XVII - Fogo de palha
Deixemos
o Leonardo seguindo seu destino acompanhado do major Vidigal, e vamos ver o que
se passou na ucharia depois de sua prisão. Vidinha indagou aqui, indagou ali, e
lá entrou como um raio pela casa do toma-largura. A moça do caldo, achando-se
nessa ocasião descuidada, sofreu um grande susto com a chegada de Vidinha, que,
conhecendo por instinto ser aquela a causa de seus males, foi largando a mantilha
sobre uma cadeira e investindo para ela.
— Venho
aqui, disse, para lhe dizer mesmo na cara que vm.cê é uma criatura sem
sentimentos...
A moça,
não podendo atinar com a significação daquilo, ficou pasma e sem saber o que
havia de responder.
Vidinha
prosseguiu:
— Não
tem sentimentos, digo-lho, e ninguém me há de desdizer.
— Vamos
ver que diabo de história é esta, bradou uma voz de estentor.
Era o
toma-largura que, achando-se em casa naquela ocasião, e tendo ouvido as duas
primeiras apóstrofes de Vidinha, chegava para dar fé do que se passava.
Por
mais arrogante que fosse a voz do toma-largura, e por mais ameaçadora que fosse
a sua figura quase hercúlea, Vidinha não recuou um passo, não desfez uma ruga
da testa, antes pareceu mostrar que a sua presença ali favorecia suas
intenções; tanto que dirigindo-se a ele o foi logo apostrofando também pela
seguinte maneira:
— É
vm.cê um homem que eu não sei para que traz barbas nessa cara...
A
surpresa, e mesmo também a figura de Vidinha, descomposta pela raiva, desarmaram-no
um pouco; e respondeu mais mansamente:
—
Então, menina, veio aqui só para dizer coisas assim tão bonitas? Quem a trouxe
cá?
— Ora,
quem me havia de trazer? respondeu Vidinha em tom de mofa, lançando para a
terceira personagem desta cena um olhar significativo; ora, quem me havia de
trazer?... Qual!... eu vim só ver se podia tomar um caldo!...
A moça
do toma-largura empalideceu, este regalou os olhos, e abanou com a cabeça como
quem dizia-entendo,-e quis ficar imediatamente muito zangado com a recordação
daquele fato, que a humildade de sua companheira, e talvez mesmo o seu humor,
tinha feito esquecer. Vidinha porém para dizer aquelas últimas palavras tinha
serenado um pouco o seu semblante, e ganhara muito em seus encantos
desfigurados até então pela raiva; além disso, ao pronunciar o-qual-do costume,
descerrara um ligeiro sorriso, deixando ver seus magníficos dentes.
O
toma-largura parecia pertencer talvez à família dos Leonardos; enterneceu-se
imediatamente, e não teve animo senão de sorrir-se e responder em tom
desconcertado:
—
Ora!...
— Ora,
replicou Vidinha; e então, ele não diz-ora?-Qual! é preciso não ter pinga de
vergonha: estas duas criaturas nasceram uma para a outra: Deus os fez e o diabo
os ajuntou; uma toma caldo e o outro diz-ora...
E foi
tomando a mantilha e tratando de sair.
Dera
tudo em fogo de palha. Ela tinha esperado achar respostas enérgicas às suas
invectivas, e neste pressuposto concertara mil planos de ataque, de defesa, de
gritaria, de pancadas, de prisões, etc. Nada disto porém tinha sucedido, e sem
saber por quê, ela mesma se sentia um pouco aliviada, quase até mesmo
satisfeita. Deu mais rajadas aos dois; explicou quem era, mas não disse o que
queria. Afinal, sem nada ter feito saiu dizendo:
— Ah!
pensavam que a coisa havia de ficar assim? Disse-lhe poucas, porém boas...
O
coração da mulher é assim; parece feito de palha, incendeia-se com facilidade,
produz muita fumaça, mas em cinco minutos é tudo cinza que o mais leve sopro
espalha e desvanece.
O
toma-largura, apenas a viu sair, em vez de prorromper numa matinada contra sua
companheira, como ela o esperava, pálida e trêmula, mostrou-se até tranqüilo,
pretextou um afazer, e saiu também imediatamente. Andava-lhe na cabeça um plano
cuja realização faria, como se costuma dizer, cair a sopa no mel. Vidinha
tinha-o encantado; o Leonardo o havia ofendido; conquistar ainda que fosse uma
diminuta parcela do amor da Vidinha, seria ao mesmo tempo vingar-se do Leonardo
e alcançar o triunfo de um desejo. Por mais impossível que lhe parecesse o
negócio, nem por isso esmoreceu; era tenaz e paciente.
Chegando
ao portão da ucharia indagou da sentinela a direção que Vidinha tinha tomado,
seguiu por ela, e em breve alcançou-a: acompanhou-a de longe para saber-lhe da
morada, e viu-a entrar em casa.
XVIII - Represálias
Quando
Vidinha chegou à casa achou ainda toda a família no maior susto e confusão pelo
desatino que ela acabava de praticar: as duas velhas, ao vê-la entrar,
lançaram-se-lhe ao pescoço, e cobriram-na de abraços, de beijos e de lágrimas.
Ela estava ainda porém sob a influência das emoções violentas por que acabava
de passar, e não pôde corresponder àquelas provas de amizade; atirou-se sobre
uma banquinha, e levou algum tempo calada, sem dar a menor resposta às mil
perguntas que lhe eram dirigidas. Esse silêncio mais aumentava a ansiedade da
família: finalmente resolveu-se ela a rompê-lo, exclamando:
—
Pensavam que o caso havia de ficar assim? enganaram-se... Qual!... eu quero que
fiquem sabendo para quanto presto...
—
Então, rapariga, foste fazer alguma asneira...
—
Asneira... qual... fiz o que faz qualquer mulher que tem sangue na guelra... E
agora venha ele para cá, que temos ainda contas a ajustar...
— É
verdade, e ele que ainda não veio... já tinha tempo de chegar, pois partiu logo
no vosso alcance...
— É
verdade... acrescentou Vidinha com certo susto; na tal cova da ucharia não
entrou ele; e quando de lá saí não o vi mais...
— Não
lhe vá ter sucedido alguma coisa!... O major o jurou!...
— O
major!... repetiram todas com os sinais do mais visível susto.
E
levantou-se de novo em casa a confusão, porque, como os leitores terão visto,
apesar dos dissabores que o Leonardo causava àquela família, todos ali, exceto
os dois primos rivais, queriam-lhe muito e muito bem. Falar a qualquer dos dois
primos para que o fossem procurar, era coisa de que ninguém se lembrava, tão
certos estavam que eles se haviam recusar. Tiveram pois de esperar que chegasse
da rua o antigo sacristão da Sé para darem as providências precisas.
Os
leitores terão talvez estranhado que em tudo quanto se tem passado em casa da
família, de Vidinha não tenhamos falado nesta última personagem; temo-lo feito
de propósito, para dar assim a entender que em nada disso tem ele tomado parte
alguma.
Causa
remota e primordial de todos estes acontecimentos, pois foi em conseqüência de
sua amizade que o Leonardo se juntou à família, por muito feliz se tem dado em
que não tenham caído sobre ele inculpações de que com dificuldade se poderia
defender; homem de tato, conservara uma posição absolutamente neutral em todas
aquelas lutas. Eis aqui pois qual a causa do nosso silêncio sobre ele.
Infelizmente
naquela noite recolheu-se mais tarde que de costume, e quando chegou já não era
tempo de fazer coisa alguma. Toda a família, passou a noite na maior ansiedade,
desvanecidas de certa hora em diante as esperanças de ver chegar o Leonardo a
cada momento. Ninguém duvidava mais que alguma coisa tivesse sucedido ao
Leonardo, e nos quadros medonhos que cada qual imaginava, a figura do major
Vidigal aparecia sempre em primeiro plano; ninguém também duvidava que no quer
que fosse que houvesse sucedido ao Leonardo, o major teria por força parte
ativa e importante, senão principal.
Assim
ao amanhecer do dia seguinte o primeiro lugar onde mandaram saber dele foi na
casa da guarda. Mas, com surpresa geral, ele não se achava nela, nem sabiam
notícias suas; procurou-se em diversos outros pontos, e nada de novo, nem novas
nem mandados. Por lembrança de Vidinha foram procurar a comadre, e
informaram-na de todo o ocorrido: a pobre mulher, que tudo ignorava, pôs as
mãos na cabeça:
—
Aquele rapaz nasceu em mau dia, disse ela, ou então aquilo é coisa que lhe
fizeram; do contrário não pode ser...
E
pôs-se logo a caminho a procurar o afilhado.
Na
comadre estavam fundadas toda as esperanças; ninguém duvidava que apenas ela se
pusesse na rua prontamente se saberia o destino do Leonardo. Enganaram-se
todos, porque nem a própria comadre foi capaz de dar com ele, por tão bom
caminho o tinha levado o major. Passaram muitos dias na mais completa
ignorância a respeito do seu fim; e começaram desde então a aparecer suspeitas
de que ele próprio teria talvez interesse em ocultar-se, e de que era essa a
causa por que ainda o não haviam descoberto. Estas suspeitas tomaram vulto, e uma
certa indignação começou a aparecer em toda a família, contra semelhante
proceder. A indignação cresceu e tomou repentinamente proporções de ódio
intenso, até da parte das próprias duas velhas.
Realmente,
a ser verdade o que pensavam, não haveria ingratidão mais negra do que a do
Leonardo para com aquela que tão benignamente o acolhera. Nas invectivas a cada
momento dirigidas contra ele, Vidinha tomava sempre o primeiro lugar, e tinha
razão para isso; além de ter contra ele as razões que tinham todos os outros,
tinha ainda o despeito do amor ofendido. Em certos corações o amor é assim,
tudo quanto tem de terno, de dedicado, de fiel, desaparece depois de certas
provas, e transforma-se num incurável ódio.
Uma
coisa singular notara Vidinha desde que fora à ucharia, e é que não se passava
depois disto um só dia em que ela não visse pelo menos duas vezes o
toma-largura. Tinha-o ela mostrado à família, e já todos o conheciam. A
princípio isso incomodou-a, e tanto mais que ele não passava uma só vez que lhe
não tirasse o chapéu com ar risonho: parecia-lhe semelhante coisa uma prova de
desabrida falta de vergonha. Mais tarde começou a suspeitar que aquela passagem
constante e aqueles cumprimentos deviam por força ter alguma explicação.
Aconteceu
que uma das velhas, a mãe de Vidinha, confessasse não ter achado o toma-largura
mal-apessoado, e esta idéia passou a toda a família. Um dia uma das velhas
achando-se na janela com Vidinha, na ocasião em que passava o toma-largura,
disse entre os dentes, e como que indiferentemente:
— Se
fosse comigo, bem sabia eu cá o que havia de fazer...
Vidinha,
se bem que não pedisse explicação daquele dito, não deixou contudo de dar-lhe
atenção e de cismar nele por algum tempo.
No dia
seguinte a mesma velha chamou-a para a janela à hora do dia antecedente; e o
toma-largura passou como sempre, e fez o seu cumprimento. A velha disse nessa
ocasião, como completando o seu pensamento da véspera:
— Ora,
eu pregava um mono ao tal Leonardo... e então este que era bem pregado, por ser
ao mesmo tempo aos dois, a ele e a ela.
Lendo
na intimidade do pensamento da velha, com a nossa liberdade de contador de
histórias, diremos ao leitor, que o não tiver adivinhado, que
aquele-ela-referia-se à moça do caldo.
Dada
esta explicação, os menos perspicazes entenderão sem dúvida em que consistia o
mono que a velha pregaria ao Leonardo.
Vidinha,
que nada tinha de pouco inteligente, compreendeu tudo às mil maravilhas, e com
tanto mais facilidade, digamo-lo aos leitores, quanto talvez que o pensamento
da velha correspondesse a seus próprios pensamentos. Repetiram-se depois disto
mais algumas indiretas da parte da velha, e Vidinha chegou finalmente a
explicações.
Pouparemos
aos leitores certos detalhes, e diremos que o resultado de tudo aquilo foi
ver-se, poucos dias depois, o toma-largura em casa de Vidinha fazendo uma
visita à família!!...
As
visitas continuaram, e pela vizinhança começou a ouvir-se um rumor que tinha
tanto de malévolo como de verdadeiro.
Estavam
as coisas neste pé. A paz tinha sido restituída à família. Não sei quem propôs
que se solenizasse o restabelecimento do sossego e as novas venturas com uma
súcia para fora da cidade. Efetuou-se semelhante pensamento. Por uma
singularidade escolheram para lugar da patuscada os-Cajueiros,-onde a família,
tinha feito conhecimento com o Leonardo.
O
toma-largura fora convidado, nem podia deixar de sê-lo, porque era ele um dos
motivos da festa. Infelizmente porem tinha ele um defeito: no estado ordinário
costumava beber sofrivelmente; quando tinha algum motivo de alegria costumava
dobrar a dose, e quando isto sucedia dava-lhe para valentão e desordeiro. Disto
resultou que no meio da súcia, na ocasião de jantar, deu-se por ofendido, não
sabemos por quê, e começou por agarrar nas pontas da esteira que servia de
mesa, e fazer voar sobre a cabeça dos convivas pratos, garrafas, copos e tudo o
mais. Os dois primos quiseram contê-lo, mas não o conseguiram: Vidinha chorava,
as velhas se maldiziam; uns tentavam restabelecer a paz, e outros aumentavam a
desordem. Reinava por conseqüência uma algazarra infernal.
Quando
menos o esperavam, viu-se surdir dentre as moitas o major Vidigal fechando um
círculo de granadeiros que partiam de sua esquerda e da sua direita, e que
encerravam toda a súcia.
—
Segura aquele homem, granadeiro, disse o major a um dos seus soldados,
apontando para o toma-largura que se achava em pé cambaleando, tendo numa mão
um balaio em que viera a farinha, e na outra uma garrafa com que ameaçava os
circunstantes.
A ordem
do major o granadeiro hesitou: toda a família, reunindo-se em um grupo, soltou
um grito de espanto apontando para o soldado.
—
Então! replicou o major vendo aquela hesitação.
O
granadeiro deu um passo para o toma-largura.
—
Devagar com a louça, camarada, bradou este; lembre-se que ainda não ajustamos
contas a respeito daquele caldo...
O
toma-largura acabava de reconhecer no granadeiro o nosso amigo Leonardo, como
toda a família o tinha reconhecido apenas ele apareceu.
Era com
efeito ele.
XIX - O Granadeiro
Estavam
pois as contas ajustadas completamente entre o Leonardo e o toma-largura;
haviam-se vingado um do outro: o último golpe na luta competira ao Leonardo:
ele abençoou o acaso, e mesmo o major Vidigal, por lhe ter fornecido ocasião de
ir arrancar dos lábios de seu rival a taça da ventura. Até quase que estimou
que lhe tivessem sentado praça; e bem dissemos nós que para ele não havia
fortuna que não se transformasse em desdita, e desdita de que lhe não
resultasse fortuna.
O
toma-largura, como dissemos, fora levado pelo Leonardo; e os leitores,
familiarizados com o destino que tinham todos os prisioneiros do major Vidigal,
adivinham já que lhe indicaram o caminho da casa da guarda no largo da Sé. O
estado em que ele se achava não permitiu porém que o levassem até lá. Os
vapores que do estômago lhe tinham subido à cabeça foram-se pouco a pouco
condensando, e em meio do caminho pesavam-lhe sobre o cérebro vinte arrobas; a
cabeça, não se podendo manter, abandonou-se ao tronco, que, achando o peso
excessivo, quis apelar para as pernas; estas porém não eram mais fortes, e, curvando-se
trêmulas e bambas, deram com o valentão de ainda há pouco estirado na calçada.
Os soldados não o puderam levantar, porque era, como dissemos a princípio, de
uma corpulência colossal. Foi mister pois abandonar a presa: o major não teve
grande dificuldade nisso, primeiro, pelo trabalho que daria qualquer outra
resolução, segundo, porque se bem que da última classe, sempre era o
toma-largura gente da casa real, e nesse tempo tal qualidade trazia consigo não
pequenas imunidades.
O
Leonardo tentou ainda alguns meios para que lhe não escapasse assim sem
resultado mais estrondoso a primeira presa que fazia, pois era isto de mau
agouro para o seu futuro militar; mas também sua mais bela vingança estava
tomada.
Ficou
pois o toma-largura abandonado na calçada.
Satisfaçamos
agora em poucas palavras a curiosidade que têm sem dúvida os leitores de saber
o como chegara o Leonardo à posição em que se achava. Agarrado pelo major na
porta da ucharia, como se sabe, fora por ele em pessoa conduzido a lugar
seguro, donde só saíra para sentar praça no Regimento Novo. Todos os batalhões
que havia na cidade tinham uma companhia de granadeiros, e havendo uma vaga na
companhia do Regimento Novo, fora o Leonardo escolhido para preenchê-la.
Sabendo disto o major, reclamou-o para seu serviço (porque era dessas
companhias de granadeiros que se tiravam soldados para o serviço policial),
pois como homem experimentado naquelas coisas, pressentira que ele lhe seria um
valioso auxiliar. Até um certo ponto o major não se enganou. Com efeito o
Leonardo, sendo naturalmente astuto, e tendo até ali vivido numa rica escola de
vadiação e peraltismo, deveria conhecer todas as manhas do ofício. Havia porém
uma circunstância que o impedia de prestar bons serviços, e era que com ele
próprio, com suas próprias façanhas, tinha muitas vezes o major de gastar o
tempo que lhe era preciso para o demais. O poder dos hábitos adquiridos era
nele tal, que nem mesmo o rigor da disciplina lhe servia de barreira.
Contemos
a primeira diabrura que lhe lembrou praticar depois que vestiu farda, e que foi
tanto mais sensível quanto a princípio se mostrara um soldado por tal maneira
sisudo que ia quase adquirindo reputação de rígido.
Os
gaiatos e suciantes da cidade, a quem o major Vidigal dava constantemente caça,
lembraram-se de imortalizar as suas façanhas por qualquer meio, e inventaram um
fado com o seguinte estribilho nas cantigas:
Papai lelê, seculorum.
Nesse
fado a personagem principal representava o major que, figurado morto, vinha
estender-se amortalhado no meio da sala; as demais personagens cantavam-lhe em
roda cantigas alusivas, que terminavam todas pelo estribilho que acima
indicamos.
O
major, que disto soubera, andava em busca de uma ocasião oportuna para tirar
desforra de semelhante gracejo, que dava a entender qual era, a seu respeito, o
desejo dos que o tinham inventado. Teve um dia denúncia que numa casa do morro
da Conceição se preparava para essa noite um rigoroso-papai lelê,-e dispôs as
coisas para pilhar os da roda em flagrante.
À hora
oportuna mandou dois ou três granadeiros adiante, cada um por sua vez, para
examinar o que havia, tendo combinado primeiramente um sinal positivo e outro
negativo para indicarem uns aos outros se havia ou não ocasião e motivo de dar
o assalto: estes sinais o granadeiro que devia aproximar-se mais da casa
comunicaria ao que lhe ficasse imediato, este passaria adiante, o outro faria o
mesmo até chegar ao lugar em que estava o major; era um verdadeiro sistema de
sentinelas avançadas, como se se tratasse de uma grande campanha. No caso de
ser dado o sinal positivo, marchariam todos vagarosamente e se reuniriam para o
assalto; dado o sinal negativo, dispersar-se-iam em silêncio, porque um dos
maiores caprichos do major era nunca mostrar que havia sido logrado. Ao
Leonardo coube a incumbência de ser a vedeta mais próxima ao inimigo, e de dar
o primeiro sinal. Marchou pois adiante, e os companheiros postaram-se à espera.
Esperaram por longo tempo, e cansaram de esperar; finalmente, quando já se iam
dispondo a contravir às ordens e abandonar o posto para procurar o Leonardo,
ouviram três vezes seguidas um longo assovio, que era o sinal negativo
convencionado. Em virtude disto dispersaram-se exasperados, e foram depois
reunir-se ao major embaixo da ladeira, no lugar que dá para a entrada do
Aljube. Aí reunidos, esperaram muito tempo pelo Leonardo sem que ele
aparecesse. O major principiou a cismar com o caso; de novo e repentinamente
deu ordem de subir o morro. Subiram com efeito, e marchando desta vez o major
adiante, foram ter à casa indicada. Com surpresa de todos, apenas se foram
aproximando viram luzes e ouviram o zunzum das violas e a toada das cantigas.
Fervia dentro o fado rigoroso. Sem necessitar grandes precauções, porque todos
pareciam entregues à maior segurança, cercou o major a casa, e apanhou tudo,
como se costuma dizer, com a boca na botija. Estava-se exatamente no ponto
solene da cerimônia.
Achava-se
a personagem que representava o papai amortalhado em um lençol, com a cabeça
coberta, deitado no chão, e a chusma em roda a cantar e a dançar.
Quando
o major bateu, e foi entrando, acompanhado da sua gente, ficou tudo gelado de
medo: o sujeito que se achava amortalhado teve um grande estremeção e ficou
depois imóvel, como se fosse de pedra, representando com mais propriedade do
que talvez desejasse o papel de morto. Segundo seu costume, o major fez
continuar por um pouco a brincadeira em sua presença. Depois começou a
indagação das ocupações de cada um, e, conforme o que colhia, os foi mandando
embora, ou pondo de parte, para lhes dar melhor destino. Durante toda esta
cena, que levou seu tempo, o amortalhado deixou-se ficar imóvel, na mesma
posição, com a cabeça coberta. Corrida toda a roda, disse-lhe o major:
— Olá,
camarada da mortalha, então deveras você quer que o levem daí para a cova?
Nem um
movimento em resposta.
— Ah!
está morto; perdeu a fala; é natural.
Silêncio
profundo.
O major
fez sinal a um dos granadeiros, que tocou no sujeito com a ponta do camarão:
nem assim porém ele sequer moveu-se. A um novo sinal do major o granadeiro
desandou-lhe uma tremenda lambada. Ressuscitou com isso o morto, pôs-se de um
salto em pé. Procurou porém evadir-se por uma janela, conservando sempre a
cabeça coberta: os granadeiros seguraram-no, e o major disse-lhe:
—
Homem, você por estar morto não tenha tanta pressa de ir para o inferno: fale
primeiro com a gente.
E
tirando-lhe o pano da cara acrescentou:
— Ora
vamos ver a cara do defunto...
Um
grito de espanto, acompanhado de uma gargalhada estrondosa dos granadeiros,
interrompeu o major. Descoberta a cara do morto, reconheceu-se ser ele o nosso
amigo Leonardo!...
XX - Novas diabruras
Não
sabemos se valeu ao Leonardo ser aquela a primeira ocasião em que incorria em
castigo, tendo até então guardado a mais rigorosa observância de todos os seus
deveres, ou se a mesma audácia do fato lhe granjeara mais as simpatias do
major; o caso foi que além das risadas, dos remoques dos camaradas e dos
transes da meia hora que estivera amortalhado, nada mais lhe sucedeu, com
espanto de todos, e principalmente dele mesmo: o major dera daquele modo uma
grande prova de desusada benevolência. Andou pois o Leonardo por alguns dias
cabisbaixo e pensativo, como esmagado ao peso de grandes remorsos; os camaradas
tiravam daquilo um partido imenso para meterem-no à bulha, e não o deixavam
parar um só instante sossegado na companhia.
— Ele
ainda não está bem ressuscitado, dizia um passando-lhe por perto.
— Qual!
dizia outro, ele já não é deste mundo.
— Papai
lelê, seculorum, entoavam outros em coro.
A
nenhuma destas coisas dava ele a menor resposta, e tinha nisso bom aviso,
porque desse modo poupava aos desapiedados camaradas tema para novos remoques.
Passados aqueles transes tudo foi esquecido, e as coisas entraram de novo em
seus eixos ordinários.
Um dia
o major anunciou que tinha uma grande e importante diligência a fazer.
Havia
um endiabrado patusco que era o tipo perfeito dos capadócios daquele tempo,
sobre quem há muitos meses andava o major de olhos abertos, sem que entretanto
tivesse achado ocasião de pilhá-lo: sujeitinho cuja ocupação era uma
indecifrável adivinhação para muita gente, sempre andava entretanto mais ou
menos apatacado: tudo quanto ele possuía de maior valor era um capote em que
andava constantemente embuçado, e uma viola que jamais deixava. Gozava
reputação de homem muito divertido, e não havia festa de qualquer gênero para a
qual não fosse convidado. Em satisfazer a esses convites gastava todo o seu
tempo. Ordinariamente amanhecia numa súcia que começara na véspera, uns anos,
por exemplo; ao sair daí ia para um jantar de batizado; à noite tinha uma ceia
de casamento. A fama que tinha de homem divertido, e que lhe proporcionava tão
belos meios de passar o tempo, devia-a a certas habilidades, e principalmente a
uma na qual não tinha rival. Tocava viola e cantava muito bem modinhas, dançava
o fado com grande perfeição, falava língua de negro, e nela cantava
admiravelmente, fingia-se aleijado de qualquer parte do corpo com muita
naturalidade, arremedava perfeitamente a fala dos meninos da roça, sabia
milhares de adivinhações, e finalmente,-eis aqui o seu mais raro talento,-sabia
com rara perfeição fazer uma variedade infinita de caretas que ninguém era
capaz de imitar. Era por conseqüência as delícias das espirituosas sociedades
em que se achava. Quem dava uma súcia em sua casa, e queria ter grande roda e
boa companhia, bastava somente anunciar aos convidados que o Teotônio (era este
o seu nome) se acharia presente.
Agora
quanto à sua ocupação ou meio de vida, que para muitos era, como dissemos, impenetrável
segredo, o major Vidigal tanto fez que a descobriu: em dias designados da
semana reunia-se no sótão onde ele morava certo número de pessoas que levavam
até alta noite aí metidas: Teotônio era o banqueiro de uma roda de jogo.
Nesta
conformidade andava o major a querer pilhá-lo em flagrante; e como tentava isso
desde muito sem que o pudesse conseguir, por ser sempre iludida a sua
vigilância pela troca constante que faziam os da roda dos seus dias de reunião,
resolveu pôr a mão no Teotônio na primeira ocasião, e servir-se depois dele
para a captura dos outros companheiros.
Como os
leitores estarão lembrados, o Leonardo-velho, isto é, o Leonardo-Pataca, vivia
com a filha da comadre; dela tinha um descendente, a cujo nascimento nós os
fizemos assistir. Pois apesar de haver já passado algum tempo, a criança ainda
não estava batizada. O Leonardo-Pataca, a instâncias da comadre, que muito se
afligia com aquela demora, determinou finalmente o dia que ela se devia fazer
cristã. Segundo os hábitos imutáveis, havia súcia por essa ocasião; e, segundo
a moda, foi o Teotônio convidado. O major soubera de tudo, e era exatamente aí
que o esperava, e tinha determinado pilhá-lo. Para isso dera aos seus soldados
o aviso de que acima falamos.
Era má
sina do major ter sempre de andar desmanchando prazeres alheios; e infelicidade
para nós que escrevemos estas linhas estar caindo na monotonia de repetir quase
sempre as mesmas cenas com ligeiras variantes: a fidelidade porém com que
acompanhamos a época, da qual pretendemos esboçar uma parte dos costumes, a
isso nos obriga.
A hora
ajustada chegou o major à casa do Leonardo-Pataca; como não havia o menor
motivo para violências, porque tudo corria na mais perfeita paz, o major entrou
sozinho, com prévia permissão do Leonardo-Pataca, e assistiu ao divertimento.
Quando ele chegou estava exatamente Teotônio em cena com as suas habilidades.
Tendo esgotado já todas elas, ia recorrer à última, que era a das caretas. É
preciso notar que ele não sabia só fazer caretas a capricho, sabia-as também
fazer imitando, pouco mais ou menos, esta ou aquela cara conhecida: era isso o
que fazia morrer de riso aos circunstantes.
Estavam
todos sentados, e o Teotônio em pé no meio da sala olhava para um, e
apresentava uma cara de velho, virava-se repentinamente para outro, e
apresentava uma cara de tolo a rir-se asnaticamente; e assim por muito tempo
mostrando de cada vez um tipo novo. Finalmente, tendo já esgotado toda a sua
arte, correu a um canto, colocou-se numa posição que pudesse ser visto por
todos ao mesmo tempo, e apresentou a sua última careta. Todos desataram a rir
estrondosamente apontando para o major.
Acabava
de imitar com muita semelhança a cara comprida e chupada do Vidigal.
O major
mordeu os beiços percebendo a caçoada do Teotônio; e se já tinha boas intenções
a seu respeito, ainda as formou melhor naquela ocasião.
As
risadas continuaram por muito tempo; e ele, não podendo afrontá-las impassível,
e não havendo, como já fizemos sentir, motivo justo para um rompimento, achou
mais conveniente retirar-se, e pondo-se em posição conveniente, esperar que a
súcia se debandasse, para então convidar o Teotônio a ir fazer algumas caretas
aos granadeiros na casa da guarda.
Saiu
pois completamente corrido.
Encontrando
os seus granadeiros que tinham ficado a pouca distância, dirigiu-se ao
Leonardo, e fez-lhe sentir que querendo a todo o custo naquela noite segurar o
Teotônio, temia que os de casa desconfiassem disso e lhe dessem escapula por
qualquer meio; era-lhe pois mister uma pessoa que o fosse vigiar de perto sem
que despertasse suspeitas: essa pessoa devia ser o Leonardo.
— Sou
malvisto em casa de meu pai, replicou este à proposta do major.
— É
hoje um bom dia de conciliação...
—
Talvez não queiram receber-me...
— E sua
madrinha que lá se acha?...
— Mas a
filha que é uma víbora contra mim?...
—
Víbora ou não, há de ir; que quando manda a disciplina... Não quero que aquele
valdevinos ande tomando impunemente a minha cara para original de caretas.
Os
granadeiros, que conheciam o Teotônio e lhe sabiam da habilidade, compreenderam
logo o que tinha sucedido por aquele dito do major, e desataram por seu turno a
rir. O Leonardo, por aquele apelo à disciplina, com a qual não se achava em
muito bom pé de relações desde a noite do papai lelê, venceu todas as
dificuldades e repugnância que manifestara no desempenho da missão de que o
encarregara o major, e pôs-se a caminho para a casa de seu pai.
Chegou
e bateu: assim que de dentro lhe perceberam as cores da farda e barretina houve
um grito de medo, e por um movimento que parecia combinado (o major tinha
razão!) foram repentinamente apagadas todas as velas da sala, e começou a
reinar uma confusão tal, que parecia haver-se travado uma luta entre todos.
O
Leonardo viu nisso uma primeira contrariedade, porém não deixou de achar graça
no susto que causara. Resolveu então falar da parte de fora para tranqüilizar
aos medrosos.
— Bom
modo de ser recebido um filho em casa de seu pai! Para quarta-feira de trevas
só lhe faltam as matracas...
A
comadre, que ouvira e reconhecera a voz do afilhado, desatou a rir, exclamando:
— Vejam
que logro! é o Leonardo; tragam as velas, gente: não há novidade, que o cabo da
guarda é nosso compadre.
—
Aquele brejeiro, resmoneou o Leonardo-velho, sempre há de andar a fazer das
suas: vejam que susto causou a toda essa gente... Ó amigo Teotônio, desça, que
não há novidade...
À luz
da primeira vela que traziam viu-se descer por uma porta o Teotônio do forro do
quarto da sala onde se havia escondido.
Apenas
pôs o pé em terra fez logo uma careta de medo, por tal forma expressiva, que
houve em todos uma tremenda explosão de hilaridade. Começou a surdir gente de
diversos cantos da casa, e em presença do Leonardo recomeçou a folia.
Algumas
pessoas não deixaram de estranhar e recear a presença do Leonardo naquela
ocasião e naqueles trajes logo depois da saída do major; porém a comadre a
todos tranqüilizou, dizendo que tendo ele obtido licença no quartel, por não
estar de serviço naquele dia, viera assistir ao batizado de sua irmã.
— Ele é
meio doido, repetia ela a todos, mas é muito amoroso, e nunca se esquece da
família,
Leonardo
confirmava esses protestos da comadre, e ia entretanto tomando parte na
brincadeira, uma vez que contra as suas esperanças todos o haviam recebido bem
em casa. À proporção que se ia esquentando no prazer do fado e das cantigas
começou o Leonardo a sentir remorsos pelo papel de judas que ali estava
representando: quando olhava para o Teotônio, que desde que entrara lhe havia
feito dar tão boas risadas, pungia-lhe o coração lembrando-se que ele próprio o
havia de entregar ao major. Não poucas vezes lhe passou pela cabeça dar-lhe
escapula avisando-o, porém a disciplina, o papai lelê, vinham-lhe à idéia, e
hesitava.
Enquanto
era assaltado por estes pensamentos olhava repetidas vezes para o Teotônio.
Este,
que nada tinha de tolo, desconfiou da coisa; não sabemos por que instinto leu o
que pensava o Leonardo, e pôs-se em guarda.
O
Leonardo tomou repentinamente sua resolução.
— Ora,
adeus, disciplina, disse consigo; hei de dar escapula ao homem, seja lá como
for.
E do
lugar em que estava acrescentou alto:
— Ah!
Sr. Teotônio, quer saber uma coisa? Pois se puser o pé daquela porta para fora,
o major põe-lhe a unha, que para isso está ele à sua espera, e para aqui me
mandou...
— Ó
diabo! exclamaram todos.
— Mas
nada de sustos; tudo se há de arranjar, que tenho eu boa vontade disto.
— Mas
não te comprometas, rapaz, acrescentou a comadre ao ouvido do Leonardo; olha
que o major não é de graças, e daí te pode vir mal.
— Ora,
tenho pena dele só por aquelas caretas.
Juntaram-se
então os dois, Leonardo e Teotônio, e juntos concertaram o seu plano de modo
que este escapasse ao major, e que aquele não ficasse comprometido.
Estava
já a noite muito adiantada, ordenaram os dois que saíssem ao mesmo tempo muitos
convidados, e o Leonardo, partindo adiante deles, foi correndo ter com o major.
— Aí
vem o bicho, Sr. major.
—
Cerca, cerca! disse o major.
E cada
um se dividiu para seu lado.
O major
colou-se à porta de um corredor, e pôs-se de olho alerta.
Veio-se
aproximando ao major um vulto assobiando tranqüilamente o estribilho de uma
modinha. Quando se achou em pequena distancia o major deu um salto donde estava
e segurou-o.
Um ai
franzino se fez ouvir, acompanhado de um:
— Me
largue! Que é isto?
O major
prestou atenção, não tendo reconhecido a voz do Teotônio, e viu que tinha
segurado um pobre corcunda, aleijado, ainda em cima, da perna direita e do
braço esquerdo.
— Ora
vá-se para o inferno, disse o major; suma-se daqui. Também não sei o que andam
fazendo a estas horas pelas ruas estas figuras.
O
aleijado safou-se apressadamente livre do susto, e lá foi continuando a
assobiar o seu estribilho.
Fez-se
depois disto o mais profundo silêncio, e o major não viu mais passar senão os
convidados da patuscada, não vendo entre eles o Teotônio.
Então
ardeu com o caso; e reunindo os granadeiros disse para Leonardo:
— Ele
não saiu...
— Saiu,
replicou este; até de jaqueta branca e chapéu de palha: eu o vi tomar ali para
a porta onde estava o Sr. major.
— De
jaqueta branca e chapéu de palha? perguntou o major.
— Sim,
senhor, e de calça preta: não o peguei porque logo vi que não havia de escapar
ao Sr. major.
— Ah!
patife, patife, resmungou: destas nunca levei... Era o corcunda, o aleijado...
— Ele
sabe fazer muito bem de corcunda e de aleijado, disse um dos granadeiros; já o
vi uma vez fazer isso, que era mesmo tal e qual...
Era com
efeito o Teotônio o aleijado que o major tinha segurado.
O
Leonardo ria-se às furtadelas do logro que levara o major.
Não
tardou porém muito tempo que lhe não amargasse aquele prazer, vindo o major a
saber que tudo aquilo se fizera de combinação com ele.