A PARTIDA
Era a
hora silenciosa e triste do crepúsculo.
Abrumados
de ouro os montes, em duros perfis, esmaltavam de negro o horizonte abrazado.
Abriam-se as primeiras estrelas. Subiam da terra, como o fumo das aras, panos
alvos de névoa.
Pelos
caminhos esbarrondados, em àspero aclive, beirando grotas espontadas de cardos,
cântaro ao ombro, as túnicas arrepanhadas à cinta, desfilavam donzelas
conversando e rindo.
Juntas,
em passo miudo, trepidando nas pedras, com um cheiro de suarda e de silvas,
passavam nas trilhas ovelhas em rebanhos. Um rude e mazorro pastor seguia-as
cabisbaixo.
Esbatiam-se
as nuvens de ouro quando José e Maria apareceram no limiar da casa prontos para
a longa jornada, por vales e montanhas, em direção à terra farta de Belém onde
iam cumprir a lei de Augusto.
Fechada
a porta ainda demoraram um instante sob a vinha, contidos pela saudade.
O
homem, por fim, decidiu-se, tomou a frente, vagaroso, pensativo e logo,
limpando os olhos que as làgrimas nublavam, a donzela seguiu.
Ele
grisalho, alto, robusto, ainda que um tanto curvado pelo pendor constante em
que vivia, sempre inclinado sobre o lenho do ofício, falquejando-o,
acepilhando-o, dando-lhe forma e lustro. Ela, meã de altura, fina e fràgil.
Suavemente
morena, os olhos grandes e tristes eram dum límpido verde d'àgua, e como dois
lagos puríssimos num areal, ao sol; e os cabellos, escapando-se do cairel do
manto, punham-lhe na fronte uma frisa de ouro.
Mal se
lhe adivinhava o colo abotoado.
Os pés,
alvos e pequeninos, assentavam em sandàlias e toda a sua riqueza consistia em
um par de braceletes de marfim que lhe cingiam graciosamente os pulsos finos.
Trilhando
a estrada que ia ter à fonte e seguia direita aos campos, paravam para falar às
moças, companheiras e amigas de Maria, para corresponder à saudação dos homens,
para atender às crianças que deixavam os seixos tomando-lhes o passo, pedindo
que lhes trouxessem das terras de além conchas, como as de Ascalon, que
conservam no bojo o soluço das ondas.
E
Maria, comovida, chorava sobre o sorriso.
Os
campos toldavam-se de bruma e as oliveiras de pálida folhagem faziam no recosto
das colinas como estendais de névoa.
Ainda
havia quem trabalhasse a leira na ânsia do fruto. Chiava um carro de lavoura, o
guieiro afalava aos bois animando-os no lance abrupto de uma rampa.
Chegando
ao planalto estéril, que dominava os horizontes e onde o vento zunia, os
viajantes fizeram uma parada olhando em redor o redente dos montes.
Là
ficava Nazaré no vale feliz, com o seu casario, em cubos brancos, como um pacífico
rebanho adormecido.
Ao
longe tudo era carregado e lúgubre.
A noite
chegava primeiro às alturas.
Isolado,
com a lua pairando acima do seu viso, o Tabor era como um peito de gigante de
onde houvesse espirrado aquela gota de leite.
Maria
ignorava o mundo. Nunca houvera passado além da fronteira da terra natal.
Alongando os olhos pela vastidão que a vista alcançava, montes, várzeas,
esplanados desertos tristes, sentia-se mesquinha e com medo.
Voltou-se,
ainda uma vez, para olhar o tranquilo recanto em que sempre vivera em pobreza e
virtude. Mas a noite baixara; raros lumes picavam a treva. Ouvia-se vago murmúrio,
como escachôo d'águas, subindo do fundo obscuro onde jazia a cidade. Saiu-lhe
do coração um suspiro magoado:
—Onde
fica Belém? José levantou o braço e estendia o cajado na direção da terra de
David, quando uma estrela fulgurou, illuminando radiosamente o céu profundo.
—Ali!
disse o patriarca, numa voz que tremia, compreendendo, maravilhado, que aquele
astro surgira dentro da noite como uma resposta de Deus à moça predestinada.
O ANJO
A
noite, profundamente escura e fria, atravessada de vento, atroava o fragor de
ramagens estortegadas e d'águas precipitosas que se despenhavam, aos jorros,
pelos algares. Nas chãs ainda o trânsito era fácil, sem o varejo da ventania
que repulsava os caminhantes, como a impedir-lhes a marcha; mas nas gargantas,
entre alcantis, as lufadas, abocando à entrada, esfusiavam desabridas, uivando
com a furia de alcatéias famintas em ronda céva, a fariscar redis.
Todas
as estrelas haviam-se apagado, apenas rutilava, enorme, como lumaréu de vigília
em torre, a que surgira e brilhava sobre Belém.
Os
passos estrepitavam nos seixos, estalavam nas folhas e no ramalho seco.
Um ramo
que bolisse, o lento defluir de um fio d'água por entre pedras levantavam ruídos
temerosos.
Às
vezes José detinha-se, hesitante na bifurcação de duas trilhas, mas pouco
durava a dúvida porque uma das veredas enegrecia ainda mais, ao passo que a
outra rutilava fúlgida, como calçada a diamantes, oferecendo-se, clara e
segura, aos peregrinos.
Como
entrassem em sinuosa e esgalgada passagem, murada de rochas anfratuosas,
eriçada de agaves e echoando como o âmbito de uma caverna, ouviram leve, frouxo
ruído como de esfrolar d'azas.
Uma águia,
talvez, que acordara em algum teso e de pé, atenta, alargando as azas, ficara
em atitude hostil pronta a arremeter em defesa do ninho.
O patriarca,
acolhendo a esposa meiga, cujas faces pareciam de neve, apertou com força o cajado
e levantou os olhos.
Maria,
sentindo o perigo, tartamudeou, tímida e trêmula, uma oração ao Senhor. O
receio de um ataque em sítio tão desolado, longe de toda habitação, onde nem
choça de pegureiro havia, deteve o homem.
Os
corações batiam. Nela era o pavor do desconhecido, o grande medo trágico das
sombras do Cheol, que erram, à noite, pelos descampados; nele era temor por ela.
Não
falavam, de olhos muito abertos, quietos, imoveis como os rochedos que os
emparedavam.
De
repente um clarão fulgurou. A passagem iluminou-se, as pedras cintilaram e as
palmouras dos cardos ficaram como de prata. E eles viram uma grande luz à flor
da terra e clareando as rochas.
Aves
despertando galreavam festivamente o canto da madrugada.
Levantando
o olhar viram os dois a fonte do esplendor. Era um anjo que os precedia, ora
trilhando os caminhos, ora voando acima das rochas, pousando nos alcandores
quando o lento e fatigado andar de Maria retardava a marcha.
A
virgem sorria de enlevo e José, tolhido de comoção, não se atrevia a encarar o
guia resplandecente, cujo reflexo abria na terra um clarão de luar. E as azas
aflavam docemente no silencio.
A
virgem reconheceu no anjo o mancebo que a saudàra com as palavras misteriosas,
cuja promessa cumpria-se e José reviu o divino emissario que lhe aparecera em
sonho, sob a figueira do horto, defendendo a inocencia de Maria, em cujo seio,
cemo em corola de flor, a Graça perpassava em gênese imareavel, fecundando-o
como o sol fecunda a leiva, eternamente pura.
LÍRIOS
Clareava.
Manhã
opaca, envolta em bruma que algodoava a terra, flutuando com um lento ondular,
fluindo em frouxeis alvíssimos como penugem, esgarçando-se, diluindo-se em fumo
tênue que se esvaia no ar silencioso.
A
espaços frondes boiavam, ramarias exciduas irrompiam.
Ouvia-se
o lentejo lacrimoso das folhas orvalhadas.
A terra
dava-se avaramente, a trechos curtos, à medida que os viajantes avançavam e o
caminho percorrido, como os dias da vida, eram logo fechados em branco pelos
nevoeiros.
Branco
era também o céu e triste, pesando sobre a terra, tão baixo que as nuvens, por
vezes, envolviam os peregrinos.
Pássaros
piavam nas taliscas, ocultos; vozes de gado, longínquas, evocativas, anunciavam
casaes.
Maria
tiritava.
A túnica
pesava-lhe nos hombros, húmida, e as faces, rorejadas, tingiam-se em duas rosas
como se as flores, transidas, houvessem procurado abrigo ao calor carinhoso
daquela mocidade pura.
José
distraia a companheira falando-lhe dos lugares que iam atravessando.
Todos
aqueles atalhos tortuosos, aqueles carreiros ínvios haviam sido, em tempos
remotos, trilhados por patriarcas.
Ali
haviam-se travado batalhas sanguentas; ali alvejara a tenda, crescera, em louro
estendal, o trigo, retorcera-se a vinha, pastara o armento, correra o azeite,
fundira-se o ferro, britara-se a pedra, cosera-se o barro sob as vistas de Iavé
onipotente.
Por ali
andara Elias trovejando oraculos. Judite afiara o gládio libertador nas arestas
daquelas penhas.
Em
poeira de ouro foi-se mudando a névoa: era o sol.
Já
aparecia uma nesga de azul; árvores, moutas destacavam-se: a mortalha
rasgava-se para a resurreição.
Alegremente
as aves, em claras vozes, cantaram a victoria da Luz. E Maria, contente,
d'olhos em êxtase, esperava o astro anunciado pela fulguração das nuvens.
Num
recanto, entre mirradas arvores de troncos retorcidos, uma água escura e quieta
reluzia.
Pedras
negras, cobertas de limo, escondiam-se sob ramos acenosos.
Maria,
sentindo a dobrez da fadiga, os olhos pesados de sono, sentou-se tão perto d'água
que toda ela refletiu-se na superficie espelhenta.
Viu-se
sem vaidade, com a mesma inocencia com que se revê o passaro e, num momento,
infantilmente, mergulhou, até o punho, as mãos ambas no paúl.
Quiz
José repreendel-a, vendo-a, porém, sorrir, sorriu também.
Gotejando
sairam as pequeninas mãos da água que tremia.
Olhavam
os dois os círculos que se abriam quando viram duas flores subirem à tona,
brancas, abertas em cinco pétalas, eretas em finas hastes, como se o reflexo
das mãos da Imaculada se houvesse materialisado em memória da ablução ligeira.
Eram lírios
e trescalavam.
Virtude,
brilho das almas, que importa que desças à vasa? És impermeavel como a luz,
purificadora como o raio de sol.
Não
perdes a límpida pureza e, se entras no Vício, fazes desabrochar a Graça; se
afundas no Crime, tiras o Arrependimento.
O
pantano era lobrego, coberto de folhas mortas e as mãos de Maria, só com o
aflorarem, tanto o purificaram que dele nasceu o lírio sem mácula, símbolo
formoso e cândido da inocência.
A REFEIÇÃO
Suave
som de frauta pastoril deu a Maria o encanto de uma égloga. Voltou a cabeça
dourada e viu o rebanho que se aproximava em vagaroso passo.
Trazia-o
um menino, guiando-o por entre as ervas de aroma. Um lindo menino, tão alvo que
não despedia sombra, como as neves que os raios do sol atravessam; tão louro
que a sua cabeça alumiava.
Vinha a
frauta soando em suaves acentos e atraidas, enlevadas na música, abelhas voavam
em volta do pastorinho, que assim apascentava dois rebanhos: um pela terra
verde, outro pelos ares claros.
Ergueu-se
Maria e, sem dizer palavra, olhando os ubres apojados das ovelhas, deu a sentir
o seu desejo.
Como
devia saber aquele leite que era a metamorfose das flores dos silvados! Como
devia rescender na boca e aquecer e fartar!
Calou-se
a frauta e o menino, fitando os olhos meigos no casal errante, como se de muito
o conhecesse e amasse, deteve-se, e os animais pararam.
Ficou o
rebanho unido, tão junto que não fazia mais que um velo e as abelhas, zumbindo,
puzeram-se a esvoaçar em torno dos lírios alvos.
José
adiantou-se e, oferecendo um óbulo ao menino, pediu-lhe um pouco de leite.
Sorrindo, o pastorinho tomou o tarro que trazia ao flanco.
Logo,
entre as ovelhas, houve um movimento ansioso. Balavam todas oferecendo as tetas
refertas, atropelavam-se, saltavam querendo, cada qual, ser a escolhida e o
pastorinho brandamente as afastava.
Foi à
primeira, ordenhou-a. O leite esguichou em fio; outra chegou, depois outra e a
todas ele atendia para que nenhuma ficasse preterida.
Já a
espuma fervia crescendo em flor, transbordando do vaso e as ovelhas
festejavam-se contentes.
Sorrindo,
aceitou Maria a oferta do zagal; bebeu a lentos goles, saboreando. E foi a vez
de José.
Refeito,
o patriarca insistiu na dádiva da moeda, mas o menino negou-se a recebe-la:
«Que
era um pouco de leite? Qualquer pastor faria o mesmo.»
Saudou-os,
e, pondo-se à frente das ovelhas, levou a frauta aos lábios.
Os sons
vibraram. Lento e manso o rebanho proseguiu. Foi então que Maria viu que as
abelhas, tantas que ocultavam os lirios, deixavam as flores voando à música da
frauta.
—Lindo
pastor! Lindo rebanho! disse, enlevada, a Virgem. Mas logo, referindo-se às
abelhas que fugiam, perguntou a José: Que terão elas buscado nas flores d'água?
—O aroma
e o néctar, explicou o patriarca.
Chegaram-se
os dois às flores e viram, maravilhados, que estavam cheias de mel cristalino e
louro como o âmbar precioso e tão perfumado como se contivesse toda a essência
das flores.
Tomou
José um dos lírios e deu-o a Maria; a Virgem offereceu-lhe o outro. Depois,
deliciados, contemplaram-se felizes.
—A
frauta já não soa, vai muito longe o pastor, disse Maria.
—Vai
muito longe! repetiu José contricto, levantando os olhos para o céu, como se
procurasse nas nuvens o pastorinho louro e as ovelhinhas brancas.
A NUVEM
Sob a
irradiação do sol a terra seca abrazava, exalando um bafio de rescaldo.
Triste,
flagelada Samaria pagã!
Os
deuses do Garizin, depois da destruição do templo, pareciam haver desertado o
monte onde os homens subiam a retemperar a fé, de onde manava a seiva que se
infiltrava nos campos e mantinha vivas todas as fontes, entre rochas úmidas.
Ermo o
sagrado monte, esquecido o santuário antigo, as lavouras mirraram e um sol mais
árdego crestou as ervas, sorveu as àguas outr'ora copiosas.
Nem as
torrentes ligeiras conseguiram, fugindo, escapar à inclemência e os leitos dos
córregos, em lodo seco, estalavam, fendiam-se em gretas fundas.
Um fio
d'água rastejava nos lugares que, antigamente, rios largos alagavam.
Das
fontes restavam apenas as pedras calvas sobre areias tórridas onde víboras
esfusiavam, entaliscando-se ao rumor de passos.
De
ponto em ponto uma cisterna funda oferecia ao caminhante a sua água salobra.
Às
vezes o terebinto forte sombreava-a ou figueiras e mimosas formavam-lhe em
torno um bosque ameno.
Mas os
trilhos, arenosos e pedrentos, eram apenas habitados pelo cardo que esgalhava
os ramos espinhosos, abertos em feridas, feios, disformes como aleijões. Não se
ouvia cantar um pássaro—só o gípaeto atravessava o espaço fulgurante ou grandes
águias hostis, pousadas no cabeço das penhas, devassavam os arredores buscando
o que prear.
Maria
ofegava seguindo o esposo. A areia escaldava-lhe os pés mimosos, o sol
abrazava-lhe a cabeça.
Caminhavam
como atravéz de chamas, sem que os olhos avistassem um colmado, a grata ramagem
duma árvore.
Ó
terras férteis da Galiléia! vales alfombrados e frescos de tanta beleza por
onde correm numerosos ribeiros claros. Ó Galiléia!
Tudo
era desolação na tristonha Samaria e o sol do outono queimava como nos incendidos
dias estivaes.
Seria
melhor esperarem a tarde, proseguirem com a brandura do crepúsculo; mas a
pressa que levavam não lhes permittia demora.
José,
mais robusto e afeito a rigores, resistia; a Virgem, porém, começava a
sentir-se atordoada: faltava-lhe o ar, os olhos ardiam-lhe.
—Chega-te
à sombra do meu corpo, disse-lhe o patriarca. Ela obedeceu. Mas o sol zombava
da misericordia do amor e Maria continha as lágrimas, calava as dores dos
delicados pés abertos em feridas, não querendo que o esposo sofresse com o seu
sofrimento.
O sol
subia, aumentava o calor e o ânimo da Virgem desfalecia quando uma nuvem
cresceu acima do monte Ebal.
Era
escura como os nimbus e apressava-se como impelida por um grande vento.
Barulho
surdo anunciava-a, igual ao ronco soturno que precede as saraivadas de verão.
A terra
entenebrecia à passagem obumbrada da nuvem, que vinha direita ao caminho
trilhado pelo casal.
O ruido
aumentava tornando-se como o escachôo das catadupas.
Detiveram-se
os dois, pálidos, tolhidos de espanto.
Súbito
Maria sorriu:
—São
pombas, disse. Eram, efetivamente, milhares de pombas azuis que, muito juntas,
formavam a nuvem escura. Pairaram, ficaram adejando sobre eles, com rumoroso
arrulho, e o sol quebrava-se-lhes nas azas estendidas.
José
baixou os olhos, dobraram-se-lhe os joelhos e a Virgem, olhando as aves, não
deu pelo gesto piedoso nem ouviu as palavras devotas com que ele, em êxtase,
adorava-a.
Então
proseguiram à sombra do imenso palio azul e fora da nuvem viva a terra, quente
e rútila, ardia e faiscava ao sol.
AO PÔR DO SOL
No céu
desbotavam, esbatiam-se as cores vivas, o ouro e a púrpura fundiam-se em
violete e, docemente, a melancolia vesperal envolvia a natureza e penetrava as
almas. E Maria perguntou:
—Porque
é mais triste do que a noite o breve instante do pôr do sol?
—Porque
é uma agonia, respondeu José. Não é a morte que impressiona, é o morrer.
A luz
que vasqueja é como o corpo que estrebucha. A noite é serena, tem a imobilidade
do cadáver.
Quantas
sombras havia na terra? Tantas quantas são os seres e as coisas que existem. O
sol, porque é a vida, discrimina, dá a cada um a sua autonomia para o bem ou
para o mal.
O homem
tem a sua sombra, como a formiga; a cordilheira escurece uma região e o grão de
areia destaca a sua mancha.
A noite
condensa na mesma sombra todo o universo.
No
instante da agonia a alma, como o saltador que recua para ganhar impulso na
corrida e formar o pulo, regressa na reminescência recordando a vida, desde os
dias primevos até à hora suprema.
O crepúsculo,
que lembra o amanhecer, sem a alegria, é um recuo à madrugada para o salto
dentro da noite.
—Aquele
clarão que alveja nos montes é o luar. A lua é como uma lâmpada que o sol deixa
acesa quando parte. Como a noite é linda!
—E
purificadora. O sono é um mergulho na Eternidade.
—Quando
eu era pequenina, mal anoitecia, punha-me a tremer de medo e só depois de rezar
conseguia adormecer.
—Porque
a Fé é uma claridade que desfaz as sombras interiores. O que não crê é como o
cego que anda tateando, sempre arriscado a perigos, bastando resvalar num
talude para precipitar-se no abismo.
A Fé é
como a lampada dos templos: sempre acesa e fulgurando.
O homem
de fé anda mais seguro na escuridão do que o incrédulo ao sol. O horizonte do
crente é Deus.
—Porque
bate com mais vigor o coração à noite?
—As águas
murmuram mais alto no silencio? Não, a voz é a mesma, a calma é que isola
fazendo-a parecer mais forte. Quando trabalhas à sombra da vinha ouves balar o
rebanho? Não, entanto, à noite, soergues-te no leito à voz lamentosa duma
ovelha perdida.
O
coração parece pulsar com mais ímpeto nas horas de recolhimento.
Nas cavernas
profundas as vozes reboam, o estellcídio de uma gota faz ruido. É essa uma das
vantagens da noite—estabelecer o silencio, a quietude nalma para que a consciência
faça o seu ato de contrição.
—E as
estrelas? Quem as acende no céu?
—Aquele
mesmo que abre as flores na terra.
—Ninguém
o vê.
—E o
Pensamento, quem o vê? Enunciado é um relampago, realisado é um esplendor; a
sua essência é o genio, que gera a Ordem. O mundo é a realização do Pensamento
de Deus; as obras efêmeras do mundo são a consubstânsiação do pensamento
humano. O homem constrói, é o artista; Deus cria, é o Verbo.
—E eu?
—Tu és
Maria, disse o patriarca, afagando-a paternalmente.
Iterativas,
afinadas vozes murmuraram nos ares concluindo o dizer do ancião:
... cheia de Graça, o Senhor é contigo.
Bendita és tu entre as mulheres.
Ela
deteve-se assustada e interrogou o esposo, trêmulo:
—Que
dizeis, meu senhor? José, que nada ouvira, respondeu:
—Digo
que és uma creatura de Deus, como a flor, como a estrela.
Os
chacais latiam no deserto ao doce clarão da lua.
A TENTAÇÃO
Numerosa
estropeada de inúmeros corcéis atroou o silencio; tubas clangoraram e,
repentinamente, como passassem entre duas alcantiladas penhas, que o luar
vestia d'alvo, viram altos pilonos de basalto, sarapintados de hieroglifos,
ante os quais esfinges monstruosas, deitadas sobre estelas negras, laivadas de
sanguíneo, com os bicos dos rijos peitos incrustados de rubis, cravavam no céu
os olhos misteriosos.
Mal
chegaram à entrada portentosa logo uma luzente guarda de catafractos, com
petrinas de prata, montando ginetes brancos de crinas rastejantes, hasteando
lanças que alumiavam, formaram duas extensas alas ao longo do caminho areado de
ouro, sobre o qual frescamente rociava uma serena pulverisação de aromas.
Os
olhos perdiam-se na visão de uma vasta cidade mirífica, toda em mármores e pórfidos,
com enormes templos, palácios que eram cidadelas, jardins de redolentes aléias,
rios beirados de árvores, com as rampas em alcatifa de flores, rolando alisadas
águas sobre as quais rebrilhava, em tremulina, o luar.
Barcos
de proas curvas, transbordando brocados, cruzavam-se com músicos sob doceis de
seda.
Nos
bosques que os cisnes percorriam, alvos como vivos mármores, mulheres, veladas
de gaze, coroadas de rosas, repousavam na fina relva ou balouçavam-se em
redouças.
Os zimbórios
dourados, os frontões dos templos tauxiados de ouro, as escadarias largas, de
zebrados degraus de cipolino, subindo a pátios de mosaico, esplendiam.
Surdo rumor
agitava a cidade onde a multidão, em festa, tumultuava numa variedade de trajos
multicores.
Passavam
palanques sob flabelos empunhados por grandes negros vestidos de saios rubros,
com franjas de prata, adagas à cinta, emplumados turbantes à cabeça.
Plaustros
rodavam com crepitações levantando uma névoa loura.
Fotinas
de harpas respondiam-se de um eirado a outro e, num obelisco de onix canelado,
mole serpente de escamas de ouro, vibrando a lingua bífida, enroscava-se, em
lentas espiras, ficando, às vezes, pendente, a oscilar como uma grossa liana.
José
olhava pasmado e Maria encolhia-se tímida, contemplando, deslumbrada, a cidade
fulgente.
Não era
a triste Siquém nem a sombria Jericó. Que cidade seria aquela tão rica, de
tanta vida, isolada na tristonha e maninha região da Samaria?
Subitamente,
com improvisa fulguração, abriram-se de par em par as portas do templo maior e
um grave cortejo apareceu no peristilo e vagaroso, solene, poz-se a descer a fúlgida
escaleira.
Vozes,
ao ritmo de instrumentos litúrgicos, entoaram um cântico glorioso.
O povo
prostrou-se na areia micante das alamedas bradando um nome forte.
Cerúleo
clarão refulgiu celestialmente. Coalharam-se os ares de aves, armas lampejaram
em meneio heróico e toda a turba templária formou no atrium, ergueu um sonoro
louvor e rojou-se de bruços, com um tinir argentino de armilas e braceletes. E
um homem alto, alado, com dois cornos de luz purpúrea ardendo-lhe entre os
cabelos crespos, surgiu no limiar de ouro estendendo amorosamente os braços a
Maria extática.
A voz
com que a chamou reproduziu-se em eco no silêncio místico; o seu olhar ardia e,
em torno do seu corpo atorreado, relumbrava um halo como se o emoldurassem
chamas.
—Vem! O
meu amor esperava-te ancioso. És a eleita de minh'alma. Chegaste no tempo em
que as rosas florescem. As vinhas crespas dão fruto, as abelhas fazem o seu
mel, o trigo redoura os campos, os lagos são açucenais extensos.
Eu puz
em ordem a natureza para as nossas núpcias sagradas. Vem!
A terra
em que pisas nunca recolheu cadaveres. Entraste no reino da ventura eterna.
Vem! E estendeu os longos braços que alumiavam como caudas d'astros.
Houve
um clamor ovante feito com o nome suave de Maria e outro que ribombava e os
catafractos, levantando-se, a prumo, nos estribos, cruzaram as lanças formando
uma abóbada de cintilações.
José
olhava, mudo e receioso, acolhendo ao peito a tímida donzela. Um galo cantou em
alguma herdade próxima.
Instantaneamente,
com uma surda explosão, toda a cidade maravilhosa e os seres que a animavam
subverteram-se.
Os ares
ficaram nublados de fumo, estriges chirriaram.
De novo
reapareceram os campos rasos, ermos, estéreis, calados, ao luar lívido.
Maria,
com o coração sobresaltado, murmurou:
—Que
lindo sonho, meu senhor.
—Não
foi sonho, Maria, tornou sombriamente o patriarca. Vamos! Os lirios trescalam,
os galos cantam; é a madrugada que vem.
Puzeram-se
a caminho.
E,
pelos ares, contorcendo-se em furor, uma sombra alada fugia, enorme,
monstruosa, com dois cornos que coruscavam.
O MILAGRE DAS LÁGRIMAS
A estrada,
a duas horas de Siquém, pelos montes, larga e suave, com aceitosas sombras de sicômoros
e de amendoeiras, era toda orlada de anêmonas vermelhas e de margaridas brancas
e amarelas.
Os
khans sucediam-se sempre abrigados em hortos frondosos, com a cisterna ao lado
ou perto de alguma fonte, com a alpendrada reverdecida pela vinha, debaixo da
qual os mercadores, que desciam de Tiro ou do Líbano ou subiam de Jopé, comiam
uma febra de anho regando-a com o vinho fresco de Engadi, emquanto os dromedários
soltos iam e vinham vagarosamente ou deitados, ruminando, cerravam os olhos
nostálgicos à vivida fulguração do sol.
Casas
misérrimas, de muros de lodo, cobertas de palha, confundiam-se com a ramagem
dos eloendros, perdiam-se nos olivais.
Caravanas
desfilavam—os homens a cavalo, com as lanças altas, o albornoz ao vento; as
mulheres em jumentos ou em carros, entre fardos e alcofas, agasalhando crianças
sob as pontas dos mantos.
Por
vezes um canto suave rompia da turba, rufavam tamboris, quinaretes vibravam,
frautas desferiam e os cavaleiros alegres faziam caracolar os ginetes, as
mulheres punham-se de pé nos carros olhando as muralhas que se aprumavam ao
longe, fechando cidades, cujas casas, em cubos brancos, semelhavam túmulos.
José
evitava os pousos, fugia aos rumorosos aduares, metendo por atalhos para evitar
a chacota da gente nômade.
Justamente
atravessavam uma trilha deserta quando ouviram um choro triste e deram de rosto
com uma moça morena que trazia nos braços uma criança inerte.
Pós ela
uma pequenita, já com abundância de flores, ainda varejava os matos procurando
anêmonas.
Vendo-os,
a mísera susteve o pranto e, fitando em José os olhos rasos d'água, perguntou:
«Se
ainda distava muito Endor, onde vivia Baruc, o nazir, que conhecia a virtude
das ervas e realisava curas maravilhosas. Vendera as suas ovelhas e levava oito
ciclos de prata e um colar de ouro comprado em Jerusalém e, se tanto não
bastasse, dar-se-ia como escrava pela saúde do filho.»
José
estendeu o braço na direção do Levante:
—Era
além, muito longe, através da montanha, num vale sombrio, a horas do Jordão.
Maria, comovida,
quiz ver o infante.
A mãe
descobriu-lhe o rosto.
Era
lindo!
Os
cabelos rolavam-lhe em cachos louros, os olhos jaziam como dois mortos sob as cúpulas
tumbais das pálpebras, com os longos cílios repontando como a erva que viça no
abandono.
A boca,
de lábios cerrados, lívida, era como o leito seco de uma torrente que o sol
exauriu e estalou.
Não se
movia e, tão rígido, tão frio estava que só a ilusão do amor podia ainda
emprestar-lhe vida.
A
pequenita continuava a rebuscar anêmonas cantando.
—Ides
debalde a Endor com o vosso filho, disse comiserado o patriarca, acrescentando:
Baruc pode sarar enfermos, mas só Elias resuscitava os mortos.
—Quereis
dizer que ele está morto!? exclamou a mulher tremendo. Se, ainda ontem,
embalei-o nos braços... Se ainda estou com os peitos cheios de leite, manando
copiosamente como as ribeiras das colinas.
Ai! de
mim... Bem que eu não queria cantar a cantiga tristonha! Foi o canto triste que
o fez fugir dos meus braços. Ai de mim!
Adormeci-o
para sempre.
E
agora? Quem terá piedade da minha solidão? Era ele só...
Nasceu
em noite de luar, finou-se em manhã de névoa. E hei-de o deixar na terra
justamente agora quando o inverno chega! Ai! de mim... A saudade mudará o leite
dos meus peitos em lágrimas para os meus olhos. Pobre de mim! Coitada de mim!
E a
moça deixou-se cair à beira do caminho apertando nos braços o corpo do filho
morto.
A
pequenita continuava a rebuscar anêmonas.
Maria
inclinou-se compadecida sobre o cadáver e duas lágrimas da sua piedade rolaram
na fronte gélida do defunto.
Logo
abriram-se os olhos da criança. Eram azuis, cor do céu; renasceram-lhe as rosas
das faces, os bracinhos inertes estenderam-se e, lindo, com o esplendor da
vida, o pequeno sorria afogando a cabeça no colo materno.
O
espanto emudecera, imobilisara a moça.
Súbito,
ergueu-se com um grito d'alma, poz-se a rasgar a túnica na pressa sôfrega de
amamentar o filho.
Os
peitos saltaram túmidos. O pequeno abocou avidamente e a mãe, sentindo-o sugar,
contente e com lágrimas, ajoelhou-se e, d'olhos no céu, ficou como petrificada.
Maria
chorava por vê-la chorar venturosa e, como as suas lágrimas caissem na terra, a
pequenita não teve mãos para colher as flores que nasciam, brotando como acima
d'àgua borbulham, às mil, as bolhas de ar.