal, que é o Sansão que tantas vezes o tem desqueixado. que não temerá Portugal, que é o Hércules que tantas vezes se tem vestido de seus despojos; que não temerá Portugal que é o David que tantas vezes lhe tem tirado das garras os seus cordeiros. Esta é a resposta do valor, e esta pode ser também a da arrogância, de que Deus se não agrada.
                Não confie Portugal em si, porque se não ofenda Deus; confie só no mesmo Deus e em suas promessas, e pelejará seguro. Oh! que bem armados esperarão o leão na campanha os nossos soldados, se tiverem nas mãos as armas e no coração as profecias! Leo rugiet, quis non prophetabit?
                Estas são as trombetas do Céu, de cujo som tremem os muros de Jericó e a cuja bateria nenhuma fortaleza resiste.
                Mas se acaso (que pode ser) houver algum sucesso adverso (que também depois do milagre de Jericó houve nos campos de Hai), não perca Josué nem seus soldados o animo; recorram a Deus e a suas promessas, que por isso nos tem prevenido com elas.
                Costuma a Providência Divina começar suas maravilhas por efeitos contrários, ou para provar nossa fé, ou para mais exaltar sua onipotência. Ele pode mais que todos os poderes humanos, e só uma cousa não pode, que é faltar ao que tem prometido. Deixou Cristo aos discípulos lutar com a tempestade na primeira vigia, na segunda não lhos acudiu, nem na terceira; e quando na quarta, depois de os atemorizar com fantasmas, os socorreu com sua presença, ainda então os repreendeu de pouca confiança. Escureça-se a noite, brame o mar, rompa-se o céu, enfureçam-se os ventos, que Deus há-de acudir por sua palavra; seguro está o Reino em que ele e a palavra de Deus correm o mesmo perigo.

Volume I, Capítulo VI: Terceira utilidade.           
Finalmente (e é a terceira e não menor utilidade desta História), lendo os príncipes da Cristandade, e mais particularmente aqueles que foram ou estão já escolhidas por Deus para instrumentos gloriosos de ,tão singulares maravilhas e maravilhosas felicidades, lendo, digo, no discurso da História do Futuro, as vitórias, os triunfos, as conquistas, os reinos, as coroas e o domínio e sujeição de nações tantas e tão dilatadas, que lhes estão prometidas, na fé e confiança das mesmas promessas se atreverão animosamente a empreendê-las, sendo certo que, medidas só as forças da potência humana, sem ter por fiador a palavra divina, nenhuma razão haveria no Mundo que se atrevesse a aconselhar, nem ainda temeridade que se arrojasse a empreender a desigualdade de tamanhas guerras e a desproporção de tão imensas conquistas. Mas as promessas e as disposições divinas, antecedentemente conhecidas na previsão do futuro, tudo facilitam e a tudo animam.
                Para testemunho desta tão importante verdade e alento dos que a lerem, porei aqui um só exemplo de guerras, outro de conquistas, mas um e outro os maiores que até hoje se viram no Mundo.
                Tinham vindo sobre o povo de Israel os exércitos dos Filisteus com trinta mil carros de guerra e tanta multidão de soldados, que não só compara a Escritura Sagrada q número deles com o da areia do mar, senão com a areia muita: ...sicut arena, quae est in littore maris, plurima. Os Israelitas, reconhecendo sua desigualdade para resistir a tão superior e excessivo poder, diz o mesmo texto que se tinham escondido pelas brenhas, pelas montanhas, pelas covas, pelas grutas, pelas cisternas e por todos os outros lugares mais ocultos e secretos que .sabe inventar o medo e a necessidade.
                .Neste estado de horror e miséria sai de noite o príncipe Jónatas, filho de el-rei Saul, trata de consultar a Deus por um modo de oráculo ou sorte, a que os Hebreus chamavam Phurim, pela qual a Providência divina naquele tempo costumava responder e significar os sucessos futuros; e encaminhando para os alojamentos do inimigo, disse assim ao seu pajem da lança, que só o acompanhava:
                Se quando formos sentidos do exército dos Filisteus, disserem as sentinelas: — Esperai por nós — é sinal que responde Deus que paremos, e que não convém acometer; mas se as sentinelas disserem: — Vinde para cá — é sinal que responde Deus que acometamos, porque os tem entregues em nossas mãos, e que havemos de prevalecer contra eles.
                Ajustados os sinais nesta forma, prosseguiram seu caminho, chegaram perto e foram sentidos. As sentinelas que deram fé dos dois voltos, falaram entre si, concordando em que eram hebreus dos que estavam metidos pelas covas; levantaram a voz e disseram para eles: — Vinde cá, que temos certa cousa que vos dizer. Não foi necessário mais, para que Jónatas entendesse a resposta do divino oráculo, interpretando-a (como verdadeiramente era) conforme o sinal que tinha posto; e na fé e confiança desta profecia, tendo por sem dúvida que havia de vencer, avança animosamente às tendas dos Filisteus, começa ele e o companheiro a matar nos inimigos, toca-se arma, cresce a confusão, perturbam-se os arraiais, trava-se uma brava peleja dos mesmos Filisteus uns contra os outros, cuidando que eram os soldados de Saul. Fogem, atropelam-se, matam-se. Saem das covas os Israelitas, seguem os Filisteus fugitivos, e voltam carregados de despojos. Conhecem-se enfim com imortal glória de Jónatas os autores de tão estupenda façanha, bastando só dois homens armados da confiança de uma profecia, para porem em fugida o mais poderoso exército e alcançarem a mais desigual e prodigiosa vitória.
                A maior e mais nobre conquista que até hoje se intentou e conseguiu no Mundo, foi a famosa de Alexandre Magno. O homem que a empreendeu era o maior capitão que criou a natureza, formou o valor, aperfeiçoou a arte e acompanhou a fortuna. mas se não fora ajudado da profecia, nem ele se atrevera ao que se atreveu, nem obrara e levara ao cabo o que obrou. Bem sei que no dia em que nasceu Alexandre, ardeu o famosíssimo templo de Diana Efesina, onde prognosticaram os Magos que naquele dia entrara no Mundo quem havia de ser o incêndio de toda Ásia.
                Também sei que a quem desatasse o nó gordiano que Alexandre cortou com a espada, estava prometido pelos oráculos de Apolo Délfico o império de todo o Oriente; mas não chamo eu a isto profecias, nem assento considerações e verdades tão sérias sobre fundamentos de tão pouca subsistência, como são os vaticínios da Gentilidade.
                Conta Josefo, no liv. XI de suas Antigüidades, que entrando Alexandre em Jerusalém, saiu a o receber fora do templo o sumo sacerdote Jado, revestido dos ornamentos pontificais, e que Alexandre, vendo-o, se lançara a seus pés e o adorara; e perguntado pela causa de tão desusada reverência, tão alheia de sua grandeza e majestade, respondeu que ele não adorara aquele homem senão nele a Deus, porque reconhecera que aquele era o hábito, o ornato e a representação em que Deus lhe tinha aparecido em Dio, cidade de Macedônia, e exortando-o a que empreendesse a conquista da Pérsia, que naquele tempo meditava, lhe segurara a vitória.
                As palavras de Alexandre (que é bem se veja a sua formalidade) são as seguintes: — Non hunc adoravi, sed Deum, cujus principa desse a resposta do divino oráculo, interpretando-a (como verdadeiramente era) conforme o sinal que tinha posto; e na fé e confiança desta profecia, tendo por sem dúvida que havia de vencer, avança animosamente às tendas dos Filisteus, começa ele e o: companheiro a matar nos inimigos, toca-se arma cresce a confusão, perturbam-se os arraiais, trava-se uma brava peleja dos mesmos Filisteus uns contra os outros, cuidando que eram GS soldados de Saul. Fogem, atropelam-se, matam-se. Saem das covas os Israelitas, seguem GS Filisteus fugitivos, e voltam carregados de despojos. Conhecem-se enfim com imortal glória de Jónatas os autores de tão estupenda façanha' bastando só dois homens armados da confiança de uma profecia, para porem em fugida o mais poderoso exército e alcançarem a mais desigual e prodigiosa vitória.
                A maior e mais nobre conquista que até hoje se intentou e conseguiu no Mundo, foi a famosa de Alexandre Magno. o homem que a empreendeu era o maior capitão que criou a natureza, formou o valor, aperfeiçoou a arte e acompanhou a fortuna. mas se não fora ajudado da profecia, nem ele se atrevera ao que se atreveu, nem obrara e levara ao cabo o que obrou. Bem sei que no dia em que nasceu Alexandre, ardeu o famosíssimo templo de Diana Efesina, onde prognosticaram os Magos que naquele dia entrara no Mundo quem havia de ser o incêndio de toda Ásia.
                Também sei que a quem desatasse o nó gordiano que Alexandre cortou com a espada, estava prometido pelos oráculos de Apolo Délfico o império de todo o Oriente; mas não chamo eu a isto profecias, nem assento considerações e verdades tão sérias sobre fundamentos de tão pouca subsistência, como são os vaticínios da Gentilidade.
                Conta Josefo, no liv. XI de suas Antigüidades, que, entrando Alexandre em Jerusalém, saiu a o receber fora do templo D sumo sacerdote Jado, revestido dos ornamentos pontificais, e que Alexandre, vendo-o, se lançara a seus pés e o adorara; e perguntado pela causa de tão desusada reverência, tão alheia de sua grandeza e majestade, respondeu que ele não adorara aquele homem, senão nele a Deus, porque reconhecera que aquele era o hábito, o ornato e a representação em que Deus lhe tinha aparecido em Dio, cidade de Macedônia, e exortando-o a que empreendesse a conquista da Pérsia, que naquele tempo meditava, lhe segurara a vitória.
                As palavras de Alexandre (que é bem se veja a sua formalidade) são as seguintes:
                Non hunc adoravi, sed Deum, cujus principatus sacerdotii functus est. Nam per somnium in hujus modi eum habitu conspexi, adhuc in Dio civitate Macedoniae constitutus. Dumque mecum cogitassem posse Asiam vincere, incitavit me ut nequaqm negligerem, sed confidenter transirem. Nam per se ducturum meum exercitum dicebat, et Persarum traditurum potentiam: ideoque neminem alium in tali stola videns, cum huc advertissem, habens visionis et probutionis nocturnae memoriam, salutavi. [...] Exinde arbitrar Divino iuvamine me directum Dariumque vixisse, virtutemque solvisse Persarum. Propterea et omnia quae meo.corde sperantur, pro ventura confido.
                No mesmo templo de Jerusalém, refere também Josefo que foram mostradas a Alexandre as profecias de Daniel, particularmente aquela do cap. VIII. Conta ali o profeta que viu dois animais do campo: um, o maioral das ovelhas, com dois cornos muito fortes; outro, o maioral das cabras, com um só corno entre os olhos (o qual depois de quebrado se dividiu em quatro), e que este segundo animal, correndo da parte do Ocidente contra o primeiro, sem pôr os pés na terra, o investira e derribara e metera debaixo dos pés.
                Nestas duas figuras é certo que estava profetizado, na primeira, o império dos Persas e Medos (como explicou o anjo a Daniel), por isso tinha a testa dividida em dois cornos; na segunda, o império dos Gregos, que no princípio esteve unido em uma só pesca, que foi Alexandre, e depois de sua morte se dividiu em quatro, que foram os quatro reinos em que ele o repartiu entre seus capitães. Saiu pois Alexandre da parte ocidental, que é a Macedônia, e sem pôr os pés na terra, pela velocidade com que vencia e sujeitava tudo, investiu, derribou e meteu debaixo dos pés o império dos Persas e Medos, acabando de se cumprir a profecia na última batalha do Tigranes, em que venceu e desbaratou de todo os exércitos de Dario e tomou ou se deixou saudar com o nome de Imperador da Ásia.
                Não parou aqui Alexandre; porque não pararam aqui as profecias de Daniel na visão dos quatro animais referidos no cap. VII. O terceiro era Alexandre, significado no leopardo com quatro asas. Na visão da estátua de Nabuco, referida no cap. II, o terceiro dos metais, que era o bronze, significava também o império de Alexandre; e diz ali o Profeta que reinaria e se faria obedecer de todo o Mundo: Et regnum tertium aliud aereum, quod imperabit universae terrae.
                Em seguimento e confiança destas profecias, partiu Alexandre vitorioso para a conquista que lhe restava do mundo oriental, o qual sujeitou e uniu todo ao seu império, passando o Tauro e o Cáucaso e chegando até os fins do Ganges e praias do mar Índico, que eram então os últimos da terra de onde Hércules e o padre Líbero os tinham colocado.
                Mas foram ainda mais em número e grandeza as nações que venceu e sujeitou Alexandre com a fama mais que com a espada; porque, entrando da volta desta jornada em Babilônia, achou nela os embaixadores de África, de Cartago Espanha, Gália, Itália, Sicília, Sardenha, as quais províncias, em obséquio e reconhecimento de sua potência, se lhe mandaram sujeitar e entregar espontaneamente e entre elas os mesmos Romanos (nome já naquele: tempo famoso no Mundo), como é autor Clitarco, referido e louvado por Plínio no liv. III da História Natural. Tudo certifica ainda com palavras maiores o mesmo Texto Sagrado no exórdio do I Liv. dos Macabeus, dizendo: ...percussit Alexander [...] qui primus regnavit in Graecia, et Darium regem Persarum et Medorum, constituit et praelia multa et oblinuit omnium munitiones, et interfecit reges terrae, pertransiit usque ad fines terrae, et accepit spolia mulitudinis gentium, et siluil terra in conspectu ejus.
                Porém o que mais admira nas conquistas e vitórias de Alexandre, é a desigualdade do poder e o limitado aparato de guerra com que entrou em tão imensa empresa; porque, como refere Plutarco e o prova com graves autores, saiu de Macedônia com menos de quarenta mil homens, bastimentos só para trinta dias, e com setenta talentos para estipêndios, que fazem da nossa moeda quarenta e dois mil cruzados.
                Mas como Alexandre, antes de obrar todas estas maravilhas, com que mereceu o nome e se fez verdadeiramente magno, se tivesse visto a si mesmo melhor retratado nas profecias de Daniel, do que depois se viu nas estátuas de Lisipo nem nas pinturas de Apeles, não é muito que, animado e soprado do espírito das mesmas profecias e cheio da majestade delas, se atrevesse a tão árduas e dificultosas empresas, das quais justamente se duvida (como pôs em questão Justino) se foi maior façanha o intentá-las, ou vencê-las.
                E de aqui se pode desculpar (cousa que não soube nem pôde advertir nenhum dos historiadores de Alexandre, sendo tantos e tão excelentes), de aqui, digo, se pode desculpar aquela mais temeridade que audácia (qualidade, posto que honrosa, indigna de um general prudente e muito mais de um rei, quando conquista o alheio e não defende o próprio), com que Alexandre empenhava sua pessoa e vida e se precipitava muitas vezes aos perigos por cousas leves, sendo a confiança ou o seguro de todos estes arrojamentos, não o domínio que ele tivesse sobre a fortuna — Quam solus omnium mortalium sub potestate habuit — como com discrição gentílica disse dele Cúrcio, mas a previsão e presciência de suas futuras vitórias e do império que lhe estava prometido, e havia necessariamente de conquistar, conforme as profecias de Daniel. E como tinha a vida e as empresas firmadas por uma escritura de Deus ou por três escrituras, e ao mesmo Deus por fiador de sua palavra e promessas, fé era e não audácia, confiança e não temeridade empenhar-se Alexandre nos perigos para conseguir as empresas, e dar exemplo de desprezo da vida a seus soldados para os animar às vitórias. Tanta parte teve a profecia nas ações deste grande capitão e no império deste grande monarca, o qual, se deve a Filipe o ser Alexandre, deve a Daniel o ser Magno!
                Os exemplos que temos domésticos desta mesma utilidade, não são menos admiráveis que os estranhos, assim nas batalhas, como nas conquistas. Era tão inumerável a multidão de Sarracenos que debaixo das luas de Ismael, e dos outros quatro reis mouros, inundaram os campos de Guadiana com intento de tomar Portugal naquele dia fatalíssimo, o primeiro de nossa maior fortuna, que justamente estavam temerosos os poucos portugueses, e seu valoroso príncipe duvidoso se aceitaria ou não a batalha; mas como o velho ermitão, intérprete da Divina Providência, visto primeiro em sonhos e depois realmente ouvido e conhecido, lhe assegurou da parte de Deus a vitória, com aquelas tão expressas e animosas palavras Vinces, Alphonse, et non vinceris — socorrido o animoso capitão e fortalecido o pequeno exército com esta promessa do Céu, sem reparar em que era tão desigual o partido, que para cada lança cristã havia no campo cem mouros, resolveu intrepidamente dar a batalha.
                Na manhã, pois, da mesma noite em que tinha recebido a profecia, acomete de fronte a fronte ao inimigo, sustenta quatro vezes o peso imenso de todo seu poder, rompe os esquadrões, desbarata o exército, mata, cativa, rende, despoja, triunfa; e alcançada na mesma hora a vitória, e libertada a Pátria, pisa glorioso as cinco coroas mauritanas e põe na cabeça, já rei, a portuguesa.
                Isto obraram as profecias daquela noite na guerra, mas ainda mostraram mais os poderes de sua influência na conquista. Quem duvida que foram mais estendidas e gloriosas as conquistas dos Portugueses que as de Alexandre Magno na mesma Índia? Desta conquista de Alexandre disse o seu grande historiador ...Oriente perdomito, aditoque Oceano, quidquid mortalitas cutiebut, impleret. «Domado o Oriente e navegado o Oceano, cumpriu e encheu Alexandre tudo o que cabia na mortalidade.:> Que dissera, se vira as navegações dos Portugueses no mesmo Oceano e suas conquistas no mesmo Oriente? Obrigação tinha em boa conseqüência de lhes chamar imortais. Não chegaram os Portugueses só às ribeiras do Ganges, como Alexandre; mas passaram e penetraram adiante muito maior comprimento e terras do que há do mesmo Ganges a Macedônia, donde Alexandre tinha saído.
                Não venceram só a Poro, rei da Índia, e seus exércitos; mas sujeitaram e fizeram tributárias mais coroas e mais reinos do que Poro tinha cidades. Não navegaram só o mar Indico ou Eritreu, que é um seio ou braço do Oceano, mas domaram o mesmo Oceano na sua maior largueza e profundidade, aonde ele é mais bravo e mais pujante, mais poderoso e mais indômito: o Atlântico, o Etiópico, o Pérsico, o Malabárico, e, sobre todos, o Sínico, tão temeroso por seus tulões e tão infame por seus naufrágios. Que perigos não desprezaram? Que dificuldades não venceram? Que terras, que céus, que mares, que climas, que ventos, que tormentas, que promontórios não contrastaram? Que gentes feras e belicosas não domaram? Que cidades e castelos fortes na terra? Que armadas poderosíssimas no mar não renderam? Que trabalhos, que vigias, que fomes, que sedes, que frios, que calores, que doenças, que mortes não sofreram e suportaram, sem ceder, sem parar, sem tornar atrás, insistindo sempre e indo avante, com mais pertinácia que com instancia?
                Mas não obraram todas estas proezas aqueles portugueses famosos por benefício só de seu valor, senão pela confiança e seguro de suas profecias. Sabiam que tinha Cristo prometido a seu primeiro rei que os escolhera para argonautas apostólicos de seu Evangelho e para levarem seu nome e fundarem seu império entre gentes remotas e não conhecidas; e esta fé os animava nos trabalhos; esta confiança os sustentava nos perigos; esta luz do futuro era o norte que os guiava; e esta esperança a âncora e amarra firme, que nas mais desfeitas tempestades os tinha seguros.
                Maiores contrastes tiveram ainda as conquistas de Portugal na nossa terra que nas estranhas, e mais fortes guerras experimentaram nos naturais que resistência nos inimigos. Quem quiser ver com admiração a tormenta de contradições populares , e de todo o Reino, que por espaço de dez anos padeceram os primeiros descobrimentos das conquistas, leia o grande cronista da Ásia, no IV cap. do I liv., e conhecerá quantas obrigações deve Portugal e o Mundo ao sofrimento, valor e constância do Infante D. Henrique, filho de El-Rei D. João I, autor desta heróica empresa, o qual, como religiosíssimo príncipe que era, e nela principalmente pretendia a glória de Deus, dilatação da Fé e conversão da Gentilidade, mereceu que o mesmo Deus com uma voz do Céu o exortasse a levar por diante o começado, com promessa de seu favor e luz dos gloriosíssimos fins, que por meio de tão dura porfia se haviam de alcançar.
                Assim se conta e escreve por fama e tradição daquele tempo. Com este oráculo divino mais fortalecido o espírito do Infante, não só pôde romper e abrir as portas tão cerradas do Oceano e deixá-las francas e patentes aos que depois vieram, vencidas as primeiras e maiores dificuldades, mas dar animo, valor, guia e esperança aos que, seguindo seu exemplo e empresa, a levaram ao cabo. Desta maneira o Infante D. Henrique, que será sempre de feliz memória, nos ganhou com sua constância as conquistas, conquistando-as primeiro em Portugal, do que fossem conquistadas na África, Ásia, América, e contrastando com igual fortaleza o indômito furor do segundo e quarto elemento (que são o mar e o fogo), que não pudera conseguir sem o socorro da luz do Céu, animado nas contradições e contrariedades presentes com o conhecimento e certeza dos sucessos futuros, para que até nesta parte deva Portugal as suas conquistas aos lumes e alentos da profecia.
                Finalmente, esta última resolução que no ano de quarenta assombrou o Mundo, posto que muito a devamos à ousadia do nosso valor, muito mais a deve o nosso valor à confiança de nossos vatícinios. Que valor sesudo, prudente e bem aconselhado se havia de atrever a uma empresa tão cercada de dificuldades, como levantar-se contra o mais poderoso monarca do Mundo, e restituir-se à sua liberdade, e aclamar novo rei, não longe senão dentro de Espanha, um reino de grandeza tão desigual, sobre sessenta anos de cativo e despojado; sem armas, sem soldados, sem amigos, sem aliados, sem assistências, sem socorros, só e até de si mesmo dividido em tão distantes partes do Mundo? Mas como havia outros tantos anos que a profecia estava dando brados aos corações, em que nunca se apagou o amor da Pátria, e a saudade do rei, e o zelo da liberdade, dizendo e publicando a todos que o desejado tempo dela havia de chegar no ano felicíssimo de quarenta, em que o novo rei seria levantado; a promessa que sempre a conservou nos corações, a levantou a seu tempo nas vozes, e ela foi a que deu o rei ao Reino, o Reino à Pátria, a Pátria aos Portugueses, e Portugal a si mesmo; e este seja entre todos o maior exemplo, assim das nossas guerras como das nossas conquistas, pois tudo o que tínhamos vencido e conquistado em quinhentos anos, alentados das promessas do Céu, o pudemos restaurar um dia.
                E se tanto tem valido e importado a Portugal o conhecimento de seus futuros, em todos os casos maiores que podem acontecer a um reino; se debaixo desta fé nasceu, quando recebeu a coroa. se debaixo desta fé cresceu, quando lhe acrescentou as conquistas; se debaixo desta fé se restaurou, quando as restituiu a elas e se restituiu a si mesmo, oh! quanto mais necessário lhe será a Portugal, e quanto mais útil e importante esta mesma fé e conhecimento de seus futuros sucessos para aquelas empresas novas, e muito maiores, que nos tempos que hão-de vir (ou que já vêm) o esperam! Não se poderá compreender a grandeza e capacidade desta importância senão depois de lida toda a História do Futuro, na qual só se medirá bem a imensidade do objeto com a desigualdade do instrumento.
                Mas quem quiser desde logo fazer de algum modo a conjectura desta desproporção, tome os compassos a Portugal e ao Mundo, e pergunte-se a si mesmo se se atreve a igualar estes paralelos. É porém, tão poderoso contra todos os impossíveis o conhecimento e fé do que há-de ser representado no espelho das profecias, que nenhuma empresa pode haver tão desigual, nenhuma tão armada de perigos, nenhuma tão defendida de dificuldades, que debaixo do escudo desta confiança se não intente, se não avance, se não prossiga, se não vença. Da conquista espiritual do Mundo se pode fazer bom argumento para a temporal, pois é mais forte a guerra e mais dura resistência a dos entendimentos que a dos braços.
                Quis Deus que a Igreja, que é o seu reino, fundada pelos Apóstolos, se estendesse por seus sucessores em todo o Mundo; e quais foram as armas com que Deus os fortaleceu para que não temessem ou duvidassem a empresa e se dispusessem animosamente a tão estranha conquista?
                Advertiu com profundo juízo Primásio que fora o Apocalipse de S. João, porque, lendo os soldados evangélicos naquelas profecias quão largamente se havia de propagar a mesma Igreja e quão prodigiosas vitórias havia de alcançar a Fé contra todos os inimigos, este mesmo conhecimento os animava a quererem ser (como foram) os instrumentos gloriosos delas. Segurou-lhes Deus as vitórias, para que não duvidassem cometer as batalhas: Post exortum autem Ecolesiae, quae jam fuerat apostolorum praedicatione funduta, revelari oportuit — diz Primásio — qualiter esset latius propaganda, vel quali etiam fine contenta, ut praedicatores veritatis, hujus cognitionis fidutia freti, indubitanter aggrederentur pauci multos, inermes armatos, humiles superbos, infirmi nobiles, vivi tamen spiritualiter mortuos. Não se pode dizer, nem mais certa, nem mais elegantemente, se exceptuarmos a desproporção de poucos a muitos, pauci multos. Em todas as outras considerações foi mais desigual esta empresa que as que eu prometo ou hei-de prometer; e se a esta se atreveram poucos homens sem armas, sem estimação, sem nobreza, sem poder, contra tantos armados arrogantes, nobres e poderosos, só porque no conhecimento das profecias tinham segura a felicidade e fim da empresa, porque se não atreverão à mesma empresa, e na confiança das mesmas profecias, aqueles em quem o poder se iguala com as armas, as armas se ilustram com a nobreza e a nobreza compete com a estimação e com a fama, ainda que sejam poucos contra muitos?
                E digo na confiança das mesmas profecias, porque uma boa parte da nossa História (como veremos em seu lugar) são as do mesmo Apocalipse. Lerão os Portugueses, e todos os que lhes quiserem ser companheiros, este prodigioso livro do futuro, e com ele embraçado em uma mão e a espada na outra, posta toda a confiança em Deus e em sua palavra, que conquista haverá que não empreendam, que dificuldades que não desprezem, que perigos que não pisem, que impossíveis que não vençam?
                Ao conhecimento antecedente dos futuros chamou discretamente S. Gregório escudo fortíssimo da presciência, em que todas as adversidades e golpes do Mundo se sustentam, se reparam e se rebatem: Et nos tolerabilius mundi mula suscipmus, si contra haec per prtescientiae clypeum munimur. Que vem a ser esta nossa História do Futuro, senão escudo da presciência - praescientia, clypeum? Armados com este escudo, que trabalhos, que perigos nos pode oferecer o mar, a terra e o Mundo, e que golpes nos pode atirar com todas as forças de seu poder, que não sustentemos nele com animosa constância? Quem haverá que debaixo deste escudo não empreenda as mais dificultosas conquistas, nem aceite as mais arriscadas batalhas, e não vença e triunfe dos mais poderosos inimigos, se as empresas no mesmo escudo vão já resolutas, as batalhas vão já vencidas e os inimigos já triunfados?
                Fingiu o príncipe dos poetas latinos, que pediu Vênus, mãe de Eneias, ao deus Vulcano lhe fabricasse umas armas divinas, com que entrasse armado na dificultosíssima conquista de Itália, com que vencesse os reis e sujeitasse as nações belicosíssimas que a dominavam, com que vitorioso fundasse naquelas terras o famosíssimo Império Romano, que pelos fados lhe estava prometido. Forjou Vulcano as armas, e no escudo, que era a maior e principal peça delas, diz que abriu de subtilíssima escultura as histórias futuras das guerras e triunfos romanos, compondo e copiando os sucessos pelos oráculos e vaticínios dos profetas e pelas notícias próprias que tinha, como um dos deuses que era participante dos segredos do supremo Júpiter.

...Clypei non enarrabile textum
Illic res Italas, romanotumque triumphos,
Haud vatum ignarus, venturique inscius aevi,
Fecerat igni potens: illic genus omne futurae
Stirpis ab Ascanio, purgnataque ordine bella.
(Virgílio, Aeneid . 8. )

O ofício e obrigação dos poetas não é dizerem as cousas como foram, mas pintarem-nas como haviam de ser ou como era bem que fossem; e achou o mais levantado e judicioso espírito de quantos escreveram em estilo poético, que para vencer as mais dificultosas empresas, para conquistar as mais belicosas nações e para fundar o mais poderoso e dilatado império, nenhuma arma poderia haver mais forte, nem mais impenetrável, nem que mais enchesse de ânimo, confiança e valor o peito que fosse coberto e defendido com ela, que um escudo formado por arte e sabedoria divina, no qual estivessem entalhados e descritos os mesmos sucessos futuros que se haviam de obrar naquela empresa. Assim armou o grande poeta ao seu Enéias ; e este mesmo escudo, não fabuloso, senão verdadeiro, e não fingidos depois de experimentados os sucessos, senão escritos antes de sucederem, é propriamente, e sem ficção, o que nesta História do Futuro ofereço, Portugueses, ao nosso rei.
                Dobrado de sete lâminas dizem que era aquele escudo; e também o da nossa História, para que em tudo lhe seja semelhante, é publicado em sete livros. Nele verão os capitães de Portugal, sem conselho, o que hão-de resolver; sem batalha, o que hão-de vencer; e sem resistência, o que hão-de conquistar. Sobre tudo se verão nele a si mesmos e suas valorosas ações, como em espelho, para que, com estas cópias de morte-cor diante dos olhos, retratem por elas vivamente os originais, antevendo o que hão-de obrar, para que o obrem, e o que hão-de ser. para que o sejam.