Capítulo X - Despedida
D Antônio aproximou-se de Peri e apertou-lhe a mão:
— O que eu te devo, Peri, não se paga; mas sei o que devo a mim mesmo. Tu voltas à tua tribo: apesar da tua coragem e esforço, pode a sorte da guerra não te ser favorável, e caíres em poder de algum dos nossos. Este papel te salvará a vida e a liberdade; aceita-o em nome de tua senhora e no meu.
O fidalgo entregou ao índio o pergaminho que há pouco tinha escrito e voltou-se para seu filho:
— Este papel, D. Diogo, assegura a qualquer português de quem Peri possa ser prisioneiro, que D. Antônio de Mariz e seus herdeiros respondem por ele e pelo seu resgate, qualquer que for. É mais um legado que vos deixo a cumprir, meu filho.
— Ficai certo, meu pai, replicou o moço, que saberei responder a essa divida de honra, não só em respeito à vossa memória, como em satisfação dos meus próprios sentimentos.
— Toda a minha família aqui presente, disse o fidalgo dirigindo-se ao índio, te agradece ainda uma vez o que fizestes por ela; reunimo-nos todos para te desejarmos a boa volta ao seio dos teus irmãos e ao campo onde nasceste.
Peri fitou o olhar brilhante no rosto de cada uma das pessoas presentes, como para dizer-lhes o adeus que seus lábios naquela ocasião não podiam exprimir.
Apenas seus olhos se fitaram em Cecília, impelido por uma força invencível atravessou o aposento e foi ajoelhar-se aos pés de sua senhora.
A menina tirou do peito uma pequena cruz de ouro presa a uma fita preta, e deitou-a no pescoço do índio:
— Quando tu souberes o que diz esta cruz, volta, Peri.
— Não, senhora; de onde Peri vai, ninguém voltou.
Cecília estremeceu.
O selvagem ergueu-se, e caminhou para D. Antônio de Mariz, que não podia dominar a sua emoção.
— Peri vai partir; tu mandas, ele obedece; antes que o sol deixe a terra, Peri deixará tua casa; o sol voltará amanhã, Peri não voltará nunca. Leva a morte no seio porque parte hoje; levaria a alegria se partisse no fim da lua.
— Por que razão? perguntou D. Antônio; desde que é necessário que nos separemos, tanto deves sentir hoje como daqui a três dias.
— Não, replicou o índio; tu vais ser atacado amanhã talvez, e Peri estaria contigo para defender-te.
— Vou ser atacado? exclamou D. Antônio pensativo.
— Sim: podes contar.
— E por quem?
— Pelo Aimoré.
— E como sabes isto? perguntou D. Antônio fitando nele um olhar desconfiado.
O índio hesitou durante um momento; estudava a resposta.
— Peri sabe porque viu o pai e o irmão da índia, que teu filho matou sem querer, olharem tua casa de longe, soltarem o grito da vingança, e caminharem para sua tribo.
— E tu o que fizeste?
— Peri viu-os passar; e vem te avisar para que te prepares.
O fidalgo fez com a cabeça um movimento de incredulidade.
— É preciso não te conhecer, Peri, para acreditar no que dizes; tu não podias olhar com indiferença para os inimigos de tua senhora e meus.
O índio sorriu tristemente.
— Eram mais fortes; Peri deixou que passassem.
D. Antônio começou a refletir; parecia evocar as suas reminiscências, e combinar certas circunstâncias que tinha impressas na memória.
Seu olhar abaixando-se do rosto de Peri, caíra sobre os ombros; a princípio vago e distraído como o de um homem que medita, começou a fixar-se e a distinguir um ponto vermelho quase imperceptível, que aparecia no saio de algodão do índio.
À proporção que a vista se firmava, e que o objeto se desenhava mais distinto, o semblante do fidalgo se esclarecia, como se tivesse achado a solução de um difícil problema.
— Estás ferido? exclamou o fidalgo de repente.
Peri recuou um passo; mas D. Antônio lançando-se para ele entreabriu o talho de sua camisa: e tirou-lhe as duas pistolas da cinta, examinou-as, e viu que estavam descarregadas.
O cavalheiro depois deste exame cruzou os braços e contemplou o índio com admiração profunda.
— Peri, disse ele, o que fizeste é digno de ti; o que fazes agora é de um fidalgo. Teu nobre coração pode bater sem envergonhar-se sobre o coração de um cavalheiro português. Tomo-vos a todos por testemunhas, que vistes um dia D. Antônio de Mariz apertar ao seu peito um inimigo de sua raça e de sua religião, como a seu igual em nobreza e sentimentos.
O fidalgo abriu os braços e deu em Peri o abraço fraternal consagrado pelos estilos da antiga cavalaria, da qual já naquele tempo apenas restavam vagas tradições. O índio, de olhos baixos, comovido e confuso, parecia um criminoso em face do juiz.
— Vamos, Peri, disse D. Antônio, um homem não deve mentir, nem mesmo para esconder as suas boas ações. Responde-me a verdade.
— Fala.
— Quem disparou dois tiros junto ao rio, quando tua senhora estava no banho?
— Foi Peri.
— Quem atirou uma flecha que caiu junto de Cecília?
— Um Aimoré, respondeu o índio estremecendo.
— Por que a outra flecha ficou sobre o lugar onde estão os corpos dos selvagens?
Peri não respondeu.
— É escusado negares; tua ferida o diz. Para salvar tua senhora, te ofereceste aos tiros dos inimigos; depois os mataste.
— Tu sabes tudo; Peri não é mais preciso; volta à sua tribo.
O índio lançou um último olhar à sua senhora, e caminhou para a porta.
— Peri! exclamou Cecília, fica; tua senhora manda.
Depois correndo para seu pai, e sorrindo-lhe entre as lágrimas, disse com um tom suplicante:
— Não é verdade? Ele não deve partir mais. Vós não podeis mandá-lo embora, depois do que fez por mim?
— Sim! A casa onde habita um amigo dedicado como este, tem um anjo da guarda que vela sobre a salvação de todos. Ele ficará conosco, e para sempre.
Peri, trêmulo e palpitando de alegria e esperança, estava suspenso dos lábios de D. Antônio.
— Minha mulher, disse o fidalgo dirigindo-se a D. Lauriana com uma expressão solene, julgais que um homem que acaba de salvar pela segunda vez vossa filha pondo em risco a sua vida; que, despedido por nós, apesar da nossa ingratidão, a sua última palavra é uma dedicação por aqueles que o desconhecem; julgais que este homem deva sair da casa onde tantas vezes a desgraça teria entrado, se ele aí não estivera?
D. Lauriana, tirados os seus prejuízos, era uma boa senhora: e quando o seu coração se comovia, sabia compreender os sentimentos generosos. As palavras de seu marido acharam eco em sua alma.
— Não, disse ela levantando-se e dando alguns passos; Peri deve ficar, sou eu que vos peço agora esta graça, Sr. D. Antônio de Mariz; tenho também a minha dívida a pagar.
O índio beijou com respeito a mão que a mulher do fidalgo lhe estendera.
Cecília batia as mãos de contente; os dois cavalheiros sorriam, um para o outro, e compreendiam-se. O filho sentia um certo orgulho, vendo seu pai nobre, grande e generoso. O pai conhecia que seu filho o aprovava, e seguiria o exemplo que lhe dava.
Neste momento Aires Gomes apareceu no vão da porta e ficou estupefato.
O que passava era para ele uma coisa incompreensível, um enigma indecifrável para quem ignorava o que sucedera anteriormente.
Pela manhã, depois do almoço, D. Antônio de Mariz, chegando a uma janela da sala, vira uma grande nuvem negra abater-se sobre a margem do Paquequer. A quantidade dos abutres que formavam essa nuvem, indicava que o pasto era abundante; devia ser um ou muitos animais de grande corpulência.
Levado pela curiosidade natural em uma existência sempre igual e monótona, o fidalgo desceu ao rio; encontrou junto da latada de jasmineiros que servia de casa de banho a Cecília, uma pequena canoa em que atravessou para a margem oposta.
Aí descobriu os corpos dos dois selvagens que imediatamente reconheceu pertencerem à raça dos Aimorés; viu que tinham sido mortos com arma de fogo. Nesse momento não se lembrou de coisa alguma senão de que os selvagens iam talvez atacar a sua casa, e um terrível pressentimento cerrou-lhe o coração.
D. Antônio não era supersticioso; mas não pudera eximir-se de um receio vago quando soube da morte que D. Diogo tinha feito involuntariamente e por falta de prudência; fora este o motivo por que se tinha mostrado tão severo com seu filho.
Vendo agora o começo da realização de suas sinistras previsões, aquele receio vago que a princípio sentira, redobrou; auxiliado pela disposição de espírito em que se achava, tornou-se em forte pressentimento.
Uma voz interior parecia dizer-lhe que uma grande desgraça pesava sobre sua casa, e a existência tranqüila e feliz que até então vivera naquele ermo, ia transformar-se numa aflição que ele não sabia definir. Sob a influência desse movimento involuntário da alma, que às vezes sem motivo nos mostra a esperança ou a dor, o fidalgo voltou à casa.
Perto viu dois aventureiros a quem ordenou que fossem imediatamente enterrar os selvagens, e guardassem o maior silêncio sobre isto: não queria assustar sua mulher.
O mais já sabemos.
Pensou que podia a desgraça, que ele temia, recair sobre sua pessoa, e quis dispor a sua última vontade, assegurando o sossego de sua família.
Depois, o aviso de Peri lembrou-lhe de repente o que tinha visto; recordou-se das menores circunstâncias, combinou-as com o que Isabel havia contado a sua tia, e conheceu o que se tinha passado como se o houvesse presenciado.
A ferida do índio que se abrira com as emoções por que passou durante o momento cruel em que sua senhora o mandava partir, tinha manchado o saio de algodão com um ponto quase imperceptível; este ponto foi um raio de luz para D. Antônio.
O escudeiro, o digno Aires Comes, que depois de esforços inauditos conseguira arrastar com o pé a sua espada, levantá-la e com ela cortar os laços que o prendiam, tinha pois razão de ficar pasmado diante do que se passava.
Peri, beijando a mão de D. Lauriana, Cecília contente e risonha, D. Antônio de Mariz e D. Diogo contemplando o índio com um olhar de gratidão; tudo isto ao mesmo tempo, era para fazer enlouquecer ao escudeiro.
Sobretudo para quem souber que apenas livre correra à casa unicamente com o fim de contar o ocorrido e pedir a D. Antônio de Mariz licença para esquartejar o índio; resolvido se o fidalgo lha negasse, a despedir-se do seu serviço, no qual se conservava havia trinta anos; mas tinha uma injúria a vingar, e bem que lhe custasse deixar a casa, Aires Gomes não hesitava.
D. Antônio vendo a figura espantada do escudeiro, riu-se; sabia que ele não gostava do índio, e quis neste dia reconciliar todos com Peri.
— Vem cá, meu velho Aires, meu companheiro de trinta anos. Estou certo que tu, a fidelidade em pessoa, estimarás apertar a mão de um amigo dedicado de toda a minha família.
Aires Gomes não ficou pasmado só; ficou uma estátua. Como desobedecer a D. Antônio que lhe falava com tanta amizade? Mas como apertar a mão que o havia injuriado?
Se já se tivesse despedido do serviço, seria livre; mas a ordem o pilhara de surpresa; não podia sofismá-la.
— Vamos, Aires!
O escudeiro estendeu o braço hirto; o índio apertou-lhe a mão sorrindo.
— Tu és amigo; Peri não te amarrará outra vez.
Por estas palavras todos adivinharam confusamente o que se tinha passado, e ninguém pôde deixar de rir-se.
— Maldito bugre! murmurava o escudeiro entredentes; hás de sempre mostrar o que és.
Era hora do jantar: o toque soou.
Capítulo XI - Travessura
Na tarde desse mesmo domingo em que tantos acontecimentos se tinham passado, Cecília e Isabel saíam do jardim com o braço na cintura uma da outra.
Estavam vestidas branco; lindas ambas, mas tinha cada uma diversa beleza; Cecília era a graça; Isabel era a paixão; os olhos azuis de uma brincavam; os olhos negros da outra brilhavam.
O sorriso de Cecília, parecia uma gota de mel e perfume que destilavam os seus lábios mimosos; o sorriso de Isabel era como um beijo ideal, que fugia-lhe da boca e ia rogar com as suas asas a alma daqueles que a contemplavam.
Vendo aquela menina loura, tão graciosa e gentil, o pensamento elevava-se naturalmente ao céu, despia-se do invólucro material e lembrava-se dos anjinhos de Deus.
Admirando aquela moça morena, lânguida e voluptuosa, o espírito apegava-se à terra; esquecia o anjo pela mulher; em vez do paraíso, lembrava-lhe algum retiro encantador, onde a vida fosse um breve sonho.
No momento em que saíam do jardim, Cecília, olhava sua prima com um certo arzinho malicioso, que fazia prever alguma travessura das que costumava praticar.
Isabel, ainda impressionada pela cena da manhã, tinha os olhos baixos; parecia-lhe, depois do que se havia passado, que todos, e principalmente Álvaro, iam ler o seu segredo guardado por tanto tempo no fundo de sua alma.
Entretanto sentia-se feliz; uma esperança vaga e indefinida dilatava-lhe o coração e dava à sua fisionomia a expressão de júbilo, expansão da criatura quando acredita ser amada, auréola brilhante que bem se podia chamar a alma do amor.
O que esperava ela? Não sabia; mas o ar lhe parecia mais perfumado, a luz mais brilhante, o olhar via os objetos cor-de-rosa, e o leve roçar da espiguilha do vestido no seu colo aveludado causava-lhe sensações voluptuosas.
Cecília com o misterioso instinto da mulher adivinhava, sem compreender, que alguma coisa de extraordinário se passava em sua prima; e admirava a irradiação de beleza que brilhava no seu moreno semblante.
— Como estás bonita! disse a menina de repente.
E conchegando a face de Isabel aos lábios, imprimiu nela um beijo suave; a moça respondeu afetuosamente à carícia de sua prima.
— Não trouxeste o teu bracelete? exclamou ela reparando no braço de Cecília.
— É verdade! replicou a menina com um gesto de enfado.
Isabel julgou que este gesto era produzido pelo esquecimento; mas a verdadeira causa foi o receio que teve Cecília de se trair.
— Vamos buscá-lo?
— Oh! não! ficaria tarde, e perderíamos o nosso passeio.
— Então devo tirar o meu; já não estamos irmãs.
— Não importa; quando voltarmos prometo-te que ficaremos bem irmãs.
Dizendo isto Cecília sorria maliciosamente.
Tinham chegado à frente da casa. D. Lauriana conversava com seu filho D. Diogo, enquanto D. Antônio de Mariz e Álvaro passeavam pela esplanada conversando.
Cecília se dirigiu ao pai, levando Isabel, que ao aproximar-se do jovem cavalheiro sentiu fugir-lhe a vida.
— Meu pai, disse a menina, nós queremos dar um passeio.
A tarde está tão linda! Se eu vos pedisse e ao Sr. Álvaro para que nos acompanhassem?
— Nós faríamos como sempre que tu pedes, respondeu o fidalgo galanteando; cumpriríamos a tua ordem.
— Oh! ordem não, meu pai! Desejo apenas!
— E o que são os desejos de um lindo anjinho como tu?
— Assim, nos acompanhais?
— Decerto.
— E vós, Sr. Álvaro?
— Eu... obedeço.
Cecília falando ao moço não pôde deixar de corar; mas venceu a perturbação e seguiu com sua prima para a escada que descia ao vale.
Álvaro estava triste; depois da conversa que tivera com Cecília, vira-a durante o jantar; a menina evitava os seus olhares, e nem uma só vez lhe dirigira a palavra. O moço supunha que tudo isto era resultado de sua imprudência da véspera; mas Cecília mostrava-se tão alegre e satisfeita que parecia impossível ter conservado a lembrança da ofensa de que ele se acusava.
A maneira por que a menina o tratava tinha mais de indiferença do que de ressentimento: dir-se-ia que esquecera tudo que havia passado; nem guardava já a mínima lembrança da manhã. Era isto o que tornara Álvaro triste, apesar da felicidade que sentira quando D. Antônio o chamara seu filho; felicidade que às vezes parecia-lhe um sonho encantador que ia esvaecer-se.
As duas moças haviam chegado ao vale, e seguiam por entre as moitas de arvoredo que bordavam o campo formando um gracioso labirinto. Às vezes Cecília desprendia-se do braço de sua prima, e correndo pela vereda sinuosa que recortava as moitas de arbustos, escondia-se por detrás da folhagem e fazia com que Isabel a procurasse debalde por algum tempo. Quando sua prima por fim conseguia descobri-la, riamse ambas, abraçavam-se e continuavam o inocente folguedo.
Uma ocasião porém Cecília, deixou que D. Antônio e Álvaro se aproximassem; a menina tinha um olhar tão travesso e um sorriso tão brejeiro, que Isabel ficou inquieta.
— Esqueci-me dizer-vos uma coisa, meu pai.
— Sim! E o que é?
— Um segredo.
— Pois vem contar-mo.
Cecília separou-se de Isabel; chegando-se para o fidalgo, tomou-lhe o braço.
— Tende paciência por um instante, Sr. Álvaro, disse ela voltando-se; conversai com Isabel; dizei-lhe vossa opinião sobre aquele lindo bracelete... Ainda não o vistes?
E sorrindo afastou-se ligeiramente com seu pai; o segredo que ela tinha, era a travessura que acabava de praticar, deixando Álvaro e Isabel sós, depois de lhes ter lançado uma palavra, que devia produzir o seu efeito.
A emoção que sentiram os dois moços ouvindo o que dissera Cecília é impossível de descrever.
Isabel suspeitou o que se tinha passado; conheceu que Cecília, a enganara para obrigá-la a aceitar o presente de Álvaro; o olhar que sua prima lhe lançara afastando-se com seu pai, lho tinha revelado.
Quanto a Álvaro, não compreendia coisa alguma, senão que Cecília tinha-lhe dado a maior prova de seu desprezo e indiferença; mas não podia adivinhar a razão por que ela associara Isabel a esse ato que devia ser um segredo entre ambos.
Ficando sós em face um do outro, não ousavam levantar os olhos; a vista de Álvaro estava cravada no bracelete; Isabel, trêmula, sentia o olhar do moço, e sofria como se um anel de ferro cingisse o seu braço mimoso.
Assim estiveram tempo esquecido; por fim Álvaro desejoso de ter uma explicação, animou-se a romper o silêncio:
— Que significa tudo isto, D. Isabel? perguntou ele suplicante.
— Não sei!... Fui escarnecida! respondeu Isabel balbuciando.
— Como?
— Cecília fez-me acreditar que este bracelete vinha de seu pai para me fazer aceitá-lo; pois se eu soubesse...
— Que vinha de minha mão? Não aceitaríeis?
— Nunca!... exclamou a moça com fogo.
Álvaro admirou-se do tom com que Isabel proferiu aquela palavra; parecia dar um juramento.
— Qual o motivo? perguntou depois de um momento.
A moça fitou nele os seus grandes olhos negros; havia tanto amor e tanto sentimento nesse olhar profundo, que se Álvaro o compreendesse, teria a resposta à sua pergunta. Mas o cavalheiro não compreendeu nem o olhar nem o silêncio de Isabel: adivinhava que havia nisto um mistério, e desejava esclarecê-lo.
Aproximou-se da moça e disse-lhe com a vez doce e triste:
— Perdoai-me. D. Isabel; sei que vou cometer uma indiscrição; mas o que se passa exige uma explicação entre nós. Dizeis que fostes escarnecida; também eu o fui. Não achais que o melhor meio de acabar com isso, seja o falarmos francamente um ao outro?
Isabel estremeceu.
— Falai: eu vos escuto, Sr. Álvaro.
— Escuso confessar-vos o que já adivinhastes; sabeis a historia deste bracelete, não é verdade?
— Sim! balbuciou a moça.
— Dizei-me pois como ele passou do lugar onde estava, ao vosso braço. Não penseis que vos censuro por isso, não; desejo apenas conhecer até que ponto zombam de mim.
— Já vos confessei o que sabia. Cecília enganou-me.
— E a razão que teve ela para enganar-vos não atinais?
— Oh! se atino... exclamou Isabel reprimindo as palpitações do coração.
— Dizei-ma então. Eu vo-lo peço e suplico!
Álvaro tinha deitado um joelho em terra, e tomando a mão da moça implorava dela a palavra que devia explicar-lhe o ato de Cecília, e revelar-lhe a razão que tivera a menina para rejeitar a prenda que ele havia dado.
Conhecendo esta razão talvez pudesse desculpar-se, talvez pudesse merecer o perdão da menina; e por isso pedia com instância a Isabel que lhe declarasse o motivo por que Cecília a havia enganado.
A moça vendo Álvaro a seus pés, suplicante, tinha-se tornado lívida; seu coração batia com tanta violência que via-se o peito de seu vestido elevar-se com as palpitações fortes e apressadas: o seu olhar ardente caía sobre o moço e o fascinava.
— Falai! dizia Álvaro; falai! Sois boa; e não me deixeis sofrer assim, quando uma palavra vossa pode dar-me a calma e o sossego.
— E se essa palavra vos fizesse odiar-me? balbuciou a moça.
— Não tenhais esse receio; qualquer que seja a desgraça que me anunciardes, será bem-vinda pelos vossos lábios; é sempre um consolo receber-se a má nova da voz amiga!
Isabel ia falar, mas parou estremecendo:
— Ah! não posso! seria preciso confessar-vos tudo!
— E por que não confessais? Não vos mereço confiança? Tendes em mim um amigo.
— Se fôsseis!...
E os olhos de Isabel cintilaram.
— Acabai!
— Se me fôsseis amigo, me havíeis de perdoar.
— Perdoar-vos, D. Isabel! Que me fizeste vós para que vos eu perdoe? disse Álvaro admirado.
A moça teve medo do que havia dito; cobriu o rosto com as mãos.
Todo este diálogo, vivo, animado, cheio de reticências e hesitações da parte de Isabel, tinha excitado a curiosidade do cavalheiro; seu espírito perdia-se num dédalo de dúvidas e incertezas.
Cada vez o mistério se obscurecia mais; a princípio Isabel dizia que tinham escarnecido dela; agora dava a entender que era culpada: o cavalheiro resolveu a todo transe penetrar o que para ele era um enigma.
— D. Isabel!
A moça tirou as mãos do rosto; tinha as faces inundadas de lágrimas.
— Por que chorais? perguntou Álvaro surpreso.
— Não mo pergunteis!...
— Escondeis-me tudo! Deixais-me na mesma dúvida! O que me fizestes vós? Dizei!
— Quereis saber? perguntou a moça com exaltação.
— Tanto tempo há que suplico-vos!
Álvaro tomara as duas mãos da moça, e com os olhos fitos nos dela esperava enfim uma resposta.
Isabel estava branca como a cambraia do seu vestido; sentia a pressão das mãos do moço nas suas e o seu hálito que vinha bafejar-lhe as faces.
— Me perdoareis?
— Sim! Mas por quê?
— Porque...
Isabel pronunciou esta palavra numa espécie de delírio; uma revolução súbita se tinha operado em toda a sua organização.
O amor profundo, veemente, que dormia no íntimo de sua alma, a paixão abafada e reprimida, por tanto tempo, acordara, e quebrando as cadeias que a retinham, erguia-se impetuosa e indomável.
O simples contato das mãos do moço tinha causado essa revolução; a menina tímida ia transformar-se na mulher apaixonada: o amor ia transbordar do coração como a torrente caudalosa do leito profundo.
As faces se abrasaram; o seio dilatou-se: o olhar envolveu o moço, ajoelhado a seus pés, em fluidos luminosos; a boca entreaberta parecia esperar, para pronunciá-la, a palavra que sua alma devia trazer aos lábios.
Álvaro fascinado a admirava; nunca a vira tão bela; o moreno suave do rosto e do colo da moça iluminava-se de reflexos doces e tinha ondulações tão suaves, que o pensamento ia, sem querer, enlear-se nas curvas graciosas como para sentir-lhe o contato, espreguiçar-se pelas formas palpitantes.
Tudo isto passara rapidamente enquanto Isabel hesitava ao preferir -a primeira palavra.
Por fim vacilou: reclinando sobre o ombro de Álvaro, como uma flor desfalecida sobre a haste, murmurou:
— Porque... vos amo!
Capítulo XII - Pelo Ar
Álvaro ergueu-se como se os lábios da moça tivessem lançado nas suas veias uma gota do veneno sutil dos selvagens que matava com um átomo.
Pálido, atônito, fitava na menina um olhar frio e severo; seu coração leal exagerava a afeição pura que votava a Cecília a tal ponto, que o amor de Isabel lhe parecia quase uma injúria; era ao menos uma profanação.
A moça com as lágrimas nos olhos, sorria amargamente; o movimento rápido de Álvaro tinha trocado as posições; agora era ela que estava ajoelhada aos pés do cavalheiro.
Sofria horrivelmente; mas a paixão a dominava; o silêncio de tanto tempo queimava-lhe os lábios; seu amor precisava respirar, expandir-se, embora depois o desprezo e mesmo o ódio o viessem recalcar no coração.
— Prometestes perdoar-me!... disse ela suplicante.
— Não tenho que perdoar-vos, D. Isabel, respondeu o moço erguendo-a; peço-vos unicamente que não falemos mais de semelhante coisa.
— Pois bem! Escutai-me um momento, um instante só, e juro-vos por minha mãe, que não ouvireis nunca mais uma palavra minha! Se quereis, nem mesmo vos olharei! Não preciso olhar para ver-vos!
E acompanhou estas palavras com um gesto sublime de resignação.
— Que desejais de mim? perguntou o moço.
— Desejo que sejais meu juiz. Condenai-me depois; a pena vindo de vos será para mim um consolo. Mo negareis?
Álvaro sentiu-se comovido por essas palavras soltas com o grito de um desespero surdo e concentrado.
— Não cometestes um crime, nem precisais de juiz; mas se quereis um irmão para consolar-vos, tendes em mim um dedicado e sincero.
— Um irmão!... exclamou a moça. Seria ao menos uma afeição.
— E uma afeição calma e serena que vale bem outras, D. Isabel.
A moca não respondeu; sentiu a doce exprobração que havia naquelas palavras; mas sentia também o amor ardente que enchia sua alma e a sufocava.
Álvaro tinha-se lembrado da recomendação de D. Antônio de Mariz; o que a princípio fora uma simples compaixão tornou-se simpatia. Isabel era desgraçada desde a infância; devia pois consolá-la e desde já cumprir a última vontade do velho fidalgo, a quem amava e respeitava como pai.
— Não recuseis o que vos peço, disse ele afetuosamente, aceitai-me por vosso irmão.
— Assim deve ser, respondeu Isabel tristemente. Cecília me chama sua irmã; vós deveis ser meu irmão. Aceito! Sereis bom para mim?
— Sim, D. Isabel.
— Um irmão não deve tratar sua irmã pelo seu nome simplesmente? perguntou ela com timidez.
Álvaro hesitou.
— Sim, Isabel.
A moça recebeu essa palavra como um gozo supremo; parecia-lhe que os lábios do cavalheiro, pronunciando assim familiarmente o seu nome, a acariciavam.
Obrigada! Não sabeis que bem me faz ouvir-vos chamar-me assim. É preciso ter sofrido muito para que a felicidade esteja em tão pouco.
— Contai-me as vossas mágoas.
— Não; deixai-as comigo; talvez depois as conte; agora só quero mostrar-vos que não sou tão culpada como pensais.
— Culpada! Em quê?
— Em querer-vos, disse Isabel corando.
Álvaro tornou-se frio e reservado.
— Sei que vos incomodo; mas é a primeira e a última vez; ouvi-me, depois ralhareis comigo, como um irmão com sua irmã.
A voz de Isabel era tão doce, seu olhar tão suplicante, que Álvaro não pôde resistir.
— Falai, minha irmã.
— Sabeis o que eu sou; uma pobre órfã que perdeu sua mãe muito cedo, e não conheceu seu pai. Tenho vivido da compaixão alheia; não me queixo, mas sofro. Filha de duas raças inimigas devia amar a ambas; entretanto minha mãe desgraçada fez-me odiar a uma, o desdém com que me tratam fez-me desprezar a outra.
— Pobre moça! murmurou Álvaro lembrando-se segunda vez das palavras de D. Antônio de Mariz.
— Assim isolada no meio de todos, alimentando apenas o sentimento amargo que minha mãe deixara no meu coração, sentia a necessidade de amar alguma coisa. Não se pode viver somente de ódio e desprezo!...
— Tendes razão, Isabel.
— Inda bem que me aprovais. Precisava amar; precisava de uma afeição que me prendesse à vida. Não sei como, não sei quando, comecei a amar-vos; mas em silêncio, no fundo de minha alma.
A moça embebeu um olhar nos olhos de Álvaro.
— Isto me bastava. Quando vos tinha olhado horas e horas, sem que o percebêsseis, julgava-me feliz; recolhia-me com a minha doce imagem, e conversava com ela, ou adormecia sonhando bem lindos sonhos.
O cavalheiro sentia-se perturbado; mas não ousava interromper a Isabel.
— Não sabeis que segredos tem esse amor que vive só de suas ilusões, sem que um olhar, uma palavra o alimente. A mais pequenina coisa é um prazer, uma ventura suprema. Quantas vezes não acompanhava o raio de lua que entrava pela minha janela e que vinha a pouco e pouco se aproximando de mim; julgava ver naquela doce claridade o vosso semblante, e esperava trêmula de prazer como se vos esperasse. Quando o raio se chegava, quando a sua luz acetinada caía sobre mim, sentia um gozo imenso; acreditava que me sorríeis, que vossas mãos apertavam as minhas, que vosso rosto se reclinava para mim, e vossos lábios me falavam...
Isabel pendeu a cabeça lânguida sobre o ombro de Álvaro; o cavalheiro palpitando de emoção passou o braço pela cintura da moça e apertou-a ao coração; mas de repente afastou-se com um movimento brusco.
— Não vos arreceeis de mim, disse ela com melancolia, sei que não me deveis amar. Sois nobre e generoso; o vosso primeiro amor será o último. Podeis-me ouvir sem temor.
— Que vos resta dizer-me ainda? perguntou Álvaro.
— Resta a explicação que há pouco me pedíeis.
— Ah! enfim!
Isabel contou então como apesar de toda a força de vontade com que guardava o seu segredo, se havia traído; contou a conversa de Cecília e o modo por que a menina lhe fizera aceitar o bracelete.
— Agora sabeis tudo; o meu afeto vai de novo entrar no meu coração, donde nunca sairia se não fosse a fatalidade que fez com que vos aproximásseis de mim, e me dirigisse algumas palavras doces. A esperança para as almas que não a conheceram ainda, ilude tanto e fascina, que devo merecer-vos desculpa. Esquecei-me, meu irmão, antes que lembrar-vos de mim para odiar-me!
— Fazei-me uma injustiça, Isabel; não posso é verdade ser para vós senão um irmão, mas esse título sinto que o mereço pela estima e pela afeição que me inspirais. Adeus, minha boa irmã.
O moço pronunciou estas últimas palavras com uma terna efusão, e apertando a mão de Isabel, desapareceu: precisava estar só para refletir sobre o que lhe acontecia.
Estava agora convencido que Cecília não o amava, e nunca o havia amado; e esta descoberta tinha lugar no mesmo dia em que D. Antônio de Mariz lhe dava a mão de sua filha!
Sob o peso da mágoa dolorosa, como é sempre a primeira mágoa do coração, o cavalheiro afastou-se distraído, com a cabeça baixa; caminhou sem direção, seguindo a linha que lhe traçavam os grupos de árvores, destacados aqui e ali sobre a campina.
Estava quase a anoitecer: a sombra pálida e descorada do crepúsculo estendia-se como um manto de gaza sobre a natureza; os objetos iam perdendo a forma, a cor, e ondulavam no espaço vagos e indecisos.
A primeira estrela engolfada no azul do céu luzia a furto como os olhos de uma menina que se abrem ao acordar, e cerram-se outra vez temendo a claridade do dia: um grilo escondido no toco de uma árvore começava a sua canção; era o trovador inseto saudando a aproximação da noite.
Álvaro continuava o seu passeio, sempre pensativo, quando de repente sentiu um sopro vivo bafejar-lhe o rosto; erguendo os olhos viu diante de si uma longa flecha fincada no chão, e que ainda oscilava com o movimento que lhe tinha imprimido o arco.
O moço recuou um passo e levou a mão à cinta; logo refletindo aproximou-se da seta e examinou a plumagem de que estava ornada; eram de um lado penas de azulão e do outro penas de garça.
Azul e branco eram as cores de Peri; eram as cores dos olhos e do rosto de Cecília.
Um dia a menina, semelhante a uma gentil castelã da idade Média, tinha se divertido em explicar ao índio, como os guerreiros que serviam uma dama, costumavam usar nas armas de suas cores.
— Tu dás a Peri as tuas cores, senhora? disse o índio.
— Não tenho, respondeu a menina; mas vou tomar umas para te dar; queres?
— Peri te pede.
— Quais achas mais bonitas?
— A de teu rosto, e a de teus olhos.
Cecília sorriu.
— Toma-as eu tas dou.
Desde este dia, Peri enramou todas as suas setas de penas azuis e brancas; seus ornatos, além de uma faixa de plumas escarlates que fora tecida por sua mãe, eram ordinariamente das mesmas cores.
Foi por esta razão que Álvaro, vendo a plumagem da seta, tranqüilizou-se; conheceu que era de Peri, e compreendeu o sentido da frase simbólica que o índio lhe mandava pelos ares.
Com efeito aquela flecha na linguagem de Peri não era mais do que um aviso dado em silêncio e de uma grande distancia; uma carta ou mensageira muda, uma simples interjeição: Alto!
O moço esqueceu os seus pensamentos e lembrou-se do que Peri lhe havia dito pela manhã; naturalmente o que acabava de fazer tinha relação com esse mistério que apenas deixara entrever.
Correu os olhos pelo espaço que se estendia diante dele, e sondou com o olhar as moitas que o cercavam, não viu nada que merecesse atenção, não percebeu um sinal que lhe indicasse a presença do índio.
Álvaro resolveu pois esperar; e parando junto da flecha, cruzou os braços, e com os olhos fitos na linha escura da mata que se recortava no fundo azul do horizonte, esperou.
Um instante depois uma pequena seta açoitando o ar veio cravar-se no tope da primeira, e abalou-a com tal força que a haste inclinou-se; Álvaro compreendeu que o índio queria arrancar a flecha, e obedeceu à ordem.
Imediatamente terceira seta caiu dois passos à direita do cavalheiro, e outras foram-se sucedendo na mesma direção de duas em duas braças até que uma mergulhou-se num arvoredo basto que ficava a trinta passos do lugar onde parara a princípio.
Não era difícil desta vez compreender a vontade de Peri; Álvaro, que acompanhava as setas a proporção que caiam, e que sabia indicarem elas o lugar onde devia parar, apenas viu a última sumir-se no arvoredo, escondeu-se por entre a folhagem.
Daí, com pequeno intervalo, viu três vultos que passavam pouco mais ou menos pelo lugar que há pouco havia deixado; Álvaro não os pôde conhecer por causa da ramagem das árvores, mas viu que caminhavam cautelosamente, e pareceu-lhe que tinham as pistolas em punho.
Os vultos afastaram-se dirigindo-se à casa; o cavalheiro ia segui-los, quando as folhas se abriram, e Peri resvalando como uma sombra, sem fazer o menor rumor, aproximou-se dele, e disse-lhe ao ouvido uma palavra:
— São eles.
— Eles quem?
— Os inimigos brancos.
— Não te entendo.
— Espera: Peri volta.
E o índio despareceu de novo nas sombras da noite que avançava rapidamente.