Tuesday 11 June 2019

Tuesday's Serial: "História do Futuro" by Fr. António Vieira (in Portuguese) VIII


Capítulo VI - Prossegue a mesma matéria, apontam-se os títulos e razões do Reino temporal de Cristo
                O principal fundamento dos que não admitem no Reino de Cristo o império e domínio temporal, é por não haver título, como eles dizem, ao qual compita e seja devido aquele domínio; e para que se veja manifestamente a debilidade deste fundamento e tragamos à nossa sentença os mesmos autores que em seguimento deles abraçam a contrária, apontaremos e provaremos aqui, com a maior brevidade que nos for possível, os títulos por que é devido e compete a Cristo em quanto homem o Império e domínio supremo, não só espiritual, senão também temporal de todo o Mundo. São estes títulos seis, todos legítimos e conforme o direito: o primeiro por natureza, o segundo por herança, o terceiro por doação, o quarto por compra, o quinto por guerra justa, o sexto por eleição e aceitação de todos os homens, como iremos mostrando pela mesma ordem.
                Primeiramente, é Cristo Rei e universal Monarca do Mundo por natureza, porque por meio da união da divindade à humanidade, a qual se inclui essencialmente na natureza de Cristo, sem algum outro concurso ou condição extrínseca, da parte de Deus nem da parte dos homens, pertence ao mesmo Cristo em quanto homem o domínio e império universal de tudo o criado, e por ela fica constituído, ou por ela (sem ninguém o constituir) é Rei e Senhor e Monarca supremo de todos os reis, de todos os reinos e de todos os impérios do Mundo. Por isso Cristo no Apocalipse trazia o título de Rex regnum e Dominus dominantium, escrito, como diz o texto, in femore, que significa a geração humana, para mostrar que o ser rei de todos os reis e senhor de todos os senhores lhe convinha e era seu por sua própria natureza. E por isso o nome que lhe puseram na circuncisão foi de Jesus, que quer dizer salvador, e não o de Cristo, que quer dizer ungido, porque o ser ungido por Rei e universal Monarca do Mundo não lhe pertencia por imposição divina ou humana, senão por natureza própria sua, ou por ser quem era. Salvador por obediência, mas ungido por natureza. E assim como antigamente se faziam ou consagravam os reis pelo óleo que eram ungidos, assim a união hipostática em Cristo foi uma verdadeira e própria unção com que juntamente com o ser e a natureza recebeu o poder e a Monarquia do Mundo.
                Este é o único fundamento do Padre Vasques, a quem geralmente seguiram todos os que depois dele escreveram. Do qual Vasques diz Salazar que foi o primeiro a quem a Teologia deve os sólidos e verdadeiros princípios em que fundou o Império temporal de Cristo. E posto que Arriaga, por não faltar ao costume de impugnar tudo, não reconheceu na unção da união hipostática mais que a propriedade e energia da metáfora, nós veneramos nela a autoridade de David, que assim o disse no Salmo XLIV: Unxit te Deus, Deus tuus, oleo laetitiae pre consortibus tuis e a explicação de S. Agostinho e S. Gregório Nasianzeno, e de outros grandes Padres que. assim o entenderam. Porei suas palavras no capítulo seguinte pelas não repetir duas vezes.
                O segundo título do Império de Cristo é por herança, porque, sendo Cristo filho natural de Deus, conforme o texto de S. Paulo — quod si filius et haeres — lhe pertence a Cristo o título de herdeiro do domínio e império universal do Mundo, de que Deus é absoluto Senhor. Assim o disse o mesmo Deus por boca do Profeta Rei: Postula a me et dabo tibi gentes hæreditatem tuam et possessionem tuam terminos terræ. E S. Paulo, falando também de Cristo: Quem haeredem universorum per quem fecit et sæcula. E o mesmo Cristo, na parábola da vinha: Hic est hæres, venite et occidamus eum. E neste título convêm todos os teólogos acima alegados, como também no seguinte:
                É o terceiro título, o de doação, o qual se acha mais expresso que todos, assim no Velho como no Novo Testamento, no Salmo pouco antes alegado: Dabo tibi gentes hæreditatem tuam; e no salmo...: Omni subjecisti sub pedibus ejus; as quais palavras entende S. Paulo de Cristo, no I capítulo da Epístola aos Hebreus. O Anjo à Senhora, no capítulo II de S. Lucas: Dabit illi dominus Deus sedem David patris ejus et regnabit in domo Jacob. S. João, no capítulo III: Sciens quia omnia dedit ei pater in manus. O mesmo Cristo no capítulo...: Omnia mihi tradita sunt a Patre meo. E no capítulo...: Data est mihi omnis potestas in cælo et in terra.
                O título da compra, que é o quarto, parece que cai mais imediatamente sobre os homens que sobre o Mundo, mas ao primeiro domínio se segue necessária e naturalmente o segundo, assim como o que é senhor do escravo fica juntamente sendo de todos os seus bens. E é conclusão certa na teologia, e de grande glória não só de Cristo mas nossa, que pelo título da Redenção não só ficamos vassalos deste soberaníssimo Monarca, senão verdadeiramente escravos seus, comprados com o preço de seu sangue: empti enim estis pretio magno: O sexto e último título do Império de Cristo dizíamos que era por consentimento, aceitação e como eleição de todas as nações do Mundo. Este título é o mais natural e jurídico entre os homens, em cujas comunidades, quando querem viver juntos e politicamente, pôs Deus, como autor da natureza, o poder e jurdição suprema de eleger e nomear príncipe. Assim o tem a comum sentença de todos os juristas teólogos, e o alcançaram e ensinaram antes deles, por lume natural, Aristóteles no Livro III das Políticas, e Platão no Diálogo de Regno e nos livros — De republica. Mas em Cristo parece que não pode ter 1ugar este título porque, sendo o Monarca universal de todo o Mundo e de todos os homens, era necessário que os mesmos homens conviessem todos este consentimento, eleição ou aceitação, como acima dizíamos, e este consentimento comum nunca jamais o houve no Mundo, antes, como dizem alguns teólogos, não é possível havê-lo. Contudo digo que não faltou ao Império e Monarquia universal de Cristo este último título do consentimento e aceitação universal dos homens, como agora mostrarei. E peço licença aos que quiserem ler este discurso para meditar um pouco mais nele, por ser pensamento novo e matéria até agora não tratada, à qual é necessário abrir os alicerces e lançar os primeiros e sólidos fundamentos, prometendo aos que fizerem esta detença não perderão o fruto do tempo que nela gastarem, pois verão por grandes notícias e não vulgares da Antigüidade quão certa e concertadamente concorre a novidade e verdade desta nossa consideração ao maior estabelecimento do Reino de Cristo.
                Alberto Pighio (para que de todo não entremos neste novo caminho sem alguma guia) no Livro V da Hierarchia Ecclesiastica, capítulo III, arrostando a opinião de muitos e graves autores, os quais têm para si que Cristo foi legitimo Rei do Reino de Israel, o título em que funda este direito é o consentimento, aceitação e expectação geral, com que Cristo, verdadeiro Messias, era esperado de todo aquele povo como seu verdadeiro Rei e Senhor, prometido aos primeiros Patriarcas da sua nação.
                Nec Pilato (diz este autor) nec Caesari ullum legitimum jus in regnum Judaeorum, sed si cuiquam maxime competiit Christo, quem semper expectaverunt sibi regem f ore in lege promissum. E para ,prova desta geral aceitação e consentimento com que todo o povo hebreu tinha recebido por seu Rei ao prometido Messias, traz o mesmo Alberto Pighio a história do Livro I dos Macabeus, Capítulo XIV, em que se refere como os Judeus por consentimento comum elegeram por seu príncipe Simão e seus descendentes com a cláusula, porém, que o seriam somente até que viesse o Messias, a cujo Reino e direito não queriam prejudicar. Judæi (diz o texto) consenserunt eum Simonem esse ducem suum [...] in aeternum, donec surgat propheta fidelis. Sobre as quais palavras conclui assim o dito autor: Vides omnium Judeorum votis et expectatione semper expectatum Christum et Messiam in lege promissum, regem sibi fore; nam ad ejus usque aduentum Simoni atque e jus posteritati regnum stabilierunt, quod illi adventanti legitimo jure deberi significaverunt, velut expresse protestantes in ejus praejudcium et injuriam nihl se velle facere.
                De maneira que o título com que tão grande teólogo e jurista defende o direito de Cristo ao Reino de Israel é aquele geral consentimento, espectação e como eleição com que todo o povo judaico tinha aceitado como seu verdadeiro Rei o futuro Messias, e como tal o esperava.
                Assim explica em próprios termos esta sentença de Alberto Pighio, Alonço de Mendoça acima citado, cujas palavras quero também referir aqui, porque não pareça a acomodação da dita sentença levada de algum modo por nós ao intento em que nos serve: Alii (diz Mendoça, referindo-se a Pighio) alio titulo Christi regnum ab aduersariis vindicant; nam dicunt ex consensu et quasi electione populi judaici Christum fuisse illius gentis regem; nam cum ardentissime Messiam expectarent, et tenacissime crederent regem itsum futurum temporalem, ideo pblico totius gentis decreto in ipsum sua suffragia conjecerant et in regem elegerant.
                De toda esta sentença assim entendida me não serve mais que o exemplo e o modo de dizer ou filosofar; e digo que, assim como em respeito do Reino de Israel, concorreu ou pode concorrer em Cristo o título da aceitação e como eleição geral daquele povo, pela espectação, desejo e consentimento comum com que era esperado de todos por seu legítimo, supremo e verdadeiro Rei, assim concorreu e concorre o mesmo título no Reino e Monarquia universal de Cristo, em respeito de todo o Mundo e de todos os homens e nações dele, nos quais houve o mesmo consentimento comum, o mesmo desejo e a mesma espectação, como logo mostraremos.
                Nem impede ou encontra a verdade ou legitimidade deste título o ser o mesmo Rei Cristo primeiro eleito, ungido, prometido e dado por Deus, porque todas estas circunstâncias e condições concorrem no exemplo alegado (o qual não é semelhante se não o mesmo) e o mesmo temos nas eleições dos dois primeiros reis de Israel, Saul e Daniel, os quais por primeiro foram ungidos pelo Profeta Samuel por mandado de Deus, e depois novamente aceitos, aclamados e cada um deles ungido pelo mesmo povo, como consta da História Sagrada, no I e II Livro dos Reis.
                E que em todos os homens e nações do Mundo houvesse geralmente o mesmo consentimento comum, e o mesmo desejo, e a mesma espectação acerca do Reino e Monarquia universal de Cristo sobre todos eles, que é o ponto e suposição em que fundamos este novo título, deixados outros muitos textos de menor clareza, apontarei somente dois, que se não podiam desejar nem ainda fingir mais expressos. O primeiro é do capítulo penúltimo do Gênesis, na bênção que lançou Jacob a seu filho Juda, no qual, falando do Messias prometido, como entendem uniformemente todos os autores católicos, e antes da vinda de Cristo, entenderam também sempre todos os Hebreus, diz assim: Non auferetur sceptrum de Juda et dux de femore ejus, donec veniat qui mittendus est, et ipse erit expectatio gentium: «Não faltará o cetro de Judá nem príncipe de sua descendência até que venha o que há-de ser mandado, e este será a espectação das gentes.» E o Profeta Ageu, no. capítulo II, falando da mesma vinda de Cristo (como é de fé que falava, porque assim o explicou S. Paulo na Epistola aos Hebreus, capítulo XII): ...ego commovebo caelum et terram et mare et aridam; et movebo omnes gentes, et veniet desideratus cunctis gentibus. Daqui a um pouco (diz Deus) «moverei o céu e a terra, o mar e todo o Mundo, e moverei todas as gentes e virá o desejado de todas elas»
                De sorte que, antes de Cristo vir ao Mundo, não só era Ele o desejado e esperado do povo de Israel, senão o esperado e desejado de todos os povos e de todas as gentes, porque todos o esperavam por seu Rei e natural Senhor, e não só por Rei particular dos Judeus, senão por Monarquia universal de todas as outras nações e reinos do Mundo. Esta é a razão e o mistério por que os três reis do Oriente (em que se representavam, como diz a glossa, as três partes do Mundo até aquele tempo conhecido) sendo gentios, vieram adorar Cristo e oferecer-lhe tributos.
                Sobre a nação daqueles reis, e se eram só de uma ou de diferentes nações, há variedade entre os Doutores. S. Jerônimo quer que fossem da Arábia Feliz, outros os fazem da Pérsia, outros da Média, outros da Etiópia. Eu tenho por mais provável que ao menos parte deles eram de regiões mais distantes, e verdadeiramente da nossa Índia Oriental, conforme profecia de David: Reges Tharsis et insula numera offerent, reges Arabum et Saba dona adducent. Porque aquelas palavras reges Tharsis et insule, conforme a significação mais recebida, querem dizer reis ultramarinos, o que se não verifica sem grande impropriedade nos reis da Arábia e Sabeia com respeito da Palestina.
                Mas de qualquer modo que seja, o certo e sem controvérsia é que todos eram reis gentios. Pois se eram reis gentios, e de nenhum modo sujeitos ao domínio da república hebréia, que razão ou motivo tiveram para vir adorar um menino que eles mesmo conheciam e diziam que era Rei dos Judeus? Ubi est qui natus est rex Judaeorum?
                A razão e motivo que tiveram foi (como bem notou Almaino) porque sabiam e criam que aquele rei dos Judeus novamente nascido não era rei particular (como os outros reis hebreus) de uma só nação ou de um só reino, senão Rei, Monarca e Senhor universal de todos os reinos e de todas as nações, e por isso como o Rei verdadeiro e Senhor universal de todos os reinos e de todas as nações do Mundo, e por isso como a rei verdadeiramente seu, o vinham adorar e reconhecer, e render-lhe a devida obediência e vassalagem: debitam ei seu vero eorum regi et domino prestantes obedientiam.
                De sorte que antes de Cristo nascer e aparecer no Mundo, e quando somente estava profetizado e prometido já às nações do Universo, não só a hebréia, senão as dos gentios a tinham aceitado e querido, e por certo modo de eleição segunda e humana escolhido depois de Deus para seu futuro Rei e Senhor, e como tal o esperavam todos, e era desejada de todos a sua vinda: Ipse erit expectatio gentium; veniet desideratus cunctis gentibus.
                Só vejo que podem reparar com muita razão os doutos, e argüir contra esta nossa suposição (como argüiu S. Agostinho contra este último texto) que não podia ser que as nações dos Gentios, e .muito menos todas elas, esperassem e desejassem o Messias antes da sua vinda; pois antes de Cristo vir ao Mundo, nem a fé ou a esperança de que havia de vir se tinha anuncia do ou manifestado às nações dos Gentios, senão somente aos Hebreus.
                É tão forçoso e ao parecer tão evidente este argumento que, vencidos da força dele os maiores intérpretes da Escritura, excogitavam aos dois textos referidos as explicações que neles se podem ver, as quais, quando não façam alguma violência aos mesmos textos, ao menos não enchem o sentido de suas palavras, porque aquele erit expectatio gentium e aquele veniet desideratus cunctis gentibus verdadeiramente significam própria espectação e próprio desejo, com que as nações dos Gentios todas (geral e moralmente falando) ao menos algum tempo esperassem e desejassem a vinda do prometido e futuro Rei.
                Assim é e assim foi, e assim se cumpriu uma e outra profecia, e assim digo se devem entender ambas em toda a capacidade do seu sentido próprio e natural. E para que se veja que não era cousa impossível nem dificultosa ser a vinda do Messias desejada e esperada geralmente de todas as nações gentílicas, mostrarei aqui os modos e os meios mais prováveis e certos por onde o conhecimento e esperança do futuro Messias não só podia chegar, mas com efeito chegou, ou a todas ou a quase todas as nações de todo o que naquele tempo se chamava Mundo.
                O primeiro meio é a tradição continuada desde Adão até Noé, cujos três filhos, Sem, Cam e Jafet foram os segundos povoadores do gênero humano, no qual, enquanto se conservou unido, continuou também unida a mesma tradição, e depois que na Torre de Babel se dividiram os homens e as línguas, e se começaram novas nações, que encheram o Mundo, também com elas se espalhou pelo mesmo Mundo aquela noticia e esperança recebida de seus antepassados, pois é certo que com a mudança das línguas não perderam os homens a memória nem a ciência.
                Este discurso é tão natural que não havia mister autor. Mas temos para maior confirmação dele o testemunho de S. Pedro Crisólogo, no Sermão 157, o qual, declarando o meio por onde os magos puderam entender que a estrela significava o Messias e que este havia de nascer na Judéia, diz que tinham aprendido e sabido assim por doutrina e tradição de seus maiores, derivada desde Noé. Non chaldea arte, sed de prisca sanctorum traditione majorum; erant isti de genere Noe, etc. E o autor do Imperfeito na humildade, II, sobre S. Mateus, tomando esta tradição mais perto da fonte, e referindo-se aos tempos de Set, filho terceiro de Adão, depois de Abel, conta haver ouvido de certo livro escrito com o nome do mesmo Set, o qual se conservava em uma nação das últimas partes do Oriente, junto ao mar Oceano, e que neste livro estava descrita a aparição futura daquela estrela, e os dons que se haviam levar e oferecer ao Rei nascido que ela significava, e que todas estas notícias se tinham conservado entre os doutos e estudiosos daquela gente por tradição de pais a filhos. Audivi aliquos (diz ele) referentes de quadam scriptura, et si non certa tamen non destruente fidem, sed potius delectante, quoniam erat quaedam gens sita in ipso principio Orientis juxta Oceanum, apud quos ferebutur quaedam scriptura, irscripta nomine Seth, de apparitura hac stella, et muneribus ei hujusmodi offerendis, quae per generationes studiorum hominum patribus referentibus filiis suis habebatur deducta.
                Até aqui este autor, chamado o Imperfeito, por deixar imperfeita e não acabada a obra que comeu, o qual querem muitos que seja S. João Crisóstomo. E posto que não tem por certo aquele livro, e que só refere a fama, por ser de tão duvidosa antiguidade, não nega, porém, antes aprova a tradição do futuro Messias, que entre os Gentios se conservava, e da nova estrela que havia de anunciar o seu nascimento.
                Esta é a opinião comum dos Padres, como se pode, ver em Orígenes, S. Basílio, S. Cipriano, S. Jerônimo, S. Gregório Nasianzeno, Teofilato, Eutímio, Ambrósio, S. Máximo, S. Anselmo, Procópio, .S. Tomás e S. Leão Papa, cujas palavras citaremos depois.
                O outro meio por onde os Gentios puderam vir em conhecimento da vinda e império universal do Messias, que os Judeus esperavam, foi a grande comunicação que em todas as partes do Mundo tiveram sempre com os mesmos Gentios, e os mesmos Gentios com os Judeus, entre os quais era tão vulgar e celebrada aquela esperança, que o nome com que vulgarmente chamavam ao Messias era o Esperado, ou o que há-de vir, como se vê nos termos que falaram os discípulos ou embaixadores do Baptista, quando perguntavam a Cristo: Tu es qui venturus es, an alium expectatamus?
                Era Jerusalém antigamente a mais formosa cidade e o maior império do Mundo situado no meio de todo ele, que por isso se chamava Umbellicus terrae, e como tal concorriam a ela de todas as partes infinitas gentes de todas as nações e ainda de todas as cores. Isto é o que tanto celebrava David naquela cidade em cuja fundação e formosura tinha ele tão grande parte: Glorosa dicta sunt de te, civitas Dei, Memor ero Rahab, et Babylonis scientium me. Ecce alienigenæ et Tyrus et populus AEthiopum hi fuerunt illic. Numquid Sion dicet: Homo et homo natus est in ea, et ipse fundavit eam Altissimus? Dominus narrabit in scripturis populorum et principum, horum qui ferunt in ea. Que gloriosas cousas se contam de ti (diz David) e se escrevem nas escrituras de todos os povos, ó cidade de Deus! Em ti se acham todas as diferenças de homens, que isso quer dizer homo et homo, homens de todas as línguas; homens de todas as cores, homens de todas as nações e partes do Mundo; em ti se acham todos os homens de África, como são os de Etiópia; em ti os da Ásia, como são os de Babilônia; em ti os da Europa, como são tantos outros estrangeiros; em ti se vêem homens brancos, como os Tírios; em ti homens negros, como os Etíopes; em ti homens de todas as outras cores meãs, como são os asiáticos; e de todas estas gentes, que é mais, não só freqüentam tuas ruas os do povo, mas também as passeiam os príncipes — populorum et principum! Mas o que sobretudo é digno de maior memória, e o que sobretudo te faz gloriosa, ó cidade santa, é que todos estes, vindo a ti, aprendem o que dantes ignoravam, e sabem o que dantes não sabiam, porque conhecem a Cristo.
                Este é o sentido literal das palavras scientium me; porque o mesmo Cristo é o que falava neste Salmo por boca de David, como dizem comumente todos os intérpretes. E se no tempo de David era tão freqüentada a cidade de Jerusalém de todas as nações do Mundo, que seria no tempo de seu filho Salomão, depois de edificado o templo, primeira maravilha do mesmo Mundo, se o mesmo Salomão não fora maior maravilha! Para ver e ouvir estas duas maravilhas, e muito mais a segunda, diz o Texto Sagrado no III Livro dos Reis, cap. IV, que vinham de todos os povos e de todos os reis da Terra a Jerusalém pessoas enviadas por eles (que é certo seriam os maiores sábios dos mesmos povos e reinos) os quais, depois de ouvirem e admirarem em presença a sabedoria de Salomão, iam contar e ensinar a suas terras e príncipes o que dele tinham ouvido e aprendido. Et veniebant de cunctis populis ad audiendam sapientiam Salomonis, et ab universis regibus terræ qui audiebant sapientiam ejus.
                E quem poderá duvidar que um dos principais mistérios que Salomão ensinava naquela cadeira universal do Mundo era o da fé e esperança do futuro Messias, filho e descendente seu, e que a maior maravilha que levavam para contar em suas terras os que tinham ouvido aquele famoso oráculo era que, sendo tão admirável a sabedoria e grandeza de Salomão, ainda havia de ter o mesmo Salomão um descendente que fosse mais sábio e maior que ele, plusquam Salamone! Assim o dizem expressamente neste lugar .., e se conformam com o exemplo da Rainha de Sabá, que, depois de ouvir a Salomão, foi a primeira que pregou nesta fé e esperança do Messias no seu Império de Etiópia, e em sinal da mesma fé introduziu em todo ele a circuncisão, que era uma protestação pública dos que a professavam.
                Mas quando nos faltavam estes testemunhos do Testamento Velho, bastava um só do nosso para abundantíssima prova das muitas nações de Gentios que vinham ordinariamente e residiam em Jerusalém, pois só no dia de Pentecoste, ao som daquele trovão do céu, soubemos que acudiram ao convento e ouviram a primeira pregação de S. Pedro, quando menos, dezessete gêneros de homens de línguas e nações diferentes — Partos, Medos, Persas, Elamitas, Mesopotamios, Judeus, Capadoces, Pontos, Asianos, Frígios, Panfílios, Egipcios, Africanos, Cirenos, Romanos, Cretenses, Arabes e outros convertidos das gentilidades, que chamavam com nome geral prosélitos, que quer dizer novos, assim como hoje os judeus convertidos à Fé de Cristo se chamam cristãos-novos . Et quomodo nos ( diziam todos estes no cap. II dos Atos dos Apóstolos) audivimus unusquisqe linguam nostram in qua nati sumus? Parthi et Medi, et AElamitæ, et qui habitant Mesopotamiam, Judaeam et Cappadociam, Pontum et Asiam, Phrygiam et Pamphiliam, et AEgyptum et partes Liyæ, quæ est circa Cyrenen, et advene Romani; Judaei quoque et proselyti, Cretes et Arabes, audivimus eos loquentes nostris linguis magnalia Dei. Onde se deve muito advertir que, quando isto aconteceu, já a. cidade de Jerusalém e o povo e república dos Hebreus estava quase arruinada, e não conservava a quarta parte da grandeza a que nos tempos de sua maior opulência tinha chegado. E se agora era tão freqüentada de nações estrangeiras, que seria nos tempos passados?
                Mas se importou muito para se estender a notícia do Messias por todo o Mundo a comunicação que os Gentios tinham com os Judeus em suas próprias terras, muito mais ajudou e adiantou a mesma notícia a muito maior comunicação e freqüência que os mesmos Judeus tinham e continuaram sempre nas terras dos Gentios, desde que nasceu e começou no Mundo a nação hebréia, que foi em Abraão, primeiro tronco e pai de toda ela. Revelou Deus por três vezes sucessivamente a Abraão, Isaac e Jacob a vinda do Messias, prometendo-lhes que em sua descendência seriam abençoadas todas as nações do Mundo: Benedicentur in semine tuo omnes gentes terrae; e no mesmo tempo pôs a Providência divina aqueles três Patriarcas em diferentes nações e províncias: a Abraão em Canaã, a Isaac em Gerara, a Jacob em Mesopotâmia, para que fossem três pregadores daquele primeiro Evangelho, ou como três evangelistas que anunciassem às gentes a boa nova da mercê grande que Deus tinha ,prometido fazer a todas. E porque ao numero dos três Evangelhos não faltasse o primeiro, permitiu a mesma Providência que por extraordinários caminhos fosse José levado ao Egito, e que aí por mandado do rei, como diz David, pusesse escola de sua sabedoria, onde tivesse por ouvintes todos os príncipes e sábios egiptianos: Ut erudiret principes ejus sicut semetipsum, et senes ejus prudentiam doceret. Assim trouxe Deus naquele tempo pelo Mundo estas quatro testemunhas de suas promessas de reino em reino e de nação em nação, como notou o mesmo Profeta: Et pertransierunt de gente in gentem, et de regno ad populum alterum.
                Ajuntou depois disto a fome em Egito os doze irmãos, filhos de Jacob e cabeças dos tribos; entraram livres, continuaram cativos, saíram vencedores. Mas no tempo daquele comprido cativeiro Não havia casa no Egito em que o cativo não fosse mestre do senhor. As maravilhas que depois viram nos Egípcios é certo que acrescentariam fé às esperanças dos Hebreus, porventura até aquele tempo mal cridas, e já pode ser que a crueldade de Faraó, como a de Herodes, se não fundasse tanto no receio de sua multidão que no medo de suas profecias.
                Passados, enfim, à Terra de Promissão, onde permaneceram até verem o cumprimento delas em Cristo, concorreram e floresceram no mesmo tempo os quatro impérios ou monarquias dos Assírios, dos Persas, dos Gregos e dos Romanos, que senhoreavam o Mundo, e com todas elas tiveram grande comunicação os Hebreus, e algumas vezes mais estreita do que quiseram.
                Todas as histórias sagradas estão cheias de embaixadas, de confederações, de entradas, de guerras, de pazes, de presentes e de outros tratos e correspondências políticas, que passaram entre as quatro nações imperantes e o reino ou povo hebreu. Com os Assírios notemos de Ezequias, de Acáz, de Oseas, de Joaquim e do sacerdote Eliacim, gue concorreram com Berodac, com Salmanasar, com Ful, com Nabucodonosor e com Baltasar, como consta do IV Livro dos Reis e da história de Judite. Com os Persas, em tempo de Jeconias, de Zorobadel, de Esdras, de Neemias, que concorreram com Ciro, com Dario e com Assuero, como consta do I e II Livro de Esdras e da História de Ester. Com os Gregos, em tempo do Sumo Sacerdote Jado, de Matatias, de Judas Macabeu, de Simão e Jónatas, que concorreram com Alexandre Magno, com os dois Antíocos, com Demétrio, Heliodoro, Ptolemeu e Trifon, como consta do I e II Livro dos Macabeus.
                Finalmente, com os Romanos, em tempo de Judas Macabeu, de Simão e Jónatas, que concorreram com diversos cônsules de Roma, de que se nomeia na Escritura Sagrada somente Lúcio, como consta das mesmas capitulações feitas entre uma e outra nação, mandadas pelos Romanos à Judéia, escritas em tábuas de bronze, como lemos nos mesmos Livros dos Macabeus.
                E não só com estes quatro estendidíssimos impérios, mas com todas as nações do Mundo, tiveram muito particular trato e comunicação os Judeus, concorrendo Deus para este fim com disposições de mui particular providência. A primeira foi dar-lhes muitos filhos e pouca terra. Prometeu Deus a Abraão que multiplicaria sua descendência como o pó da terra e como as estrelas do céu, e foi assim que de doze netos de Abraão se formaram os tribos e destes cresceu e se multiplicou a mais numerosa nação que jamais houve no Mundo de um só sangue. A terra, porém, que Deus deu e repartiu aos doze tribos para sua habitação foi a terra chamada de Promissão, cuja largura e comprimento, tomada em sua maior extensão, não chegava a oitenta léguas da nossa medida. E a razão desta providência foi para que, crescendo e multiplicando-se a nação hebréia, e não cabendo nos estreitos limites da sua própria terra, se espalhasse e estendesse por todas as nações do Mundo, e levasse a elas a primeira luz da fé de Deus e da esperança de Cristo: e este é o mistério ou a energia de primeiro se haverem de multiplicar como pó e depois como estrelas, para que o alumiassem no meio das trevas em que todo estava.
                Com o mesmo fim ordenou a sabedoria e justiça divina que os maiores e mais gerais castigos daquela nação fossem desterros e cativeiros, com que eram levados e transmigrados a terras e regiões estranhas cousa poucas vezes vista em nações inteiras, para que por este meio ficassem castigados os Judeus, e juntamente instruídos e alumiados os Gentios. Assim lemos no cap. VIII dos Atos dos Apóstolos que se levantou uma grande perseguição na igreja de Jerusalém, por ocasião da qual se dividiram e espalharam os Cristãos por todas as regiões e terras de Judéia e Samaria: Facta est in illa die persecutio magna in ecclesia, quae erat Jerosolymis, et omnes dispersi sunt per regiones Judae et Samariae:. E notam comumente os Padres e expositores que ordenou ou permitiu a Providência divina este desterro ou dispersão geral de todos os cristãos de Jerusalém pelas cidades e lugares daquelas províncias, para que, juntamente com eles assim espalhados ou semeados por aquelas terras, se plantasse nelas a Fé e depois, por este meio tão natural e ao parecer não pretendido, ficasse tão crescida e arreigada.
                O primeiro e principal desterro e cativeiro, não falando no do Egito, de que já dissemos, foi o de Salmanasar, no tempo de El-Rei Oseas , como adiante largamente contaremos, no qual foram levados os dez tribos desde Judéia até as terras dos Medos e dos Assírios, que estavam bem no coração de toda a Ásia; e posto que o maior corpo daquela gente teve o sucesso que depois se verá, é certo, como escreve Paulo Orósio, Severo Sulpício e outros autores latinos e hebreus, que muitos deles se dividiram por todas as terras orientais daquela vastíssima parte do Mundo, penetrando até as províncias de que então nem muitos anos depois houve notícia, de que é bom exemplo a China, onde em nossos tempos depois de 2300 anos, como escreve o Padre Trigantio nas suas Relações da China, se achavam judeus daquela transmigração com todos os sinais dela.
                O segundo foi no tempo de Nabucodonosor, em que os dois tribos que haviam ficado foram também cativos, em tempo de El-Rei Joaquim, e levados a Babilônia. E destes temos o testemunho da Sagrada Escritura no cap. XVI do Livro de Estér, que, sendo aquele império dividido em 127 províncias, em todas elas e em todas suas cidades estavam espalhados os Judeus, e com eles a fé do verdadeiro Deus, que professavam, como se vê nas palavras do edicto de El-Rei Assuero ou Artaxerxes, com que mandou revogar a sentença de morte, que por malícia e vingança de um mau e soberbo privado — Aman — contra a mesma nação se tinha mandado executar. Nos autem (diz o edicto) a pessimo mortalium Judaeos neci destinatos, in nulla penitus culpa reperimus, sed e contrario justis utentes legibus, et filios altissimi et maximi semperque viventis Dei, cujus beneficio et patribus nostris et nobis regnum est traditum, et usque hodie custoditur. Nas quais palavras, cheias todas de fé, conhecimento, honra e sujeição ao verdadeiro Deus que os Judeus adoravam, se vê claramente quão grande fruto faziam com sua presença nas terras onde estavam cativos e desterrados, Não só entre a gente popular mas nos maiores ministros e príncipes, e nos mesmos imperadores supremos, qual era Assuero ou Artaxerxes que firmou aquele edicto.
                E aqui se entenderá o mistério com que um dos anjos custódios da nação hebréia, que falava com o Profeta Daniel (como se lê no cap. X de suas visões), orando ele apertadamente pela liberdade do povo, lhe deu por causa da dilação daquele despacho a resistência que fizera por muitos dias diante de Deus o Anjo Custódio do reino dos Persas, onde os mesmos Hebreus estavam cativos. Princeps autem regni Persarum restitit mihi viginti et uno diebus. E a razão desta resistência, como neste lugar notam todos os expositores modernos, era o grande proveito espiritual que os gentios persas conseguiam com a presença e comunicação dos Judeus, pela fé e conhecimento das cousas divinas que de sua conversação e doutrina (ainda sem particular estudo) se lhes pregavam.
                Nem se deve passar em silêncio a cobiça natural dos Judeus, ou desejo de adquirir riquezas, e o gênio indústria e inclinação tão particular que teve sempre esta nação ao comércio e mercancia, como filhos alfim daquele pai que, comprando e vendendo, fez sua fortuna, e com tão pouco cabedal como uma escudela de lentilhas soube adquirir por indústria o que lhe tinha negado a natureza, e fazer-se patrão e senhor do maior morgado do Mundo.
                Desta inclinação dos Judeus se serviu a Providência divina para os levar suavemente às terras e regiões mais remotas, e os introduzir e misturar com todas as nações, metendo-lhes em casa, sem uns nem outros o pretenderem, as drogas do Céu entre as mercadorias da Terra. Cuidava Benjamim que só levava trigo no seu saco, e levava nele o trigo e mais o cálix de José. Assim saíam de Judéia os mercadores, e nos fardos de mercadoria que levavam, metia também a sua o Salvador do Mundo, que era esse o nome de José no Egito: Vocabit eum lingua egyptiaca Salvatorem Mundi. E já pode ser (se o pensamento me não engana) que fosse este o intento de Deus naquela lei do cap. XXIII do Deuteronômio: Non fænerabis fratri tuo ad usuram [...] sed alieno, na qual se permitia (posto que não se justificava) para com as nações estrangeiras, para que esta maior liberdade ou impunidade de adquirir ou multiplicar fazenda fora de sua pátria os convidasse a sair dela e os arrebatasse voluntariamente às terras estranhas onde com eles se transplantasse a verdadeira fé, que era droga naquele tempo que só nascia em Judéia.
                E que seria se a este título justificasse Deus as usuras que permitia aos Hebreus nas outras nações, como direitos ou gabelas daquela mercadoria? Não me atreverei a o afirmar assim, mas sei que não é cousa nova em Deus, quando quer passar a religião de um reino a outros, meter neles a Fé às costas do interesse. Quando os deuses de Tróia passaram a Itália, Anquises levava os deuses na mão, e Eneias levava às costas a Anquises. Os pregadores levam a Fé aos reinos estranhos, e o comércio leva às costas os pregadores.
                E em quantas províncias achou o Evangelho fechadas as portas e, depois que o comércio bateu a elas, as teve abertas e francas? O primeiro rei de Portugal que se intitulou rei do comércio da Etiopia, Arábia, Pérsia e dia foi o que introduziu a Fé na Índia, na Pérsia, na Arábia e na Etiópia. Se não houvesse mercadores que fossem buscar a umas e outras Índias os tesouros da terra, quem havia de passar lá os pregadores que levam os do Céu? Os pregadores levam o Evangelho, e o comércio leva os pregadores. S. Tomé, que levou do Brasil à Índia o Evangelho, quando não havia comércio, houve de caminhar (como é tradição) por cima das ondas, porque não teve quem o levasse; e o segundo Apóstolo do Oriente, querendo pregar na China, traçou que o pregador entrasse como negociante, para que a Fé tivesse lugar como mercadoria.
                Assim começou Deus a espalhar o conhecimento de sua Fé pelo Mundo, e assim deu princípio àquele admirável comércio em que depois, tomando de nós o que tínhamos na Terra, nos enriqueceu com o que trazia do Céu.
                Naaman Siro trouxe de Damasco as suas azêmolas com carga de ricos presentes para oferecer a Eliseu e levou-as carregadas de terra de Israel, porque era santa aquela terra. Assim entravam os negociantes hebreus em Judéia ricos e acrescentados com as drogas mais preciosas de todo o Mundo, e o que principalmente levavam de Judéia para o mesmo Mundo, se não era a terra de Israel, era urna droga que só se dava então naquela terra, que era a Fé e conhecimento de Deus. Isto levaram as frotas celebradas del-Rei Salomão quando navegavam a terras de Ofir, ou fosse Ofir a Índia, ou fosse a América, ou fosse, como muitos querem, a nossa Espanha, império famosíssimo já naquela idade ,pela riqueza e opulência de suas minas Isto vinha buscar a cobiça, e aquilo vinha trazer a Providência, sendo certo então o que depois vimos nas frotas das nossas Índias, que muito mais ricas iam do que voltavam. Quando voltavam, traziam ouro, prata, pérolas, diamantes, rubis; quando iam, levavam a Fé de Cristo, a esperança do Céu, as verdades do Evangelho, os sacramentos, a graça, a salvação.
                De maneira que o comércio, os desterros e a estreiteza da terra própria foram as três ocasiões principais por que os Judeus se saíam e Deus os derramava por todas as terras e nações do Mundo. Josefo, no Livro XI de suas Antiguidades, diz que a nação hebréia tinha cheia toda a redondeza da Terra: orbem terrarum replevit. E Filo Hebreu, naquele memorial ou livro que intitula De Legatione ad Caium, diz que a maior parte de todas as ilhas e terras firmes maritimas e mediterraneas da Asia, da África e da Europa eram habitadas de Judeus: Itaque si exorat mea Patria tuam clementiam præpter ipsam, alias civitatis demereberis plurimas, sitas in diversis orbis tractibus, Asia, Europa, Africa, insulares, maritimas, mediterraneas.
                E se estes dois autores, posto que tão alegados e seguidos de todos os que escrevem, por serem da mesma nação, parecerem a alguém suspeitosos e dignos de menos crédito, saiba que os mesmos testemunhos se leram nas Escrituras Sagradas ainda com palavras mais universais e de maior encarecimento. No edito que passou Assuero para que morressem todos os Judeus sujeitos às terras de seu Império, diz assim a Relação ou Relatório de suas culpas: In toto orbe terrarum populum esse dispersum, qui novis uteretur legibus, et contra omnium gentium consuetudinem faciens, regnum jussa contemneret, et universarum concordiam natonum sua dissensione violaret. Quod cum didicissemus, videntes unam gentem rebellem adversus omne hominum genus perversis uti legibus, nostrisque jussionibus contraire, et turbare subjectarum nobis provinciarum pacem atque concordiam, jussimas etc., nas quais palavras se diz votada e expressamente que o povo hebreu naquele tempo estava espalhado por todo o Mundo:In toto orbe terrarum populum esse dispersum; e que com a novidade de suas leis perturbavam a paz de todas as gentes e de todas as nações:omnium gentiam et universarum nationum; e que desobedeciam os mandados dos reis e eram rebeldes contra todo o gênero humano: adversus omne genus humanum. E estas culpas assim relatadas que vêm a ser senão um testemunho público e autêntico de tudo o que imos provando? Porque não só consta delas estarem os Judeus espalhados por todo o Mundo, mas se mostra também com a mesma clareza que os efeitos dessa dispersão era ser pública e notória a todas as nações e reis e a todo o gênero humano a nova lei e nova Fé diferente de todas as outras que os mesmos Judeus professavam.
                No I capítulo dos Atos dos Apóstolos temos outro testemunho sagrado igualmente universal e por termos, se pode ser ainda mais notáveis: Erant autem in Hierusalem habitantes judaei viri religiosi ex omni natione quæ sub caelo: «Havia em Jerusalém (diz S. Lucas) muitos judeus moradores da mesma cidade, homens religiosos de todas as nações que cobre o céu;» para cuja inteligência se deve supor que todos os hebreus que viviam longe de Judéia em diferentes nações, reinos ou cidades populosas tinham em Jerusalém suas sinagogas particulares e distintas, as quais sinagogas não eram propriamente igrejas como as nossas (porque o templo era um só e comum a todos, nem podia ser mais que um conforme a lei), mas eram umas casas grandes e públicas, onde se ajuntavam principalmente aos sábados, e ali se tinham as pregações, os conselhos, as disputas, e todas as outras conferências das cousas espirituais ou eclesiásticas, como se conta no capítulo XVII dos Atos o fazia ou costumava fazer S. Paulo: Secundum consuetudinem autem Paulus introivit ad eos, et per sabbata tria disserebat eis de Scripturis. E no capítulo VI do mesmo livro se faz expressa menção das sinagogas diferentes que dizíamos: Surrexuntur autem quidam de Synagoga, quae appellatur libertínorum, et Cirenensium et Alexandrinorum, et eorum qui erant a Cilicia et Asia; mas no qual texto, como advertiu S. Crisóstomo e outros Doutores, não se há-de entender que uma só sinagoga fosse dos Libertinos, Cirenenses, Cilicianos, Asiáticos e Alexandrinos, senão que cada uma das comunidades dos Judeus pertencentes a estas províncias tinham a sua sinagoga própria, separada e particular. Era Jerusalém naquele tempo (e muito mais antes daquele tempo) a corte dos rei, a universidade das letras, o assento dos tribunais, e sobretudo era a cabeça da Igreja da Lei Velha, como hoje é Roma da Nova, à qual estavam sujeitos todos os Judeus e professores da mesma Fé, ainda que vivessem em outros reinos, como se vê das provisões de S. Paulo, as quais ele foi buscar a Jerusalém contra os Judeus de Damasco, que era terra de gentios sujeitos a El-Rei Arctas, e assim como todos os reinos e repúblicas da Cristandade têm seus embaixadores, agentes requerentes e igrejas particulares em Roma, e ainda hospitais da mesma nação, assim e muito mais se observava o mesmo uso entre os Judeus, gente por natureza tenacíssima dos seus costumes e ritos.
                E era tanto o número destas sinagogas em Jerusalém, que quando ultimamente foi destruída aquela cega cidade por Tito e Vespasiano, se acharam nela, como refere Lorino, quatrocentas e oitenta sinagogas. cada uma de diferente nação, província, reino corte ou povo notáve1 onde houvesse tanto número de Judeus que só ó que deles assistiam em Jerusalém pudessem formar corpo e comunidade distinta.
                Daqui se tira o novo e eficaz argumento de quão espalhados e multiplicados estavam os Judeus por todas as partes do Mundo. E estes eram aqueles a quem S. Pedro, no Sermão de dia de Pentecoste, chamou judeus de longe: Vobis enim est repromisio et filiis vestris et omnibus qui longe sunt
                Vivendo pois os Judeus tão misturados e travados com todas as nações dos gentios, desta companhia se lhes pegara, como dizíamos, o conhecimento da Fé de Deus e esperança de Cristo, e não só pelo trato, comunicação e exemplo, senão também por indústria e estudo particular de alguns judeus mais zelosos, os quais com desejo de aumentar a sua religião e o culto do verdadeiro Deus, ensinavam e afeiçoavam a ela os gentios.
                Desta verdade temos em prova (que não é só suspeita ou conjectura nossa) o testemunho e autoridade do mesmo Cristo no capítulo XXIII de S. Mateus, onde, repreendendo a hipocrisia dos escribas e fariseus, diz assim: circuitis mare et aridam, ut faciatis unum proselytum: et cum fuerit factus, facitis eum filium gehennæ duplo quam vos. «Cercais o mar e a terra para converter um gentio à Fé, e depois que está convertido, ensinai-lhes tais doutrinas que o fazeis mais filho do Inferno do que vós sois.» Na qual sentença de Cristo se vê principalmente como os Judeus rodeavam mar e terra, isto é, peregrinavam e navegavam por todas as terras e mares do Mundo, e juntamente se prova que com estas suas peregrinações e navegações levavam pelo mesmo Mundo a Fé do verdadeiro Deus, e o davam a conhecer aos Gentios, dos quais convertiam alguns; e finalmente que Não se fazia isto acaso e por ocasião do trato, se não por zelo e cuidado particular da Religião, posto que depois a viciavam os escribas e fariseus do tempo de Cristo com a má doutrina e exemplo que lhes ensinavam; nem faltavam em diversas partes do Mundo padrões desta mesma verdade, levantados entre as gentes mais políticas e celebradas da Gentilidade. Tal era aquele altar que S. Paulo achou em Atenas, consagrado ao Deus não conhecido — Ignoto Deo — o qual Deus não conhecido, como logo lhes declarou o mesmo Apóstolo, era o verdadeiro Deus, criador do Céu e da Terra.
                Destes altares havia outros, como escreve o Cardeal Barónio, na Arábia, nas Gálias, na nossa Espanha e em outras províncias nobres da Ásia e da Europa, e que estes monumentos de Religião e este conhecimento de Deus não conhecido se tivesse derivado aos Gentios da doutrina e trato com os Judeus, provam-no agudamente alguns autores, com o mesmo título de não conhecido. Porque os deuses dos Gentios eram conhecidos pelos seus nomes particulares de Júpiter, Saturno, Marte; mas o Deus dos Judeus não era conhecido de nome, porque lhes estava proibido tomarem na boca o nome de Deus, e por isso se chamava Inefável, isto é, nome que se não podia falar nem dizer. Vere tu es Deus abconditus, Deus absconditus et Salvator — dizia Isaías a Deus, aludindo a esta proibição: «Verdadeiramente, Senhor, vós seis um Deus escondido, mas Deus que escondido e desconhecido salvais.» E Josefo, no Livro II de suas Antiguidades, vindo a tratar do nome de Deus, passou-o em silêncio e disse que lhe não era lícito pronunciá-lo: De quo mihi dicere non est fas.
                Conheciam, porém, os Gentios, ensinados pelos Judeus, que este Deus desconhecido a quem não sabiam o nome era o Deus que criara todas as cousas, e este foi o mistério daquela erudita ignorância, com que, descrevendo Ovídio a criação do Mundo, não o nomeou nem determinou o Deus que o criara, dizendo-o só absoluta e incertamente: Quisquis fuit ille deorum «quem quer que foi o Deus» que o criou.
                Mas nesta mesma incerteza com que falou no Deus criador do Mundo, este poeta declarou ser ele o Deus que adoravam os Judeus, ao qual os Gentios chamavam Deus incerto, porque não tinha nome particular com que fosse conhecido e se distinguisse dos outros deuses. Assim o disse Claudiano, também poeta latino e gentio, chamando aos Judeus os adoradores de Deus incerto: Cultrix incerti Judæa Dei. E estes foram os primeiros rudimentos da Fé que os Judeus semearam entre os Gentios, introduzindo-se o verdadeiro Deus nas outras nações e andando nelas como disfarçado, conhecido debaixo do nome de incógnito, e crido com o sobrenome de incerto.
                E para que concluamos este discurso com uma advertência em tal matéria digna de muito reparo, no capítulo XXXII do Deuteronômio diz Moisés que, quando Deus, na confusão da Torre de Babel, dividiu a todos os filhos de Adão em diversas nações e línguas, fez aquela divisão conforme o número dos filhos de Israel, respondendo a cada um deles uma nação: Quando dividebut Altissimus gentes, quando separabat filios Adam, Constituit terminos populorum juxta numerum filiorum Israel. No qual número alude Moisés aos filhos de Israel, que entraram no Egito, ·os quais consta do capítulo X do mesmo livro e do capítulo XLVIII dos Gênesis, que foram setenta almas: Omnes animæ domus Jacob, quae ingressæ sunt in AEgyptum, fuere septuaginta. Assim entendem este lugar todos os Padres e intérpretes, os quais também concordam em que as línguas e nações em que Deus dividiu os homens (como se colhe do capítulo X do Gênesis, em que se referem as famílias dos descendentes de Noé) foram setenta e duas. Destas, se se tirarem a hebréia e egípcia, que já estavam unidas e se comunicavam, ficam pontualmente setenta.
                Agora pergunto: E que mistério ou que intento teve a Providência Divina em igualar o número de todas as nações ao dos primeiros hebreus e não em outro tempo ou ocasião, senão quando a primeira vez se ajuntaram com os Gentios? O mistério e razão desta providência foi sem dúvida porque tinha Deus destinado aos Judeus para mestres da Fé dos Gentios naquela primeira Igreja. E era conveniente e necessário para este soberano fim que fossem tantos os mestres quantas eram as nações.
                Temos a confirmação deste pensamento na mesma Providência Divina, que sempre é semelhante a si mesma em casos semelhantes. Tratou Cristo de dispor a pregação do Evangelho e conversão do Mundo, e, depois de nomeados os doze Apóstolos, em correspondência também dos doze filhos de Jacob e dos doze tribos de Israel, elegeu sinaladamente setenta e dois. E dois discípulos, como escreve S. Lucas no capítulo X, que mandou diante de si: ...designavit Dominus et alios septuginta duos et misit illos binos ante faciem suam, in omnem civitatem et locum, quo erat ipse venturus. E se buscarmos nos expositores sagrados o mistério e proporção deste número, responde S. Jerônimo, e com ele a sentença comum dos intérpretes, que foram setenta e dois estes novos precursores e embaixadores de Cristo, por serem outras tantas (como dizíamos) as nações do Mundo, que o Senhor, por meio da sua pregação e doutrina, queria trazer (como trouxe) ao conhecimento da Fé. De maneira que, assim como Cristo, no princípio da Lei da Graça, igualou o número dos seus discípulos ao das nações e gentes do Mundo, para que levassem por todo ele o conhecimento de Deus e a nova de que o Messias era já vindo, assim Deus, no princípio da Lei Escrita, mediu o número dos filhos de Israel, que são os Hebreus, com o de todas as outras nações e gentes do mesmo Mundo, porque eles eram os que haviam de levar e semear entre todas elas o conhecimento do verdadeiro Deus. E a nova e promessa de que o Messias havia de vir é explicação admirável de outros setenta e dois intérpretes da divina palavra, os quais, em lugar de — juxta numerum filiorum Israel — tresladaram — juxta numerum Angelorum Dei »— , chamando neste lugar aos filhos de Israel anjos ou embaixadores de Deus, porque esse era o fim e ofício para que foram destinados a todas as nações e tomados e repartidos conforme o número delas.
                O terceiro meio de providência particular com que pôde chegar facilmente e chegou naquele tempo aos Gentios o conhecimento da fé e esperança de Cristo, foram as Escrituras Sagradas. O primeiro livro que viu o Mundo foi o Pentateuco, de Moisés, e não faltam grandes conjecturas para se crer que Moisés foi aquele prodigioso Mercúrio a quem os Antigos celebraram com o nome de Trimegisto. Este livro foi o que fez aos Caldeus mestres da Ásia, aos Egípcios da África e aos Gregos da Europa. Com razão chamou Clemente Alexandrino a Platão o Moisés de Atenas — Moyses Atlicus — porque de Moisés foram tirados todos aqueles lumes que deram a Platão em suas obras nome de divino. Deste rústico, que assim lhe chamou Aristóteles, tomou este soberbo e ingrato filósofo a sabedoria mais sublime que o fez o maior da Grécia. Aos livros de Moisés se seguiram os outros sagrados; os dos Profetas, que são entre todos quase os últimos, ainda vencem em Antigüidade os mais antigos filósofos e escritores gentios. Tempore nostrorum prophetarum (diz S. Agostinho) philosophi gentium nondum erant. E como só estes livros havia no Mundo, só estes se liam em todo ele, dispondo-o assim a Providência, que tudo governa, para que mais se estendessem por toda a parte e fossem mais celebradas suas notícias.
                Não lhes podia suceder então às Escrituras divinas o que depois lhes aconteceu com Jerônimo, quando as deixou pela suavidade de Túlio, porque ainda não tinha gostado sua doçura. Elas só eram o estudo dos sábios, elas o entretenimento dos curiosos, elas o desvelo dos entendidos. Esse foi um dos mistérios de Deus, em as fazer escuras, para que, tendo sempre que entender, fossem uma e muitas vezes lidas.
                Quem quiser saber facilmente quão estudadas eram dos Gentios as Escrituras, leia com atenção os livros dos seus filósofos, dos seus historiadores e ainda dos seus poetas, e verá o que delas tomaram, delas imitaram e sobre elas fingiram; verá quanto as não largavam das mãos. «Tudo o que compôs o estilo dos vossos escritores — dizia Tertuliano aos Gentios — a substância, a matéria, a origem, a ordem, as histórias das gentes e das cidades insignes, e ainda as mesmas cidades e algumas das gentes; as causas e memórias do que escreveram e até a forma das letras e imagens dos caracteres, e os vossos mesmos deuses (e não digo nisto mais senão menos) os vossos templos, os vossos oráculos, os vossos sacrifícios, tudo vencem em muitos séculos de Antigüidade os livros de nossas profecias, e tudo foi tomado do tesouro das escrituras judaicas, que são também as nossas: Omnes itaque substâncias omnesque materias, origines, ordines, venas veterani cujusque styli vestri, gentes etiam plurasque et urbes insignes, historiarum causas et memoriarum , ipsas denique effigies literarum indices custodesque rerum, et (puto adhuc minus dicimus) ipsos, inquam, Deos vestros, ipsa templa, et oracula, et sacra unius interim prophetae scrinium, sæculis vincit, in quo videtur thesaurus collocatus totius Judaici Sacramenti, et inde etiam nostri... Até aqui Tertuliano.
                É certo que, se os versados nas divinas Escrituras considerassem diligentemente a matéria delas e a traça e harmonia com que foram ditadas pelo Espírito Santo, achariam facilmente que não só foram escritas pela lei e observância dos Hebreus, senão também para lição e estudo de todas as outras nações; porque, sendo um só o Povo de Deus, e os autores que escreveram aqueles livros todos do mesmo Povo, a que outro fim se faz neles tão freqüente memória de todas as outras nações do Mundo e seus sucessos? Assim temos os Cananeus, os Amorreus, os Fereses, os Eveus, os Eteus, os Jebuseus, os Filisteus; assim os Ismaelitas, os Amonitas, os Moabitas, os Madianitas, os Gabaonitas, os Amalecitas; assim os Assírios, os Medos, os Caldeus, os Persas, Sírios, os Tírios, os Sidónios, os Egípcios, os Etíopes, os Gregos, os Macedônios, os Romanos. E não havia antes de Cristo província conhecida ou cidade de grande nome no Mundo, de cujos sucessos se não achasse alguma memória no Testamento Velho, assim dos passados nas histórias, como dos futuros nas profecias.
                Não falo já de Daniel, que falou universalmente de todos os maiores impérios; mas só em nove capítulos de Isaías lemos sinaladamente as profecias de onze nações diferentes, chamadas cada urna por seu nome a ouvir a sentença e a saber da boca de Deus o que lhe estava por vir. E que nação destas haveria que não lesse com grande atenção e cuidado os oráculos daquele famoso profeta, onde estavam conhecendo seus nomes e lendo as fortunas? Bastava só para mover a curiosidade universal de todas as gentes à lição dos livros Sagrados, serem só eles os que revelaram e descobriram o Mundo o segredo de seu primeiro princípio, tão ignorado entre todos os sábios, a origem das línguas, o nascimento das nações, a divisão das terras, a ordem e cronologia dos tempos, do que tudo houvera perpétua ignorância nos homens, se não estivera revelado nas Escrituras.
                Mas quando nenhum destes tesouros houvera depositado e encerrado nelas, falando somente do que pertence à história, que livros se escreveram jamais, não digo dos que professam verdade, mas dos fingidos e fabulosos, que igualem em grandeza e variedade de casos admiráveis a menor parte ou sombra do que se refere nas histórias sagradas?
                Narraverunt mihi iniqui fabulationes, sed non ut lex tua, dizia Daniel, e mais ainda não tinha sido o que depois dele se escreveu. Que gigantes fabulosos filhos da terra se atreveram a edificar uma torre como a de Babel, nem arrimaram escadas ao céu, sem pôr monte sobre monte, como a de Jacob? Que metamorfoses ou transformações fingiram como a de Nabucodonosor, convertido em bruto, a da mulher de Lot em estátua, a da vara de Moisés em serpente, comendo serpentes, e depois de serpente convertida outra vez em vara?
                Descreveram as fábulas o dilúvio, mas não tiveram fantasia para meter todo o Mundo em uma arca, nem confiança para o salvar nela. Qual poeta se impôs ou traçou jamais uma comédia como a de Job, uma tragédia como a de Aman, uma novela ou enredo como a de José? Em que teatro dos Gentios se representaram aparências de tanto artifício como um paraíso terreal sumido no meio do Mundo, um Enoc desaparecido ,de repente, um Datão e Abiron tragados da terra, e um Elias voando pelos ares em um carro de quatro cavalos, o carro, as rodas e os cavalos tudo de fogo? Que semelhança tiveram aquelas máquinas que se levantaram com nome de maravilhas do Mundo com a portentosa grandeza das que lemos nas Escrituras? Que estátua como a de Nabuco, que carroça como a de Ezequiel, que coluna como a do Deserto, que jardins como os de Assuero, que palácio encantado como o templo de Salomão, edificado de seus fundamentos sem nele se ouvir o golpe de martelo? Um pavilhão que de dia cobria do sol seiscentas mil famílias, uma tocha que de noite as alumiava, já dissemos que se chamava coluna.
                Que disse a Gentilidade da cítara de Orfeu, que se iguale com a harpa de David, de que fugira o Inferno? Que disse das respostas duvidosas do seu Apolo, que se pareça com os oráculos sempre certos do propiciatório? Que disse das vozes de Eudimião, também ouvidas da Lua, que não exceda uma só voz de Josué, obedecida da Lua e do mesmo Sol? O caduceu tão celebrado do seu Mercúrio que comparação teve com os poderes da vara de Moisés, que dividia os mares, parava os rios, fazia caminhar os montes? Onde se lê tal agravo de onipotência como no tenente daquela vara em quem foi culpa tirar fontes de um penhasco com dois golpes, porque o podia fazer com uma palavra?
                Não digo nada dos documentas da Escritura, porquanto trato do doce e não do útil, só do que leva o apetite e não do que move a razão. Que se podia inventar de maior pasmo aos ouvidos, que ouvir falar um jumento com Balaão e uma serpente com Eva? Que se podia fingir de maior lisonja e admiração ao gosto, que comer em uma iguaria todos os banquetes e gostar em um só maná todos os sabores? Que se podia imaginar de maior suspensão e assombro à vista, que ver o monstro marinho engolir a Jonas, ver levá-lo consigo ao fundo e desaparecer, e ver dali a três dias surgir a baleia, desembarcá-lo a fera vivo nas praias de Nínive?
                Como estes são os prodígios que se encontram a cada página nos Livros Sagrados. Mas que direi das façanhas e cavalarias que, ainda conhecidas por falsas, deleitam e suspendem tanto a curiosidade dos homens? Que desafio como o de David, com uma funda e um cajado contra o gigante coberto de ferro? Que batalha como a de Gedeão, só com trombetas e luzes em cântaros de barro? Que bateria como a dos muros de Jericó, derrubados com os instrumentos dos músicos do templo! Que emboscada como a de Abimelec em que os bosques e as sombras caminhavam juntamente e os soldados com eles? Que vitória como a de Jónatas, em que um só capitão com um só soldado, pôs em fugida e desbarato o exército inumerável dos Filisteus? Que triunfo como o da galharda Judite, quando entrou pelas portas de Betúlia com a cabeça de Olofernes, em que degolou de um golpe todo aquele seu exército?
                Mas passando nós a encontros de maiores forças em que pelejaram os braços e não a indústria, que Hércules Tebano como Sansão, aquele que, atado sete vezes, de uma só rompeu as cordas e nervos como se foram teias de aranha; aquele que, preso dentro da cidade de Gaza, quebrou com as mãos os ferrolhos e lançou às costas as portas; aquele que, levado ao templo dos Filistinos, lançou a mão direita e esquerda a duas colunas, dando com o templo em terra, sepultou debaixo dele todos os idólatras; aquele que, com uma queixada de um jumento, matou, em campo aberto, mil de seus inimigos e ainda matara mais, se não fugiram todos?
                Teve sede Sansão, cansado de matar, e, arrancando um dente da mesma queixada, fez brotar dela uma fonte. Assim obedecem os elementos a quem assim triunfa dos homens. Todas estas forças tinha este bizarro mancebo em sete cabelos, porque dedicou todos a Deus, desde seu nascimento.
                Segundo Sansão, foi Sangar capitão do mesmo povo depois de juiz, e juiz depois de lavrador, mas lavrador que, fazendo montante do arado, matou com ele em um dia seiscentos filisteus, e deixou semeando com seus corpos o campo que andava lavrando. Fique à trombeta da fama Josué, vencedor de trinta e um reis, e o fortíssimo Macabeu, restaurador vítima da sua pátria. Paremos no valente Eleásaro, que, metendo-se intrepidamente com a espada debaixo de um elefante armado, primeiro foi matador de sua sepultura, e depois ficou ali não sei se diga morto, se mortalmente oprimido do peso de tamanha vitória.
                Mas deixando a guerra, o sangue e o estrondo das armas, que história tão admirável como a da casta Susana? Que sacrifício tão lastimoso como o da filha de Jepta, e tão venturoso como o de Isaac posto já sobre o altar, e de entre a lenha e a espada escapando vivo? Que caso tão bem tecido como o de Moisés infante, já entregue à fúria do Nilo na barquinha ou naufrágio de vimes, tomando posto nos braços da Princesa do Egito, encomendado com maior ventura à própria mãe para que o criassem a seus peitos? Que maravilha como a da sarça verde e sem arder no meio das chamas, a dos meninos de Babilônia tomando fresco na fornalha, a de Daniel comendo e não comido no lago dos leões, e a da serpente do Deserto dando vida aos mordidos só com olharem para ela? Que prudência como a de Salomão em mandar partir o menino para conhecer a mãe verdadeira? Que engenho como o de Jacob em meter as cores pelos olhos das mães, para pintar os cordeiros antes de nascerem? Que indústria como a de Daniel em semear de noite o templo de cinza, para mostrar de dia nas pegadas dos sacerdotes e seus filhos que eles e não o ídolo eram os que comiam as ofertas? Que subtilezas de Estado tão bem entendidas como as dos Livros dos Reis, que como as de David com Saul e as de Cusai com Aquitofel?
                Tudo nas divinas Escrituras é divino, tudo raro, tudo maravilhoso, e fora matéria imensa de prosseguir e impossível de compreender querer levar por diante os princípios deste não intentado discurso.
                Bastem estes poucos exemplos, mais aludidos que contados, para que deles possa entender o leitor (que é o que só lhe pretendemos persuadir) quão fraca seria a todas as nações dos Gentios a lição dos Livros Sagrados quando chegassem a suas mãos, e como este foi o altíssimo conselho da Providência Divina, no estilo e disposição das escrituras do Testamento Velho (tão diversas nesta parte das do Testamento Novo) temperando a alteza e majestade de seus mistérios com o sabor de tantas verdades gostosas e com a variedade de tantas maravilhas tão novas e tão notáveis, para que, convidados com o cevo da curiosidade os que ainda não deviam àqueles livros outros melhores respeitos, aprendessem por eles a Fé de Deus e juntamente as esperanças de Cristo.
                E quão impossível cousa seja poderem ler os Gentios as Escrituras Sagradas, sem beberem daquelas fontes esta esperança, vê-se clara e naturalmente da matéria das mesmas Escrituras, que, como todas, foram ordenadas à vinda de Cristo, e de Cristo em quanto Rei e Senhor do Mundo, apenas se acha cláusula em muitas delas que não esteja anunciando esta vinda e este Reino.
                Três partes da Escritura, disse Cristo aos discípulos que falavam mais particularmente na sua vinda ao Mundo: os Profetas, os Salmos e os livros de Moisés: Necesse est impleri omnia quae scripta sunt in lege Moysi et prophetis et psalmis de me. E deixando à parte os lugares mais escuros (que esses não os entendiam os Gentios sem intérprete) como se viu no eunuco da rainha Cândaces, de Etiópia (se bem havia muitos hebreus, como dissemos, entre os Gentios, a quem estes podiam perguntar a interpretação quando quisessem) o cap. 2, o 9, o II, o 35, o 52, o 53, o 54, o 65 e o 66 de Isaías, e muitos outros de todos os Profetas, que homem os podia ler com juízo e entendimento, ainda que fosse sem fé, que não visse e conhecesse que era prometido naquelas palavras um Rei futuro, e não Rei como os que costumava ver no Mundo, de uma só ou algumas nações, senão de todas as gentes e reinos do Universo? E quando todas as outras profecias tivessem alguma escuridade que eles não pudessem entender ou interpretar por si mesmos, os dois textos de Daniel, fundamentais desta nossa História, em que o Reino universal daquele futuro Monarca está expresso e declarado com palavras tão vulgares e tão significativas, e com termos que Não admitem outro sentido nem interpretação, que gentio havia de haver, por bárbaro e ignorante que fosse, que não fizesse conceito do que diziam?
                Mas basta ao nosso intento que o fizessem os doutos e os entendidos. Nos Salmos de David, como ele era a quem tão de perto tocava aquela felicidade e a quem particularmente estava prometida, é cousa maravilhosa a freqüência com que está repetido, a clareza com que está apregoado e a pompa e majestade de palavras com que está engrandecido o Reino de Cristo. O Salmo II, o Salmo IX, o Salmo XLI, o Salmo XLV, XLVI e XLVII, o Salmo LVIII, LXVII e LXXXVIII, o Salmo XCII, XCV, XCVI, XCVII, o Salmo CII, todos estes catorze salmos têm por principal assunto o Império do Messias.
                E porque não duvidassem os Gentios que eles, as suas terras e as suas coroas, eram as que haviam de ser sujeitas a este grande Império, vinte nove vezes lhes repete e inculca o mesmo Daniel esta gloriosa sujeição, falando com eles nomeadamente, e não por termos enigmáticos ou metafísicos, senão clara e distintamente pelo seu próprio nome de Gentios. Que gentio podia haver tão rude, tão alheio do lume da razão e tão gentio, que lendo no Salmo II: Dabo tibi gentes hæreditatem tuam et possessionem tuam ter minos terræ; e no Salmo XXI: Adorabunt in conspectu ejus universæ familiæ gentium, quoniam Domini est regnum; e no Salmo XCVIII: Dominus in Sion magnus, et excelsus super omnes populos; e no Salmo XCV: [Dicite] in gentibus quia Dominus regnavit, etenim correxit orbem terrae; e no Salmo LXXI: Adorabunt eum omes reges terræ, omnes gentes servient ei; que gentio, digo, podia ler estes textos ou ouvir estes pregões tão expressos e declarados do domínio daquele futuro Rei sobre todos os Reis e nações do Mundo, que, se não cresse aquela Fé, ao menos não conhecesse aquela esperança?
                Deixo de ponderar mais lugares de David, porque o faremos muitas vezes, em toda esta História. Finalmente, os livros de Moisés (que era a 3.a alegação de Cristo), posto que sejam principalmente históricos e não proféticos, não só têm por ocasião da mesma história muitas profecias e promessas desta esperança, mas tão dirigidas e encaminhadas todas as nações, nomeadamente dos mesmos Gentios, que não podiam deixar de ser lidas deles com grande advertência e recebidos com grande aplauso. No capítulo XII, do Gênesis, a primeira vez que Deus apareceu a Abraão e o mandou sair da pátria, lhe prometeu que seriam abendiçoadas nele todas as nações da terra: In te benedicentur universæ cognationes terræ; e no capítulo XVIII torna a referir Deus esta mesma promessa: ...cum benedicendae sint in illo omnes nationes terræ; e no capítulo XXII, em prêmio da resolução e obediência com que Abraão não duvidou de sacrificar seu filho, lhe promete Deus terceira vez a mesma bênção, com declaração que não seria na sua pessoa, senão na de um seu descendente: Benedicentur in semine tuo omnes gentes terrae. A qual promessa tornou Deus a ratifica quarta e quinta vez em Isaac, filho, e em Jacob, neto do mesmo Abraão, sempre pelas mesmas palavras. Em Isaac no capítulo XXVI: Benedicertur in semsa tuo omnes gentes terræ; e em Jacob, no capítulo XXVIII: Benedicentur in semine tuo cuntae tribus terræ; finalmente, no capítulo XLIX do mesmo livro dos Gênesis está o famoso texto já referido um dos dois em que fundamos todo este discurso: Non auferetur sceptrum de Juda, donec veniat qui mittendus est, et ipse erit expectatio gentium.
                De sorte que em um só livro de Moisés tinham os Gentios seis profecias claras e que claramente falavam com eles, nas quais se lhes prometia por boca de Deus que seriam abendiçoadas em um homem da descendência de Abraão, que era o esperado Rei e Messias do Mundo. Assim que, lendo os Gentios como liam as Escrituras, e particularmente os livros de Moisés, os dos Salmos e os dos Profetas, não podiam deixar de vir em conhecimento, e tal conhecimento de Cristo, que todos o desejassem e esperassem todos.
                O quarto e último meio e mais imediato da Providência Divina, com que as nações gentílicas puderam conhecer, e com efeito conheceram, o prometido Messias, foram muitas revelações particulares daquele mistério com que Deus em diferentes tempos alumiou por si mesmo a vários homens e mulheres de toda a Gentilidade. Seja o primeiro exemplo desta luz aquele grande varão mais conhecido pelo testemunho da paciência que pelo lume da profecia, Job.
                Era Job verdadeiramente gentio, idumeu de nação, natural da terra de Hus, e foi insigne profeta de Cristo, a quem conheceu por universal Redentor: Et scio quod Redemptor mous vivit; e em quem esperou ver a Deus vestido de carne: In carne mea videbo deum meum; e esta esperança, como ele diz, trazia sempre guardada no seio: Reposita est haec spes mea in sinu meo». Similiter et Job—diz Santo Agostinho— eximius prophetarum, et in carne mea videbo Deum meum, quod de illo tempore prophetavit quia Christi deitas habitum nostrae carnis induta est.
                Os amigos de Job também eram gentios de outras províncias vizinhas, e também alumiados da mesma fé e confirmados na mesma esperança, como consta da mesma história e do que eles disseram nela; e como todos fossem reis e senhores de suas terras (assim lhes chama o Texto Sagrado no capítulo I de Tobias) com aquela suprema autoridade e com o conhecimento e sabedoria que tinham do Céu , já se vê quão ensinados teriam nela a todos seus vassalos, e quão pública seria entre eles a esperança de Cristo
                Balaão (cujo espírito profético é tão vulgar que não tem necessidade de provas) não só foi gentio, senão mau gentio. Dele diz S. Máximo: Nemo [...] miretur netivitatem dominicam agnovise Chaldaeos quam utique, si revelante Deo praenuntiare potuit; potuit Gentilis agnoscere. Este Balaão, este gentio, (o qual não duvidou de se chamar a si mesmo auditor sermonum Dei, qui novit doctrinam Altissimi et visionem Omnipotentis vidit) profetizou claramente de Cristo e de seu império naquele texto,tão celebrado no capítulo XXIV dos Números: Videbo eum, sed non modo; intuebo, illum, sed non prope: orietur stella ex Jacob, et consurget virga de Israel, et percutiet duces Moab, vastabitque omnes filios Seth. Quer dizer: «Vê-lo-ei, mas não agora; olharei para ele, mas não de perto; nascerá a estrela de Jacob, e levantar-se-á o ceptro de Israel; vencerá todos os capitães dos Gentios e sujeitará todas as nações do Mundo.» As quais palavras foram sempre entendidas, assim pelos Hebreus, como pelos Gentios, de um Rei descendente da casa de Jacob, que em tempos futuros havia de imperar no Mundo e havia de sujeitar a seu domínio todas as nações dele.
                E digo que não só os Hebreus entendiam assim este lugar, mas também os Gentios, por ser muito célebre entre eles a notícia deste oráculo, e muito famosa, ou difamada (como diz S. Leão Papa), a memória desta profecia, pela qual memória ou notícia (diz o mesmo santo) informados os Reis Magos, puderam argüir do aparecimento da nova estrela o nascimento do novo Rei: ...ad intelligendam miraculum signi potuerunt Magi etiam de antiquis Baluam praenuntiationibus commoveri scientes alim esse praedictum et celebri memoria diffamatam. Notem-se bem estas últimas palavras, de que se ve facilmente quão notória era no Mundo e quão pública entre os Gentios esta esperança.
                Das Sibilas (profetizas também da Gentilidade) diz assim Xisto Betuleu, nas Anotações que fez sobre o original grego dos oráculos sibilinos: Sic prarsus sentio Deum totius universitatis opificem et administrum aeternum, suum votum et totam illam futuram seriem praesertim ad salatem mortalium spectantem, sicut Israeli per prophetas, ita gentibus per Sibyllas ostendere voluisse per idem numen fatidicum.
                Quer dizer este autor (e o confirma com o que disseram das Sibilas Lactanio Firmiano e S. Agostinho) que comunicou Deus o espírito de profecia a estas famosas mulheres, porque, assim como os Hebreus tiveram os seus Profetas, tivessem também os Gentios os seus, por cujo meio a uns e outros fossem manifestos os conselhos divinos, principalmente aqueles que para a salvação universal do Mundo eram necessários, conforme a ordem e disposição eterna de sua providência.
                E se alguém perguntar curiosamente a quem e por cu]a boca falou Deus mais claramente, se aos Hebreus pelos Profetas, ou aos Gentios pelas Sibilas, respondo que em muitas cousas particulares, principalmente das que pertencem a Cristo, falaram com termos de maior clareza as Sibilas do que os Profetas, como se pode ver facilmente de uns e outros livros. De muitos lugares e exemplos que pudera trazer desta diferença, porei somente aqui dois, para que se veja quão fácil era aos Gentios o conhecimento de Cristo pelos livros ou oráculos das Sibilas, antes quão impossível cousa era lerem eles, como liam, aqueles livros, e não terem notícia da Messias e da esperança e promessa de sua vinda, formando ao menos um conceito comum, e conceito de um Rei e de um Império futuro, debaixo do qual se havia de renovar e restaurar o Mundo. No fim do Livro II diz a Sibila Eritrea estes versos:
                Sed postquam Roma AEgyptum reget imperioque Fraenabit, summi tum summa potentia regni Regis inextincti mortalibus exorietur. Rex etenim sanctus veniet, qui totius orbis Omnia sceculorum per tempora sceptra tenebit.
                Não se podia descrever com maior clareza o tempo e circunstâncias do nascimento de Cristo, a soberania de seu supremo poder e a Monarquia Universal de seu Reino sobre todos os cetros e coroas do Mundo. Diz que nasceria este Rei e daria princípio a seu Império quando Roma dominasse e governasse o Egito; e assim foi, porque depois da vitória de Augusto César, em que venceu a Marco António e Cleópatra no Egito, e acabou de dominar o Império Romano, as últimas relíquias de poder em que se conservava o Grego não passaram mais que doze anos, até o nascimento de Cristo, como consta da... (lacuna do original)
                No Livro VIII (que é o último) tem a mesma Sibila outros versos mais notáveis do gênero daqueles que os Gregos chamaram acrósticos, cujo artifício é lerem-se pelas primeiras letras, e formar-se com elas alguma sentença, nome ou inscrição particular. Os versos, pois, são trinta e cinco e a sentença é esta: Jesus Christus, Dei filius, servator Crux Jesus Cristo, Filho de Deus, Salvador cruz.
                Estes versos estão em toda a sua propriedade no texto grego, e não se poderão traduzir na língua latina com o motivo daquelas letras sem alguma variedade. S. Agostinho, no Livro XVIII De Civitate Dei, cap. XXIII, diz que a primeira versão que chegou a suas mãos deste acróstico era em versos mal latinos, e que se não podiam ter em pé: Versibus male latinis et non stantibus; tão galante é a frase com que o Santo declara o mal falado e mal medido daqueles versos. Depois diz que o Procônsul Flaviano lhe mostrou outros mais conformes às leis da gramática e da poesia, os quais copia este naquele lugar, e nós deixamos de os pôr aqui, porque não guardam a ordem das letras iniciais, propriedade que falta em muitas outras versões latinas. A de João Bongro, traduzida por Xisto Betuleu, compreendeu e cumpriu felizmente com todas estas dificuldades, sem tomar outra licença mais que a de desatar a última letra em duas, e fazer de um X, C e S. É a seguinte:

Judicii metuet sudans presagia tellus
Et Rex ceternus magno descendet Olympo
Sublimis carnem mundumque ut judicet, omnem.
Unum suscipient numen pravique bonique
Summum, supremo cum Sanctis tempore mundi.
Carnifer ille homines judex inquiret in omnes,
Horrida terra vias caeli spinceque tenebunt.
Rejicient simulacta viri, gazamque retostam.
Ille domus caecas et Ditis claustra refringet.
Sanctior a mortis jam nexu libera lucem
Turba hominum cernet, scelerosos flamma piabit
Ultrix bertetuum: mala quae quicumque patravit
Sontica suppressitque diu, producent in auras
Deteget et turbis Deus obsita corda tenebris;
Erumnae et stridor dentis regnabit ubique;
Ipsum deficiet solis decus astra colore
Fusco obducentur, argentea luna peribit,
Insurgent valles, consident ardua montis,
Luxus sublimis mortales deseret oras.
Immensos colles aequabunt marmora campi.
Velivago nulli cernentur in aequore nautae.
Succendet terram fulmen, vaga lympha
Solis arescet ripis, fontesque dehiscent:
Et tuba de caelo tristis clangore sonabit
Raucisono mundi clades pereuntis acerbas;
Vastam terra chaos stygio monstrabit hiatu,
Atque Dei solio sistetur judicis omnis
Turba ducum regumque; pluet tum sulphure et igni
Omnibus extabunt ligni vexilla verendi
Robur et auxilium populo exoptata fidéli:
Certa pio generi vita, ast offensa malignis,
Rore bonos lustrans bisseni fontis ab unda:
Virgaque qua pecori dat ferrea jura magister
Carminis auspiciis qui crimina morte piabit
Servator Rex arternus Deus ipse patescit.

Destes mesmos versos faz menção Eusébio Cesariense na Vida de Constantino Magno, e Marco Túlio, que morreu cinquenta anos antes do nascimento de Cristo, no livro II De Divinatione. O sentido dos versos, em suma, é a vinda de Cristo a julgar o ,Mundo, com todas as circunstâncias de grandeza, majestade e horror que pertencem ao aparato e execução do juízo.
                O mistério da encarnação está com tanta e maior clareza no Livro I dos mesmos oráculos das Sibilas:

Tunc ad mortales veniet, mortalibus ipsis
In terris similis, natus Patris omnipotentis
Corpore vestitus.

Não falou com palavras mais claras S. Paulo, quando disse: In similitudinem hominum factus et habitu inventus ut homo. E mais abaixo se lê a pregação do Baptista, quase pelas mesmas palavras de S. Mateus:

Verum cum quaedam vox per deserta locorum
Nuncia mortales veniet, quae clamet ad omnes
Ut rectos faciant calles, animosque refurgent
A vitiis et aqua lustrentur corpora cuncta,
Ut nunquam doincets peccent in jura, renati...

A embaixada do Anjo à Virgem com o mesmo nome de Gabriel descreve a Sibila no Livro VIII por estas palavras:

E caelo veniens mortales induit artus.
Ac primum cortpus Gabriel ostendit honestum
Nuncius, hinc tali affatur sermone puellam:
Accipe, Virgo, Deum premio intemerata pudico.
Sic ait: est illam caelestis gratia mo11i
Leniit afiatu: tum virginitatis amatrix
Perpetuae magno subito correpta stupore
Atque metu trepida pressit formidine mentem.

E pelo mesmo estilo vai prosseguindo a história da encarnação, segundo as leis da história. E porque não faltasse com todas estas circunstâncias, até o presépio de Belém, alegria e pasmo dos pastores, aparecimento da estrela e adoração dos Reis. O nome da Virgem, assim como tinha declarado o do Anjo, diz no mesmo lugar:

Et brevis egressus Mariae de Virginis alvo
Exorta est nova lux.

Finalmente, resumindo todas as obras de Cristo, assim da vida santíssima, como da sua Paixão, até lhe pôr a coroa (como se esta fora o fim e assunto do seu poema) conclui com estes versos:

Ergo ad judicium veniet diciti memor hujus,
Persimilem formam portans in Virginis alvum,
Collustrans lympha manibus senioribus (?) omnes
Cuncta jubens faciet morboque medebitur omni.
Placabit ventos dicto sternetque profundum
Insanum, placidis pedibus calcando, fideque,
Ad virosa genas praedebit sputa prudentes
Verberibusque sacrum tradet proscindere tergum
[Viriginem enim castam tradet mortalibus ipse.]
Perque feret tacitus cotaphos ne forte sciatur
Quis sit, cujus, mortalibus unde locutum
Venerit, horrentemque feret de vepre coronam.

Até aqui a Sibila, compreendendo admiravelmente em tão poucas regras o nascimento virginal de Cristo, o sacramento do batismo, que instituiu e administrou, depois que teve (como ele diz) maiores as mãos, o império que exercitou sobre todas a criaturas, as enfermidades que curou milagrosamente, os mares que pisou andando placidamente, sobre as ondas, a sujeição com que lhe obedeceram os ventos, a paciência e humildade com que sofreu ser cuspido, açoitado e afrontado com mãos sacrílegas em seu próprio rosto, e coroado por escárnio com coroa de espinhos, dissimulando debaixo de tantas injúrias a grandeza, poder e majestade de quem era e de quem o mandara ao Mundo.
                Tanta como esta é a clareza com que falaram de Cristo as Sibilas, qual se não acha maior nem ainda igual nos Profetas. Sendo a razão desta providência (como bem notou Castálio) a rudeza e ignorância das cousas divinas em que viviam os Gentios, aos quais era necessário se falasse com maior clareza do que aos Hebreus, nascidos e criados entre os resplandores da Fé e conhecimento de Deus, tendo também estes ali tantos mestres que os pudessem alumiar e ensinar, e carecendo aqueles de toda a luz e doutrina.
                Se já não foi (como considera o mesmo autor e o prova com Isaías) que a escuridade dos Profetas, por permissão ou castigo, se acomodou à cegueira com que os Judeus haviam de negar a Cristo, e a claridade das Sibilas à fé com que os Gentios o haviam de crer. Nonne (são as palavras de Castálio) quae de Christo gentibus praedicta sunt ea clariora esse oportuit, quod Mose et cetera disciplina carebant, quae eis ad Christi lumen quasi proluceret: ut quod hic durat, id oraculorum perspicuitate compensaretur? Accedit eo quod (quemadmodum scitur ex Isaia) voluit Deus Judaeis obscuriorem esse Christi adventum, ut in eum obscurarent alque ita sua, pertinaciae poenas darent, quod idem de gentibus dicere non licet.
                Por meio destes oráculos das Sibilas, que andavam nas mãos de todos, principalmente dos sábios, como se vê em Platão e Aristóteles, era tão vulgar e famosa entre os Gentios a esperança daquele novo Rei e da idade dourada que havia de trazer ao Mundo com seu felicíssimo Reino, quanto a lemos elegantemente profetizada na IV Égloga de Virgilio, que morreu treze dias antes do nascimento de Cristo, e cita nela os oráculos da Sibila Cumea: Ultima Cumaei venit jam carminis aetas, para que entendêssemos que as Sibilas foram as Musas Sicélides que exercitaram cousas maiores, e que destas fontes bebeu aqueles levantados espíritos, e não nas de Aganipe ou Hipocrene.
                Eusébio Cesareense, no já citado livro da Vida de Constantino Magno, é de opinião que esta quarta Égloga de Virgílio é toda alegórica, e que debaixo da metáfora de Asínio, filho de Polion, foi verdadeiramente escrita e dedicada a Cristo, filho do Eterno Padre, encobrindo e envolvendo o vigilantíssimo Poeta a verdade desta sua fé e pensamento com as figuras e metáforas daquele seu Mecenas, para que o não condenasse a superstição romana como violador da divindade dos deuses. Intelligimus autem (diz Eusobio) dicta haec manifeste simul et obscure per allegorias prolata iis, qui carminum horum sensum altius sub conspectum divinitatis Dei scrutantur, innuere quomodo Poeta, ne quis eorum qui in regio orbe denominabantur, culpare posset quod contra patrias leges scriberet, et quae jam olim inde a majoribus de diis credita fuiissent, rejiceret, veritatem occuluerit.
                Desta mesma opinião de Eusébio são outros muitos autores, os quais constantemente se persuadem que o sujeito da IV Égloga virgiliana não foi outro senão Cristo, conhecido pelos oráculos das Sibilas, e certo são tão extraordinariamente grandes as cousas que o príncipe dos poetas diz naquele poema bucólico, que nem ainda do mesmo César se puderam dizer sem nota de demasiada adulação e indigna de um tão eminente juízo como o de Virgílio, talhado verdadeiramente para poeta de Cristo.
                Quem tiver curiosidade de ver a alegoria de toda a Égloga aplicada e explicada de Cristo, veja nos Antigos ao mesmo, e dos Modernos ao P.e Lacerda, e sobre todos (lacuna no original)..... que de versos de Virgílio teceu e compôs felizmente toda a vida de Cristo As razões mais fundamentais e sólidas com que se persuade e converte a verdade deste império temporal de Cristo são as que imediatamente se tiram dos mesmos títulos que acabamos de declarar. E assim a primeira e mais relevante de todas se funda na união hipostática com que a humanidade sagrada de Cristo está unida ao Divino Verbo, posto que esta mais se pode chamar natureza que razão; outra é o merecimento infinito de Cristo, inseparável a todas as suas ações, pelo qual lhe eram devidas todas as dignidades e grandezas humanas, sem exclusão de poder, autoridade e soberania alguma, em conseqüência do qual merecimento se ajuntou a ele a vontade eficaz divina, que foi o princípio efetivo donde manou e se derivou a Cristo a comunicação liberalíssima, e como investidora absoluta desta suprema e universal potestade; assim que as razões fundamentais do império temporal de Cristo são três: o ser quem é, o seu merecimento e a vontade divina, que é razão de si mesma.
                Estas razões capitais se podem ajudar e revestir de várias congruências, que facilmente se consideram muito convenientes todas ao decoro e majestade de Cristo; o qual, como cabeça dos homens que são compostos de carne e espírito, não era justo que tivesse sobre eles o domínio partido, senão inteiro, assim sobre as cousas e ações concernentes ao espírito, como as que pertencem ao corpo; antes, por Cristo ser verdadeiro e inteiro homem, composto não só de espírito, se não de carne, foi muito conveniente que não só tivesse o Império espiritual que pertence às almas, se não também o temporal que é próprio das corpos: ...ut sicut ipse e corpore et spiritu compositus erat, ita eum (Pater) et regem spirituum et corporum etiam fecerit, ut tam late ipsius regnum et imperium pateret quam ipsius Dei, como doutamente disse Stuniga, comentando o capítulo IX, v. 9, do Profeta Zacarias.
                Se os Trajanos e outros imperadores e príncipes do Mundo deram seus impérios e reinos inteiros aos estranhos que adotaram por filhos, como havemos de crer nem imaginar que desse Deus só uma parte de seu império e domínio a Cristo, que não só em quanto Deus, se não ainda em quanto homem, e seu filho natural e verdadeiro e unigênito? Se quis e não pôde (como em semelhante caso argumentava Agostinho) foi fraqueza; se pôde e não quis, foi inveja, e um ou outro pensamento fora blasfêmia contra o onipotente amor de tão divino Pai.
                A Adão deu Deus o império universal do Mundo com sujeição e otediência a todas as criaturas dele, só por ser feito a sua imagem e semelhança: Faciamus hominem ad imaginem et similitudinem nostram, ut praesit piscibus maris, et volatilibus caeli, et bestiis terrae,. Como negaria logo Deus este mesmo poder, não digo já àquele segundo Adão que veio restaurar as ruínas do primeiro, senão àquele que é imagem e retrato perfeitíssimo de sua sustância: Ipse est enim imago Patris et figura substantiae ejus? Haverá quem se atreva a dizer ou presumir que foi menor o poder de Cristo no Mundo que o de Adão ou que teve Adão poder que faltasse a Cristo? A carne de Adão que tomou Cristo não foi de Adão pecador, senão de Adão inocente, porque, como advertiu o Apóstolo, tomou a carne e não contraiu o pecado. E se Cristo não foi filho de Adão escravo, se não de Adão senhor, porque não reteria ao menos o que não perdeu em seu Pai?
                A geração de Cristo escrita por S. Mateus começa em David, e por S. Lucas em Adão; e se, por filho de David, melhor que Salomão lhe foi devido o cetro de Israel, por filho de Adão, melhor que Caim e Abel, porque se lhe há-de negar o do Mundo?
                Finalmente, é princípio geral e recebido de todos os teólogos, que se deve conceber e admitir na soberana pessoa de Cristo todos aqueles atributos de poder, grandeza e majestade, que sem implicação nem indecência se podem considerar nela, porque todos lhe são infinitamente devidos; e tão fora está deste perigo o império e domínio temporal que admitimos em Cristo, que antes da falta dele se podem arguir conhecidos inconvenientes, e ainda alguma conseqüência indigna e de menos decoro. Porque o império espiritual de Cristo, por supremo e universal que seja, só tem poder e jurdição indireta sobre as cousas e ações temporais, enquanto estas se ordenam ou subordinam ao fim e conservação das espirituais: e no caso ou suposição em que Cristo somente fosse Rei espiritual, segue-se (como doutamente infere o Padre Soares) que, se Cristo quisesse mandar a um homem ou a um anjo uma ação meramente temporal alheia (ainda que fosse para obrar um milagre), que o não poderia fazer livre e absolutamente a seu arbítrio e sem licença do dono dela (se comodamente o pudesse fazer de outra sorte): Indignum autem videtur (conclui o grande Doutor) haec et similia de Christi potestate sentire. Sendo logo este sentimento indigno do poder e majestade de Cristo e da soberania de sua pessoa, necessariamente havemos de dizer e confessar, em boa teologia, que não é somente espiritual o império e domínio que Cristo tem sobre o Mundo, se não também temporal, e que espiritual e temporalmente lhe são todos os homens e todas as cousas sujeitas.
                E quanto ao reparo da pobreza e desprezo das cousas temporais que Cristo veio ensinar ao Mundo, nós nos contentaremos com que os autores deste escrúpulo, por santos e espirituais que sejam, se contentem com o que se contentou este Monarca temporal do Mundo: imitem a pobreza de Cristo, pobre no nascimento, pobre na vida, pobre na morte, e pobre sobretudo na eleição de pais pobres, e não queiram mais pobreza, nem mais exemplo em Cristo. Muitos há que querem parecer pobres; alguns que o querem ser; mas quem queira ser e parecer filho de pobres: Quis est hic et laudabimus eum? Só Cristo e quem tem muito de Cristo.
                O domínio universal que Cristo tinha do Mundo era o que mais subiu de preço os quilates de sua pobreza. Não ter uso das cousas do Mundo quem não tem ou teve domínio delas, virtude pode ser, mas virtude que parece fortuna ou necessidade; porém senhor absoluto de tudo quanto há e pode haver no Mundo, e ter menos uso do mesmo Mundo do que os bichinhos da terra, e poder dizer com verdade: Vulpes foveas habent et volucres caeli nidos; filius autem hominis non habet ubi caput reclinet, oh! que pasmo, oh! que exemplo, oh! que confusão para os homens, ainda os mais desprezadores do Mundo!
                Mas replicam a esta resposta os autores da contrária opinião, e dizem que a pobreza evangélica, de que Cristo professou ser mestre, não consiste só na mortificação ou temperança do uso das cousas temporais, se não principalmente na renunciação do domínio delas; logo, no desprezo e abdicação deste domínio é que devia Cristo dar-nos o exemplo da perfeita pobreza. E pois é certo que foi Cristo consumadíssimo exemplar de todas as virtudes, e muito particularmente desta , segue-se que não só não teve o uso das cousas temporais, se não que também careceu do domínio de todas.
                Primeiramente digo que, para Cristo ser perfeitíssimo mestre e exemplar de todas as virtudes, não era necessário exercitar todos os atos particulares delas, ainda que os tivesse ensinado. Não era menos mestre nem menos exemplar Cristo da paciência do que o foi da pobreza, e sendo uma das mais altas proposições de sua doutrina na matéria do sofrimento, cum te percusserint in una maxilla, praebe illi et alleram sabemos contudo que, quando deram a Cristo a bofetada em presença do Pontífice Caifás, não ofereceu o Senhor a outra face, antes acudiu à calunia de que falsa e sacrilegamente o argüiam.
                Mas deixada esta estrada geral, porque não é nosso intento divertir o argumento, senão desfazê-lo, digo outra vez que na pobreza de Cristo, quanto a renunciação do domínio, havia outra razão mais forçosa e necessária, que era ser este ato incompatível com a natureza e essência do mesmo Cristo. Porque aquele domínio supremo e universal de todas as cousas fundava-se imediatamente, como dissemos, na união hipostática, e era não só propriedade inseparável, senão parte intrínseca dela; e assim como Cristo não podia renunciar nem abdicar de si a própria natureza, assim (diz o Padre Vasquez) não podia renunciar nem demitir de si o direito soberano domínio. O que podia só fazer Cristo era privar-se do uso dele, e assim o fez tão perfeita e perfeitissimamente como sabemos. Quanto mais qnue ainda no caso em que fora possível na pessoa de Cristo a renunciação do domínio temporal de todas as cousas, porventura que era mais conveniente ao mesmo exemplo do Mundo conservar o domínio sem o uso, que renunciar o uso e mais o domínio; porque Cristo, como mestre e exemplar da perfeição evangélica, não só devia dar exemplo aos religiosos que professam renunciar o domínio dos bens temporais senão também aos prelados e bispos, e ao supremo bispo e supremo prelado, cujo estado, sendo de maior perfeição, conserva o domínio e administração dos bens e só periga ou pode perigar na imoderação ou excesso do uso deles. Foi logo convenientíssimo que em Cristo se ajuntasse o sumo domínio e o sumo desprezo e abstinência das cousas do Mundo, para que no mesmo exemplar aprendessem os religiosos a mortificação do uso e os prelados a moderação do domínio.
                Finalmente, para que ponhamos o selo à confirmação desta nossa sentença e acabemos de desfazer as razões ou admirações, como dizíamos da parte contrária, provemos demonstrativamente a causa pelos efeitos, a potência pelos atos, a jurdição pelo exercício, e o direito (do modo que pode ser) pela posse. Temos neste ponto contra nós não só os inimigos, senão também os amigos. Resolvem os defensores da opinião contrária, e também muitos da nossa, que Cristo em toda a sua vida, não teve exercício algum do império temporal, nem em quanto Rei nem em quanto Senhor, porque nem fez ato que fosse próprio da dignidade real, nem se serviu de cousa alguma do Mundo, como quem teve só o domínio e senhorio dele. E daqui inferem, não todos mas só os que impugnam a nossa sentença, que vinha a ser totalmente ocioso este império temporal que consideramos em Cristo, e por conseguinte nulo, conforme aquele princípio vulgar da filosofia: Frustra est potentia quae non reducitur ad actum
                Mas começando pela forma desta conseqüência, ou colhe demasiadamente ou nada. Porque tão boa conseqüência é esta: Cristo não teve exercício de rei, logo não teve poder real; como esta: Cristo não teve exercício de juiz, logo não teve poder judicial. E nesta segunda conseqüência, sendo de Fé a premissa, é contra a Fé a conclusão. A premissa é de Fé, porque lemos no capítulo XII, de S. Lucas, que, pedindo dois irmãos a Cristo que julgasse certa dúvida que tinham entre si, o Senhor lhes respondeu: Quis me constituit judicem super vos? E a conclusão é contra a Fé, porque neiga contraditòriamente o texto de S. Paulo: Pater non judicat quemquam, sed omne judicium dedit filio, quia filius hominis est. Antes daqui se forma novo argumento em confirmação da verdade da nossa sentença, porque a potestade judiciária em Cristo foi conseqüência da dignidade real, como expressamente ensina S. Tomás na Questão LIX, Art. IV, ad. I: Potestas judicis secuta est in Christo regiam dignitatem. E a razão desta ordem natural é, posto que o Santo Doutor a não exprima, porque o ofício de julgar é parte da dignidade de Rei, conforme o texto de David: Et nunc, Reges, intelligite: erudimini qui judicatis terram. Por isso o mesmo Cristo, descrevendo o supremo e último ato de juízo em que há-de sentenciar o Mundo, se chama nomeadamente Rei: Tunc dicet Rex his qui a dexteris ejus erunt etc. E se é certo e de Fé que Cristo tem esta parte da jurdição e dignidade real, porque havemos de ser tão estreitos de coração que lha não concedamos toda?
                Os que admitem ou veneram conosco em Cristo o título e domínio de rei e concedem contudo que não teve exercício dele, dizem muito douta e conseqüentemente que, ainda que a dignidade e jurdição real em Cristo não tivesse ato ou exercício algum em sua vida, nem o haja de ter em outro tempo, nem por isso se deve julgar aquele poder por baldado e ocioso, porque serve, como falam os filósofos, de ornar e mais aperfeiçoar o sujeito. Bem assim como na humanidade do mesmo Cristo é certo que houve alguma potência, que nunca teve nem havia de ter ato (qual é a potência que há nos indivíduos para a conservação da espécie); e contudo ninguém a nega nem pode negar em Cristo, porque é perfeição natural da Humanidade.
                Persistindo na mesma suposição, se pode também dizer, não indouta nem indiscretamente, que, ainda que o domínio temporal de Cristo não teve aqueles atos ou exercício positivo que costuma ter nos reis e príncipes da terra, teve porém um ato excelentíssimo e um exercício contínuo, nunca visto até então no Mundo, a que podemos chamar negativo, que foi o não querer usar Cristo do mesmo domínio. E ter o domínio para poder e não querer usar dele (que é um ato heróico de humanidade e modéstia, o qual necessariamente supõe o mesmo domínio) não é tê-lo ocioso, se não mui gloriosamente exercitado, de maneira que neste sentido (que nem é vulgar nem violento) podemos dizer que não careceu Cristo do uso do domínio temporal que nele consideramos, e que o uso que teve daquele domínio foi a privação do mesmo uso, ou não querer usar dele. E se não, perguntemos a S. Ambrósio para que quis e mandou Cristo aos Apóstolos que comprassem espadas, ainda que fosse a preço das mesmas túnicas com que andavam cobertos, se lhes havia de mandar que as deixassem estar na bainha? e responde o grande Doutor que foi para mostrar Cristo que se podia defender e vingar de seus inimigos, mas não queria. Para este uso ou desuso quis Cristo a procuração das espadas, porque muitas vezes o mais nobre e o mais generoso uso do poder é não querer usar dele. E se aquelas espadas só para este uso não foram ociosas, porque o seria o domínio de Cristo, ainda que não tivesse outro uso mais que não querer o poderosíssimo Senhor usá-lo, para maior exemplo e doutrina nossa? Onde mais bem empregado e aplicado o domínio, que para poder dizer, depois do maior ato de humildade: Si ergo ego dominus et magister?
                Desta maneira respondem (e podem responder os que seguem que Cristo não teve exercício algum do império e domínio temporal; porém nós, ponderando devagar a história evangélica, temos por certo o contrário; pelo que respondemos negando a suposição, e por última confirmação da nossa opinião mostraremos, por atos próprios de jurdição e domínio, como foi Cristo Rei e Senhor temporal do Mundo, não só em ato primo (como diz a frase dos Teólogos) senão em ato segundo; e não só quanto a jurdicão e domínio, senão quanto ao uso e exercício dela; não porque pública e continuadamente o professasse Cristo, como fazem os reis da Terra, mas porque exercitou alguns atos particulares de império e domínio, que eram próprios só do legítimo Rei e verdadeiro Senhor do Mundo, como se vê claramente em muitos lugares e exemplos do Evangelho.
                O primeiro seja mandar Cristo, tanto que entrou neste Mundo, chamar os Reis do Oriente pela estrela, para que o viessem reconhecer e adorar por Rei. como eles mesmos disseram: Ubi est qui natus est Rex Judaeorum? Vidimus enim stellam ejus in Oriente et venimus adorare eum.
                Item em receber os tributos que lhe ofereceram os mesmos Reis em reconhecimento da soberania suprema de sua majestade, não só em quanto Deus, se não em quanto Rei. Nesta conformidade entendem todos os Padres o mistério das três espécies de ouro, incenso e mirra, que os Reis ofereceram: o incenso como a Deus, a mirra como a homem, e o ouro como a rei, e assim cantou Arato, poeta cristão da primeira Igreja, naquele verso que tão bem pareceu a S. Jerônimo:

Aurum, thus, myrrham regique hominique Deoque.
E a Igreja, no Hino da Epifania:
Thus, myrrham etaurum regium.

E muito antes David, no Salmo que começa: Deus, judicium tuum Regi da, et justitiam tuam filio Regis. Este Salmo se entende literalmente do Reino de Cristo, conforme a explicação de S. Jerónimo, S. Agostinho, S. Ambrósio, e o comum consenso de todos os Padres e da mesma Igreja; e não só do Reino de Cristo absolutamente, se não do Reino e Império temporal, como larga e eruditamente prova Alonço de Mendoça, na sua Relatio Theologica de universali Christi Regno. E em comprovação deste Reino de Cristo, alega David profeticamente no mesmo Salmo a adoração e tributos dos Reis do Oriente: Reges Tharsis et insulae numera offerent, Reges Arabum et Saba dona adducent, et adorabunt eum omnes Regeç terrae, omnes gentes servient ei.
                Finalmente, a entrada dos mesmos reis em Jerusalém, perguntando publicamente: Ubi est qui natus est Rex? que outra cousa foi, se não um pregão público e um Real! Real! por Cristo Rei do Mundo, com que o mesmo Rei se mandou apregoar na praça mais universal de todo ele, que era Jerusalém, e no meio do mesmo Mundo, que era o lugar onde aquela cidade estava situada?
                A mesma publicação fizeram os Anjos nos montes e campos de Judéia, quando anunciaram aos pastores: Quia natus est vobis hodie salvator qui est Christus dominus, in civitate David; respondendo·toda a milícia do Céu: Gloria in altissimis Deo ed in terra paz huminibus! Nas quais palavras todas não só apregoaram o nascimento e chegada ao Mundo do novo Rei, mas declararam também por to das as circunstancias de salvador, de ungido por Deus, de descendente de David, e da paz que trazia consigo, ser ele o Rei prometido aos Patriarcas e anunciado dos Profetas, que havia de salvar e dominar o Mundo; da qual publicação foram os mesmos pastores os terceiros pregoeiros, que divulgaram por toda a parte o que tinham visto, como se colhe claramente do texto de S. Lucas:Et omnes qui audierunt mirati sunt, et de his quae dicta erant a pastoribus ad ipsos. Que ato pois mais próprio e positivo de rei, que mandar-se publicar por tal, nas cortes e aldeias, nas cidades e nos campos, aos grandes e aos pequenos, com quatro pregões tão públicos e tão notáveis, de estrelas, de anjos, de reis, de pastores, e receber adorações e tributos dos mesmos reis, e ultimamente desobrigá-los da palavra que tinham dado a El-Rei Herodes, como senhor supremo de todos, e mandá-los como súbditos e novos embaixadores seus, assinalando-lhes o caminho por onde haviam de ir?
                Mas passemos do nascimento de Cristo aos dias mais chegados à sua morte, para que vejamos como, entrando e saindo do Mundo, se mostrou e publicou Rei e senhor de todo ele

Saturday 8 June 2019

Good Readings: "The Man Who Was Dead" by Thomas H. Knight (in English)

It was a wicked night, the night I met the man who had died. A bitter, heart-numbing night of weird, shrieking wind and flying snow. A few black hours I will never forget.
                "Well, Jerry, lad!" my mother said to me as I pushed back from the table and started for my sheepskin coat and the lantern in the corner of the room. "Surely you're not going out a night like this? Goodness gracious, Jerry, it's not fit!"
                "Can't help it, Mother," I replied. "Got to go. You've never seen me miss a Saturday night yet, have you now?"
                "No. But then I've never seen a night like this for years either. Jerry, I'm really afraid. You may freeze before you even get as far as—"
                "Ah, come now, Mother," I argued. "They'd guy me to death if I didn't sit in with the gang to-night. They'd chaff me because it was too cold for me to get out. But I'm no pampered sissy, you know, and I want to see—"
                "Yes," she retorted bitingly, "I know. You want to go and bask in that elegant company. Our stove's just as good as the one down at that dirty old store," continued my persistent and anxious parent, "and it's certainly not very flattering to think that you leave us on a night like this to—Who'll be there, anyway?"
                "Oh, the usual five or six I suppose," I answered as I adjusted the wick of my lantern, hearing as I did the snarl and cut of the wind through the evergreens in the yard.
                "That black-whiskered sphinx, Hammersly, will he be there?"
                "Yes, he'll be there, I'm pretty sure."
                "Hm-m!" she exclaimed, her expression now carrying all the contempt for my judgment and taste she intended it should. "Button your coat up good around your neck, then, if you must go to see your precious Hammersly and the rest of them. Have you ever heard that man say anything yet? Does he speak at all, Jerry?" Then her gentle mind, not at all accustomed to hard thoughts or contemptuous remarks, quickly changed. "Funny thing about that fellow," she mused. "He's got something on his mind. Don't you think so, Jerry?"
                "Y-es, yes I do. And I've often wondered what it could be. He certainly's a queer stick. Got to admit that. Always brooding. Good fellow all right, and, for a 'sphinx' as you call him, likable. But I wonder what is eating him?"
                "What do you suppose it could be, Jerry boy?" questioned Mother following me to the door, the woman of her now completely forgetting her recent criticisms and, perhaps, the rough night her son was about to step into. "Do you suppose the poor chap has a—a—broken heart, or something like that? A girl somewhere who jilted him? Or maybe he loves someone he has no right to!" she finished excitedly, the plates in her hand rattling.
                "Maybe it's worse than that," I ventured. "P'r'aps—I've no right to say it—but p'r'aps, and I've often thought it, there's a killing he wants to forget, and can't!"
                I heard my mother's sharp little "Oh!" as I shut the door behind me and the warmth and comfort of the room away. Outside it was worse than the whistle of the wind through the trees had led me to expect. Black as pitch it was, and as cold as blazes. For the first moment or two, though, I liked the feel of the challenge of the night and the racing elements, was even a little glad I had added to the dare of the blackness the thought of Hammersly and his "killing." But I had not gone far before I was wishing I did not have to save my face by putting in an appearance at the store that night.
                Every Saturday night, with the cows comfortable in their warm barn, and my own supper over, I was in the habit of taking my place on the keg or box behind the red-hot stove in Pruett's store. To-night all the snow was being hurled clear of the fields to block the roads full between the old, zigzag fences. The wind met me in great pushing gusts, and while it flung itself at me I would hang against it, snow to my knees, until the blow had gone along, when I could plunge forward again. I was glad when I saw the lights of the store, glad when I was inside.
                They met me with mock applause for my pluck in facing the night, but for all their sham flattery I was pleased I had come, proud, I must admit, that I had been able to plough my heavy way through the drifts to reach them. I saw at a glance that my friends were all there, and I saw too that there was a strange man present.
                A very tall man he was, gaunt and awkward as he leaned into the angle of the two counters, his back to a dusty show-case. He attracted my attention at once. Not merely because he appeared so long and pointed and skinny, but because, of all ridiculous things in that frozen country, he wore a hard derby hat! If he had not been such a queer character it would have been laughable, but as it was it was—creepy. For the man beneath that hard hat was about as queer a looking character as I have ever seen. I supposed he was a visitor at the store, or a friend of one of my friends, and that in a little while I would be introduced. But I was not.
                I took my place in behind the stove, feeling at once, though I am far from being unsociable usually, that the man was an intruder and would spoil the evening. But despite his cold, dampening presence we were soon at it, hammer and tongs, discussing the things that are discussed behind hospitable stoves in country stores on bad nights. But I could never lose sight of the fact that the stranger standing there, silent as the grave, was, to say the least, a queer one. Before long I was sure he was no friend or guest of anyone there, and that he not only cast a pall over me but over all of us. I did not like it, nor did I like him. Perhaps it would have been just as well after all, I thought, had I heeded my mother and stayed home.
                Jed Counsell was the one who, innocently enough, started the thing that changed the evening, that had begun so badly, into a nightmare.
                "Jerry," he said, leaning across to me, "thinkin' of you s'afternoon. Readin' an article about reincarnation. Remember we were arguin' it last week? Well, this guy, whoever he was I've forgot, believes in it. Says it's so. That people do come back." With this opening shot Jed sat back to await my answer. I liked these arguments and I liked to bear my share in them, but now, instead of immediately answering the challenge, I looked around to see if any other of our circle were going to answer Jed. Then, deciding it was up to me, I shrugged off the strange feeling the man in the corner had cast over me, and prepared to view my opinions.
                "That's just that fellow's belief, Jed," I said. "And just as he's got his so have I mine. And on this subject at least I claim my opinion is as good as anybody's." I was just getting nicely started, and a little forgetting my distaste for the man in the corner, when the fellow himself interrupted. He left his leaning place, and came creaking across the floor to our circle around the store. I say he came "creaking" for as he came he did creak. "Shoes," I naturally, almost unconsciously decided, though the crazy notion was in my mind that the cracking I heard did sound like bones and joints and sinews badly in need of oil. The stranger sat his groaning self down among us, on a board lying across a nail keg and an old chair. Only from the corner of my eye did I see his movement, being friendly enough, despite my dislike, not to allow too marked notice of his attempt to be sociable seem inhospitable on my part. I was about to start again with my argument when Seth Spears, sitting closest to the newcomer, deliberately got up from the bench and went to the counter, telling Pruett as he went that he had to have some sugar. It was all a farce, a pretext, I knew. I've known Seth for years and had never known him before to take upon himself the buying for his wife's kitchen. Seth simply would not sit beside the man.
                At that I could keep my eyes from the stranger no longer, and the next moment I felt my heart turn over within me, then lie still. I have seen "walking skeletons" in circuses, but never such a man as the one who was then sitting at my right hand. Those side-show men were just lean in comparison to the fellow who had invaded our Saturday night club. His thighs and his legs and his knees, sticking sharply into his trousers, looked like pieces of inch board. His shoulders and his chest seemed as flat and as sharp as his legs. The sight of the man shocked me. I sprang to my feet thoroughly frightened. I could not see much of his face, sitting there in the dark as he was with his back to the yellow light, but I could make out enough of it to know that it was in keeping with the rest of him.
                In a moment or two, realizing my childishness, I had fought down my fear and, pretending that a scorching of my leg had caused my hurried movement, I sat down again. None of the others said a word, each waiting for me to continue and to break the embarrassing silence. Hammersly, black-whiskered, the "sphinx" as my mother had called him, watched me closely. Hating myself not a little bit for actually being the sissy I had boasted I was not, I spoke hurriedly, loudly, to cover my confusion.
                "No sir, Jed!" I said, taking up my argument. "When a man's dead, he's dead! There's no bringing him back like that highbrow claimed. The old heart may be only hitting about once in every hundred times, and if they catch it right at the last stroke they may bring it back then, but once she's stopped, Jed, she's stopped for good. Once the pulse has gone, and life has flickered out, it's out. And it doesn't come back in any form at all, not in this world!"
                I was glad when I had said it, thereby asserting myself and downing my foolish fear of the man whose eyes I felt burning into me. I did not turn to look at him but all the while I felt his gimlety eyes digging into my brain.
                Then he spoke. And though he sat right next to me his voice sounded like a moan from afar off. It was the first time we had heard this thing that once may have been a voice and that now sounded like a groan from a closely nailed coffin. He reached a hand toward my knee to enforce his words, but I jerked away.
                "So you don't believe a man can come back from the grave, eh?" he grated. "Believe that once a man's heart is stilled it's stopped for good, eh? Well, you're all wrong, sonny. All wrong! You believe these things. I know them!"
                His interference, his condescension, his whole hatefulness angered me. I could now no longer control my feeling. "Oh! You know, do you?" I sneered. "On such a subject as this you're entitled to know, are you? Don't make me laugh!" I finished insultingly. I was aroused. And I'm a big fellow, with no reason to fear ordinary men.
                "Yes, I know!" came back his echoing, scratching voice.
                "How do you know? Maybe you've been—?"
                "Yes, I have!" he answered, his voice breaking to a squeak. "Take a good look at me, gentlemen. A good look." He knew now that he held the center of the stage, that the moment was his. Slowly he raised an arm to remove that ridiculous hat. Again I jumped to my feet. For as his coat sleeve slipped down his forearm I saw nothing but bone supporting his hand. And the hand that then bared his head was a skeleton hand! Slowly the hat was lifted, but as quickly as light six able-bodied men were on their feet and half way to the door before we realized the cowardliness of it. We forced ourselves back inside the store very slowly, all of us rather ashamed of our ridiculous and childlike fear.
                But it was all enough to make the blood curdle, with that live, dead thing sitting there by our fire. His face and skull were nothing but bone, the eyes deeply sunk into their sockets, the dull-brown skin like parchment in its tautness, drawn and shriveled down onto the nose and jaw. There were no cheeks. Just hollows. The mouth was a sharp slit beneath the flat nose. He was hideous.
                "Come back and I'll tell you my yarn," he mocked, the slit that was his mouth opening a little to show us the empty, blackened gums. "I've been dead once," he went on, getting a lot of satisfaction from the weirdness of the lie and from our fear, "and I came back. Come and sit down and I'll explain why I'm this living skeleton."
                We came back slowly, and as I did I slipped my hand into my outside pocket where I had a revolver. I put my finger in on the trigger and got ready to use the vicious little thing. I was on edge and torn to pieces completely by the sight of the man, and I doubt not that had he made a move towards me my frayed nerves would have plugged him full of lead. I eyed my friends. They were in no better way than was I. Fright and horror stood on each face. Hammersly was worst. His hands were twitching, his eyes were like bright glass, his face bleached and drawn.
                "I've quite a yarn to tell," went on the skeleton in his awful voice. "I've had quite a life. A full life. I've taken my fun and my pleasure wherever I could. Maybe you'll call me selfish and greedy, but I always used to believe that a man only passed this way once. Just like you believe," he nodded to me, his neck muscles and jaws creaking. "Six years ago I came up into this country and got a job on a farm," he went on, settling into his story. "Just an ordinary job. But I liked it because the farmer had a pretty little daughter of about sixteen or seventeen and as easy as could be. You may not believe it, but you can still find dames green enough to fall for the right story.
                "This one did. I told her I was only out there for a time for my health. That I was rich back in the city, with a fine home and everything. She believed me. Little fool!" He chuckled as he said it, and my anger, mounting with his every devilish word, made the finger on the trigger in my pocket take a tighter crook to itself. "I asked her to skip with me," the droning went on, "made her a lot of great promises, and she fell for it." His dry jaw bones clanked and chattered as if he enjoyed the beastly recital of his achievement, while we sat gaping at him, believing either that the man must be mad, or that we were the mad ones, or dreaming.
                "We slipped away one night," continued the beast. "Went to the city. To a punk hotel. For three weeks we stayed there. Then one morning I told her I was going out for a shave. I was. I got the shave. But I hadn't thought it worth while to tell her I wouldn't be back. Well, she got back to the farm some way, though I don't know—"
                "What!" I shouted, springing before him. "What! You mean you left her there! After you'd taken her, you left her! And here you sit crowing over it! Gloating! Boasting! Why you—!" I lived in a rough country. Associated with rough men, heard their vicious language, but seldom used a strong word myself. But as I stood over that monster, utterly hating the beastly thing, all the vile oaths and prickly language of the countryside, no doubt buried in some unused cell in my brain, spilled from my tongue upon him. When I had lashed him as fiercely as I was able I cried: "Why don't you come at me? Didn't you hear what I called you? You beast! I'd like to riddle you!" I shouted, drawing my gun.
                "Aw, sit down!" he jeered, waving his rattling hand at me. "You ain't heard a thing yet. Let me finish. Well, she got back to the farm some way or another, and something over a year later I wandered into this country again too. I never could explain just why I came back. It was not altogether to see the girl. Her father was a little bit of a man and I began to remember what a meek and weak sheep he was. I got it into my head that it'd be fun to go back to his farm and rub it in. So I came.
                "Her father was trying out a new corn planter right at the back door when I rounded the house and walked towards him. Then I saw, at once, that I had made a mistake. When he put his eyes on me his face went white and hard. He came down from the seat of that machine like a flash, and took hurried steps in the direction of a doublebarrelled gun leaning against the woodshed. They always were troubled with hawks and kept a gun handy. But there was an ax nearer to me than the gun was to him. I had to work fast but I made it all right. I grabbed that ax, jumped at him as he reached for the gun, and swung—once. His wife, and the girl too, saw it. Then I turned and ran."
                The gaunt brute before us slowly crossed one groaning knee above the other. We were all sitting again now. The perspiration rolled down my face. I held my gun trained upon him, and, though I now believed he was totally mad, because of a certain ring of truth in that empty voice, I sat fascinated. I looked at Seth. His jaw was hanging loose, his eyes bulging. Hammersly's mouth was set in a tight clenched line, his eyes like fire in his blue, drawn face. I could not see the others.
                "The telephone caught me," continued our ghastly story-teller, "and in no time at all I was convicted and the date set for the hanging. When my time was pretty close a doctor or scientist fellow came to see me who said, 'Blaggett, you're slated to die. How much will you sell me your body for?' If he didn't say it that way he meant just that. And I said, 'Nothing. I've no one to leave money to. What do you want with my body?' And he told me, 'I believe I can bring you back to life and health, provided they don't snap your neck when they drop you.' 'Oh, you're one of those guys, are you?' I said then. 'All right, hop to it. If you can do it I'll be much obliged. Then I can go back on that farm and do a little more ax swinging!'" Again came his horrible chuckle, again I mopped my brow.
                "So we made our plans," he went on, pleased with our discomfiture and our despising of him. "Next day some chap came to see me, pretending he was my brother. And I carried out my part of it by cursing him at first and then begging him to give me decent burial. So he went away, and, I suppose, received permission to get me right after I was cut down.
                "There was a fence built around the scaffold they had ready for me and the party I was about to fling, and they had some militia there, too. The crowd seemed quiet enough till they led me out. Then their buzzing sounded like a hive of bees getting all stirred up. Then a few loud voices, then shouts. Some rocks came flying at me after that, and it looked to me as though the hanging would not be so gentle a party after all. I tell you I was afraid. I wished it was over.
                "The mob pushed against the fence and flattened it out, coming over it like waves over a beach. The soldiers fired into the air, but still they came, and I, I ran—up, onto the scaffold. It was safer!" As he said this he chuckled loudly. "I'll bet," he laughed, "that's the first time a guy ever ran into the noose for the safety of it! The mob came only to the foot of the scaffold though, from where they seemed satisfied to see the law take its course. The sheriff was nervous. So cut up that he only made a fling at tying my ankles, just dropped a rope around my wrists. He was like me, he wanted to get it over, and the crowd on its way. Then he put the rope around my neck, stepped back and shot the trap. Zamm! No time for a prayer—or for me to laugh at the offer!—or a last word or anything.
                "I felt the floor give, felt myself shoot through. Smack! My weight on the end of the rope hit me behind the ears like a mallet. Everything went black. Of course it would have been just my luck to get a broken neck out of it and give the scientist no chance to revive me. But after a second or two, or a minute, or it could have been an hour, the blackness went away enough to allow me to know I was hanging on the end of the rope, kicking, fighting, choking to death. My tongue swelled, my face and head and heart and body seemed ready to burst. Slowly I went into a deep mist that I knew then was the mist, then—then—I was off floating in the air over the heads of the crowd, watching my own hanging!
                "I saw them give that slowly swinging carcass on the end of its rope time enough to thoroughly die, then, from my aerial, unseen watching place, I saw them cut it—me—down. They tried the pulse of the body that had been mine, they examined my staring eyes. Then I heard them pronounce me dead. The fools! I had known I was dead for a minute or two by that time, else how could my spirit have been gone from the shell and be out floating around over their heads?"
                He paused here as he asked his question, his head turning on its dry and creaking neck to include us all in his query. But none of us spoke. We were dreaming it all, of course, or were mad, we thought.
                "In just a short while," went on the skeleton, "my 'brother' came driving slowly in for my body. With no special hurry he loaded me onto his little truck and drove easily away. But once clear of the crowd he pushed his foot down on the gas and in five more minutes—with me hovering all the while alongside of him, mind you—floating along as though I had been a bird all my life—we turned into the driveway of a summer home. The scientific guy met him. They carried me into the house, into a fine-fitted laboratory. My dead body was placed on a table, a huge knife ripped my clothes from me.
                "Quickly the loads from ten or a dozen hypodermic syringes were shot into different parts of my naked body. Then it was carried across the room to what looked like a large glass bottle, or vase, with an opening in the top. Through this door I was lowered, my body being held upright by straps in there for that purpose. The door to the opening was then placed in position, and by means of an acetylene torch and some easily melting glass, the door was sealed tight.
                "So there stood my poor old body. Ready for the experiment to bring it back to life. And as my new self floated around above the scientist and his helper I smiled to myself, for I was sure the experiment would prove a failure, even though I now knew that the sheriff's haste had kept him from placing the rope right at my throat and had saved me a broken neck. I was dead. All that was left of me now was my spirit, or soul. And that was swimming and floating about above their heads with not an inclination in the world to have a thing to do with the husk of the man I could clearly see through the glass of the bell.
                "They turned on a huge battery of ultra-violet rays then," continued the hollow droning of the man who had been hanged, "which, as the scientist had explained to me while in prison, acting upon the contents of the syringes, by that time scattered through my whole body, was to renew the spark of life within the dead thing hanging there. Through a tube, and by means of a valve entering the glass vase in the top, the scientist then admitted a dense white gas. So thick was it that in a moment or two my body's transparent coffin appeared to be full of a liquid as white as milk. Electricity then revolved my cage around so that my body was insured a complete and even exposure to the rays of the green and violet lamps. And while all this silly stuff was going on, around and around the laboratory I floated, confident of the complete failure of the whole thing, yet determined to see it through if for no other reason than to see the discomfiture and disappointment that this mere man was bound to experience. You see, I was already looking back upon earthly mortals as being inferior, and now as I waited for this proof I was all the while fighting off a new urge to be going elsewhere. Something was calling me, beckoning me to be coming into the full spirit world. But I wanted to see this wise earth guy fail.
                "For a little while conditions stayed the same within that glass. So thick was the liquid gas in there at first that I could see nothing. Then it began to clear, and I saw to my surprise that the milky gas was disappearing because it was being forced in by the rays from the lights in through the pores into the body itself. As though my form was sucking it in like a sponge. The scientist and his helper were tense and taut with excitement. And suddenly my comfortable feeling left me. Until then it had seemed so smooth and velvety and peaceful drifting around over their heads, as though lying on a soft, fleecy cloud. But now I felt a sudden squeezing of my spirit body. Then I was in an agony. Before I knew what I was doing my spirit was clinging to the outside of that twisting glass bell, clawing to get into the body that was coming back to life! The glass now was perfectly clear of the gas, though as yet there was no sign of life in the body inside to hint to the scientist that he was to be successful. But I knew it. For I fought desperately to break in through the glass to get back into my discarded shell of a body again, knowing I must get in or die a worse death than I had before.
                "Then my sharper eyes noted a slight shiver passing over the white thing before me, and the scientist must have seen it in the next second, for he sprang forward with a choking cry of delight. Then the lolling head inside lifted a bit. I—still desperately clinging with my spirit hands to the outside, and all the time growing weaker and weaker—I saw the breast of my body rise and fall. The assistant picked up a heavy steel hammer and stood ready to crash open the glass at the right moment. Then my once dead eyes opened in there to look around, while I, clinging and gasping outside, just as I had on the scaffold, went into a deeper, darker blackness than ever. Just before my spirit life died utterly I saw the eyes of my body realize completely what was going on, then—from the inside now—I saw the scientist give the signal that caused the assistant to crash away the glass shell with one blow of his hammer.
                "They reached in for me then, and I fainted. When I came back to consciousness I was being carefully, slowly revived, and nursed back to life by oxygen and a pulmotor."
                The terrible creature telling us this tale paused again to look around. My knees were weak, my clothes wet with sweat.
                "Is that all?" I asked in a piping, strange voice, half sarcastic, half unbelieving, and wholly spellbound.
                "Just about," he answered. "But what do you expect? I left my friend the scientist at once, even though he did hate to see me go. It had been all right while he was so keen on the experiment himself and while he only half believed his ability to bring me back. But now that he'd done it, it kinda worried him to think what sort of a man he was turning loose of the world again. I could see how he was figuring, and because I had no idea of letting him try another experiment on me, p'r'aps of putting me away again, I beat it in a hurry.
                "That was five years ago. For five years I've lived with only just part of me here. Whatever it was trying to get back into that glass just before my body came to life—my spirit, I've been calling it—I've been without. It never did get back. You see, the scientist brought me back inside a shell that kept my spirit out. That's why I'm the skeleton you see I am. Something vital is missing."
                He stood up cracking and creaking before us, buttoning his loose coat about his angular body. "Well, boys," he asked lightly, "what do you think of that?"
"I think you're a liar! A damn liar!" I cried. "And now, if you don't want me to fill you full of lead, get out of here and get out now! If I have to do it to you, there's no scientist this time to bring you back. When you go out you'll stay out!"
                "Don't worry," he grimaced back to me, waving a mass of bones that should have been a hand contemptuously at me, "I'm going. I'm headed for Shelton." He stalked the length of the floor and shut the door behind him. The beast had gone.
                "The dirty liar!" I cried. "I wish—yes—I wish I had an excuse to kill him. Just think of that being loose, will you? A brute who would think up such a yarn! Of course it's all absurd. All crazy. All a lie."
                "No. It's not a lie."
                I turned to see who had spoken. Hammersly's voice was so unfamiliar and now so torn in addition that I could not have thought he had spoken, had he not been looking right at me, his glittering eyes challenging my assertion. Would wonders never cease? I asked myself. First this outrageous yarn, now Hammersly, the "sphinx," expressing an opinion, looking for an argument! Of course it must be that his susceptible and brooding brain had been turned a bit by the evening we had just experienced.
                "Why Hammersly! You don't believe it?" I asked.
                "I not only believe it, Jerry, but now it's my turn to say, as he did, I know it! Jerry, old friend," he went on, "that devil told the truth. He was hanged. He was brought back to life; and Jerry—I was that scientist!"
                Whew! I fell back to a box again. My knees seemed to forsake me. Then I heard Hammersly talking to himself.
                "Five years it's been," he muttered. "Five years since I turned him loose again. Five years of agony for me, wondering what new devilish crimes he was perpetrating, wondering when he would return to that little farm to swing his ax again. Five years—five years."
                He came over to me, and without a word of explanation or to ask my permission he reached his hand into my pocket and drew out my revolver, and I did not protest.
                "He said he was headed for Shelton," went on Hammersly's spoken thoughts. "If I slip across the ice I can intercept him at Black's woods." Buttoning his coat closely, he followed the stranger out into the night.
                I was glad the moon had come up for my walk home, glad too when I had the door locked and propped with a chair behind me. I undressed in the dark, not wanting any grisly, sunken-eyed monster to be looking in through the window at me. For maybe, so I thought, maybe he was after all not headed for Shelton, but perhaps planning on another of his ghastly tricks.
                But in the morning we knew he had been going toward Shelton. Scientists, doctors, and learned men of all descriptions came out to our village to see the thing the papers said Si Waters had stumbled upon when on his way to the creamery that next morning.
                It was a skeleton, they said, only that it had a dry skin all over it. A mummy. Could not have been considered capable of containing life only that the snow around it was lightly blotched with a pale smear that proved to be blood, that had oozed out from the six bullet holes in the horrid chest. They never did solve it.
                There were five of us in the store that night. Five of us who know. Hammersly did what we all wanted to do. Of course his name is not really Hammersly, but it has done here as well as another. He is black-whiskered though, and he is still very much of a sphinx, but he'll never have to answer for having killed the man he once brought back to life. Hammersly's secret will go into five other graves besides his own.

Friday 7 June 2019

Friday Sung Word: "Hino do Bonsucesso" by Lamartine Babo (in Portuguese)

Para a torcida rubro-anil
Palmas eu peço
Na Leopoldina em cada esquina
Quem domina é o Bonsucesso
Lá surgiu um jogador sensacional
Surgiu Leônidas, o maioral!

Quando a turma joga em casa
A linha arrasa
Que baile... Que troça!
A torcida grita em coro
Não há choro
A vitória hoje é nossa!


You can hear the Bonsucesso anthem sung by an unknown singer here.