Saturday, 20 March 2021

The Prayer of Manasseh (translated into English - King James Bible)

               O Lord, Almighty God of our fathers, Abraham, Isaac, and Jacob, and of their righteous seed; who hast made heaven and earth, with all the ornament thereof; who hast bound the sea by the word of thy commandment; who hast shut up the deep, and sealed it by thy terrible and glorious name; whom all men fear, and tremble before thy power; for the majesty of thy glory cannot be borne, and thine angry threatening toward sinners is importable: but thy merciful promise is unmeasurable and unsearchable; for thou art the most high Lord, of great compassion, longsuffering, very merciful, and repentest of the evils of men. Thou, O Lord, according to thy great goodness hast promised repentance and forgiveness to them that have sinned against thee: and of thine infinite mercies hast appointed repentance unto sinners, that they may be saved. Thou therefore, O Lord, that art the God of the just, hast not appointed repentance to the just, as to Abraham, and Isaac, and Jacob, which have not sinned against thee; but thou hast appointed repentance unto me that am a sinner: for I have sinned above the number of the sands of the sea. My transgressions, O Lord, are multiplied: my transgressions are multiplied, and I am not worthy to behold and see the height of heaven for the multitude of mine iniquities. I am bowed down with many iron bands, that I cannot lift up mine head, neither have any release: for I have provoked thy wrath, and done evil before thee: I did not thy will, neither kept I thy commandments: I have set up abominations, and have multiplied offences. Now therefore I bow the knee of mine heart, beseeching thee of grace. I have sinned, O Lord, I have sinned, and I acknowledge mine iniquities: wherefore, I humbly beseech thee, forgive me, O Lord, forgive me, and destroy me not with mine iniquites. Be not angry with me for ever, by reserving evil for me; neither condemn me to the lower parts of the earth. For thou art the God, even the God of them that repent; and in me thou wilt shew all thy goodness: for thou wilt save me, that am unworthy, according to thy great mercy. Therefore I will praise thee for ever all the days of my life: for all the powers of the heavens do praise thee, and thine is the glory for ever and ever. Amen.

Friday, 19 March 2021

Friday's Sung Word: "Dona Aracy" by Noel Rosa (in Portuguese)

 Dona Aracy! Dona Aracy!
Quero saber:
Como anda isso por aí?

Como vai o seu Malhado*?
Seu marido em certidão
Inda está desconfiado
(inda está desconfiado)
Que é lesado pelo irmão.

Como vai a sua filha?
Que namora no porão
Se a senhora não estrilha
(se a senhora não estrilha)
Quero uma apresentação.

Como vão as suas jóias?
Tão bonitas, eu não nego
Não passavam de pinoias
(não passavam de pinoias)
Davam dez tostões no prego.

Que foi feito do Renato?
Que malvado, que troféu
Que pisava em meu sapato
(que pisava em meu sapato)
E cuspia em meu chapéu.

 * seu Malhado whose real name was Serafim Vieira da Cunha was a taxi driver that was very naive, ignoring what was happening in his house.

 

You can listen  "Dona Aracy" sung by the Tangarás Group here.

Thursday, 18 March 2021

Thursday's Serial: "O Guarani" by José de Alencar (in Portuguese) - X

Capítulo XIII: Trama

Tornemos ao lugar onde deixamos Loredano e seus dois companheiros.

O italiano depois que Álvaro e Peri se afastaram, levantou-se; passada a primeira emoção, sentira um acesso de raiva e desespero por lhe escaparem os seus inimigos.

Um instante lembrou-se de chamar os cúmplices para atacar o cavalheiro e o índio; mas essa idéia desvaneceu-se logo; o aventureiro conhecia os homens que o seguiam; sabia que podia fazer deles assassinos, mas nunca homens de energia e resolução.

Ora, os dois inimigos que tinha a combater, eram respeitáveis; e Loredano temeu comprometer ainda mais a sua causa, já muito mal parada. Devorou pois em silêncio a sua raiva, e começou a refletir nos meios de sair da posição difícil em que se achava.

Neste meio tempo Rui Soeiro e Bento Simões vinham-se aproximando receosos do que tinham visto, e temendo o menor incidente que complicasse a situação.

Loredano e seus companheiros olharam-se em silêncio um momento; havia nos olhos destes últimos uma interrogação muda e inquieta, a que respondia perfeitamente o rosto pálido e contraído do italiano.

— Não era ele!... murmurou o aventureiro com a voz surda.

— Como sabeis?

— Se fosse, acreditais que me deixasse a vida?

— É verdade; mas quem foi então?

— Não sei; porém agora pouco importa. Quem quer que fosse, é um homem que sabe o nosso segredo e pode denunciá-lo, se já não o fez.

— Um homem?... murmurou Bento Simões que até então se conservava silencioso.

— Sim; um homem. Quereis que fosse uma sombra?

— Uma sombra não, mas um espírito! acudiu o aventureiro.

O italiano sorriu de escárnio.

— Os espíritos têm mais que fazer para se ocuparem com o que vai por este mundo; guardai as vossas abusões, e pensemos seriamente no partido que devemos tomar.

— Lá quanto a isso, Loredano, é escusado; ninguém me tira que anda em tudo isto uma coisa sobrenatural.

— Quereis calar-vos, estúpido carola! replicou o italiano com impaciência.

— Estúpido!... Estúpido sois vós que não vistes que não há ouvido de criatura que pudesse ouvir as nossas palavras, nem voz humana que saia da terra. Vinde! E vou mostrar-vos se o que digo é ou não é verdade.

Os dois acompanharam Bento Simões e voltaram à touça de cardos, onde tivera lugar a sua entrevista.

— Ide, Rui e falai à goela despregada para ver se Loredano ouve uma palavra sequer.

Com efeito a experiência mostrou-lhes o que Peri tinha conhecido; que o som da voz entaipado dentro daquela espécie de tubo, se elevava e perdia no ar, sem que dos lados se pudesse perceber a menor frase. Se porém o italiano se tivesse colocado sobre o formigueiro que penetrava até ao chão onde há pouco estavam sentados, teria tido a explicação da cena anterior.

— Agora, disse Bento Simões, entrai; eu gritarei e vereis que a palavra vos passará pela cabeça e não sairá da terra.

— Quanto a isso pouco se me dá, respondeu o italiano. A outra observação, sim, tranqüiliza-me. O homem que nos ameaçou não ouviu; desconfia apenas.

— Ainda insistis em que fosse um homem?

— Escutai, amigo Bento Simões; há uma coisa de que tenho mais medo do que de uma cobra; é de um homem visionário.

— Visionário! dizei crente!

— Um vale outro. Visionário ou crente, se me falais outra vez em espíritos e milagres, prometo-vos que ficareis neste lugar onde servireis de carniça aos urubus.

O aventureiro tornou-se esverdinhado; não era a idéia da morte e sim da pena eterna que segundo uma crença religiosa, sofrem as almas cujos corpos ficam insepultos, o que mais o horrorizava.

— Pensastes?

— Sim.

— Admitis que fosse um homem?

— Admito tudo.

— Jurais.

— Juro.

— Sobre...

— Sobre a minha salvação.

O italiano soltou o braço do miserável, que caiu de joelhos pedindo ao Deus que ofendia perdão para o perjúrio que acabava de cometer.

Rui Soeiro voltou: os três seguiram calados o caminho que tinham feito, Loredano pensativo, seus companheiros cabisbaixos.

Sentaram-se à sombra de uma árvore; ai permaneceram quase uma hora, sem saber o que deviam fazer, nem o que podiam esperar. A posição era critica, reconheciam que se achavam num desses lances da vida, em que um passo, um movimento, precipita o homem no fundo do abismo, ou o salva da morte que vai cair sobre ele.

Loredano media a situação com a audácia e energia que nunca o abandonava nas ocasiões extremas; uma lata violenta se travara neste homem; só tinha agora um sentimento, uma fibra; era a sede ardente do gozo, sensualidade exacerbada pelo ascetismo do claustro e o isolamento do deserto. Comprimida desde a infância, a sua organização se expandira com veemência no meio deste pais vigoroso, aos raios do sol ardente que fazia borbulhar o sangue.

Então, no delírio dos instintos materiais, surgiram duas paixões violentas.

Uma era a paixão do ouro; a esperança de poder um dia deleitar-se na contemplação do tesouro fabuloso que como Tântalo ele ia tocar e fugia-lhe.

A outra era paixão do amor; a febre que lhe requeimava o sangue quando via aquela menina inocente e cândida, que parecia não dever inspirar senão afeições castas.

A lata que naquele momento o agitava, dava-se entre essas duas paixões. Devia fugir e salvar o seu tesouro, perdendo Cecília? Devia ficar e arriscar a vida para saciar o seu desejo infrene?

As vezes dizia consigo que bastava-lhe a riqueza para poder escolher no mundo uma mulher que amasse; outras parecia-lhe que o universo inteiro sem Cecília ficaria deserto, e inútil lhe seria todo o ouro que ia conquistar.

Por fim ergueu a cabeça. Seus companheiros esperavam uma palavra sua como o oráculo do seu destino; prepararam-se para ouvi-lo.

— Só há duas coisas a fazer, ou entrarmos na casa, ou fugirmos daqui mesmo; é preciso resolver. Que pensais vós?

— Eu penso, disse Bento Simões trêmulo ainda, que devemos fugir quanto antes, e andar dia e noite sem parar.

— E vós, Rui, sois do mesmo aviso?

— Não; fugir é nos denunciar e perder. Três homens sós neste sertão, obrigados a evitar o povoado, não podem viver; temos inimigos por toda a parte.

— Que propondes então?

— Que entremos em casa como se nada tivesse passado; ou estamos descobertos, e neste caso ainda faltam as provas para nos condenarem; ou ignoram tudo e não corremos o menor risco.

— Tendes razão, disse o italiano, devemos voltar; nessa casa está a nossa fortuna, ou a nossa ruína. Achamo-nos numa posição em que devemos ganhar tudo ou perder tudo.

Houve longa pausa durante que o italiano refletia.

— Com quantos homens contais, Rui? perguntou ele.

— Com oito.

— E vós, Bento?

— Sete.

— Decididos?

— Prontos ao menor sinal.

— Bem, disse o italiano com o desempeno de um chefe dispondo o plano da batalha; trazei cada um os vossos homens amanhã a esta hora; é preciso que à noite tudo esteja concluído.

— E agora o que vamos fazer? perguntou Bento Simões.

— Vamos esperar que escureça; à boca da noite nos achegaremos da casa. Um de nós à sorte entrará primeiro; se nada houver, dará sinal aos outros. Assim, quando um se perca, dois ao menos terão ainda esperança de salvar-se.

Os aventureiros resolveram passar o dia no mato; uma caça, algumas frutas silvestres deram-lhes simples mas abundante refeição.

Por volta de cinco horas da tarde se encaminharam à casa, a fim de sondarem o que passava, e realizarem o seu projeto.

Antes de partirem, Loredano carregou a clavina, mandou seus companheiros carregar as suas, e disse-lhes:

— Assentai bem nisto. Na posição difícil em que estamos, quem não é nosso amigo é nosso inimigo. Pode ser um espião, um denunciante; em todo o caso será depois menos um que teremos contra nós.

Os dois compreenderam a justeza dessa observação, e seguiram com as armas engatilhadas, olho vivo e ouvido alerta.

Apesar porém da sua atenção, não viram agitar-se as folhas a dois passos deles e estender-se pelos arbustos uma ondulação que parecia produzida pela correnteza do vento.

Era Peri; havia um quarto de hora que ele acompanhava os aventureiros como a sua sombra; o índio deixando D. Antônio dera pela sua ausência e conjeturando que eles tramavam alguma coisa, lançou-se em sua procura.

O italiano e seus companheiros caminhavam já havia pedaço, quando Bento Simões parou:

— Quem entrará primeiro?

— A sorte decidirá, respondeu Rui.

— Como?

— Desta maneira, disse o italiano. Vedes aquela árvore? O que primeiro chegar a ela será o último a entrar; o último será o primeiro.

— Está dito!

Os três meteram as armas à cinta e prepararam-se para a corrida.

Peri ouvindo-os teve uma inspiração: os aventureiros iam separar-se; como Loredano, ele também disse consigo:

— O último será o primeiro.

E tomando três flechas, esticou a corda do arco; mataria os aventureiros sem que um percebesse a morte dos outros.

Os três partiram; mas não tinham feito uma braça de caminho quando Bento Simões tropeçando, foi de encontro a Loredano, e estendeu-se no chão, ao fio comprido do lombo.

Loredano soltou uma blasfêmia, Bento gritou misericórdia; Rui que já ia adiante, voltou julgando que alguma coisa sucedia.

O plano de Peri tinha gorado.

— Sabeis, disse Loredano, que no páreo perde aquele que se deixou cair. Sereis o primeiro, amigo Bento.

O aventureiro não tugiu.

Peri não perdera a esperança de lhe deparar a fortuna outra ocasião favorável para realizar o seu projeto; seguiu-os. Foi então que de longe por baixo das árvores avistou Álvaro na mesma direção em que iam os aventureiros; despedindo uma seta por elevação dera ao cavalheiro o primeiro sinal, e os outros que o fizeram afastar-se.

Deixando Álvaro, a intenção do índio era atalhar os aventureiros, esperá-los junto à cerca; e quando eles se separassem para entrar um a um, matá-los.

Mas uma fatalidade parecia perseguir o índio, e proteger seus inimigos.

Quando Bento Simões, destacando-se dos companheiros, entrou a cerca, Peri ouviu naquela direção a voz de Cecília que voltava do passeio com seu pai e sua prima.

A mão do índio, que nunca tremera no meio do combate, caiu inerte; escapou-lhe o arco, só com a idéia de que a seta que ia atirar pudesse assustar a menina, quanto mais ofendê-la.

Bento Simões passou incólume.

 

 

Capítulo XIV: A Xácara

Peri viu passar pouco depois Loredano e Rui Soeiro.

Era a terceira vez que os aventureiros depois de estarem na sua mão lhe escapavam por uma espécie de fatalidade.

O índio refletiu alguns momentos e tomou uma resolução definitiva; modificou inteiramente o seu plano. A princípio decidira não atacar os três inimigos de frente, não porque os temesse, mas sim porque receava que morrendo pudessem realizar a salvo o projeto, cujo segredo só ele sabia.

Conheceu porém que não havia remédio senão recorrer a este expediente; o tempo corria; de um momento para outro podia o italiano executar a sua trama.

O que precisava era achar um meio para, no caso de sucumbir, prevenir a D. Antônio de Mariz do perigo que o ameaçava; este meio havia já acudido ao pensamento do índio.

Foi ter com Álvaro que o esperava.

O moço já o tinha esquecido; pensava em Cecília, na sua afeição quebrada, na sua mais doce esperança marcha, e talvez perdida para sempre.

Às vezes também apresentava-se ao seu espírito a imagem melancólica de Isabel; lembrava-se que ela também amava, e não era amada. Esta lembrança criava certo laço entre ele e a moca; ambos sofriam pela mesma causa, ambos sentiam o mesmo pesar, e curtiam igual desengano.

Depois vinha a idéia de que era a ele que Isabel amava; sem querer repassava na memória as ternas palavras; revia o sorriso triste e os olhares de fogo que se aveludavam com a languidez do amor. Parecia-lhe que sentia ainda o hálito perfumado da moça, a pressão da cabeça desfalecida em seu ombro, o contato das mãos trêmulas, e o eco das queixas murmuradas pela voz maviosa.

O coração lhe palpitava com violência; esquecia-se revendo a bela imagem, de um moreno suave, a que o amor dava reflexos e uma auréola esplêndida.

Mas de repente estremecia, como se a moça ainda estivesse perto dele; passava a mão pela fronte para arrancar as reminiscências que o incomodavam; e tornava à indiferença de Cecília e ao desengano de suas esperanças.

Quando Peri se aproximou, Álvaro estava num dos momentos de tédio e desapego da vida, que sucedem às dores profundas.

— Dize-me, Peri. Falaste de inimigos?

— Sim; respondeu o índio.

— Quero conhecê-los.

— Para quê?

— Para atacá-los.

— Mas são três.

— Melhor.

O índio hesitou:

— Não; Peri quer combater só os inimigos de sua senhora; se ele morrer, tu saberás tudo; acaba então o que Peri tiver começado.

— Para que este mistério? Não podes dizer já quem são esses inimigos?

— Peri pode; mas não quer dizer.

— Por quê?

— Porque tu és bom e pensas que os outros também são; tu defenderás os maus.

— Oh! que não. Fala!

— Ouve. Se Peri não aparecer amanhã, tu não tornarás a vê-lo; mas a alma de Peri voltará para te dizer os nomes deles.

— Como?

— Tu verás. São três; querem ofender a senhora, matar seu pai, a ti, a todos da casa. Têm outros que os seguem.

— Uma revolta!... exclamou Álvaro.

— O primeiro deles quer fugir e levar Ceci, que tu amas; mas Peri não deixará.

— É impossível! disse o moço surpreendido.

— Peri te diz a verdade.

— Não creio!...

Com efeito o cavalheiro atribuindo as desconfianças do índio a uma exageração filha da sua dedicação extrema pela filha de D. Antônio, não podia acreditar no horrível atentado: sua direitura de sentimentos repelia a possibilidade de um crime tal!

O fidalgo era amado e respeitado por todos os aventureiros; nunca durante dez anos que o moço o acompanhava, se tinha dado na banda um só ato de insubordinação contra a pessoa do chefe; havia faltas de disciplina, rixas entres os companheiros, tentativas de deserção; mas não passava disto.

O índio sabia que Álvaro duvidaria do que se passava; e por isso se obstinava em guardar parte do segredo, receando que o moço com seu cavalheirismo não tomasse o partido dos três aventureiros.

— Tu duvidas de Peri?

— Quem faz uma acusação tal, precisa prová-la. Tu és um amigo, Peri; mas os outros também o são, e têm o direito de se defenderem.

— Quando um homem vai morrer, tu julgas que ele mente? perguntou o índio com firmeza.

— Que queres dizer com isso?

— Peri vai vingar sua senhora; vai se separar de tudo quanto ama; se ele perder a vida, dirás ainda que se engana?

Álvaro foi abalado pelas palavras do índio.

— Melhor é que fales a D. Antônio de Mariz.

— Não; ele e tu servem para combater homens que atacam pela frente; Peri sabe caçar o tigre na floresta, e esmagar a cobra que vai lançar o bote.

— Mas então o que queres de mim?

— Que se Peri morrer, acredites no que ele te diz e faças o que ele fez; que salves a senhora!

— Assassinar?... Nunca, Peri; nunca o meu braço brandirá o ferro senão contra o ferro!

O índio lançou ao moço um olhar que brilhou nas trevas.

— Tu não amas Ceci!

Álvaro estremeceu.

— Se tu a amasses, matarias teu irmão para livrá-la de um perigo.

— Peri, talvez não compreendas o que vou dizer-te. Daria a minha vida sem hesitar por Cecília; mas a minha honra pertence a Deus e à memória de meu pai.

Os dois homens olharam-se um momento em silêncio; ambos tinham a mesma grandeza de alma e a mesma nobreza de sentimentos; entretanto as circunstâncias da vida haviam criado neles um contraste.

Em Álvaro, a honra e um espírito de lealdade cavalheiresca dominavam todas as suas ações; não havia afeição ou interesse que pudesse quebrar a linha invariável, que ele havia traçado, e era a linha do dever.

Em Peri a dedicação sobrepujava tudo; viver para sua senhora, criar em torno dela uma espécie de providência humana, era a sua vida; sacrificaria o mundo se possível fosse, contanto que pudesse, como o Noé dos índios, salvar uma palmeira onde abrigar Cecília.

Entretanto essas duas naturezas, uma filha da civilização, a outra filha da liberdade selvagem, embora separadas por distancia imensa, compreendiam-se: a sorte lhes traçara um caminho diferente; mas Deus vazara em suas almas o mesmo germe do heroísmo que nutre os grandes sentimentos.

Peri conheceu que Álvaro não cederia; Álvaro sabia que Peri apesar de sua recusa, cumpriria exatamente o que tinha resolvido.

O índio a princípio parecia impressionado pela obstinação do cavalheiro; porém ergueu a cabeça com um gesto altivo, e batendo com a mão no peito largo e vitorioso, disse em tom de energia:

— Peri só, defenderá sua senhora: não precisa de ninguém. É forte; tem como a andorinha as asas de suas flechas; como a cascavel o veneno das setas; como o tigre a força do seu braço; como a ema a velocidade de sua carreira. Só pode morrer uma vez; mas uma vida lhe basta.

— Pois bem, amigo, respondeu o cavalheiro com nobreza, vais realizar o teu sacrifício; eu cumprirei o meu dever. Tenho uma vida também, e a minha espada. Farei de uma a sombra de Cecília; com a outra traçarei em torno dela um circulo de ferro. Podes ficar certo que os inimigos que passarem por cima de teu corpo, acharão o meu antes de chegarem à tua senhora.

— Tu és grande; podias ter nascido no deserto, e ser o rei das florestas; Peri te chamaria irmão.

Apertaram as mãos e dirigiram-se a casa; em caminho Álvaro lembrou-se que ainda não conhecia os homens contra os quais tinha de defender Cecília: perguntou seus nomes; Peri recusou formalmente e prometeu que o cavalheiro saberia, quando fosse tempo.

O índio tinha a sua idéia.

Chegando à casa os dois separaram-se; Álvaro ganhou o aposento que ocupava; Peri encaminhou-se para o jardim de Cecília.

Eram então oito horas da noite; toda a família se achava reunida na ceia; o quarto da menina estava às escuras. Peri examinou os arredores para ver se tudo estava tranqüilo e em sossego; e sentou-se num banco do jardim.

Meia hora depois uma luz esclareceu a janela do quarto, e a porta abrindo-se deixou ver o corpinho gracioso de Cecília que destacava no vão esclarecido.

A menina avistando o índio correu para ele.

— Meu pobre Peri, disse ela; tu sofreste hoje muito, não é verdade? E achaste tua senhora bem má e bem ingrata, porque te mandou partir! Mas agora, meu pai disse: Ficarás conosco para sempre.

— Tu és boa, senhora: tu choravas quando Peri ia partir; pediste para ele ficar.

— Então não tens queixa de Ceci? disse a menina sorrindo.

— O escravo pode ter queixa de sua senhora? tornou o índio simplesmente.

— Mas tu não és escravo!... respondeu Cecília com um gesto de contrariedade; tu és um amigo sincero e dedicado. Duas vezes me salvaste a vida; fazes impossíveis para me veres contente e satisfeita; todos os dias te arriscas a morrer por minha causa.

O índio sorriu.

— Que queres que Peri faça de sua vida, senhora?

— Quero que estime sua senhora e lhe obedeça, e aprenda o que ela lhe ensinar, para ser um cavalheiro como meu irmão D. Diogo e o Sr. Álvaro.

Peri abanou a cabeça.

— Olha, continuou a menina; Ceci vai te ensinar a conhecer o Senhor do Céu, e a rezar também e ler bonitas historias. Quando souberes tudo isto, ela bordará um manto de seda para ti; terá uma espada, e uma cruz no peito. Sim?

— A planta precisa de sol para crescer; a flor precisa de água para abrir; Peri precisa de liberdade para viver.

— Mas tu serás livres; e nobre como meu pai!

— Não!... O pássaro que voa nos ares cai, se lhe quebram as asas; o peixe que nada no rio morre, se o deitam em terra; Peri será como o pássaro e como o peixe, se tu cortas as suas asas e o tiras da vida em que nasceu.

Cecília bateu com o pé em sinal de impaciência.

— Não te zanga, senhora.

— Não fazes o que Ceci pede?... Pois Ceci não te quer mais bem; nem te chamará mais seu amigo. Vê; já não guardo a flor que me deste.

E a linda menina, machucando a flor que arrancou dos cabelos, correu para o seu quarto e bateu a porta com violência.

O índio voltou pesaroso à sua cabana.

De repente cortou o silêncio da noite voz argentina, que cantava uma antiga xácara portuguesa, com sentimento e expressão arrebatadora. Os sons doces de uma guitarra espanhola faziam o acompanhamento da música.

 

A xácara dizia assim:

 

Foi um dia. — Infanção mouro

Deixou

Alcáçar de prata e ouro.

 

Montado no seu corcel.

Partiu

Sem pajem, sem anadel.

 

 

Do castelo à barbacã

Chegou;

Viu formosa castelã.

 

Aos pés daquela a quem ama

Jurou

Ser fiel à sua dama.

 

A gentil dona e senhora

Sorriu;

Ai! que isenta ela não fora!

 

"Tu és mouro; eu sou cristã":

Falou

A formosa castelã.

 

"Mouro, tens o meu amor;

Cristão,

Serás meu nobre sen hor".

 

Sua voz era um encanto,

O olhar

Quebrado, pedia tanto!

 

"Antes de ver-te, senhora,

Fui rei;

Serei teu escravo agora.

 

Por ti deixo meu alcáçar

Fiel;

Meus paços d'ouro e de nácar.

 

Por ti deixo o paraíso,

Meu céu

É teu mimoso sorriso".

 

A dona em um doce enleio

Tirou

Seu lindo colar do seio.

 

As duas almas cristãs,

Na cruz

Um beijo tornou irmãs.

 

A voz suave e meiga perdeu-se no silêncio do ermo; o eco repetiu um momento as suas doces modulações.

Wednesday, 17 March 2021

Good Reading: "O Compadre da Morte – um conto português" by José Thiesen (in Portuguese)

                 Tinha um camponês, que morava perto dum povoado, tantos filhos que já não havia mais a quem chamar para compadre e quando nasceu-lhe o mais novo filho, ele e a mulher coçavam a cabeça: quem levaria o miúdo ao batismo?

               E foi um dia, o campônio ia ao trabalho e cruzou com um homem bem alto e magro mas de feições afáveis, todo vestido de um branco muito limpo. Foi e perguntou: quer batizar meu filho?

                - Tu me convidas para compadre, mas sabes quem sou?

                - Não, mas alguém tão bem apessoado não pode ter má índole.

                - Pois saibas que sou a Morte e aceito ser teu compadre.

                Assim se fez o batismo e a Morte chamou ao menino Vida.

                Saídos da igreja, foram à casa do pai para festejar o feito e a Morte lhe disse:

                - O compadre, sabendo quem sou, bem percebe que não tenho dinheiro nem bens para dar ao meu afilhado, mas tenho um jeito de fazer-te muito rico.

                - E como é isso, compadre Morte?

                - Daqui por diante, apresenta-te como médico cheio de ciência e entendimento de qualquer doença. Quando te apresentarem um doente, me verás junto a ele. Se eu estiver à cabeça do enfermo, dá-lhe o que queiras que ele salvar-se-á; mas se eu estiver aos pés dele, é certo que o levarei comigo.

                - Pois está acertado, compadre!

                Foi assim que o camponês iniciou sua carreira de médico e cheia de sucesso: seu diagnóstico nunca falhava. Fama, sucesso e dinheiro vieram juntos e em abundância.

                Foi e passou o tempo: Vida tornou-se um cachoparrão cheio de viço e frescor, enquanto seu pai ficava famoso, rico e... velho! Seus cabelos brancos, o corpo mirrado e já sem força.

Veio então alguém duma mui rica e poderosa família avisar que o patriarca estava muito doente e precisavam da ciência infalível do maior médico do mundo!

A princípio, o velho não queria atender, preferindo o conforto de seus chinelos macios, mas foram tantos e tais os rogos que lá se foi o velho. Entrou no quarto do doente e viu o compadre Morte aos pés da cama. Estava para anunciar o caso como perdido quando a rica família prometeu-lhe céus e fundos, os castelos todos d’Espanha. A cobiça acendeu-se no peito do velho, já acostumado a gostar de ganhar mais e mais, e ele imaginou um jeito de lograr o compadre: mandou virarem a cama de tal jeito, que a cabeça do doente ficou onde antes estiveram seus pés.

A Morte percebeu a burla e foi-se embora sem dizer palavra; o médico ficou mais rico, o doente curou-se e tudo ficou bem até que uma vez, o curandeiro viu a Morte entrar e dizer-lhe: meu compadre, de hoje a um ano virei buscá-lo que o seu tempo terá chegado.

Embora já tivesse vivido muitos e muitos anos, o velho queria ainda viver mais e assustou-se com a idéia de morrer. Quando chegou o dia fatal, o velho pintou seus cabelos brancos de negro, aplicou uma barba retinta, chamou muita gente jovem e com eles, começou a beber, gargalhar cantar, fingindo ser outra pessoa.

Veio a Morte, viu aquela algazarra e perguntou pelo compadre. Todos responderam que o dono da casa saíra a viajar e não dera data de retorno.

- Que chatice, disse Morte; mas não posso perder nem meu tempo nem minha viagem e vou levar comigo esse um de barba retinta!

E o compadre morreu.