CAMINHANDO
Maria
caminhava em silêncio, pensando naquela mãe que, repentinamente, passara da
maior desventura à maior felicidade pelo prestígio das lágrimas
misericordiosas.
- O
pequenito dormia e a pobre mãe tinha-o por morto. Foi bastante que eu lhe
tocasse para que logo abrisse os olhos.
- É que
o despertaste, disse o patriarca sem aludir ao prodígio que testemunhara.
Ele ia
notando, com discreta reserva, todas as maravilhas que se realizavam à passagem
da Virgem; ribeiros que sustavam o curso oferecendo o leito enxuto para a
travessia; árvores que se cobriam de flores, carregavam-se de frutos vergando
generosamente os galhos; vozes que murmuravam; veios límpidos que rebentavam
das pedras e, durante os curtos sonos da donzela não lhe passavam despercebidos
anjos que rondavam em torno dos bosques pisando, de leve, os caminhos
aveludados.
A mais
e mais se lhe firmava n’alma a certeza de que as palavras que ouvira em sonho
haviam sido pronunciadas por um mensageiro do céu.
Aquela
era, em verdade, a eleita da Divina Graça, a Virgem pura de Judá, da qual devia
nascer o Messias das gentes.
Ele
acompanhava-a, não como esposo e sim como servo, adorando-a de joelhos quando a
via adormecida.
Ela
ignorava tudo. Sabia apenas que era mãe porque sentia no seio os movimentos do
Ser Perfeito, no qual concentrava todo o seu amor.
Já lhe
crescia o colo, pesando, arredondado e túrgido.
O amor
preparava o alimento para aquele que se nutria de mistério.
- As
mães sofrem tanto pelos filhos!... O amor das mães é como a rosa que cresce
entre espinhos. Praza aos céus que meu filho não sofra enquanto for pequenino.
As
crianças não falam, não atinam a indicar onde lhes punge a dor, de sorte que a
gente não sabe como as há de aliviar quando sofrem.
- As
mães adivinham.
- São
tão fracas as criancinhas que tudo é perigo em torno delas. Tremo quando penso
no meu pequenino filho que vai nascer, tão franzino e tão pobre. Onde o
agasalharemos nós?
- Entre
os nossos braços, como os pássaros resguardam o ninho entre os ramos.
- E o
frio?
- Temos
o nosso calor.
- E a
fome?
- Os
peitos maternos são dois celeiros sempre cheios.
-
Haveis de amá-lo, senhor, e ajudar-me enquanto ele carecer de nós?
- Por
ti, por Ele, por todos, disse José enlevado.
Chegavam
a um bosque de tamareiras, onde havia uma cisterna cercada de musgo.
Um
velho cego repousava à sombra, ouvindo cantar uma criança que brincava sentada
nas folhas secas.
O CEGO
O velho
era Jericó.
Esperava
naquele retiro a passagem das caravanas que se encaminhavam a Jerusalém e
sempre recolhia uma azinhavrada moeda, um punhado de tâmaras ou um esgarçado
albornoz em que se enrolava, bendizendo com palavras humildes e agradecidas, a
generosidade dos homens, recomendando-os ao deus de Abraão, de Isaac e de Jacó
e indicando-lhes os melhores e mais seguros caminhos pelos montes.
José
ajuntou as folhas espalhadas e fez uma alfombra onde Maria adormeceu revendo,
em sonha, a sua alegre Nazaré, as moças à beira da fonte, os pastores nos
cerros, à hora macia da tarde, quando as cotovias baixam e desaparecem nas
searas e as águas das levadas cantam.
Conversaram
os dois velhos – José falou da sua viagem, o cego falou da sua cegueira.
-
Estava assim desde moço, um raio cegara-o no campo, sob um sicômoro. Já se
habituara à treva como um prisioneiro que se houvesse acostumado ao cárcere.
Um
mágico de Suza oferecera-se para curá-lo. Pedira cem dracmas, baixara a
cinqüenta; faria por vinte se ele lhas oferecesse.
Tinha
ainda a sua cabana e ovelhas, vendendo-as reuniria uma soma, mas, pensando,
resolvera deixar-se ficar na cegueira. E suspirou:
-
Ilude-se que julga que, ao voltar aos antigos lugares, encontrará as coisas
como deixou: as próprias pedras modificam-se e não são várias como as almas.
Quando
me anunciaram a morte de meu filho, pedi que me pusessem junto do cadáver,
apalpei-o, beijei-o; ouvi os passos dos que o levavam a enterrar, mas não vi o
enterro.
Ouvi o
estrondo da queda do cedro que cobria de sombra a minha eira e, ainda hoje, vou
sentar-me no sítio em que ele avultava e sinto-me agasalhado pela ramagem que
não existe e ouço a alegre voz dos passarinhos de outrora.
As
coisas foram desaparecendo uma a uma; eu mesmo envelhecia, mas a cegueira
conserva a visão do passado.
O sol
parou para mim na mocidade como parou sobre os muros de Jericó à voz do
batalhador.
Vejo
dentro de mim tudo quanto deixei: as gentes, os animais, as árvores, os lugares
com suas cabanas e os seus campos floridos.
Sou
como a ave aprisionada, de pequenina, em uma gaiola, que não olha senão a
limitada paisagem que fica em torno da sua vivenda triste. Soltai-a, esvoaçará
atordoada e, se não regressar à prisão, morrerá de fome perdida nas florestas
frondosas, se não cair nas garras dos abutres.
O homem
de Suza queria dar-me a liberdade. Para que? Para eu morrer de saudosa tristeza
sentindo o deserto em volta de mim? Não!
Vivo no
passado, o meu tempo já foi.
Não
caminho para a morte. Espero-a, sentado no limiar da mocidade, ouvindo o rumor
do tempo devastador, sem ver os desastres, sem ver as lágrimas, sem ver os
enterros.
Perdi-me
dos meus, dei em uma furna e nela vivo. Já agora estou habituado à sombra. Para
que hei de sair se, lá fora, me esperam ossadas? Se o próprio Deus me
oferecesse a luz eu lhe pediria a morte.
Voltar
atrás...! A erva cresce, o vento revolve a areia desmanchando as nossas
pegadas.
O
campo, que conhecemos florido, mudou-se em carrascal; a gente envelheceu ou
morreu. Só há um meio de não caminhar chorando – é seguir sempre em frente e se
eu recobrasse a vista teria de retroceder e cegaria de novo com os olhos
afogados em lágrimas. Aonde vos dirigis?
- A
Belém.
- Casa
do pão. É ali que deve nascer o Anunciado. Casa da abundância, celeiro do
Senhor, Belém da fertilidade! De lá é que nos há de vir o Messias. O campo de
Booz dará o trigo que há de fartar as almas.
- É
para lá que vamos.
- Que
as estrelas vos sejam propícias, como foram a Ruth, a moça de Moab.
DENTRO DA NOITE
Maria
abriu os olhos quando as estrelas nasciam.
O cego
já havia partido levado pelo menino. As cigarras cantavam vésperas.
José
empunhou o cajado: Maria deixou o leito agreste, e seguiram.
As
últimas chamas do sol apagavam-se no ocaso e a névoa polvilhava os ares como
uma cinza.
Monstruosos
penhascos, talhados a pique à beira dos precipícios, avultavam temerosamente na
sombra.
Palmeiras
debruçavam-se sobre as rampas. Toda a vegetação retorcida, com as raízes à flor
da terra, agarrando-se nervosamente às arestas dos penhascos, parecia recear
aqueles despenhadeiros de onde subia atroadoramente um escachôo soturno d’águas
constrangidas.
Escurecia.
Os montes áridos da Judéia apresentavam-se hostis aos peregrinos.
Os
caminhos, aos torcicolos, confundiam-se augustos, escavados em brocas, eriçados
d’aspas calcárias, orlados de intensos espinheiros que, às vezes, como garras,
detinham os viajantes pelas túnicas.
Estriges
voavam, pousavam nos ramos, nos penedos com gritos lúgubres.
José
caminhava a passo cauteloso, sondando o piso com o cajado, detendo Maria,
buscando tranqüilizá-la com palavras carinhosas.
Mas a
treva adensava-se a mais e mais, os roçados confundiam-se com a sombra.
Julgando seguir a estrada direita, o patriarca estendia a mão e sentia a
aspereza das penhas.
- É
imprudência insistirmos em prosseguir em tal escuridão, disse Maria com medo. É
Deus que nos retém.
José
deteve-se. Parecera ter ouvido vozes, rumor de passos, estalos de ramos secos,
como se viessem outros caminheiros. Escutou atentamente.
Era o
vento que agitava o folhedo e eram as águas profundas que referviam nos
algares.
Mas um
clarão suave acendeu-se no fundo espesso do arvoredo. Quem seria? Encolheram-se
os dois, olhos fitos na claridade, que se adiantava como a luz de um facho. Uma
centelha passou na escuridão, outra girou nos ares, as folhas, os ramos de
árvores ficaram incrustados de brasas.
Surgiram
da terra, saltaram das rochas, subiram dos desfiladeiros, a espessidão
estrelou-se e todas as fagulhas, unindo-se, formaram uma rútila umbela pairando
sobre Maria e José como a nuvem seguiu Israel guiando-o luminosamente pelo
negror das noites no deserto.
Eram
pirilampos que voavam em ordenada falange alumiando os caminhos obscuros.
E os
dois, sob o relume dos insetos, continuaram a viagem dentro dum reverbero que
só ao clarear d’alva desapareceu nos ares.
PIEDADE
Com um
rebanho que recolhia levado por um pastor coberto de peles, as pernas enroladas
até os joelhos em velo sórdido, entraram em Jerusalém pela porta do mercado, à
hora em que as buzinas romanas troavam nas torres.
José
procurava distrair Maria mostrando-lhe as grandes belezas, a magnificência da
cidade; nomeava os edifícios, alguns longínquos, esfumados nas primeiras
sombras da noite.
A
Virgem, porém, seguia calada, sem ânimo de levantar os olhos, com o coração cerrado
em tristeza universal.
Gentes
diversas cruzavam-se nas ruas: homens abaçanados do deserto, com o albornoz ao
vento, o punho esmaltado das adagas reluzindo à cinta; fenícios cobertos de
jóias, com enormes colares de contas de ouro e braceletes de marfim; gregos
ágeis passando ligeiros entre a multidão, com a túnica colida ao braço, as
pernas enlaçadas em tiras de couro.
Mulheres
mostravam-se às portas das casas, encostadas languidamente aos umbrais, olhando
em êxtase, com um sorriso nos lábios cor de púrpura.
A
algumas viam-se-lhes os peitos pela abertura das túnicas; outras, reclinadas em
leitos marchetados, cerravam molemente as pálpebras gozando o frescor dos
flabelos que escravas agitavam.
Errava
no ar denso um cheiro forte de aromatas.
Estranhas
músicas soavam e, como os albergues estavam cheios, era um barbariso alegre sob
as frescas latadas, por entre as quais, em corridinha airosa, moças iam e
vinham com ânforas e crateras.
O
pastor falara-lhes em uma modesta estalagem em Bezetha, para o lado do forte,
onde podiam encontrar agasalho seguro.
A casa
era dirigida por um velho de Siloeh e tinha fama pelo seu anho tenro e pelo seu
vinho puro. Lá achariam pousada e, como ficava longe e não recebia mulheres,
não seriam incomodados pelos legionários que, à menor agitação invadiam as
casas brutalmente levando tudo a conto de lança.
Era um
rancho paupérrimo, entre sebes de espinhos, onde se aboletavam mestairais e
homens dos montes que traziam ao mercado favos de mel, resinas, bálsamos e
raízes.
O velho
acolheu-os de boa sombra, serviu-lhes a refeição na sala lôbrega que uma
candeia alumiava.
Rústicos
bebiam, jogavam e fora, junto a um Monet de pedras, um velho resmungava
raspando, com voracidade, o fundo de uma escudela.
Era um
leproso nojentamente abostelado de úlceras.
Às
chufas dos homens, que lhe atiravam cascas, bagaços de frutas, respondia aos
regougos, bramindo maldições e, como prorrompesse aos berros, apanhando pedras
para defender-se, os homens revoltaram-se.
O hóspede
tranqüilizou-os e, saindo ao terreiro, pôs-se a assobiar.
Enorme
cão saltou da sombra rosnando. O taverneiro açulou-o contra o leproso que se
encolhera estarrecido.
Vendo o
cão investir, Maria caiu de joelhos, juntou as mãos frias e, trêmula, d’olhos
no céu, implorou pelo infeliz.
O
animal raivava, aos saltos; os homens vociferavam incitando-o. Alguns riam no
ante-gozo da cena cruel, mas como o leproso, tentando correr, tropeçasse
rolando na terra e ferindo o rosto no pedregulho, o cão, que o alcançara,
pôs-se a ganir e, sacudindo a cauda, ficou de rastos, lambendo mansamente o
sangue que escorria da cicatriz do mendigo.
E
Maria, estática, não via a doce misericórdia que imobilizara em espanto os
hóspedes do albergue.
CÂNTICO MESSIÂNICO
Ao
romper d’alva quando, do lado do templo as cegonhas partiam em direção ao
deserto e as pombas baixavam em nuvens sobre o mercado catando o grão que
transbordava das seiras, o patriarca despertou Maria e, ligeiros como
foragidos, deixaram a estalagem com os votos de boa jornada do hospedeiro. As
buzinas romanas ressoavam na serenidade.
Legionários
recolhiam cansadamente a Makeros.
Pobre,
que haviam pernoitado ao relento, estremunhavam sobre farrapos.
Num
pátio, entre muros de maceira, espontado de ervas silvestres, mugiam bois e
homens bradavam.
Corvos
rondavam os ares atraídos pelo cheiro de sangue.
Quando
passaram as muralhas, saindo do Campo do Oleiro, o sol brilhava nas pastagens
úmidas e passarinhos cruzavam o vôo cantando na alegria do sol.
Maria
caminhava d’olhos altos, como enlevada. Inefável sorriso iluminava-lhe o rosto
lindo, arrepios nervosos sacudiam-na de instante a instante.
- Lá
está Belém! disse José estendendo o cajado na direção dos montes ainda
enfaixados em névoa.
Maria
empalideceu e, d’olhos fitos nos outeiros graciosos da terra de Davi, rompeu,
de repente, a cantar, sobre uma antiga melodia hebraica, repetindo inspiradamente
as palavras que lhe saiam d’alma:
“Espírito
Perfeito, ânsia das almas míseras, se és Tu que em mim assistes, bendita seja a
carne frágil em que Te encerraste e de onde deves romper, germe da Redenção, em
Flor de Misericórdia.
Espírito
Perfeito, lume que de mim fizeste a Tua lâmpada, que o Teu clarão espalhe-se
pela terra fazendo brotar a sementeira nos campos e o amor no coração dos
homens.
Espírito
Perfeito, fonte de copiosas águas benfazejas, bendita seja a dor que me lançou
na vida, benditas sejam as lágrimas que por Ti hei vertido.
Espírito
Perfeito, esperança dos desanimados, se eu sou o ramo verde que hei de Te dar,
bendita seja a aflição e minh’alma na hora atormentada em que, inocente, me
julguei culpada e, pura, vi a suspeita manchar a minha virgindade.
Espírito
Perfeito, se És a redenção anunciada, bendigo a Tua vinda, sem orgulho, por me
haveres tomado por Teu trâmite e prostro-me ante a Tua Graça e exalto a Tua
beneficência.
Espírito
Perfeito, Ser do seres, não nado ainda, glória a Ti e à Tua origem celestial.
Virgem, dar-te-ei ao mundo. Eu sou como o olhar que não se macula por
transmitir ao corpo a visão.
Por mim
entras no mundo como o sol, e tudo que ele alumia, entra, pelo olhar, no
cérebro.
Eu sou
a pupila que comunicara ao universo a Claridade Magnífica.
Espírito
Perfeito, louvado sejas sempre pela Tua virtude e pela Tua excelência. Sabes da
carne mortal sem trazeres pecados: passas por ela como uma imagem que se
reflete n’água.
Espírito
Perfeito, Graça de Israel, Esperança da Gentes, Messias... Meu coração
alegra-se sentindo-Te e o meu coração é o cativo que almeja a liberdade.
Eu sou
a fraqueza humilde chamada mulher. Sou a escrava que gera o seu libertador, a
sombra de onde sabe a luz, o pecado que floresce em perdão...”
José
ouviu-a com os olhos rasos d’água.
As
cotovias cantavam na altura luminosa.
Longe,
sob a fulguração do sol, resplandeciam os muros de Belém, entre outeiros.
O CAMPO DE BOOZ
À hora
cálida, abafada, em que as folham dormem e as ribeiras murmuram de leve,
vagarosas, remansando-se sob as quietas sombras, e toda asa encolhe-se entre os
ramos mais densos, e todo réptil encova-se na terra mais úmida, deram os dois
num campo de farta seara onde alumiavam foices e moças juntavam gavelas,
cantando, enquanto os homens ceifavam assustando as cotovias que tinham os seus
ninhos rentes no chão, na raiz do trigal.
Maria,
com o manto sobre a cabeça, enlevada naquela messe de ouro e na alegria ruidosa
do trabalho, ouvia as vozes que se cruzavam subindo dos trigos altos, onde os
seareiros desapareciam, como se fosse o próprio campo que cantasse o louvor do
sol.
Ia tão
entretida que não viu José adiantar-se, direto a uma palhoça onde um velho jazia,
sentado ante um monte de vergas, tecendo um alcofe e cantando.
Aligeirou
os passos e alcançou o esposo justamente quando ele saudava o ancião.
-
Dizei-me a quem pertence este campo tão rico e cheio de tanta alegria?
- A
Obed, segundo deste nome, descendente de Booz, o semeador.
- Foi,
então, nesta terra que a moabita achou agasalho junto do homem bom, que a amou?
- Sim,
foi aqui. Esta é a leira de Efracta, a mais fértil entre as mais abundantes e
generosas. Este campo foi o leito nupcial onde se gerou a raça robusta dos reis
de Israel.
Aqui
nasceu Davi, tronco forte, estirpe augusta de que há de sair a imarcessível
flor anunciada, cujo perfume encherá as almas de inefável ventura. Este é o
celeiro de Iahve. E vós vindes de onde?
- De
Nazaré, na Galiléia.
- E
ides?
- A
Belém. Urge que lá cheguemos antes do pôr-do-sol.
-
Tendes tempo. Sentai-vos um momento, é a hora da refeição. O que tenho dá para
repartir convosco. A vossa companheira, esposa ou filha, vem fatigada. Que
descanse um instante à sombra, gozando a sesta. Entrareis na cidade com a
fresca da tarde.
Aceitaram
os peregrinos o convite hospitaleiro: sentaram-se e comeram do pão molhado em
mel e beberam pelo mesmo tarro o leite cheiroso.
Ficaram
os dois velhos conversando e Maria, encostando-se aos feixes de trigo, cobriu o
rosto com o manto e adormeceu.
As
moças cantavam na eira levantando moedas de ouro e, sob o sol escaldante, no
alto céu azul, as cotovias voavam e os seus gritos abrandavam-se na distância,
esmoreciam perdidamente.
NA CAVERNA
Diante
de uma trilha que se perdia no arvoredo deteve-se o carreiro e disse:
- Aqui
me despeço, este é o meu rumo. A estrada em que estais, direita e fácil,
guia-vos a Belém. Seja o Senhor convosco.
Sem
esforço, José tomou a Virgem nos braços, pousou-a na terra, agradecendo ao moço
a gentileza de a haver recebido no seu carro. E ele, galantemente, respondeu:
-
Trouxe a flor viva do trigal ceifado, e, com tão jeitosa resposta, despediu-se
e foi-se, aguilhada ao ombro, devagar, à frente dos bois, cantando, em voz
apaixonada, os louvores do seu amor mimoso.
Os dois
caminharam alguns passos. Maria amparada ao esposo, lenta, tolhida de
sofrimento; mas não pode ir além da caverna e deteve-se.
O
áspero interior do antro tingia-se de laivos rubros, ao trêmulo flamejar duma
fogueira junto à qual um velho pastor, de mãos estendidas ao lume, cantarolava
baixinho.
Ovelhas
ondulavam na sombra.
Logo à
entrada, na anfractuosidade da rocha, havia uma manjedoura. Um jumento
dormitava e, junto dele, ruminando, jazia deitada uma vaca com o seu novilho.
Disse
José à Maria:
-
Firma-te a mim e vamos devagarinho. Havemos de achar aposento em alguma
estalagem. Ela sorriu docemente, resignada, mas os seus olhos meigos foram para
a caverna.
O
patriarca, apiedado, adiantou-se e falou ao pastor.
- Seja
o senhor convosco!
-
Bem-vindo seja o que chega e desce com os olhos até a minha humildade.
-
Hóspede na terra, venho de longe e comigo, em estado que não consente esforço,
trago minha esposa, que aqui vedes. Se permitirdes que ela fique um momento
convosco enquanto procuro hospedagem, sempre o meu coração vos há de louvar.
O velho
pastor, de fartas barbas amarelecidas, longos cabelos espalhados pelos ombros,
que um melote cobria, soergueu-se e falou:
- A
caverna não tem porta, ainda é mais franca que os templos. Entrai e abeirai-vos
do lume, que a noite começa a esfriar.
- Ela
fica, eu sigo pela pousada. Maria tímida, entrou. Logo o pastor acamou as
palhas, alargando um leito fofo e, vendo-a recostar-se, voltou ao seu lume e ao
canto com que se entretinha.
E o
patriarca partiu.
Ainda
que não conhecesse a cidade, tanta era a gente que se movia nas ruas, que não
lhe foi difícil, perguntando, encaminhar-se a uma estalagem.
Logo à
entrada, sob o vasto alpendre, viu as altas pilhas de fardos, e, em volta,
estendidos em peles, mercadores e recoveiros.
O
hóspede, mostrando-lhe o transbordo da casa, disse:
- São
homens que se aboletam ao relento, por falta de cômodos. Dificilmente
encontrareis quem vos receba, porque as festas atraíram grande mó de
estrangeiros e as feiras trazem das cercanias todos os lavradores. Guie-vos o
Senhor. E José prosseguiu.
Nas
vielas e alfurjas havia turbas cantando e bailando em volta de fogueiras.
Debalde
o ancião entrava nas estalagens. As próprias choupanas recebiam hóspedes e,
pelas colinas, entre fogos, clareavam tendas. Errou até tarde sem êxito
Já o
silêncio anunciava hora alta quando, quebrado de fadiga, retrocedeu pelas
betesgas desertas, ao latido dos cães errantes, em rumo à caverna.
Avistou-a
de longe, alumiada por um clarão de luar, e, como levantasse os olhos
demandando o astro, deu com um anjo deslumbrante que, abrindo asas largas,
diáfanas, feitas como de névoa e luz, ia e vinha no espaço, rondando a noite.
Entrou.
O velho pastor velava diante das brasas vividas e, entre ovelhas, sobre a palha
loura, a Virgem dormia serena.
NATAL
O
esplendor é mais impenetrável que a treva e foi uma muralha fulgurante que
encobriu Maria quando se realizou a profecia do bem.
Na hora
em que os galos cantaram a primeira vez, súbito clarão resplandeceu no fundo da
caverna. A luz foi tanta, tão intensa que atravessou o sono em que jaziam o
patriarca e o pastor.
José
soergueu-se d’ímpeto, firmando-se nas mãos, ofuscado pela claridade vivida que
irradiava em estalactites de um brilho augusto, mudando em rútilos diamantes
todas as pedras brutas e fazendo áspero solo, eriçado em pedrouços, uma área
esplêndida como se fosse embutida de gemas lapidadas.
O
pastor, atônito, deslumbrado, arrastava-se tateando e a caverna, a mais e mais
aclarada, parecia toda uma chama alva como se um luar maravilhoso a enchesse
magnificamente.
Os dois
homens, atordoados, não falavam – estendiam as mãos e os seus dedos chameavam
como raios d’astros e da luminosidade desprendia-se um perfume, novo na terra,
aroma celestial que enlevava como um encantamento.
Além da
caverna a noite negrejava calada e erma de estrelas. Pode o pastor arrastar-se
até o limiar e o seu corpo, esgueirando-se, refulgiam como o de uma salamandra.
Trêmulo,
chegou à entrada, respirando a largos sorvos, o ar frio que vinha dos outeiros.
Levantou o olhar e recuou espavorido.
Escada
altíssima, de cintilantes degraus, ligava o cimo do outeiro ao céu aberto em
radiante pórtico e anjos desciam, tantos que pareciam uma catadupa que se
despenhava espumejando iriada de sol, com cintilações de pedrarias.
Não
pode olhar e, rojando-se, com a face na terra, ouvia o murmúrio das asas.
Não
disse palavra, imóvel, tolhido de assombro, sentindo a transfiguração da noite.
José
conseguiu levantar-se e caminhou lentamente através do esplendor.
Maria
apareceu-lhe entre as mansas ovelhas que, reunidas, bafejavam as palhas onde um
menino infante, com as mãozinhas na boca, os olhos cândidos abertos, parecia
contemplar a Virgem que sobre Ele inclinava-se.
Olhou-a,
fitou no tenro corpo os olhos e viu que o cercavam três figuras de incomparável
beleza.
Uma, as
mãos diáfanas cruzadas sobre o peito, os olhos baixos, concentrada, rezava.
Outra, d’olhos enlevados, com uma palma verde na mão débil, sorria. A terceira,
de joelhos, aquecia com o hálito, envolvendo-o nos seus longos cabelos louros,
o corpo recém-nado.
Por
onde teriam entrado os três seres? Que anjos seriam? Não os pode reconhecer o
patriarca, mas chegando-se à Virgem tomou-lhe a mão e beijou-a.
Ele
mostrou-lhe o filho com uma ternura tão meiga que o sorriso não pode por si só
exprimi-la e lágrimas correram.
Assim
deram os olhos, d’uma só vez, todos os seus tesouros: o brilho do olhar e os
diamantes da meiguice, essa humildade do amor.
Pouco a
pouco foi-se a luz extinguindo, a sombra retomou a caverna.
As
virgens desapareceram e Maria, acolhendo o pequenino nos braços, chegou-o ao
colo, aqueceu-o, afagou-o.
Foi mãe
antes de ser serva. Só depois de o beijar estremecidamente ouviu as vozes que
atroavam a noite:
“Glória
a Deus nas alturas, paz aos homens na terra de boa vontade.”
Ocorreram-lhe
as palavras do anjo. Lembrou-se, então, que o ser nascido do seu seio era o
Deus da promessa.
Deitou-o
delicadamente nas palhas e ajoelhou-se adorando-o.
José,
afastado do grupo, prestava culto à Virgem e ao infante e o céu, pala voz dos
espíritos eleitos, saudava a vinda do filho do homem, portador da piedade.
Ergueu-se
o pastor, olhou o céu e, ouvindo os anjos, saiu a correr bradando
inspiradamente a Boa-Nova.
E os
galos puseram-se a cantar anunciando a maior e mais bela madrugada do mundo.
AS TRÊS VIRGENS
Quando
o menino adormeceu José, aproximando-se de Maria, perguntou-lhe baixinho: “Se
vira as três virgens que cercaram o infante ungindo-o de luz?”
A
Imaculada respondeu no mesmo tom discreto:
- Logo
que sai do sono, ainda antes de ver meu filho, dei com elas, imóveis, aclarando
toda a caverna, de joelhos diante do recém-nascido.
Não
falavam. Não sei quem são. Desapareceram de repente como as estrelas
desaparecem.
-
Seriam anjos? Uma serena voz, saindo das pedras, falou no silêncio:
- A
primeira é toda a crença do homem: é a virtude que leva a alma à presença do
Altíssimo.
Antes
da vinda do Messias era a névoa indecisa que resplandecia e obumbrava-se; agora
é a luz pura e perene, a luz viva que guia ao paraíso através de todos os
abrolhos, por meio dos mais árduos sofrimentos, vencendo as mais perversas
tentações, sempre direita, inflexível e segura. É a fé.
O seu
olhar não se desvia, a sua linguagem é a prece, a sua confiança é Deus. É a
mais forte da três. A segunda é uma consoladora. Parece um reflexo da primeira:
É a esperança.
Veste-se
de ilusões, recama-se de sonhos para distrair a alma, livrando-a do desespero.
É como o ramo verde que se inclina à borda dos abismos. É a divina miragem que,
através das agruras da vida, reanima o coração combalido, criando perspectivas
venturosas.
Só, é
uma encantadora que vive a inventar maravilhas, ligada à fé é a precursora que
desbrava o caminho para a travessia da alma.
Sem ela
a miséria seria um flagelo, a dor seria intolerável. É uma força feita de
sonho. Isolada é a fantasia.
A
terceira é o amor, é a lágrima que se converte em misericórdia, é a bondade
onipotente, a meiguice que salva, a resignação que remite, a paciência que
conforta, a lã que agasalha, o linho que estanca o sangue, o lume que aquece.
É o
conjunto amoroso de todas as beneficências – a caridade.
São as
três irmãs que acompanham o Messias.
Ele
tomou-as ao paganismo e converteu-as transmitindo-lhes a sua essência.
Eram as
Cárites, são as Virtudes. Foram as Graças, são as beneficiadoras.
Com
elas Jesus fará a redenção do homem.
Para
combater o mal, podendo trazer as legiões adamantinas, trouxe os humildes.
Calou-se
a voz e os dois olharam-se maravilhados.
- Não
ouviste falar?
- Sim,
meu senhor, falaram. As ovelhas estavam de pé e olhavam, como se também
procurassem o misterioso interlocutor.
Mas o
menino agitou-se no leito palhiço, estendeu os bracinhos e chorou.
Presto,
Maria tomou-o ao colo, aconchegou-o cobrindo-o com o manto.
- Deve
ser frio, disse José.
- Fome,
talvez, disse Maria, ansiosa por dar o peito farto ao pequenino filho.
O PRIMEIRO LEITE
À
primeira sucção da boca da criança Maria estremeceu, sentindo uma dor aguda,
como se um punhal lhe houvesse atravessado o seio. Longe, porém, de fugir com o
peito dolorido, inclinou o busto, dando-se toda ao sublime martírio, com a alma
a brilhar nos olhos que a dor orvalhara de lágrimas.
Ávido,
o infante sugava, cavando as bochechas e o leite, afluindo, rasgava paragens
como a torrente que se despenha de altura vincando a terra e arrastando o que
se lhe antolha à levada.
O
Divino alimentava-se do sofrimento humano e naquelas opalinas góticas de leite
– sangue e água fundidos em candura – o céu comungava na terra.
A carne
mortal nutria o espírito perene, o efêmero transfundia-se no eterno: as duas
colinas alvas tocavam o infinito, que era a boca de Jesus, de onde deviam
jorrar, em caudais, as leis santas, os sábios julgamentos, a benção e o perdão.
A
Virgem sorria e o seu colo túrgido ondulava de ventura, enquanto o patriarca,
ajoelhado, contemplava o grupo, aureolado pelo clarão da fogueira, cuja chama
ressurgia ao sopro da brisa noturna.
Fora
ressoavam cânticos; vozes, sons de harpas enchiam o espaço.
Por
vezes um clarão relampejava diante da gruta à esplêndida passagem rápida de um
anjo.
Maria,
inclinada sobre o filho, só a ele sentia, ouvindo apenas o lento gorgulhar do
leite que ele sugava sôfrego.
Todo o
mundo ali estava nos seus braços: a terra com seus vergéis floridos, o céu com
as suas estrelas fúlgidas.
Que lhe
importava a aurora se na penugem loura que seus dedos afagavam na cabecinha do filho,
ele via o esplendor maior que podem contemplar olhos de mãe!
Que lhe
importavam os anjos se, no fundo luminoso das pupilas da criança, via dois
pequeninos serafins alegres!
Que lhe
importava a imensa alegria universal, se o seu coração transbordava de
felicidade com aquele amor!
Levantou-se
um alarido fora, na estrada obscura. José saiu ao limiar.
Um
bando de homens corria em tropel em direção ao abrigo agreste. À frente deles,
voando e alumiando-lhes o caminho com o esplendor das asas, um anjo estendia o
braço mostrando a caverna. Outros cruzavam longe, em enxames claros.
No cimo
dos cerros grupos resplandeciam.
Súbito
uma grita atroou o silêncio.
“Hosana!
Hosana!”
O
pequeno adormeceu docemente com a boca colada ao peito materno. Maria beijou-o
e, inclinada, quedou em enlevo.
“Hosana!
Hosana!”
Bradavam
fora. Ela sobressaltou-se e chamando o esposo, perguntou:
- Quem
clama assim, meu senhor?
-
Pastores. Guia-os um anjo. Vêm adorar o infante. E ela, cuidadosa:
-
Contanto que o não despertem...
E
aconchegou-se ao colo agasalhando-o junto do coração.