Tuesday, 11 February 2020

Tuesday's Serial: “Mistério do Natal” by Coelho Netto (in Portuguese) - II


CAMINHANDO                
Maria caminhava em silêncio, pensando naquela mãe que, repentinamente, passara da maior desventura à maior felicidade pelo prestígio das lágrimas misericordiosas.
- O pequenito dormia e a pobre mãe tinha-o por morto. Foi bastante que eu lhe tocasse para que logo abrisse os olhos.
- É que o despertaste, disse o patriarca sem aludir ao prodígio que testemunhara.
Ele ia notando, com discreta reserva, todas as maravilhas que se realizavam à passagem da Virgem; ribeiros que sustavam o curso oferecendo o leito enxuto para a travessia; árvores que se cobriam de flores, carregavam-se de frutos vergando generosamente os galhos; vozes que murmuravam; veios límpidos que rebentavam das pedras e, durante os curtos sonos da donzela não lhe passavam despercebidos anjos que rondavam em torno dos bosques pisando, de leve, os caminhos aveludados.
A mais e mais se lhe firmava n’alma a certeza de que as palavras que ouvira em sonho haviam sido pronunciadas por um mensageiro do céu.
Aquela era, em verdade, a eleita da Divina Graça, a Virgem pura de Judá, da qual devia nascer o Messias das gentes.
Ele acompanhava-a, não como esposo e sim como servo, adorando-a de joelhos quando a via adormecida.
Ela ignorava tudo. Sabia apenas que era mãe porque sentia no seio os movimentos do Ser Perfeito, no qual concentrava todo o seu amor.
Já lhe crescia o colo, pesando, arredondado e túrgido.
O amor preparava o alimento para aquele que se nutria de mistério.
- As mães sofrem tanto pelos filhos!... O amor das mães é como a rosa que cresce entre espinhos. Praza aos céus que meu filho não sofra enquanto for pequenino.
As crianças não falam, não atinam a indicar onde lhes punge a dor, de sorte que a gente não sabe como as há de aliviar quando sofrem.
- As mães adivinham.
- São tão fracas as criancinhas que tudo é perigo em torno delas. Tremo quando penso no meu pequenino filho que vai nascer, tão franzino e tão pobre. Onde o agasalharemos nós?
- Entre os nossos braços, como os pássaros resguardam o ninho entre os ramos.
- E o frio?
- Temos o nosso calor.
- E a fome?
- Os peitos maternos são dois celeiros sempre cheios.
- Haveis de amá-lo, senhor, e ajudar-me enquanto ele carecer de nós?
- Por ti, por Ele, por todos, disse José enlevado.
Chegavam a um bosque de tamareiras, onde havia uma cisterna cercada de musgo.
Um velho cego repousava à sombra, ouvindo cantar uma criança que brincava sentada nas folhas secas.


O CEGO               
O velho era Jericó.
Esperava naquele retiro a passagem das caravanas que se encaminhavam a Jerusalém e sempre recolhia uma azinhavrada moeda, um punhado de tâmaras ou um esgarçado albornoz em que se enrolava, bendizendo com palavras humildes e agradecidas, a generosidade dos homens, recomendando-os ao deus de Abraão, de Isaac e de Jacó e indicando-lhes os melhores e mais seguros caminhos pelos montes.
José ajuntou as folhas espalhadas e fez uma alfombra onde Maria adormeceu revendo, em sonha, a sua alegre Nazaré, as moças à beira da fonte, os pastores nos cerros, à hora macia da tarde, quando as cotovias baixam e desaparecem nas searas e as águas das levadas cantam.
Conversaram os dois velhos – José falou da sua viagem, o cego falou da sua cegueira.
- Estava assim desde moço, um raio cegara-o no campo, sob um sicômoro. Já se habituara à treva como um prisioneiro que se houvesse acostumado ao cárcere.
Um mágico de Suza oferecera-se para curá-lo. Pedira cem dracmas, baixara a cinqüenta; faria por vinte se ele lhas oferecesse.
Tinha ainda a sua cabana e ovelhas, vendendo-as reuniria uma soma, mas, pensando, resolvera deixar-se ficar na cegueira. E suspirou:
- Ilude-se que julga que, ao voltar aos antigos lugares, encontrará as coisas como deixou: as próprias pedras modificam-se e não são várias como as almas.
Quando me anunciaram a morte de meu filho, pedi que me pusessem junto do cadáver, apalpei-o, beijei-o; ouvi os passos dos que o levavam a enterrar, mas não vi o enterro.
Ouvi o estrondo da queda do cedro que cobria de sombra a minha eira e, ainda hoje, vou sentar-me no sítio em que ele avultava e sinto-me agasalhado pela ramagem que não existe e ouço a alegre voz dos passarinhos de outrora.
As coisas foram desaparecendo uma a uma; eu mesmo envelhecia, mas a cegueira conserva a visão do passado.
O sol parou para mim na mocidade como parou sobre os muros de Jericó à voz do batalhador.
Vejo dentro de mim tudo quanto deixei: as gentes, os animais, as árvores, os lugares com suas cabanas e os seus campos floridos.
Sou como a ave aprisionada, de pequenina, em uma gaiola, que não olha senão a limitada paisagem que fica em torno da sua vivenda triste. Soltai-a, esvoaçará atordoada e, se não regressar à prisão, morrerá de fome perdida nas florestas frondosas, se não cair nas garras dos abutres.
O homem de Suza queria dar-me a liberdade. Para que? Para eu morrer de saudosa tristeza sentindo o deserto em volta de mim? Não!
Vivo no passado, o meu tempo já foi.
Não caminho para a morte. Espero-a, sentado no limiar da mocidade, ouvindo o rumor do tempo devastador, sem ver os desastres, sem ver as lágrimas, sem ver os enterros.
Perdi-me dos meus, dei em uma furna e nela vivo. Já agora estou habituado à sombra. Para que hei de sair se, lá fora, me esperam ossadas? Se o próprio Deus me oferecesse a luz eu lhe pediria a morte.
Voltar atrás...! A erva cresce, o vento revolve a areia desmanchando as nossas pegadas.
O campo, que conhecemos florido, mudou-se em carrascal; a gente envelheceu ou morreu. Só há um meio de não caminhar chorando – é seguir sempre em frente e se eu recobrasse a vista teria de retroceder e cegaria de novo com os olhos afogados em lágrimas. Aonde vos dirigis?
- A Belém.
- Casa do pão. É ali que deve nascer o Anunciado. Casa da abundância, celeiro do Senhor, Belém da fertilidade! De lá é que nos há de vir o Messias. O campo de Booz dará o trigo que há de fartar as almas.
- É para lá que vamos.
- Que as estrelas vos sejam propícias, como foram a Ruth, a moça de Moab.


DENTRO DA NOITE         
Maria abriu os olhos quando as estrelas nasciam.
O cego já havia partido levado pelo menino. As cigarras cantavam vésperas.
José empunhou o cajado: Maria deixou o leito agreste, e seguiram.
As últimas chamas do sol apagavam-se no ocaso e a névoa polvilhava os ares como uma cinza.
Monstruosos penhascos, talhados a pique à beira dos precipícios, avultavam temerosamente na sombra.
Palmeiras debruçavam-se sobre as rampas. Toda a vegetação retorcida, com as raízes à flor da terra, agarrando-se nervosamente às arestas dos penhascos, parecia recear aqueles despenhadeiros de onde subia atroadoramente um escachôo soturno d’águas constrangidas.
Escurecia. Os montes áridos da Judéia apresentavam-se hostis aos peregrinos.
Os caminhos, aos torcicolos, confundiam-se augustos, escavados em brocas, eriçados d’aspas calcárias, orlados de intensos espinheiros que, às vezes, como garras, detinham os viajantes pelas túnicas.
Estriges voavam, pousavam nos ramos, nos penedos com gritos lúgubres.
José caminhava a passo cauteloso, sondando o piso com o cajado, detendo Maria, buscando tranqüilizá-la com palavras carinhosas.
Mas a treva adensava-se a mais e mais, os roçados confundiam-se com a sombra. Julgando seguir a estrada direita, o patriarca estendia a mão e sentia a aspereza das penhas.
- É imprudência insistirmos em prosseguir em tal escuridão, disse Maria com medo. É Deus que nos retém.
José deteve-se. Parecera ter ouvido vozes, rumor de passos, estalos de ramos secos, como se viessem outros caminheiros. Escutou atentamente.
Era o vento que agitava o folhedo e eram as águas profundas que referviam nos algares.
Mas um clarão suave acendeu-se no fundo espesso do arvoredo. Quem seria? Encolheram-se os dois, olhos fitos na claridade, que se adiantava como a luz de um facho. Uma centelha passou na escuridão, outra girou nos ares, as folhas, os ramos de árvores ficaram incrustados de brasas.
Surgiram da terra, saltaram das rochas, subiram dos desfiladeiros, a espessidão estrelou-se e todas as fagulhas, unindo-se, formaram uma rútila umbela pairando sobre Maria e José como a nuvem seguiu Israel guiando-o luminosamente pelo negror das noites no deserto.
Eram pirilampos que voavam em ordenada falange alumiando os caminhos obscuros.
E os dois, sob o relume dos insetos, continuaram a viagem dentro dum reverbero que só ao clarear d’alva desapareceu nos ares.


PIEDADE             
Com um rebanho que recolhia levado por um pastor coberto de peles, as pernas enroladas até os joelhos em velo sórdido, entraram em Jerusalém pela porta do mercado, à hora em que as buzinas romanas troavam nas torres.
José procurava distrair Maria mostrando-lhe as grandes belezas, a magnificência da cidade; nomeava os edifícios, alguns longínquos, esfumados nas primeiras sombras da noite.
A Virgem, porém, seguia calada, sem ânimo de levantar os olhos, com o coração cerrado em tristeza universal.
Gentes diversas cruzavam-se nas ruas: homens abaçanados do deserto, com o albornoz ao vento, o punho esmaltado das adagas reluzindo à cinta; fenícios cobertos de jóias, com enormes colares de contas de ouro e braceletes de marfim; gregos ágeis passando ligeiros entre a multidão, com a túnica colida ao braço, as pernas enlaçadas em tiras de couro.
Mulheres mostravam-se às portas das casas, encostadas languidamente aos umbrais, olhando em êxtase, com um sorriso nos lábios cor de púrpura.
A algumas viam-se-lhes os peitos pela abertura das túnicas; outras, reclinadas em leitos marchetados, cerravam molemente as pálpebras gozando o frescor dos flabelos que escravas agitavam.
Errava no ar denso um cheiro forte de aromatas.
Estranhas músicas soavam e, como os albergues estavam cheios, era um barbariso alegre sob as frescas latadas, por entre as quais, em corridinha airosa, moças iam e vinham com ânforas e crateras.
O pastor falara-lhes em uma modesta estalagem em Bezetha, para o lado do forte, onde podiam encontrar agasalho seguro.
A casa era dirigida por um velho de Siloeh e tinha fama pelo seu anho tenro e pelo seu vinho puro. Lá achariam pousada e, como ficava longe e não recebia mulheres, não seriam incomodados pelos legionários que, à menor agitação invadiam as casas brutalmente levando tudo a conto de lança.
Era um rancho paupérrimo, entre sebes de espinhos, onde se aboletavam mestairais e homens dos montes que traziam ao mercado favos de mel, resinas, bálsamos e raízes.
O velho acolheu-os de boa sombra, serviu-lhes a refeição na sala lôbrega que uma candeia alumiava.
Rústicos bebiam, jogavam e fora, junto a um Monet de pedras, um velho resmungava raspando, com voracidade, o fundo de uma escudela.
Era um leproso nojentamente abostelado de úlceras.
Às chufas dos homens, que lhe atiravam cascas, bagaços de frutas, respondia aos regougos, bramindo maldições e, como prorrompesse aos berros, apanhando pedras para defender-se, os homens revoltaram-se.
O hóspede tranqüilizou-os e, saindo ao terreiro, pôs-se a assobiar.
Enorme cão saltou da sombra rosnando. O taverneiro açulou-o contra o leproso que se encolhera estarrecido.
Vendo o cão investir, Maria caiu de joelhos, juntou as mãos frias e, trêmula, d’olhos no céu, implorou pelo infeliz.
O animal raivava, aos saltos; os homens vociferavam incitando-o. Alguns riam no ante-gozo da cena cruel, mas como o leproso, tentando correr, tropeçasse rolando na terra e ferindo o rosto no pedregulho, o cão, que o alcançara, pôs-se a ganir e, sacudindo a cauda, ficou de rastos, lambendo mansamente o sangue que escorria da cicatriz do mendigo.
E Maria, estática, não via a doce misericórdia que imobilizara em espanto os hóspedes do albergue.


CÂNTICO MESSIÂNICO
Ao romper d’alva quando, do lado do templo as cegonhas partiam em direção ao deserto e as pombas baixavam em nuvens sobre o mercado catando o grão que transbordava das seiras, o patriarca despertou Maria e, ligeiros como foragidos, deixaram a estalagem com os votos de boa jornada do hospedeiro. As buzinas romanas ressoavam na serenidade.
Legionários recolhiam cansadamente a Makeros.
Pobre, que haviam pernoitado ao relento, estremunhavam sobre farrapos.
Num pátio, entre muros de maceira, espontado de ervas silvestres, mugiam bois e homens bradavam.
Corvos rondavam os ares atraídos pelo cheiro de sangue.
Quando passaram as muralhas, saindo do Campo do Oleiro, o sol brilhava nas pastagens úmidas e passarinhos cruzavam o vôo cantando na alegria do sol.
Maria caminhava d’olhos altos, como enlevada. Inefável sorriso iluminava-lhe o rosto lindo, arrepios nervosos sacudiam-na de instante a instante.
- Lá está Belém! disse José estendendo o cajado na direção dos montes ainda enfaixados em névoa.
Maria empalideceu e, d’olhos fitos nos outeiros graciosos da terra de Davi, rompeu, de repente, a cantar, sobre uma antiga melodia hebraica, repetindo inspiradamente as palavras que lhe saiam d’alma:
“Espírito Perfeito, ânsia das almas míseras, se és Tu que em mim assistes, bendita seja a carne frágil em que Te encerraste e de onde deves romper, germe da Redenção, em Flor de Misericórdia.
Espírito Perfeito, lume que de mim fizeste a Tua lâmpada, que o Teu clarão espalhe-se pela terra fazendo brotar a sementeira nos campos e o amor no coração dos homens.
Espírito Perfeito, fonte de copiosas águas benfazejas, bendita seja a dor que me lançou na vida, benditas sejam as lágrimas que por Ti hei vertido.
Espírito Perfeito, esperança dos desanimados, se eu sou o ramo verde que hei de Te dar, bendita seja a aflição e minh’alma na hora atormentada em que, inocente, me julguei culpada e, pura, vi a suspeita manchar a minha virgindade.
Espírito Perfeito, se És a redenção anunciada, bendigo a Tua vinda, sem orgulho, por me haveres tomado por Teu trâmite e prostro-me ante a Tua Graça e exalto a Tua beneficência.
Espírito Perfeito, Ser do seres, não nado ainda, glória a Ti e à Tua origem celestial. Virgem, dar-te-ei ao mundo. Eu sou como o olhar que não se macula por transmitir ao corpo a visão.
Por mim entras no mundo como o sol, e tudo que ele alumia, entra, pelo olhar, no cérebro.
Eu sou a pupila que comunicara ao universo a Claridade Magnífica.
Espírito Perfeito, louvado sejas sempre pela Tua virtude e pela Tua excelência. Sabes da carne mortal sem trazeres pecados: passas por ela como uma imagem que se reflete n’água.
Espírito Perfeito, Graça de Israel, Esperança da Gentes, Messias... Meu coração alegra-se sentindo-Te e o meu coração é o cativo que almeja a liberdade.
Eu sou a fraqueza humilde chamada mulher. Sou a escrava que gera o seu libertador, a sombra de onde sabe a luz, o pecado que floresce em perdão...”
José ouviu-a com os olhos rasos d’água.
As cotovias cantavam na altura luminosa.
Longe, sob a fulguração do sol, resplandeciam os muros de Belém, entre outeiros.


O CAMPO DE BOOZ        
À hora cálida, abafada, em que as folham dormem e as ribeiras murmuram de leve, vagarosas, remansando-se sob as quietas sombras, e toda asa encolhe-se entre os ramos mais densos, e todo réptil encova-se na terra mais úmida, deram os dois num campo de farta seara onde alumiavam foices e moças juntavam gavelas, cantando, enquanto os homens ceifavam assustando as cotovias que tinham os seus ninhos rentes no chão, na raiz do trigal.
Maria, com o manto sobre a cabeça, enlevada naquela messe de ouro e na alegria ruidosa do trabalho, ouvia as vozes que se cruzavam subindo dos trigos altos, onde os seareiros desapareciam, como se fosse o próprio campo que cantasse o louvor do sol.
Ia tão entretida que não viu José adiantar-se, direto a uma palhoça onde um velho jazia, sentado ante um monte de vergas, tecendo um alcofe e cantando.
Aligeirou os passos e alcançou o esposo justamente quando ele saudava o ancião.
- Dizei-me a quem pertence este campo tão rico e cheio de tanta alegria?
- A Obed, segundo deste nome, descendente de Booz, o semeador.
- Foi, então, nesta terra que a moabita achou agasalho junto do homem bom, que a amou?
- Sim, foi aqui. Esta é a leira de Efracta, a mais fértil entre as mais abundantes e generosas. Este campo foi o leito nupcial onde se gerou a raça robusta dos reis de Israel.
Aqui nasceu Davi, tronco forte, estirpe augusta de que há de sair a imarcessível flor anunciada, cujo perfume encherá as almas de inefável ventura. Este é o celeiro de Iahve. E vós vindes de onde?
- De Nazaré, na Galiléia.
- E ides?
- A Belém. Urge que lá cheguemos antes do pôr-do-sol.
- Tendes tempo. Sentai-vos um momento, é a hora da refeição. O que tenho dá para repartir convosco. A vossa companheira, esposa ou filha, vem fatigada. Que descanse um instante à sombra, gozando a sesta. Entrareis na cidade com a fresca da tarde.
Aceitaram os peregrinos o convite hospitaleiro: sentaram-se e comeram do pão molhado em mel e beberam pelo mesmo tarro o leite cheiroso.
Ficaram os dois velhos conversando e Maria, encostando-se aos feixes de trigo, cobriu o rosto com o manto e adormeceu.
As moças cantavam na eira levantando moedas de ouro e, sob o sol escaldante, no alto céu azul, as cotovias voavam e os seus gritos abrandavam-se na distância, esmoreciam perdidamente.


NA CAVERNA    
Diante de uma trilha que se perdia no arvoredo deteve-se o carreiro e disse:
- Aqui me despeço, este é o meu rumo. A estrada em que estais, direita e fácil, guia-vos a Belém. Seja o Senhor convosco.
Sem esforço, José tomou a Virgem nos braços, pousou-a na terra, agradecendo ao moço a gentileza de a haver recebido no seu carro. E ele, galantemente, respondeu:
- Trouxe a flor viva do trigal ceifado, e, com tão jeitosa resposta, despediu-se e foi-se, aguilhada ao ombro, devagar, à frente dos bois, cantando, em voz apaixonada, os louvores do seu amor mimoso.
Os dois caminharam alguns passos. Maria amparada ao esposo, lenta, tolhida de sofrimento; mas não pode ir além da caverna e deteve-se.
O áspero interior do antro tingia-se de laivos rubros, ao trêmulo flamejar duma fogueira junto à qual um velho pastor, de mãos estendidas ao lume, cantarolava baixinho.
Ovelhas ondulavam na sombra.
Logo à entrada, na anfractuosidade da rocha, havia uma manjedoura. Um jumento dormitava e, junto dele, ruminando, jazia deitada uma vaca com o seu novilho.
Disse José à Maria:
- Firma-te a mim e vamos devagarinho. Havemos de achar aposento em alguma estalagem. Ela sorriu docemente, resignada, mas os seus olhos meigos foram para a caverna.
O patriarca, apiedado, adiantou-se e falou ao pastor.
- Seja o senhor convosco!
- Bem-vindo seja o que chega e desce com os olhos até a minha humildade.
- Hóspede na terra, venho de longe e comigo, em estado que não consente esforço, trago minha esposa, que aqui vedes. Se permitirdes que ela fique um momento convosco enquanto procuro hospedagem, sempre o meu coração vos há de louvar.
O velho pastor, de fartas barbas amarelecidas, longos cabelos espalhados pelos ombros, que um melote cobria, soergueu-se e falou:
- A caverna não tem porta, ainda é mais franca que os templos. Entrai e abeirai-vos do lume, que a noite começa a esfriar.
- Ela fica, eu sigo pela pousada. Maria tímida, entrou. Logo o pastor acamou as palhas, alargando um leito fofo e, vendo-a recostar-se, voltou ao seu lume e ao canto com que se entretinha.
E o patriarca partiu.
Ainda que não conhecesse a cidade, tanta era a gente que se movia nas ruas, que não lhe foi difícil, perguntando, encaminhar-se a uma estalagem.
Logo à entrada, sob o vasto alpendre, viu as altas pilhas de fardos, e, em volta, estendidos em peles, mercadores e recoveiros.
O hóspede, mostrando-lhe o transbordo da casa, disse:
- São homens que se aboletam ao relento, por falta de cômodos. Dificilmente encontrareis quem vos receba, porque as festas atraíram grande mó de estrangeiros e as feiras trazem das cercanias todos os lavradores. Guie-vos o Senhor. E José prosseguiu.
Nas vielas e alfurjas havia turbas cantando e bailando em volta de fogueiras.
Debalde o ancião entrava nas estalagens. As próprias choupanas recebiam hóspedes e, pelas colinas, entre fogos, clareavam tendas. Errou até tarde sem êxito
Já o silêncio anunciava hora alta quando, quebrado de fadiga, retrocedeu pelas betesgas desertas, ao latido dos cães errantes, em rumo à caverna.
Avistou-a de longe, alumiada por um clarão de luar, e, como levantasse os olhos demandando o astro, deu com um anjo deslumbrante que, abrindo asas largas, diáfanas, feitas como de névoa e luz, ia e vinha no espaço, rondando a noite.
Entrou. O velho pastor velava diante das brasas vividas e, entre ovelhas, sobre a palha loura, a Virgem dormia serena.


NATAL
O esplendor é mais impenetrável que a treva e foi uma muralha fulgurante que encobriu Maria quando se realizou a profecia do bem.
Na hora em que os galos cantaram a primeira vez, súbito clarão resplandeceu no fundo da caverna. A luz foi tanta, tão intensa que atravessou o sono em que jaziam o patriarca e o pastor.
José soergueu-se d’ímpeto, firmando-se nas mãos, ofuscado pela claridade vivida que irradiava em estalactites de um brilho augusto, mudando em rútilos diamantes todas as pedras brutas e fazendo áspero solo, eriçado em pedrouços, uma área esplêndida como se fosse embutida de gemas lapidadas.
O pastor, atônito, deslumbrado, arrastava-se tateando e a caverna, a mais e mais aclarada, parecia toda uma chama alva como se um luar maravilhoso a enchesse magnificamente.
Os dois homens, atordoados, não falavam – estendiam as mãos e os seus dedos chameavam como raios d’astros e da luminosidade desprendia-se um perfume, novo na terra, aroma celestial que enlevava como um encantamento.
Além da caverna a noite negrejava calada e erma de estrelas. Pode o pastor arrastar-se até o limiar e o seu corpo, esgueirando-se, refulgiam como o de uma salamandra.
Trêmulo, chegou à entrada, respirando a largos sorvos, o ar frio que vinha dos outeiros. Levantou o olhar e recuou espavorido.
Escada altíssima, de cintilantes degraus, ligava o cimo do outeiro ao céu aberto em radiante pórtico e anjos desciam, tantos que pareciam uma catadupa que se despenhava espumejando iriada de sol, com cintilações de pedrarias.
Não pode olhar e, rojando-se, com a face na terra, ouvia o murmúrio das asas.
Não disse palavra, imóvel, tolhido de assombro, sentindo a transfiguração da noite.
José conseguiu levantar-se e caminhou lentamente através do esplendor.
Maria apareceu-lhe entre as mansas ovelhas que, reunidas, bafejavam as palhas onde um menino infante, com as mãozinhas na boca, os olhos cândidos abertos, parecia contemplar a Virgem que sobre Ele inclinava-se.
Olhou-a, fitou no tenro corpo os olhos e viu que o cercavam três figuras de incomparável beleza.
Uma, as mãos diáfanas cruzadas sobre o peito, os olhos baixos, concentrada, rezava. Outra, d’olhos enlevados, com uma palma verde na mão débil, sorria. A terceira, de joelhos, aquecia com o hálito, envolvendo-o nos seus longos cabelos louros, o corpo recém-nado.
Por onde teriam entrado os três seres? Que anjos seriam? Não os pode reconhecer o patriarca, mas chegando-se à Virgem tomou-lhe a mão e beijou-a.
Ele mostrou-lhe o filho com uma ternura tão meiga que o sorriso não pode por si só exprimi-la e lágrimas correram.
Assim deram os olhos, d’uma só vez, todos os seus tesouros: o brilho do olhar e os diamantes da meiguice, essa humildade do amor.
Pouco a pouco foi-se a luz extinguindo, a sombra retomou a caverna.
As virgens desapareceram e Maria, acolhendo o pequenino nos braços, chegou-o ao colo, aqueceu-o, afagou-o.
Foi mãe antes de ser serva. Só depois de o beijar estremecidamente ouviu as vozes que atroavam a noite:
“Glória a Deus nas alturas, paz aos homens na terra de boa vontade.”
Ocorreram-lhe as palavras do anjo. Lembrou-se, então, que o ser nascido do seu seio era o Deus da promessa.
Deitou-o delicadamente nas palhas e ajoelhou-se adorando-o.
José, afastado do grupo, prestava culto à Virgem e ao infante e o céu, pala voz dos espíritos eleitos, saudava a vinda do filho do homem, portador da piedade.
Ergueu-se o pastor, olhou o céu e, ouvindo os anjos, saiu a correr bradando inspiradamente a Boa-Nova.
E os galos puseram-se a cantar anunciando a maior e mais bela madrugada do mundo.


AS TRÊS VIRGENS            
Quando o menino adormeceu José, aproximando-se de Maria, perguntou-lhe baixinho: “Se vira as três virgens que cercaram o infante ungindo-o de luz?”
A Imaculada respondeu no mesmo tom discreto:
- Logo que sai do sono, ainda antes de ver meu filho, dei com elas, imóveis, aclarando toda a caverna, de joelhos diante do recém-nascido.
Não falavam. Não sei quem são. Desapareceram de repente como as estrelas desaparecem.
- Seriam anjos? Uma serena voz, saindo das pedras, falou no silêncio:
- A primeira é toda a crença do homem: é a virtude que leva a alma à presença do Altíssimo.
Antes da vinda do Messias era a névoa indecisa que resplandecia e obumbrava-se; agora é a luz pura e perene, a luz viva que guia ao paraíso através de todos os abrolhos, por meio dos mais árduos sofrimentos, vencendo as mais perversas tentações, sempre direita, inflexível e segura. É a fé.
O seu olhar não se desvia, a sua linguagem é a prece, a sua confiança é Deus. É a mais forte da três. A segunda é uma consoladora. Parece um reflexo da primeira: É a esperança.
Veste-se de ilusões, recama-se de sonhos para distrair a alma, livrando-a do desespero. É como o ramo verde que se inclina à borda dos abismos. É a divina miragem que, através das agruras da vida, reanima o coração combalido, criando perspectivas venturosas.
Só, é uma encantadora que vive a inventar maravilhas, ligada à fé é a precursora que desbrava o caminho para a travessia da alma.
Sem ela a miséria seria um flagelo, a dor seria intolerável. É uma força feita de sonho. Isolada é a fantasia.
A terceira é o amor, é a lágrima que se converte em misericórdia, é a bondade onipotente, a meiguice que salva, a resignação que remite, a paciência que conforta, a lã que agasalha, o linho que estanca o sangue, o lume que aquece.
É o conjunto amoroso de todas as beneficências – a caridade.
São as três irmãs que acompanham o Messias.
Ele tomou-as ao paganismo e converteu-as transmitindo-lhes a sua essência.
Eram as Cárites, são as Virtudes. Foram as Graças, são as beneficiadoras.
Com elas Jesus fará a redenção do homem.
Para combater o mal, podendo trazer as legiões adamantinas, trouxe os humildes.
Calou-se a voz e os dois olharam-se maravilhados.
- Não ouviste falar?
- Sim, meu senhor, falaram. As ovelhas estavam de pé e olhavam, como se também procurassem o misterioso interlocutor.
Mas o menino agitou-se no leito palhiço, estendeu os bracinhos e chorou.
Presto, Maria tomou-o ao colo, aconchegou-o cobrindo-o com o manto.
- Deve ser frio, disse José.
- Fome, talvez, disse Maria, ansiosa por dar o peito farto ao pequenino filho.


O PRIMEIRO LEITE           
À primeira sucção da boca da criança Maria estremeceu, sentindo uma dor aguda, como se um punhal lhe houvesse atravessado o seio. Longe, porém, de fugir com o peito dolorido, inclinou o busto, dando-se toda ao sublime martírio, com a alma a brilhar nos olhos que a dor orvalhara de lágrimas.
Ávido, o infante sugava, cavando as bochechas e o leite, afluindo, rasgava paragens como a torrente que se despenha de altura vincando a terra e arrastando o que se lhe antolha à levada.
O Divino alimentava-se do sofrimento humano e naquelas opalinas góticas de leite – sangue e água fundidos em candura – o céu comungava na terra.
A carne mortal nutria o espírito perene, o efêmero transfundia-se no eterno: as duas colinas alvas tocavam o infinito, que era a boca de Jesus, de onde deviam jorrar, em caudais, as leis santas, os sábios julgamentos, a benção e o perdão.
A Virgem sorria e o seu colo túrgido ondulava de ventura, enquanto o patriarca, ajoelhado, contemplava o grupo, aureolado pelo clarão da fogueira, cuja chama ressurgia ao sopro da brisa noturna.
Fora ressoavam cânticos; vozes, sons de harpas enchiam o espaço.
Por vezes um clarão relampejava diante da gruta à esplêndida passagem rápida de um anjo.
Maria, inclinada sobre o filho, só a ele sentia, ouvindo apenas o lento gorgulhar do leite que ele sugava sôfrego.
Todo o mundo ali estava nos seus braços: a terra com seus vergéis floridos, o céu com as suas estrelas fúlgidas.
Que lhe importava a aurora se na penugem loura que seus dedos afagavam na cabecinha do filho, ele via o esplendor maior que podem contemplar olhos de mãe!
Que lhe importavam os anjos se, no fundo luminoso das pupilas da criança, via dois pequeninos serafins alegres!
Que lhe importava a imensa alegria universal, se o seu coração transbordava de felicidade com aquele amor!
Levantou-se um alarido fora, na estrada obscura. José saiu ao limiar.
Um bando de homens corria em tropel em direção ao abrigo agreste. À frente deles, voando e alumiando-lhes o caminho com o esplendor das asas, um anjo estendia o braço mostrando a caverna. Outros cruzavam longe, em enxames claros.
No cimo dos cerros grupos resplandeciam.
Súbito uma grita atroou o silêncio.
“Hosana! Hosana!”
O pequeno adormeceu docemente com a boca colada ao peito materno. Maria beijou-o e, inclinada, quedou em enlevo.
“Hosana! Hosana!”
Bradavam fora. Ela sobressaltou-se e chamando o esposo, perguntou:
- Quem clama assim, meu senhor?
- Pastores. Guia-os um anjo. Vêm adorar o infante. E ela, cuidadosa:
- Contanto que o não despertem...
E aconchegou-se ao colo agasalhando-o junto do coração.

Saturday, 8 February 2020

Good Readings: "A Leviana" by Gonçalves Dias (in Portuguese)

És engraçada e formosa
Como a rosa,
Como a rosa em mês d’Abril;
És como a nuvem doirada
Deslizada,
Deslizada em céus d’anil.
Tu és vária e melindrosa,
Qual formosa
Borboleta num jardim,
Que as flores todas afaga,
E divaga
Em devaneio sem fim.
És pura, como uma estrela
Doce e bela,
Que treme incerta no mar:
Mostras nos olhos tua alma
Terna e calma,
Como a luz d’almo luar.
Tuas formas tão donosas,
Tão airosas,
Formas da terra não são;
Pareces anjo formoso,
Vaporoso,
Vindo da etérea mansão.
Assim, beijar-te receio,
Contra o seio
Eu tremo de te apertar:
Pois me parece que um beijo
É sobejo
Para o teu corpo quebrar.
Mas não digas que és só minha!
Passa asinha
A vida, como a ventura;
Que te não vejam brincando,
E folgando
Sobre a minha sepultura.
Tal os sepulcros colora
Bela aurora
De fulgores radiante;
Tal a vaga mariposa
Brinca e pousa
Dum cadáver no semblante.

Friday, 7 February 2020

Friday's Sung Word: "Ride Palhaço" by Lamartine Babo (in Portuguese)

Ride palhaço
Lá, rá, rá, rá, rá, rá
Lá, rá, rá, rá, rá, rá
Lá, rá, rá, rá, rá, rá
Há, há, há...
Ride palhaço
Lá, rá, rá, rá, rá, rá

Eu sou o teu Pierrô
Colombina, Colombina
Reparte esse amor
Metade pra mim
Metade pro teu Arlequim



You can hear "Ride Palhaço" sung by Mário Reis with the Diabos do Céu band here.

Thursday, 6 February 2020

Thursday's Serial: "Tom Brown's Schooldays" by Thomas Hughes (in English) - I


PREFACE TO THE 6TH EDITION
It is not often that in later years one finds any book as good as one remembers it from one's youth; but it has been my interesting experience to find the story of Tom Brown's School Days even better than I once thought it, say, fifty years ago; not only better, but more charming, more kindly, manlier, truer, realler. So far as I have been able to note there is not a moment of snobbishness in it, or meanness of whatever sort. Of course it is of its period, the period which people call Middle Victorian because the great Queen was then nearly at the end of the first half of her long reign, and not because she personally characterized the mood of arts, of letters, of morals then prevalent.
The author openly preaches and praises himself for preaching; he does not hesitate to slip into the drama and deliver a sermon; he talks the story out with many self-interruptions and excursions; he knows nothing of the modern method of letting it walk along on its own legs, but is always putting his hands under its arms and helping it, or his arm across its shoulder and caressing it. In all this, which I think wrong, he is probably doing quite right for the boys who formed and will always form the greatest number of his readers; boys like to have things fully explained and commentated, whether they are grown up or not. In much else, in what I will not say are not the great matters, he is altogether right. By precept and by example he teaches boys to be good, that is, to be true, honest, clean-minded and clean-mouthed, kind and thoughtful. He forgives them the follies of their youth, but makes them see that they are follies.
I suppose that American boys' schools are fashioned largely on what the English call their public schools; and so far as they emulate the democratic spirit of the English schools, with their sense of equality and their honor of personal worth, the American schools cannot be too like them. I have heard that some of our schools are cultures of unrepublican feeling, and that the meaner little souls in them make their account of what families it will be well to know after they leave school and restrict their school friendships accordingly, but I am not certain this is true. What I am certain of is that our school-boys can learn nothing of such baseness from the warm-hearted and large-minded man who wrote Tom Brown's School Days. He was one of our best friends in the Civil War, when we sorely needed friends in England, and it was his magnanimous admiration which made our great patriotic poet known to a public which had scarcely heard of James Russell Lowell before.
But the manners and customs painted in this book are the manners and customs of the middle eighteen-fifties. It appears from its witness that English school-boys then freely drank beer and ale, and fought out their quarrels like prize-fighters with their naked fists, though the beer was allowed and the fighting disallowed by the school. Now, however, even the ruffians of the ring put on gloves, and probably the quarrels of our own schoolboys are not fought out even with gloves. Beer and ale must always have been as clandestine vices in our schools as pitched battles with fists in English schools; water was the rule, but probably if an American boy now went to an English school he would not have to teach by his singular example that water was a better drink for boys than beer.
Our author had apparently no misgiving as to the beer; he does not blink it or defend it; beer was too merely a matter of course; but he makes a set argument for fighting, based upon the good old safe ground that there always had been fighting. Even in the heyday of muscular Christianity it seems that there must have been some question of fighting and it was necessary to defend it on the large and little scale, and his argument as to fisticuffs defeats itself. Concerning war, which we are now hoping that we see the beginning of the end of, he need only have looked into The Biglow Papers to find his idolized Lowell saying:

              “Ez fur war I call it murder;
               There ye hev it plain an' flat;
               An' I don't want to go no furder
               Then my Testament fur that.”

I feel it laid upon me in commending this book to a new generation of readers, to guard them, so far as I may, against such errors of it. Possibly it might have been cleansed of them by editing, but that would have taken much of the life out of it, and would have been a grievous wrong to the author. They must remain a part of literature as many other regrettable things remain. They are a part of history, a color of the contemporary manners, and an excellently honest piece of self-portraiture. They are as the wart on Cromwell's face, and are essentially an element of a most Cromwellian genius. It was Puritanism, Macaulay says, that stamped with its ideal the modern English gentleman in dress and manner, and Puritanism has stamped the modern Englishman, the liberal, the radical, in morals. The author of Toni Brown was strongly of the English Church and the English State, but of the broad church and of the broad state. He was not only the best sort of Englishman, but he was the making of the best sort of American; and the American father can trust the American boy with his book, and fear no hurt to his republicanism, still less his democracy.
It is full of the delight in nature and human nature, unpatronized and unsentimentalized. From his earliest boyhood up Tom Brown is the free and equal comrade of other decent boys of whatever station, and he ranges the woods, the fields, the streams with the joy in the sylvan life which is the birthright of all the boys born within reach of them. The American school-boy of this generation will as freshly taste the pleasure of the school life at Rugby as the American school-boys of the two generations past, and he can hardly fail to rise from it with the noble intentions, the magnanimous ambitions which only good books can inspire.

W. D. Howells.

Wednesday, 5 February 2020

Speech of Pope Saint John Paul II to the 18th International Congress of the Transplantation Society (translated into Portuguese)


 Terça-feira, 29 de Agosto de 2000

 
Ilustres Senhoras e Senhores

1. É-me grato saudar todos vós por ocasião deste Congresso internacional, que vos vê reunidos para reflectir sobre a complexa e delicada temática dos transplantes. Agradeço aos Professores Raffaello Cortesini e Óscar Salvatierra as amáveis palavras que me dirigiram. Uma particular saudação dirige-se às Autoridades italianas aqui presentes.
A todos vós exprimo o meu reconhecimento pelo gentil convite a participar neste encontro, e aprecio vivamente a séria consideração que manifestais em relação ao ensinamento moral da Igreja. No respeito pela ciência e na atenção sobretudo à lei de Deus, a Igreja tem em vista exclusivamente o bem integral da pessoa humana.
Os transplantes são uma grande conquista da ciência ao serviço do homem e nos nossos dias não são poucos aqueles que devem a própria vida ao transplante de um órgão. Portanto, a técnica dos transplantes revela-se cada vez mais como um instrumento precioso na consecução da finalidade primária de toda a medicina:  o serviço à vida humana. Por esta razão, na Carta Encíclica Evangelium vitae recordei que, entre os gestos que concorrem para alimentar uma autêntica cultura da vida, "merece particular apreço a doação de órgãos feita, segundo formas eticamente aceitáveis, para oferecer uma possibilidade de saúde e até de vida a doentes, por vezes já sem esperança" (n. 86).

2. Como se verifica em qualquer conquista humana, também este sector especial da ciência médica, apesar de oferecer toda a esperança de saúde e de vida a muitos, não deixa de apresentar alguns pontos críticos, que requerem ser examinados à luz de uma atenta reflexão antropológica e ética.
Também nesta área da ciência médica o critério fundamental de avaliação reside na defesa e promoção do bem integral da pessoa humana, segundo a peculiar dignidade que temos em virtude da nossa humanidade. Por conseguinte, é evidente que todas as intervenções médicas na pessoa humana estão sujeitas a limitações que não se reduzem à eventual impossibilidade técnica de realização, mas que estão ligadas ao respeito da própria natureza humana entendida no seu significado integral:  "Aquilo que é tecnicamente possível não é necessariamente, por esta mera razão, admissível do ponto de vista moral" (Congregação para a Doutrina da Fé, Donum vitae, 4).

3. A primeira ênfase deve-se dar ao facto de que qualquer intervenção de transplante de órgãos, como já noutra ocasião tive a oportunidade de ressaltar, tem geralmente origem numa decisão de grande valor ético:  "A decisão de oferecer, sem recompensa, uma parte do próprio corpo, em benefício da saúde e do bem-estar de outra pessoa" (Discurso ao I Congresso Internacional sobre os Transplantes de Órgãos, cf. L'Osservatore Romano, ed. port. de 11/8/1991, pág. 5, n. 3). Precisamente nisto reside a nobreza do gesto, que se configura como um autêntico acto de amor. Não se oferece simplesmente uma parte do corpo, mas doa-se algo de si, a partir do momento que "por força da sua união substancial com uma alma espiritual, o corpo humano não pode ser considerado apenas como um conjunto de tecidos, órgãos e funções... Ele é parte constitutiva da pessoa que através dele se manifesta e se exprime" (Congregação para a Doutrina da Fé, Donum vitae, 3).
Por conseguinte, toda a práxis tendente a negociar os órgãos humanos ou a considerá-los como unidade de intercâmbio ou de comércio, resulta moralmente inaceitável, pois através da utilização do corpo como "objecto", viola-se a própria dignidade da pessoa.
Este primeiro ponto tem uma imediata consequência de notável relevância ética:  a necessidade de um consentimento informado. A "autenticidade" humana de um gesto tão decisivo requer, de facto, que a pessoa humana seja adequadamente informada sobre os processos nele implicados, a fim de exprimir de modo consciente e livre o seu consentimento ou a sua recusa. O consentimento dos parentes tem o seu próprio valor ético, quando falta a opção do doador. Naturalmente, um consentimento com características análogas deverá ser expresso por aquele que recebe os órgãos doados.

4. O reconhecimento da dignidade singular da pessoa humana tem uma ulterior consequência subjacente:  os órgãos vitais individualmente só podem ser removidos após a morte, isto é, do corpo de um indivíduo decerto morto. Esta exigência é evidente, uma vez que comportar-se diversamente significaria causar a morte intencional do doador, mediante a remoção dos seus órgãos. Daqui surge uma das questões mais frequentemente presentes nos debates bioéticos actuais e, não raro, também nas dúvidas das pessoas simples. Refiro-me ao problema da certificação da própria morte. Quando uma pessoa pode ser considerada completa e certamente morta?
A respeito disso, é oportuno recordar que a morte da pessoa é um evento único, que consiste na total desintegração do complexo unitário e integrado que a pessoa é em si mesma, como consequência da separação do princípio vital, ou da alma, da realidade corporal da pessoa. A morte da pessoa, entendida neste sentido original, é um evento que não pode ser directamente identificado por qualquer técnica científica ou método empírico.
Mas a experiência humana ensina também que o evento da morte produz inevitavelmente sinais biológicos, que a medicina aprendeu a reconhecer de maneira sempre mais específica. Os chamados "critérios" de certificação da morte, usados pela medicina moderna, não devem portanto ser entendidos como a determinação técnico-científica do momento  exacto  da  morte  da  pessoa, mas como uma modalidade cientificamente segura para identificar os sinais biológicos de que a pessoa de facto morreu.

5. Sabe-se muito bem que, desde há algum tempo, diversas abordagens científicas da certificação da morte transferiram a ênfase dos tradicionais sinais cardiorrespiratórios para o chamado critério "neurológico", nomeadamente para a constatação segundo parâmetros bem determinados e em geral compartilhados pela comunidade científica internacional, da cessação total e irreversível de qualquer actividade encefálica (cérebro, cerebelo e tronco encefálico), como sinal da perda da capacidade de integração do organismo individual como tal.
Diante dos parâmetros hodiernos de certificação da morte quer se refira aos sinais "encefálicos", quer se faça recurso aos mais tradicionais sinais cardiorrespiratórios a Igreja não toma decisões técnicas, mas limita-se a exercer a responsabilidade evangélica de confrontar os dados oferecidos pela ciência médica com uma concepção cristã da unidade da pessoa, evidenciando semelhanças e eventuais contradições, que poderiam pôr em perigo o respeito pela dignidade humana.
Nesta perspectiva, pode-se afirmar que o supramencionado critério de certificação da morte recentemente adoptado, isto é, a cessação total e irreversível de toda a actividade encefálica, se for aplicado de maneira escrupulosa, não parece contrastar os elementos essenciais duma sólida antropologia. Como consequência, o operador no campo da saúde que tem a responsabilidade profissional da certificação da morte pode basear-se neles para alcançar, caso por caso, aquele grau de certeza no juízo ético que a doutrina moral qualifica com o termo de "certeza moral", a qual é a base necessária e suficiente para se poder agir de maneira eticamente correcta. Portanto, só na presença dessa certeza será moralmente legítimo activar os necessários processos técnicos para a remoção dos órgãos a serem transplantados, tendo o médico sido informado do prévio consentimento do doador ou dos seus legítimos representantes.

6. Outro aspecto de grande relevo ético diz respeito ao problema da designação dos órgãos doados, mediante a compilação de listas de espera ou de "prioridades". Apesar dos esforços por promover uma cultura da doação de órgãos, os recursos actualmente disponíveis em muitos países ainda resultam insuficientes às necessidades médicas. Daqui nasce a exigência de compilar listas de espera para os transplantes, segundo critérios clarividentes e oportunamente motivados.
Do ponto de vista moral, um ponderado princípio de justiça exige que esses critérios de designação dos órgãos doados não derivem de modo algum de lógicas de tipo "discriminatório" (por exemplo, baseadas na idade, sexo, raça, religião, condição social, etc.), ou de tipo "utilitário" (por exemplo, assentes na capacidade de trabalho, utilidade social, etc.). Pelo contrário, na determinação das prioridades de acesso aos transplantes dever-se-á respeitar avaliações imunológicas e clínicas. Qualquer outro critério se revelaria arbitrário e subjectivo, pois não reconheceria o valor intrínseco que cada ser humano tem enquanto tal, independentemente das circunstâncias extrínsecas.

7. A última questão refere-se a uma possível solução alternativa, ainda em fase experimental, ao problema de encontrar órgãos a transplantar:  trata-se dos chamados xenotransplantes, isto é, o transplante de órgãos de outras espécies animais.
Não é minha intenção enfrentar aqui de maneira pormenorizada os problemas suscitados por essa forma de intervenção. Limito-me a recordar que já em 1956 o Papa Pio XII levantou a questão sobre a sua liceidade. Fê-lo comentando a possibilidade científica, que então se pressagiava, do transplante da córnea animal no homem. A resposta que ele deu, ainda hoje é iluminadora para nós:  como princípio, dizia ele, a liceidade de um xenotransplante requer, por um lado, que o órgão transplantado não prejudique a integridade da identidade psicológica ou genética da pessoa que o recebe; por outro, que exista a comprovada possibilidade biológica de efectuar com êxito esse transplante, sem expor a imoderados riscos quem o recebe (cf. Discurso à Associação Italiana de Doadores de Córnea e aos Clínicos Oculistas e Médicos Legais, 14 de Maio de 1956).

8. Ao concluir exprimo votos por que, graças à obra de muitas pessoas generosas e altamente qualificadas, a investigação científico-tecnológica no sector dos transplantes se desenvolva ainda mais, estendendo-se também à experimentação de novas terapias sucedâneas ao transplante de órgãos, como parecem prometer alguns dos recentes progressos protéticos. Em todo o caso, será preciso evitar sempre os métodos que não respeitam a dignidade e o valor da pessoa; penso de modo particular nas tentativas de clonagem humana, que visam a obtenção de órgãos de transplante:  enquanto implicam a manipulação e a destruição de embriões humanos, tais técnicas não são moralmente aceitáveis, mesmo que tenham em vista um objectivo em si bom. A ciência deixa entrever outras vias de intervenção terapêutica, que não comportam a clonagem nem o uso de células embrionárias, bastando para essa finalidade a utilização de células estaminais extraídas de organismos adultos. É ao longo desta via que deverá progredir a investigação, se quiser ser respeitosa da dignidade de cada ser humano, mesmo na fase embrionária.
No estudo de todas estas questões, é importante  a  contribuição  dos  filósofos e teólogos, cuja atenta e competente reflexão sobre os problemas éticos ligados à terapia dos transplantes poderá levar a especificar melhor os critérios de juízo, com base nos quais avaliar que tipos de transplante se podem considerar moralmente admissíveis e sob que condições, sobretudo no que concerne à salvaguarda da identidade pessoal de cada indivíduo.
Faço votos por que os líderes sociais, políticos e educativos renovem o seu compromisso em promover uma genuína cultura da generosidade e da solidariedade. É preciso suscitar no coração de todos, e em particular dos jovens, uma autêntica e profunda consideração da necessidade da caridade fraterna, de um amor que se possa exprimir na decisão de se tornar doador de órgãos.
O Senhor ajude cada um de vós no próprio trabalho, orientando-vos para o serviço do autêntico progresso humano.