XI - Malsinação
As três
velhas conversaram por largo tempo, não porque muitas coisas se tivessem a
dizer a respeito do que se acabava de passar, porém porque a comadre,
remontando ao mais remoto passado, entendera que para dizer que muito se
interessava pela volta do afilhado para casa era mister contar desde sua origem
a vida inteira deste, de sua mãe, de seu pai, e a sua própria, que fora mais
comprida de todas, e porque as duas velhas entenderam que para dizerem que o
Leonardo estava ali muito bem, e que não consentiriam que ele saísse,
entenderam ser preciso fazer o que havia feito a comadre-contar a sua vida e de
toda a família desde as eras primitivas.-Ora, como todas essas histórias
contadas de parte a parte eram cheias de episódios, já sentimentais, já
tocantes, já alegres, aconteceu que entre muita gargalhada correram também
algumas lágrimas durante a conversação. Não há nada que mais sirva para fazer
nascer e firmar a amizade, e mesmo a intimidade, do que seja o riso e as
lágrimas: aqueles que se riram, e principalmente aqueles que uma vez choraram
juntos, têm muita facilidade em fazerem-se amigos. Com efeito, no fim da
conversa, as três velhas estimavam-se mutuamente de uma maneira incrível.
Se esta
facilidade de expansão não fosse acompanhada da grande dificuldade de
rompimentos e de intrigas, seria uma das grandes virtudes daquele tempo. Porém
as simpatias que se criavam em uma hora de conversa transformavam-se em ódio
num minuto de desavença.
Enquanto
as velhas conversavam, os contendores acalmaram-se, passou a tormenta, e se
tudo não ficou logo acabado, ficou pelo menos esquecido por algum tempo.
Leonardo achava-se já disposto a atender às súplicas de Vidinha e das outras
moças que o não queriam por modo algum fora de casa: os dois rivais derrotados
pareciam resignar-se.
Quando
terminou a conferência das três, a comadre entendeu que era chegado o momento
de começar a pregação ao Leonardo, e começou nestes termos:
— Rapaz
dos trezentos demos, valham-te os serafins... tu tens nessa cabeça pedras em
vez de miolos; o sol não cobre criatura mais renegada do que tu. És um viramundo;
andas feito um valdevinos sem eira nem beira nem ramo de figueira, sem ofício
nem benefício, sendo pesado a todos nesta vida...
— Se é
cá conosco que fala, acudiu uma das velhas, deixe-o estar aonde está que está
muito bem.
— Qual!
senhora, pois se vem levantar poeira na casa alheia! é um galo de brigas.
— Ora,
isso é lá coisa entre rapazes e raparigas; deixá-los que eles se arranjarão,
redargüiu a velha.
Ingenuidade
infantil das velhas daquele tempo!
A
comadre ia prosseguir; porém sendo a cada passo interrompida, tomou por seu
barato dar a coisa por finda. Retirou-se, ficando convencionado que Leonardo
permaneceria onde estava.
Vidinha
ficou contentíssima com semelhante resultado; os primos porém fizeram má cara,
porque tal não esperavam. Desde que viram que tudo ia continuar no mesmo pé,
renasceu-lhes o despeito. Atiraram algumas indiretas, com as quais ia tudo
pegando fogo novamente; porém contiveram-se ainda; um deles chamou o outro em
particular, e começaram por seu turno a conferenciar, porém em segredo. Não
havia nada mais natural: o inimigo era comum, juntavam-se para atacá-lo; depois
que ele fosse derrotado, a questão se decidiria então entre os dois.
Depois
desta última conferência serenou tudo definitivamente; cada qual recolheu-se a
seu posto, e passaram-se muitos dias em santa paz. Durante esses dias mais se
estreitaram os laços entre o Leonardo e Vidinha. É sempre assim que sucede:
quereis que nos liguemos estreitamente a uma coisa? Fazei-nos sofrer por ela.
Os dois tinham sofrido um pelo outro, e era isto uma forte razão para se amarem
cada vez mais.
A
comadre vinha regularmente ver o afilhado e visitar suas novas amigas.
Tudo
parecia enfim nos seus eixos naturais; porém os dois primos tramavam, e
tramavam largamente. Ninguém entretanto atinava com o que seria.
Leonardo
passava vida completa de vadio, metido em casa todo o santo dia, sem lhe dar o
menor abalo o que se passava lá fora pelo mundo. O seu mundo consistia
unicamente nos olhos, nos sorrisos e nos requebros de Vidinha.
Um dia
forjaram uma patuscada semelhante à que dera origem ao conhecimento do Leonardo
com a família. Deviam sair de madrugada da cidade e passarem fora o dia.
Preparou-se tudo: cestos de comida, esteiras e mais arranjos. Vidinha mandou
encordoar de novo sua viola; avisaram-se os convivas do costume.
À hora
aprazada partiram.
Quem
estivesse menos distraído pelo prazer da patuscada do que estava qualquer dos
suciantes, notaria que os dois primos deixavam-se de vez em quando ficar atrás,
e cochichavam como se tramassem uma conspiração. Ninguém porém dera atenção a
semelhante coisa.
Chegaram
ao lugar determinado ao romper do dia. Apenas começavam a preparar-se para o
almoço, viram surdir, ninguém soube bem de onde, a figura alta, magra, severa e
sarcástica do nosso célebre major Vidigal. Correu por todos um sinal de pouco
contentamento, exceto pelos primos, que trocaram entre si um olhar de
inteligência e triunfo.
Os
olhos de Vidinha dirigiram-se instintivamente para Leonardo.
O major
Vidigal deixou passar o primeiro momento de surpresa, e depois, sorrindo-se,
disse, como costumava, com sua voz descansada:
— Não
tenham medo de mim, que não sou nenhum papa-crianças, nem eu venho desmanchar
prazeres de ninguém. Quero só saber quem é aqui o amigo Leonardo.
Vidinha
fez logo cara de choro. Leonardo levantou-se sem saber como, e disse todo
trêmulo:
— Sou
eu...
— Ora
vejam, respondeu o Vidigal em tom de mofa, eu não sabia!... Pois, meus amigos,
não se assustem que o caso não foi para tanto: um súcio de menos numa patuscada
não faz falta nenhuma. Este amigo vai conosco. Se ele puder, voltará em
breve... mas creio que já não chegará a tempo para acabar a patuscada.
— Qual,
meu Deus! mas por que é então isto? que mal é que ele fez?
— Ele
não fez nem faz nada; mas é mesmo por não fazer nada que isto lhe sucede. Leva,
granadeiro.
E um
dos granadeiros com que viera o major acompanhado foi tratando de conduzir o
Leonardo.
O
Vidigal seguiu-os tranqüilamente, sem alterar o passo, e dizendo polidamente:
—
Adeus, minha gente.
Vidinha
desatou a chorar, exclamando:
— Foi
malsinação!
— Foi
malsinação! repetiram todos, menos os dois primos.
A súcia
levantou-se.
XII - Triunfo completo de José Manuel
Era um
sábado de tarde; em casa de D. Maria havia um lufa-lufa imenso; andavam as
crias e mais escravos de dentro para fora; espanava-se a sala; arrumavam-se as
cadeiras; corria-se, falava-se, gritava-se.
A dona
da casa trajava, fora do ordinário, um rico vestido de cassa bordado de prata,
de corpinho muito curto e mangas de um volume enorme. Seja dito de passagem que
a prata do bordado estava já mareada, e o mais do vestido um pouco encardido.
Trazia ainda D. Maria um penteado de desmedida altura, um formidável par de
rodelas de crisólitas nas orelhas, e dez ou doze anéis de diversos tamanhos e
feitios nos dedos.
Luisinha
trajava também um vestido que qualquer menos entendido na matéria desconfiaria
que era filho legítimo do de sua tia; trazia um toucado de plumas brancas na
cabeça e um rosário de ouro de contas mui grossas na cintura.
Acabavam
de sair as duas assim preparadas do quarto de vestir, quando sentiu-se rodar
uma carruagem e parar na porta da casa. Luisinha estremeceu; D. Maria levou o
lenço aos olhos, e tirou-o em pouco tempo molhado de lágrimas.
— Está
ai a carruagem, gritou uma das crias que estava de sentinela à janela.
A
carruagem era um formidável, um monstruoso maquinismo de couro, balançando-se
pesadamente sobre quatro desmesuradas rodas. Não parecia coisa muito nova; e
com mais dez anos de vida poderia muito bem entrar no número dos restos
infelizes do terremoto, de que fala o poeta.
Mal
tinha este trem parado à porta, sentiu-se o rodar de outro que veio parar junto
dele. O que dissemos a respeito dos vestidos de D. Maria e sua sobrinha pode
perfeitamente aplicar-se aos dois trens; o segundo parecia filho legitimo do
primeiro.
Do
último que chegara apeou-se José Manuel, e entrou em casa de D. Maria, que o
veio receber à porta.
É
inútil observar que a vizinhança estava toda à janela, e via todo aquele
movimento com olhos regalados pela mais desabrida curiosidade.
José
Manuel trajava casaca de seda preta, calções da mesma fazenda e cor; trazia
meias também pretas e sapatos de entrada baixa, ornados com enormes fivelas de
prata, espadim e chapéu de pasta.
Acompanhavam-no
dois amigos vestidos pelo mesmo teor.
José
Manuel estava com um ar entre compungido e triunfante, e desfazia-se em mesuras
à D. Maria.
Depois
de tudo isto quer ainda o leitor que lhe declaremos que a sobrinha de D. Maria
casava-se naquela tarde com José Manuel?
Chegou
o momento da partida. Luisinha, conduzida por D. Maria, que lhe ia servir de
madrinha, embarcou num dos destroços da arca de Noé, a que chamamos carruagem;
José Manuel, acompanhado por quem lhe ia servir de padrinho, fez outro tanto, e
partiram depressa para a igreja. Fizeram bem em partir depressa, porque se se
demorassem alguns minutos, corriam o risco de serem devorados pelos olhos dos
vizinhos.
Apenas
cessou a bulha das carruagens, começaram estes últimos em conversa renhida, de
que damos aqui uma pequena amostra.
—
Senhora, dizia uma sujeita que morava junto de D. Maria para outra que morava
defronte, o tal noivo poderá ser coisa boa, mas não dou nada pela cara dele.
— E a
noiva?... respondia a outra; arrenego também da lambisgóia...
— E o
filho do Leonardo ficou vendo estrelas?...
— Por
força: venceu este porque é um finório de conta.
— Se a
velha deixar tudo à sobrinha, não é mau arranjo...
—
Decerto. Pois não sabe que o seu defunto marido era um homem que viajava para a
Índia?
Neste
tom continuaram até a volta das carruagens.
Agora
demos ao leitor algumas explicações a respeito do triunfo de José Manuel.
Depois
das boas obras do mestre-de-reza, de que os leitores já foram informados, José
Manuel reabilitara-se completamente junto a D. Maria; tornara a freqüentar a
casa, e foi pouco a pouco pondo barro à sua parede. Um sucesso inesperado veio
ajudá-lo com a maior eficácia. O testamenteiro do finado irmão de D. Maria, do
pai de Luisinha, que já tinha tido com D. Maria, como talvez não estejam
esquecidos os leitores, uma demanda por causa desta última, surdiu de repente
com uma nova prebenda relativa a uma pontinha de testamento, e D. Maria teve de
entrar de novo com ele em uma luta judiciária. Isto coincidiu com a morte
inesperada do procurador de D. Maria. José Manuel ofereceu-se para cuidar da
causa; e com tanto jeito arranjou tudo, que em muito pouco tempo, coisa que
procurador nenhum teria feito, venceu a demanda em favor de D. Maria.
Ora, os
leitores hão de estar lembrados da mania que tinha D. Maria por uma demandazinha;
atirava-se a ela com vontade, e tal era o empenho que empregava na mais
insignificante questão judiciária, que em tais casos parecia ter em jogo sua
vida. Daqui se poderá concluir a satisfação que teria ela no dia em que se
achava vencedora, e como se não julgaria obrigada a quem lhe proporcionasse a
vitória.
José
Manuel aproveitou-se disto; e no dia em que veio ler a D. Maria a sentença
final que resolvia a pendência em seu favor, pediu-lhe a mão da sobrinha, a
qual lhe foi prometida sem grandes escrúpulos.
Luisinha
estava nesta ocasião em um daqueles períodos de abatimento que se costumam
produzir nos moços, e principalmente nas moças que ainda marcham por aquela
estrada florida que leva dos 13 aos 25 anos, quando as oprime o isolamento.
Ora,
como sabem todos os que me lêem, o Leonardo tinha abandonado Luisinha; ela
aceitou portanto indiferentemente a proposta de sua tia.
XIII - Escápula
Deixemos
aos noivos o gozo tranqüilo da sua lua-de-mel; deixemos D. Maria desfazer-se em
carinhos e conselhos à sua sobrinha, que os recebia indiferentemente, e em
atenções para com José Manuel, cuja cabeça se tinha tornado repentinamente uma
aritmética completa, toda algarismos, toda cálculos, toda multiplicações; e
voltemos a saber o que foi feito do Leonardo, a quem deixamos na ocasião em que
fora arrancado pelo Vidigal dos braços do amor e da folia.
O
Vidigal tinha-o posto diante de si, ao lado de um granadeiro, e marchava poucos
passos atrás. Enquanto caminhavam o granadeiro pretendeu dar-lhe conversa; mas
ele a nada respondia, parecendo absorto em grave cogitação.
Quem
estivesse muito atento havia de notar que algumas vezes o Leonardo parecia,
ainda que muito ligeiramente, apressar o passo, que outras vezes o retardava,
que seu olhar e sua cabeça voltavam-se de vez em quando, quase
imperceptivelmente, para a esquerda ou para a direita. O Vidigal, a quem nada
disto escapava, achava em todas estas ocasiões pretextos para dar sinais de si;
tossia, pisava mais forte, arrastava no chão o chapéu-de-sol que sempre trazia
na mão, como quem queria dizer ao Leonardo, respondendo aos seus pensamentos
íntimos:
—
Cuidado! eu aqui estou.-E o Leonardo entendia tudo aquilo às mil maravilhas;
contraía os lábios de raiva e de impaciência. Entretanto nem por isso
abandonava a sua idéia: queria fugir. Desconfiava que ia para a casa da guarda,
e pedia interiormente aos seus deuses que alongassem de muitas léguas as ruas
que tinha de percorrer. Quando via de longe uma esquina dizia consigo:-E agora;
quebro por ali fora, e bato pernas.-Porém ao chegar perto da esquina, o Vidigal
achava alguma coisa que dizer ao granadeiro, e passava-se a esquina. Se lhe
aparecia à direita ou à esquerda um corredor aberto, pensava
consigo:-Embarafusto por ali adentro, e sumo-me.-Mas no momento em que ia tomar
a última decisão, parecia-lhe sentir a mão do Vidigal que o agarrava pela gola
da jaqueta, e esfriava. Não eram os granadeiros que lhe metiam medo; nunca em
todos os planos de fugir que lhe passavam naquela ocasião pela cabeça contou
uma só vez com eles; mas o Vidigal, o cruel major, era a quantidade constante
de seus cálculos.
O pobre
rapaz, durante aqueles combates íntimos, suava mais do que no dia em que fez a
primeira declaração de amor a Luisinha. Só havia na sua vida um transe a que
assemelhava, aquele em que então se achava, era o que se havia passado, quando
criança, naquele meio segundo que levara a percorrer o espaço nas asas do
tremendo pontapé que lhe dera seu pai.
Repentinamente
uma circunstância veio favorecê-lo. Não sabemos por que causa ouviu-se um
grande alarido na rua: gritos, assovios e carreiras. O Leonardo teve uma
espécie de vertigem: zuniram-lhe os ouvidos, escureceram-se-lhe os olhos, e...
dando um encontrão no granadeiro que estava perto dele, desatou a correr. O
Vidigal deu um salto, e estendeu o braço para o agarrar; mas apenas roçou-lhe
com a ponta dos dedos pelas costas. O rapaz tinha calculado bem: o Vidigal
distraiu-se com o ruído que se fizera na rua, e aproveitou a ocasião. O Vidigal
e os granadeiros soltaram-se imediatamente em seu alcance: o Leonardo
embarafustou pelo primeiro corredor que achou aberto; os seus perseguidores
entraram incontinenti atrás dele, e subiram em tropel o primeiro lance da
escada. Apenas o haviam dobrado, e subiam o segundo, abriram-se as cortinas de
uma cadeirinha que se achava na entrada, e pela qual tinham eles passado, sai
dela Leonardo, e de um pulo ganha a rua. Ao entrar, tendo dado com aquele
refúgio, metera-se dentro; os granadeiros e o Vidigal não haviam reparado em
tal com a precipitação com que entraram, e isso lhe valeu.
É
impossível descrever o que sentiu o Leonardo quando por entre as cortinas da
cadeirinha viu-os passar e subir a escada. Foi uma rápida alternativa de frio e
de calor, de tremor e de imobilidade, de medo e de coragem; veio-lhe outra vez
à lembrança o pontapé paterno: era o termo constante de comparação para todos
os seus sofrimentos.
Enquanto
o Vidigal e os granadeiros varejavam a casa em que haviam entrado, Leonardo
punha-se longe, e em quatro pulos achava-se em casa de Vidinha, que o recebeu
com um abraço, exclamando:
— Qual!
aí está ele!
Um raio
de alegria iluminou todos os semblantes, menos o dos dois irmãos rivais, que
ficaram horrivelmente desapontados. As duas velhas tiraram da cabeça as
mantilhas que já haviam tomado para dar providências sobre o caso. A presença
do Leonardo foi uma aura benfazeja que espalhou as nuvens de uma grossa
tormenta, que tendo começado a roncar quando Leonardo foi preso com aquelas
palavras-foi malsinação-viera desabar de todo em casa, e prometia durar muito
tempo.
Vidinha,
tendo a princípio trocado com os primos algumas indiretas a respeito da prisão
de Leonardo, julgara conveniente deixar-se de panos quentes, e fora direito a
eles, como se diz, com quatro pedras na mão, atribuindo-lhes o que acabava de
suceder.
Eles
denegaram, e travaram-se com ela de razões. A princípio as duas velhas estavam
ambas da parte de Vidinha, porém tendo esta atirado três ou quatro ditos fortes
demais aos primos, a tia ofendeu-se, e tomou o partido dos dois filhos: a outra
velha, mãe de Vidinha, protesta contra a parcialidade de sua irmã, e reforça
ainda mais, acompanhada dos que restavam, o partido de Vidinha. Divididos e
extremados assim os dois campos, com terríveis campeões de lado a lado, fácil é
prever-se o que teria sucedido se o Leonardo não viesse tão a tempo para
acalmar tudo.
Tomado
pelo prazer de ver-se livre, nem teve ele tempo de fazer recriminações aos seus
inimigos: já sabia com certeza quem fora a causa do que acabava de sofrer, pois
que o tinha percebido pela conversa que com ele tentara travar o granadeiro.
O major
Vidigal fora às nuvens com o caso: nunca um só garoto, a quem uma vez tivesse
posto a mão, lhe havia podido escapar; e entretanto aquele lhe viera pôr sal na
moleira; ofendê-lo em sua vaidade de bom comandante de polícia, e degradá-lo
diante dos granadeiros. Quem pregava ao major Vidigal um logro, fosse qual
fosse a sua natureza, ficava-lhe sob a proteção, e tinha-o consigo em todas as
ocasiões. Se o Leonardo não tivesse fugido, e arranjasse depois a soltura por
qualquer meio, o Vidigal era até capaz, por fim de contas, de ser seu amigo;
mas tendo-o deixado mal, tinha-o por seu inimigo irreconciliável enquanto não
lhe desse desforra completa.
Já se
vê pois que as fortunas do Leonardo redundavam-lhe sempre em mal: era realmente
um mal naquele tempo ter por inimigo o major Vidigal, principalmente quando se
tinha, como o Leonardo, uma vida tão regular e tão lícita.
Veremos
agora o que se passou na casa em que entrara o Vidigal com os granadeiros em
procura do Leonardo.
XIV - O Vidigal Desapontado
O major
Vidigal, vendo-se logrado, deu urros; e, como já fizemos sentir aos leitores,
prometeu a si mesmo tomar séria vingança do Leonardo.
— Ora,
dizia ele consigo, gastar meu tempo nesta vida, gastar os meus miolos a pensar
nos meios de dar caça a quanto vagabundo gira por esta cidade, conseguir, à
custa de muitos dias de fadiga, de muitas noites passadas sem pregar olho, de
muita carreira, de muito trabalho, fazer-me temido, respeitado por aqueles que
a ninguém temem e respeitam, os vadios e peraltas; e agora no fim de contas vir
um melquetrefezinho pôr-me sal na moleira, envergonhar-me diante destes
soldados e de toda esta gente! Agora, não há garoto por aí que, sabendo disto,
não se esteja a rir de mim, e não conte já com a possibilidade de me pregar um
segundo mono como este!...
O major
tinha razão: riam-se com efeito dele; e os primeiros que o faziam eram os
granadeiros. Apesar de que, escravos da disciplina, empregavam os mais sinceros
esforços para coadjuvá-lo; e apesar também de que revertia para eles alguma
glória das façanhas do major, não puderam entretanto deixar de achar graça no
que acabava de suceder, pois conheciam a presunção do Vidigal, e repararam na
cara desapontada com que ele havia ficado. Depois, apenas o major pôs pé fora
da soleira da casa onde lhe tinha escapado Leonardo, uma multidão imensa que
tudo havia presenciado desatou a rir estrondosamente.
—
Então, Sr. major, dizia-lhe um dos da turba, desta vez.
Passarinho foi-se embora,
Deixou-me as penas na mão.
— Sr.
major, dizia outro, procure nos bolsos.
—
Dentro da barretina, emendava outro.
— Atrás
da porta, replicava aquele.
E um
coro de risadas acompanhava cada um destes conselhos.
— Lá
está o bicho dentro da cadeirinha! gritou um repentinamente. O Vidigal, como
que instintivamente, correu à cadeirinha e abriu-lhe as cortinas.
Nessa
ocasião as risadas foram homéricas: o major compreendeu então qual fora o meio
por que lhe escapara o Leonardo, e soltou um-ah!-prolongadíssimo. Enfim
retirou-se acabrunhado, e ruminando projetos para sua reabilitação.
— Se
aqueles rapazes da Conceição, dizia consigo o Vidigal, que me foram levar a
nota do tal malandro, me tivessem avisado que ele era desta laia, eu não teria
passado por esta imensa vergonha.
Por
estas palavras vêem os leitores que as imputações da Vidinha contra os primos
tinham mais que muito fundamento. Com efeito, o que se acabava de passar não
era senão o resultado do ajuste que no dia da grande briga, por aquele motivo
que o leitor bem sabe, haviam feito os dois rivais: tinham eles malsinado ao
Leonardo. Foram ter com o Vidigal, e sem precisar mentir armaram ao Leonardo
uma cama muito bem feita: era um homem sem ofício nem benefício, vivendo à
custa alheia, enchendo de pernas a casa de duas mulheres velhas, a quem não
tinha aproveitado a experiência, e, o que é mais, roubando aos primos o amor de
sua prima.
O
Vidigal regalara os olhos ouvindo a narração, e ficara muito agradecido aos
dois rapazes pela nova que lhe levaram: era mais um pendão que ia juntar aos
louros de suas façanhas policiais. A primeira tentativa custou-lhe porém bem
caro.
Eis
aqui pouco mais ou menos as reflexões em que o major ia engolfado:-Nada lhe
seria mais agradável do que dia mais dia menos, quando ninguém pensasse em tal,
acompanhado de uma escolta de granadeiros, dirigir-se à casa das duas velhas,
cercá-la, e pilhar o Leonardo sem que lhe pudesse escapar. isto porém repugnava
ao seu orgulho ofendido. Muitas vezes se tinha, é verdade, servido desse meio,
porém fora isso para poder pilhar a capadócios de longa data, tidos e havidos
como tais, e velhos no ofício. Não queria pois servir-se do mesmo meio para
agarrar um recruta no ofício, que ainda agora começava. Nada, tal não fazia; não
havia fazer cerco, e o que é mais, não queria de modo algum o adjutório dos
granadeiros; jurava a si mesmo que ele sozinho, sem o apoio de ninguém, havia
de pôr a mão no Leonardo.
Ia o
Vidigal entrando na casa da guarda, para onde se dirigia, depois da derrota,
quando sentiu-se repentinamente agarrado pelas pernas, e viu a seus pés uma
mulher de mantilha, que chorava, soluçando muito, com o lenço no rosto.
— Que é
isto, senhora? Deixe-me. Ora isto hoje é dia de má sina.
Continuaram
os soluços por única resposta.
—
Senhora, deixa-me ou não as pernas? Eu não gosto de carpideiras... entende?
Soluços
ainda.
— Ora
não está má esta... Se lhe morreu alguém, vá chorar na cama, que é lugar
quente.
Redobrou
o pranto.
—
Valham-me trezentos diabos!... Quando é que isto terá fim?... Esta mulher acaba
por atirar-me no chão...
Estava
já muita gente junta na porta.
Passado
finalmente um pouco de tempo em silêncio, quando já o major estava disposto a
empregar alguma medida de rigor para ver-se livre da carpideira, esta ergueu a
cabeça, e tirando o lenço da cara exclamou entre lágrimas:
— Sr.
major, solte, solte por quem é meu afilhado, solte, solte o pobre rapaz; ele é
um doido, é verdade, mas...
E os
soluços lhe embargaram muito a propósito a voz.
Era a
comadre que, tendo sabido da prisão do afilhado, viera fazer em seu favor
aquela choradeira, ignorando que ele se tivesse evadido. A cena produziu o
efeito esperado. Os granadeiros, de cada vez que a comadre dizia-solte,
solte-desatavam a rir; tendo por boca pequena explicado tudo aos demais
circunstantes; estes os acompanhavam.
O major
tomou tudo aquilo como um escárnio que o gênio da vadiação e do garotismo lhe
fazia: era mister que ele, para ver-se livre da comadre, que não lhe largava os
joelhos, declarasse por sua própria boca, diante de toda aquela gente, que o
Leonardo havia fugido! Declarou-o, e fugiu de todos aqueles olhares, em cada um
dos quais via um insulto.
A
comadre, apenas ouviu a declaração, tratou de retirar-se, e não pôde também
deixar de achar graça no caso.
XV - Caldo entornado
A
comadre, tendo deixado o major entregue à sua vergonha, dirigira-se
imediatamente para a casa onde se achava Leonardo para felicitá-lo e contar-lhe
o desespero em que a sua fuga tinha posto o Vidigal. O Leonardo contava com isso,
e não se admirou; Vidinha porém e as duas velhas, por entre muita praga e
esconjuro, deram grandes risadas à custa do major. A comadre, segundo seu
costume, aproveitou o ensejo, e depois que se aborreceu de falar no major
desenrolou um sermão ao Leonardo, no qual, algumas exagerações de parte, havia
grande fundo de justiça; e tanto que até a própria Vidinha chegou a dar-lhe
inteira razão quanto a alguns trechos. O tema do sermão foi a necessidade de
buscar o Leonardo uma ocupação, de abandonar a vida que levava, gostosa sim,
porém sujeita a emergências tais como a que acabava de dar-se. A sanção de
todas as leis que a predadora impunha ao seu ouvinte eram as garras do Vidigal.
—
Haveis de afinal cair-lhe nas unhas, dizia ela no fim de cada período; e então
o côvado e meio te cairá também nas costas.
Esta
idéia do côvado e meio fez brecha no espírito do Leonardo: ser soldado era
naquele tempo, e ainda hoje talvez, a pior coisa que podia suceder a um homem.
Prometeu pois sinceramente emendar-se e tratar de ver um arranjo em que
estivesse ao abrigo de qualquer capricho policial do terrível major. Achar
porém ocupação para quem nunca cuidou nela até certa idade, e assim de pé para
mão, não era das coisas mais fáceis.
Entretanto
o zelo da comadre pôs-se em atividade, e poucos dias depois entrou ela muito
contente, e veio participar ao Leonardo que lhe tinha achado um excelente
arranjo que o habilitava, segundo pensava, a um grande futuro, e o punha
perfeitamente a coberto das iras do Vidigal; era o arranjo de servidor na
ucharia real. Deixando de parte o substantivo ucharia, e atendendo só ao
adjetivo real, todos os interessados e o próprio Leonardo regalaram os olhos
com o achado da comadre. Empregado da casa real?! oh! isso não era coisa que se
recusasse; e então empregado na ucharia! essa mina inesgotável, tão farta e tão
rica!... A proposta da comadre foi aceita sem uma só reflexão contra, da parte
de quem quer que fosse.
Como a
comadre pudera arranjar semelhante coisa para o afilhado é isso que pouco nos
deve importar.
Dentro
de poucos dias achou-se o Leonardo instalado no seu posto, muito cheio e
contente de si.
O
major, que o não perdia de vista, soube-lhe dos passos, e mordeu os beiços de
raiva quando o viu tão bem aquartelado; só deixando a vida que levava podia o
Leonardo cortar ao major pretextos para pôr-lhe a unha mais dia menos dia.
— Se
ele se emenda?! dizia pesaroso o major; se ele se emenda perco eu a minha
vingança... Mas... (e esta esperança o alentava) ele não tem cara de quem
nasceu para emendas.
O major
tinha razão: o Leonardo não parecia ter nascido para emendas. Durante os
primeiros tempos de serviço tudo correu às mil maravilhas; só algum
mal-intencionado poderia notar em casa de Vidinha uma certa fartura desusada na
despensa; mas isso não era coisa em que alguém fizesse conta.
O
Leonardo porém parece que recebera de seu pai a fatalidade de lhe previrem
sempre os infortúnios dos devaneios do coração.
Dentro
do pátio da ucharia morava um toma-largura em companhia de uma moça que lhe
cuidava na casa; a moça era bonita, e o toma-largura um machacaz talhado pelo
molde mais grotesco; a moça fazia pena a quem a via nas mãos de tal possuidor.
O
Leonardo, cujo coração era compadecido, teve, como todos, pena da moça; e
apressemo-nos a dizer, era tão sincero esse sentimento que não pôde deixar de
despertar também a mais sincera gratidão ao objeto dele. Quem pagou o resultado
da pena de um e da gratidão da outra foi o toma-largura.
Vidinha
lá por casa começou a estranhar a assiduidade do novo empregado na sua
repartição, e a notar o quer que fosse de esmorecimento de sua parte para com
ela.
Um dia
o toma-largura tinha saído em serviço; ninguém esperava por ele tão cedo: eram
11 horas da manhã. O Leonardo, por um daqueles milhares de escaninhos que
existem na ucharia, tinha ido ter à casa do toma-largura. Ninguém porém pense
que era para maus fins. Pelo contrário era para o fim muito louvável de levar à
pobre moça uma tigela de caldo do que há pouco fora mandado a el-rei...
Obséquio de empregado da ucharia. Não há aqui nada de censurável. Seria
entretanto muito digno de censura que quem recebia tal obséquio não o
procurasse pagar com um extremo de civilidade: a moça convidou pois ao Leonardo
para ajudá-la a tomar o caldo. E que grosseiro seria ele se não aceitasse tão
belo oferecimento? Aceitou.
De
repente sente-se abrir uma porta: a moça, que tinha na mão a tigela, estremece,
e o caldo entorna-se.
O
toma-largura, que acabava de chegar inesperadamente, fora a causa de tudo isto.
O Leonardo correu precipitadamente pelo caminho mais curto que encontrou; sem
dúvida em busca de outro caldo, uma vez que o primeiro se tinha entornado. O
toma-largura corre-lhe também ao alcance, sem dúvida para pedir-lhe que
trouxesse desta vez quantidade que chegasse para um terceiro.
O caso
foi que daí a pouco ouviu-se lá por dentro barulho de pratos quebrados, de
móveis atirados ao chão, gritos, alarido; viu-se depois o Leonardo atravessar o
pátio da ucharia à carreira e o toma-largura voltar com os galões da farda
arrancados, e esta com uma aba de menos.
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No dia
seguinte o Leonardo foi despedido da ucharia.
XVI - Ciúmes
No dia
seguinte já o Vidigal sabia de cor e salteado tudo quanto havia sucedido ao
Leonardo, e pôs-se alerta, pois que a ocasião era oportuna.
O
Leonardo entrara para a ucharia com o pé esquerdo: a tormenta por que havia
passado nada foi em comparação da que lhe caiu nas costas, quando em casa se
soube da causa verdadeira de sua saída.
É uma
grande desgraça não corresponder a mulher a quem amamos aos nossos afetos;
porém não é também pequena desventura o cairmos nas mãos de uma mulher a quem
deu na cabeça querer-nos bem deveras. O Leonardo podia dar a prova desta última
verdade. Vidinha era ciumenta até não poder mais: ora, as mulheres têm uma
infinidade de maneiras de manifestar este sentimento. A umas dá-lhe para chorar
em um canto, e choram aí em ar de graça dilúvios de lágrimas: isto é muito
cômodo para quem as tem de sofrer. Outras recorrem às represálias, e nesse caso
desbancam incontinenti a quem quer que seja: esta maneira é seguramente muito
agradável para elas próprias. Outras não usam da mais leve represália, não
espremem uma lágrima, mas assim por um espaço de oito ou quinze dias, desde que
desponta a aurora, até que cai a noite, resmungam um calendário de lamentações,
em que entram seu pai, sua mãe, seus parentes e amigos, seu compadre, sua
comadre, seu dote, seus filhos e filhas, e tudo por aí além; isso sem cessar um
só instante, sem um segundo de descanso: de maneira a deixar na cabeça do
mísero que a escuta uma assuada eterna, capaz de fazer amolecer um cérebro de
pedra. Outras entendem que devem afetar desprezo e pouco-caso: essas tornam-se
divertidas, e faz gosto vê-las. Outras enfim deixam-se tomar de um furor
desabrido e irreprimível; praguejam, blasfemam, quebram os trastes, rompem a
roupa, espancam os escravos e filhos, descompõem os vizinhos: esta é a pior de
todas as manifestações, a mais desesperadora, a menos econômica, e também a
mais infrutífera. Vidinha era do número destas últimas.
Apenas
pois, como há pouco dizíamos, se verificou a verdadeira causa da saída do
Leonardo, desabou um temporal que só terá semelhante no que há de preceder ao
aniquilamento do globo. Depois de gritar, chorar, maldizer, blasfemar, ameaçar,
rasgar, quebrar, destruir, Vidinha parou um instante, concentrou-se, meditou, e
depois, como tomando uma grande resolução:
— Minha
mãe, disse dirigindo-se a uma das velhas, quero a sua mantilha...
— Filha
de Deus, acudiu a velha, que desatino é esse? onde é que ides agora de
mantilha?...
— Eu cá
sei onde vou... quero a sua mantilha... tenho dito... quero a sua mantilha...
Foram
todos reunindo-se em roda de Vidinha, surpreendidos por aquela resolução.
O
Leonardo estava sentado, ou antes encolhido a seu canto, quedo e silencioso.
— Quero
a sua mantilha, minha mãe; quero, e quero...
— Mas
para onde ides, rapariga?... Ora, meu Deus!... isso foi coisa que vos
fizeram...
— Quero
ir à ucharia...
—
Jesus!...
— Quero
ir... que me importa que seja a casa do rei?... Hei de ir... hei de procurar o
tal toma-largura... quero fazer-lhe cá duas perguntas... e, ou o Menino Jesus
não é filho da Virgem, ou na tal ucharia não fica hoje coisa sobre coisa.
— Que
loucura, rapariga... que desatino!...
Os dois
primos riam-se interiormente do que se estava passando.
Não há
coisa mais eminentemente prosaica do que uma mulher quando se enfurece. Tudo
quanto em Vidinha havia de requebro, de languidez, de voluptuosidade tinha
desaparecido; estava feia, e até repugnante.
Ninguém
houve que a pudesse desviar do seu propósito: ela foi tomando a mantilha e
dispondo-se a sair; rogos, choros, nada a pôde conter.
O
Leonardo viu que o caso estava malparado, e tendo estado até então calado,
decidiu-se também a pedir a Vidinha que não saísse. Foi, como se costuma dizer,
pior a emenda que o soneto.
—
Qual!... responde Vidinha... essa agora é que havia de ser bonita... Qual! pois
eu não hei de sair?... Tinha que ver... então por pedido do senhor? Ora qual...
E foi
saindo.
Começava
a anoitecer.
A gente
de casa ficou toda na maior aflição; ninguém sabia o que se havia de fazer. O
Leonardo tomou a resolução de acompanhar Vidinha a ver se a detinha em caminho.
Vidinha
caminhava tão depressa que a principio o Leonardo quase que a perdia de vista;
finalmente conseguiu alcançá-la, e começou a pedir-lhe que voltasse, fazendo as
maiores promessas de comedir-se dali em diante, e de lhe não dar mais motivos
de desgosto. Vidinha porém a nada atendia, e caminhava sempre. O Leonardo
recorreu a ameaças; Vidinha redobrou a passos: voltou de novo a rogativas;
Vidinha caminhava sempre.
Já
estavam no largo do Paço: Vidinha, quase a correr, deixou o Leonardo umas
poucas de braças atrás de si, entrou muito adiante dele pelo portão da ucharia
adentro, e desapareceu. O Leonardo parou um instante a resolver-se se entraria
também ou não. Finalmente decidiu-se a entrar. No momento em que ia transpondo
a soleira do portão, voltou repentinamente, e ia disparando uma carreira: uma
mão magra, mas vigorosa, o deteve agarrando-o pela gola da jaqueta: era a mão do
major Vidigal, com quem ele havia esbarrado ao querer entrar, e de quem
pretendia fugir. Vendo que lhe seria inútil qualquer tentativa, porque ali
perto havia guarda, o Leonardo resignou-se. O major olhou para ele soltando uma
risadinha maligna; e disse-lhe apenas muito pausada e descansadamente:
— Ora
vamos...
O
Leonardo entendeu bem a significação daquelas duas palavras, e caminhou, ao
lado do major, na direção que este lhe indicava.